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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.15 no.1 Belo Horizonte jan./jun. 2022

https://doi.org/10.36298/gerais202215e17331 

ARTIGOS

 

Condições e práticas de trabalho das equipes do CRAS: políticas, direitos e alcance dos serviços

 

Work conditions and practices of CRAS teams: policies, rights, and scope of services

 

 

Suzana Almeida AraújoI; Kátia MaheirieII; Bárbara Santana RibeiroIII; Giovanna Dias de Almeida RoqueIV; Mateus BarbosaV; Ueliton Santos Moreira-PrimoVI

IUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. E-mail: psisuzana@gmail.com. (orcid.org/0000-0001-7150-1820)
IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: maheirie@gmail.com. (orcid.org/0000-0001-5226-0734)
IIIUniversidade Federal de Sergipe, Aracaju, Brasil. E-mail: barbararibeiros70@gmail.com. (orcid.org/0000-0002-7503-7487)
IVCentro Universitário AGES, Paripiranga, Brasil. E-mail: gi.dias.roque2@gmail.com. (orcid.org/0000-0003-4979-721X)
VCentro Universitário AGES, Paripiranga, Brasil. E-mail: mateus_mengo_@live.com. (orcid.org/0000-0001-3054-1900)
VIUniversidade Federal de Sergipe, Aracaju, Brasil. E-mail: welitomoreirap@gmail.com. (orcid.org/0000-0001-7784-5341)

 

 


RESUMO

Esta pesquisa integra uma investigação mais ampla, interinstitucional, abrangendo diferentes municípios do Brasil, cujo objetivo é compreender a experiência coletiva a partir do discurso das equipes de assistência social que atuam nos CRAS e sua relação com os processos de emancipação dos sujeitos. Aqui apresentam-se os resultados da investigação compreendendo oito unidades do CRAS de seis municípios localizados na região agreste do norte da Bahia e do sul de Sergipe, desenvolvida por meio de rodas de conversa com as equipes que integram os equipamentos. Focalizamos as atividades desenvolvidas, os trabalhos em grupo, as dificuldades enfrentadas e as potencialidades com as quais as equipes se deparam no contexto dos CRAS. Os resultados apontam para a falta de estrutura institucional, para dificuldades na atuação no campo, ao mesmo tempo em que avanços são identificados em seu fazeres, indicando o SUAS como política social imprescindível na atualidade.

Palavras-chave: CRAS; assistência social; proteção social básica.


ABSTRACT

This research integrates a broader, interinstitutional investigation covering different cities in Brazil, whose objective is to understand the collective experience from the discourse of the social assistance teams that work in Reference Centers for Social Assistance (CRAS) and its relationship with the emancipation processes of the subjects. Here we present the results of the investigation comprising eight CRAS units from six municipalities located in the agreste region of northern Bahia and southern Sergipe, developed by means of conversation circles with the teams that integrate the equipment. We focus on the activities developed, group works, the difficulties, and the potentialities that the teams face in the context of CRAS. The results point to the lack of institutional structure and to difficulties in the area, at the same time it identifies advances in their actions, indicating the Unified Social Assistance System (SUAS) as an essential social policy in the present time.

Keywords: CRAS; social assistance; basic social protection.


 

 

Os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) são parte das políticas de Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social, responsáveis por identificar e acompanhar famílias em situação de vulnerabilidade. É uma unidade que desempenha as funções de gestão da proteção básica e de oferta do Programa de Atenção Integral à Família - PAIF (Brasil, 2009). Trata-se de uma ferramenta importante na observância dos problemas sociais e na definição de estratégias para mobilizar recursos e ampliar o alcance da assistência a setores empobrecidos da população. Os CRAS trabalham sob o prisma da prevenção, portanto, suas ações devem ser dirigidas de modo a evitar que a situação de vulnerabilidade e de risco social se instale em determinado território, por meio do "desenvolvimento de potencialidades e aquisições, do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, e da ampliação do acesso aos direitos de cidadania" (Brasil, 2009, p. 9).

Os serviços ofertados pelos CRAS e as diretrizes quanto à sua estrutura, organização e execução das ações são estabelecidos pela Política Nacional de Assistência Social-PNAS de 2004 e sua Norma Operacional Básica-NOB, publicada em 2005, com uma nova versão em 2012, além das Orientações Técnicas elaboradas pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome de 2009. A composição das equipes de referência que devem atuar nas unidades e os princípios que regem essa atuação são estabelecidos pela NOB-RH/SUAS (2006), compreendendo técnicos de nível superior (assistente social, psicólogo) e de nível médio. Em síntese, constam como atribuições dos CRAS: disponibilização de serviços socioeducativos e de convivência voltados para grupos de diferentes faixas-etárias; programas de inserção produtiva e de incentivos ao protagonismo juvenil; projetos de capacitação, geração de renda, de enfrentamento da pobreza; encaminhamento para outras políticas públicas; prestação de informação e orientação para a população de sua área de abrangência (Brasil, 2004). Todas essas funções têm como alvo a família e os indivíduos em seu contexto comunitário, visando à orientação e ao convívio sociofamiliar.

Em 14 anos do SUAS e de implementação dos CRAS uma série de entraves se apresentam quanto ao funcionamento dos serviços, conforme observado em pesquisas como as de Cruz (2009), Macedo e Dimenstein (2012), Raichelis (2010), Macêdo, Alberto, Santos, Souza e Oliveira (2015), Andrade e Romagnoli (2010), Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2014), entre outras. Em tais trabalhos se evidenciam dificuldades de variadas ordens que afetam o desenvolvimento das ações e a atuação dos profissionais, envolvendo aspectos como: inadequação da estrutura e escassez de material para a realização das atividades; formação acadêmica imprópria para o trabalho desenvolvido no contexto das políticas públicas e falta de qualificação e capacitação técnica; desarticulação com a rede socioassistencial; oferta de atendimentos e modos de intervenção que não condizem com os preceitos da PNAS e do Conselho Federal de Psicologia, além de práticas ainda assistencialistas; descontinuidade dos serviços; vínculos de trabalho precários e alta rotatividade dos profissionais, além da sensação de saturação e cansaço vivenciada por estes, mal-estar e impotência diante de situações de difícil manejo. Esses indicativos são fundamentais para analisar o alcance da política e pensar estratégias para aprimorar os serviços prestados.

Esta pesquisa integra uma investigação mais ampla, interinstitucional, coordenada pela Profa. Kátia Meheirie da Universidade Federal de Santa Catarina, abrangendo diferentes municípios do Brasil, cujo objetivo central foi compreender a experiência coletiva a partir do discurso das equipes de assistência social que atuam nos CRAS e sua relação com os processos de emancipação dos sujeitos. Aqui se apresentam os resultados da investigação, compreendendo oito unidades do CRAS de seis municípios localizados na região agreste do norte da Bahia e do sul de Sergipe, desenvolvida por meio de rodas de conversa com as equipes que integram o equipamento. Trazemos um recorte das informações obtidas com os técnicos participantes, focalizando os tipos de atividades desenvolvidas, como é feito o planejamento das ações, a finalidade das visitas domiciliares, como acontecem os trabalhos em grupo, as dificuldades enfrentadas para o alcance dos objetivos, impedimentos e potencialidades com os quais as equipes se deparam no contexto dos CRAS.

 

Procedimentos Metodológicos

Este estudo foi realizado no ano de 2016. Foram selecionadas oito unidades CRAS para realização de rodas de conversa com a equipe de trabalho e/ou entrevistas individuais. As unidades visitadas encontram-se em municípios de 15 mil a 100 mil habitantes, localizados na região agreste do norte da Bahia e do sul de Sergipe. Vale ressaltar que há um contingente populacional expressivo vivendo em áreas rurais nesses municípios (mínimo de 38% e máximo de 87%, segundo o Censo 2010 do IBGE). A área urbana é rodeada por povoados que compõem o setor rural, o que confere dinâmicas próprias aos modos de organização e funcionamento das cidades.

Em cada unidade as equipes foram convidadas a participar de uma roda de conversa (Melo & Cruz, 2014), agendada de modo a contar com a presença de todos os membros que atuavam em cada uma. No entanto, apenas uma parte compôs os grupos, totalizando 11 assistentes sociais, seis psicólogas, dois orientadores sociais, quatro coordenadoras, em um total de oito equipes. A conversa foi guiada por um roteiro que abordava as relações entre membros da equipe (entre si), com a gestão e com a rede; o olhar sobre o usuário e a comunidade; as condições e rotinas de trabalho; e as atividades realizadas com grupos.

O recorte dado neste artigo focaliza as condições e rotinas de trabalho e as atividades realizadas com grupos. Foi utilizado um gravador de áudio para registro das informações, as quais foram posteriormente transcritas, separadas e distribuídas em eixos temáticos. Em um dos municípios, os profissionais haviam sido desligados e as atividades estavam paralisadas, de forma que lá foi realizada apenas uma entrevista individual via e-mail com a assistente social.

Ao longo do texto as falas são identificadas pelo número da equipe (E1 a E8) e função exercida (assistente social = AS, psicóloga/o = PSI, orientador/a social = OS, coordenador/a = coord). Os procedimentos adotados estavam em conformidade à Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde sobre as normas aplicáveis em pesquisas envolvendo seres humanos no âmbito das Ciências Humanas e Sociais.

Os resultados foram obtidos por meio de análise de conteúdo temática, na qual iniciamos os procedimentos de análise com a transcrição na íntegra de todas as entrevistas e rodas de conversa e, em seguida, passamos a categorizar seu conteúdo. Criamos eixos temáticos e, a partir deles, as categorias analíticas. Em uma tabela foram inseridas as categorias e sobre elas as falas e os contextos onde emergiram. Com base neste material, fomos construindo a análise.

Partimos das indicações metodológicas de Vygotski (1992/1934), por meio das quais se entende que os sentidos são construções histórico-culturais, possíveis por processos intersubjetivos nos quais podemos encontrar sentidos mais instáveis e singulares, assim como significados mais estáveis no contexto social, mais coletivos e, portanto, partilhados. Todo sentido, seja mais singular ou mais coletivo, tem um pensamento que lhe atravessa, e todo pensamento tem uma base afetivo-volitiva que o sustenta.

As falas dos sujeitos se constituem aqui como textos discursivos, os quais são compreendidos como práticas sociais (Iñiguez Rueda, 2004), que se fazem possíveis por meio de relações intersubjetivas, mas que, ao mesmo tempo, constituem-se como produtores de novas objetividades, novas relações e novos sentidos.

Compreendê-las é tornar a análise um movimento, um movimento que implica a articulação entre sujeitos, entre sujeitos e objetos, entre sujeitos e situações. O exercício de nosso olhar nessa investigação leva em conta que parte do que analisamos diz respeito ao sentido particular que uma determinada trabalhadora experencia em seus fazeres, mas levamos em conta, também, que essa particularidade contém um universal e exprime toda uma categoria profissional no campo da assistência social. Tal compreensão indica que esta investigação, ao focar as experiências singulares, exprime e aponta um contexto muito maior de fazeres e experiências no âmbito do SUAS, podendo visibilizar dilemas e possibilidades para além do locus onde tais experiências concretamente ocorreram.

 

Rotinas e Práticas de Trabalho das Equipes no CRAS

Concentramos aqui nossa análise nas condições, rotinas e práticas de trabalho das equipes dos CRAS, procurando evidenciar potenciais e impedimentos no planejamento e na execução das ações previstas. As equipes descrevem como atividades desenvolvidas em seu cotidiano de trabalho: visitas domiciliares, encontros de grupos, oferta de cursos profissionalizantes e oficinas, atendimento individual, estudos de caso, reuniões de equipe, encaminhamento à rede socioassistencial, palestras, acompanhamento das famílias cadastradas no Bolsa Família. Isso já está previsto na própria tipificação dos serviços definidos pela política, que estabelece também a destinação dos recursos, mas "a forma como cada CRAS vai dirigir vai depender do planejamento que é feito pelo coordenador junto com os técnicos, e vai definir como a trabalho vai ser desenvolvido no decorrer do ano" (E3/PSIb). A distribuição das atividades entre os membros da equipe não segue uma padronização estrita, com recortes rígidos de função. Essa distribuição ocorre em diálogo com a coordenação ou entre a própria equipe, conforme disponibilidade dos técnicos para se envolverem em cada atividade.

A oferta de serviços é pensada a partir da busca ativa, por demanda espontânea ou encaminhamentos de outros órgãos como Ministério Público e Conselho Tutelar ou proveniente das áreas da saúde e educação. De modo geral, as equipes afirmam que as ações são traçadas com base na análise das vulnerabilidades que se apresentam, por meio da identificação de demandas. Em dois dos municípios pesquisados é comum receberem solicitações do judiciário para elaboração de relatório psicossocial, ainda que isso fuja às atribuições do CRAS, resultando na interrupção de algumas ações para atender tal demanda, conforme aponta uma das psicólogas. Em outro município, a equipe costuma receber todas as demandas psi, sejam de CREAS ou CAPS. Assim, o CRAS se torna o local de referência para lidar com variadas demandas que envolvem questões amplas de ordem social ou psicológica, considerando a ausência de espaços outros que poderiam atendê-las. Um dos efeitos disso é a sobrecarga de trabalho para as equipes, o que pode comprometer a condução dos próprios serviços, como observaram também Oliveira et al. (2014).

Em muitos momentos, os profissionais se declaram impelidos a realizar atendimentos que se distanciam dos modelos preconizados na política de assistência social, como o atendimento clínico, algo também identificado em outras pesquisas (Macêdo et al., 2015; Ansara & Dantas, 2010; Oliveira et al., 2011, entre outros). Isso é reflexo da inexistência de espaços com oferta de atendimento psicológico público, como apontado por uma das psicólogas, mas se destaca como uma modalidade de atendimento fortemente estabelecida entre os repertórios de intervenção da Psicologia, tradicionalmente considerada a principal forma de atuação de psicólogos, tratando-se, portanto, não apenas de acolher demandas, mas de exercer uma atividade com a qual se possui maior familiaridade, o que está diretamente atrelado à formação em Psicologia, ainda marcada por um forte viés clínico, como constatado também nos trabalhos mencionados.

Enquanto o psicólogo do CRAS, o psicólogo social, ele precisa ter uma ideia do todo mais amplo, só que aqui eu vi uma dificuldade muito grande de trabalhar com isso, e eu acabei individualizando muito o meu trabalho, como eu estava aqui e tinha uma demanda, eu não deixava a pessoa sair sem atendimento de uma hora, entendeu? Eu sentava lá e ouvia aquela pessoa e se ela quisesse retornar, ela retornava pra mim. Então aí vêm as críticas da saúde de vez em quando, uma psicóloga do CRAS fazendo atendimento individual? Tô, por que não? Meu olhar é pra aquele usuário e se as coisas não funcionam como devem, de jeito nenhum, então vamos acolher. (...) Eu acredito que o profissional tem que ter um foco na necessidade do usuário, independente da burocracia, de regras, de tudo, pra gente cumprir e eu nunca deixei de fazer as visitas (E5/PSI).

Em sua fala, a psicóloga remete a um compromisso com o usuário que busca o CRAS, entendendo que prestar o atendimento é uma questão ética, mediante a impossibilidade de funcionamento dos serviços conforme se preconiza. Há, assim, como desdobramentos, intervenções que se limitam a "amenizar as sequelas decorrentes da condição de vulnerabilidade social dos usuários. Tal atuação pode ser caracterizada por aliviar o sofrimento psíquico, sem confrontá-lo com a realidade social que o gera" (Macêdo et al., 2015, p. 820). A própria leitura da demanda já se dá em um recorte clínico, para a qual se concebe uma resposta particularizada, orientada para dinâmicas internas, pautada exclusivamente na escuta, não estando em consonância, portanto, a um fazer que propicie "emancipação, autonomia e liberdade", conforme preveem as orientações do Conselho Federal de Psicologia (2008). Nas diretrizes de trabalho formuladas pelo CFP consta que a modalidade de atendimento psicoterapêutico não deve ser realizada no contexto da proteção social básica, o que é de conhecimento dos profissionais que atuam nesse cenário, conforme observado. Enquanto essa escuta clínica tradicional e individual se mostra como uma opção viável, desvia-se o fazer de outras ações que poderiam ser pensadas com enfoque psicossocial, no sentido de fortalecer as articulações socioassistenciais, contribuindo com o olhar crítico na observância dos fenômenos subjetivos que atravessam a experiência social, grupal, coletiva e, assim, fornecer subsídios para compor a própria estrutura das políticas públicas.

Questionados sobre a realização de reuniões para planejamento das ações, afirmam que elas não são regulares, acontecem em momentos específicos do ano, assim, as discussões sobre casos e projetos ocorrem nas interações diárias entre os membros da equipe, informalmente. O planejamento é feito, portanto, de forma fragmentada, cada profissional desenvolve suas atividades de maneira individual ou com sua dupla. Cruz (2009) ressalta a importância das reuniões técnicas enquanto espaço de condensação e ressignificação das ações e atividades desenvolvidas, considerando que sua ausência dificulta a avaliação dos resultados da unidade como um todo, assim como não abre espaço para o planejamento de atividades mais integradas. No que diz respeito ao planejamento, este nem sempre garante o andamento das atividades, conforme aponta a psicóloga:

A gente sempre tem o planejamento, mas que a gente não cumpre justamente pelas políticas públicas. Por exemplo, (...) em relação às cestas, passou um ano sem vir, tem dois anos que eu trabalho no CRAS e veio uma vez, e é restrita, você tem que escolher aquela que está precisando mais (E3/PSIb).

As dificuldades aqui se referem à imprevisibilidade no repasse de recursos, à participação inconstante dos usuários, bem como às "demandas urgentes" que aparecem e exigem que os esforços sejam voltados para elas.

Todas as equipes realizam visitas domiciliares, apontando enquanto finalidades: tipificação e enquadre da situação vivenciada pela família; investigação das condições de vida para averiguar, inclusive, se a família é "merecedora de recebimento" de auxílios; identificação de necessidades na comunidade com base no prontuário do SUAS para avaliação de demandas.

Aí a gente recebe uma denúncia, tipo trabalho infantil, a gente vai fazer a visita, vai verificar e aí a gente enquadra eles, para tirar da rua, das drogas, do trabalho infantil ou então a própria mãe vem aqui perguntar se pode enquadrar o filho pra aprender as atividades ou até brincar, se distrair. A gente faz sempre a visita na casa da família, para ver as condições, para enquadrar (E2/AS).

As visitas assumem função investigativa, seja no sentido de avaliação para enquadre nos serviços, seja de levantamento de demandas. A tipificação seria a garantia de acesso ao equipamento, entendido como via de solução do problema identificado. A exigência do cumprimento de condicionalidades para se tornar um usuário do CRAS de certa forma reduz a necessidade de uma investigação mais aprofundada das demandas na forma como se apresentam, na medida em que são de imediato submetidas ao crivo dos determinantes da política, limitando também as possibilidades de ação para lidar com elas, visto que para cada enquadre há um repertório previsto de ações. Como também observado por Prado, Miranda e Pereira (2017), verificam-se uma ênfase na cobrança do cumprimento de condicionalidades e na manutenção de práticas cristalizadas e de pouca eficácia.

 

O Trabalho com Grupos

No momento das rodas de conversa, as atividades em grupo estavam interrompidas em virtude do período eleitoral, conforme justificaram. Mas todas as equipes informaram realizar atividades em grupo regularmente, principalmente de gestantes, idosos, adolescentes e, em duas unidades, grupos de mulheres. Os encontros acontecem em forma de palestras/reuniões ou atividades/oficinas, delineadas de acordo com as características do grupo. No grupo de gestantes mencionam palestras socioeducativas, oficinas de corte e costura e confecção do enxoval, finalizadas com a entrega dos enxovais. Para idosos, oferecem palestras, dinâmicas de grupo, comemorações em datas festivas, aulas de educação física, alongamento com fisioterapeutas, criando um espaço de "interação dos idosos com a sociedade (...) é um espaço para debater, tanto com a equipe, quanto com profissionais do município que são convidados a vir" (E8/Coord). São comuns atividades em grupo de caráter recreativo, como brincadeiras, dança, jogos, passeio ou mesmo eventos festivos, como o "CarnaCRAS" e "Arraiá do CRAS". Além disso, mencionam ainda oficinas para confecção de artesanato, aulas de violão, fotografia, cursos de "corte e cabelo" e "corte e costura". A formação dos grupos é feita por faixa etária ou por demandas, avaliadas nas visitas domiciliares.

Por exemplo, gestantes menores de 18 anos, se sentir a vulnerabilidade, se o índice for maior nesse sentido, cria-se um grupo de gestantes. Se a família tem benefício eventual, no ano de 2015 a gente criou o grupo de benefício eventual justamente por ter essas famílias todos os dias pedindo cestas básicas, então tinha que ser feito alguma coisa para que essas famílias saíssem dessa realidade, aí foi criado o grupo com o objetivo de geração de renda, de orientar, né? (E7/Coord).

Segundo os participantes, o trabalho em grupo tem por objetivo solucionar os problemas que desencadearam a situação de vulnerabilidade da família ou a mudança da realidade vivida e a construção de meios de sobrevivência autônoma. Para tanto, apostam na geração de renda. Segundo uma das coordenadoras,

o intuito não é que uma pessoa venha e se inscreva para um curso, o objetivo é que venham aquelas famílias que a gente acompanha para que elas tenham um algo a mais, para que não fiquem tão acomodadas a receberem o Bolsa família, tratamos de tentar gerar uma possibilidade de renda futura (E4/Coord).

Assim, as atividades são destinadas a famílias que já possuem uma relação com o CRAS, com intuito de torná-las independentes da assistência e dos benefícios. Os grupos são também caracterizados como momentos de distração, de interação, encontros que possibilitam troca de experiências e conhecimentos, proporcionando aprendizagem, melhoria da qualidade de vida e de "condições enquanto ser humano" ou mesmo "uma forma de sair de casa, sair daquela vida monótona" (E4/Coord).

O que a gente quer é que ela supere aquele momento, aquela situação, independente de se for envolvido com alguma coisa de errado, a gente vai trabalhar com ele e com a família para poder buscar meios de tirar, prevenir se tiver prevenção, ou então de tirar desse mundo das drogas, do crime, às vezes acontece também (E7/ASa).

Uma vez que as diretrizes da atuação das equipes nos CRAS apontam para a construção e o fortalecimento de vínculos familiares, coletivos e comunitários, ainda nos cabe questionar o porquê de tal propósito ficar invisibilizado nos objetivos e nas práticas da maior parte das equipes entrevistadas.

Todas as equipes mencionam dificuldades na realização e manutenção dos grupos, queixando-se do esvaziamento gradual por parte dos usuários.

O que vai estimular eles mesmos é as atividades que estão sendo ofertadas, se não eles não vêm. Então é um trabalho, é uma briga que a gente tem que travar (E2/OSa).

Geralmente começa com muitas pessoas e depois vai ficando só aquelas pessoas mesmo que... Aí no final, quando vai entregar o enxoval, é que você vê aquele monte de gente. Porque tem que ter aquele incentivo, né? E na verdade, eu não acho isso ruim porque tem que ter um incentivo para elas, por exemplo, as oficinas (E3/PSIa).

A ASb (E3) indica que chega a haver uma sobrecarga de atividades para usuários acompanhados pelas políticas, o que interfere na assiduidade:

Eu sei que cada política tem que ter a participação deles, que é aí onde ela vai conhecer os direitos, dar a contrapartida. Mas eu acho que é muita política para eles estarem presentes obrigatoriamente (E3/ASb).

Assim, o envolvimento nas ações promovidas pelos serviços é entendido como mera obrigatoriedade e a preocupação reside na garantia de continuidade, sendo que as estratégias para tal se pautam na forma como a atividade é desenvolvida e na oferta de incentivos para a manutenção dos grupos.

A avaliação das atividades ocorre conforme manifestação dos gostos e dos desejos dos usuários: "Estão gostando? Vamos continuar fazendo isso? Aí se não gostam, nós vamos tirando. A gente diz 'tem isso e tem isso, o que vocês querem?', não é uma coisa imposta. Se não fizer o que eles gostam, não adianta" (E2/OSa). A psicóloga concorda que a atividade deve ser "minimamente interessante" e deve gerar "alguma contribuição real para vida deles, para que eles se sintam motivados para isso (...) A gente mostrar também para eles que aquilo é importante, que ele vai trazer resultado prático na vida deles" (E4/PSI). Segundo a assistente social, deve-se identificar o que o usuário "faz de melhor" e com o que ele se identifica para, a partir daí,

incentivar ou até mesmo encaminhar para aquela coisa que ele gosta de fazer. Tem gente que gosta de fazer comida, tem gente que tem jeito com arte, com a mão, tem gente que já não gosta dessas coisas, mas gostam de um esporte, então tem tudo isso" (E7/ASb).

Inicialmente havia controle de faltas, o que servia, inclusive, como ameaça para garantir a participação:

O serviço não trabalha com esse negócio de faltas mais. Tem algumas cidades que você vai encontrar. Eu fui numa capacitação e a pessoa disse "Eu ameaço com faltas". Eu não sei o que é que está acontecendo lá, porque depois da tipificação que teve dos serviços e nas leis, isso não importa mais, não é cobrado mais. Você não pode dizer "olhe, vou botar falta e você vai perder o Bolsa Família" (E2/AS).

Expressa-se uma preocupação em ofertar um serviço orientado para especificidades dos usuários e que produza "resultados práticos", porém, a análise da adesão nos grupos está basicamente pautada no prazer que as atividades proporcionam, regulada pelas manifestações de interesse em continuar ou não acompanhando as atividades, já que não aparecem estratégias de avaliação da efetividade dos serviços. Não ficam claros quais são os resultados esperados ou como os trabalhos grupais podem alcançar os objetivos previstos. Em muitos momentos se acentua o caráter recreativo das vivências nos grupos, consideradas também um passatempo. Mais uma vez é possível questionar: onde se enquadra e como se aborda a necessidade de construir e fortalecer vínculos coletivos e comunitários?

Em outra pesquisa, Oliveira et al. (2014) identificaram a falta de objetivos ou projetos pedagógicos nos trabalhos com grupos em CRAS investigados no estado do Rio Grande do Norte, não atendendo a sua finalidade primordial, que é prevenir violações de direitos. É necessário que seja feito o mapeamento das necessidades e potencialidades dos usuários, para assim haver o planejamento de um trabalho que possa fortalecer os sujeitos na superação das vulnerabilidades. Os cursos profissionalizantes são um exemplo disso. Já os momentos de recreação poderiam ser usados como uma maneira de resgatar a cultura local, o que apontaria para a construção de uma identidade da comunidade como um movimento de unificação cultural. Identificar potencialidades na comunidade e canalizá-las para a produção de conhecimento e renda é fundamental, promovendo ações por meio das quais os sujeitos se percebam enquanto atores sociais capazes de produzir realidades diferentes, assumindo de fato o caráter de proteção social das políticas de assistência.

O que pode potencializar ou fazer surgirem a criação e o fortalecimento de vínculos coletivos e comunitários? O sentimento e a força do "nós" no enfrentamento da pobreza e das diferentes formas de violação vividas pelos usuários. Não seriam os CRAS os mediadores para tal propósito?

 

A Assistência Social como um Direito e o Alcance dos Serviços: Potências e Impedimentos

Todas as ações executadas pelo CRAS são enquadradas pela maioria dos profissionais como um direito dos usuários.

Se ele está recebendo, é porque é direito. Se ele não receber, pode ser bonzinho como for o profissional, ele não vai receber porque não se enquadra. A gente não vai assinar um relatório, dar um parecer comprometendo nosso nome, dando direito a uma coisa que ele não tem (E3/ASb).

Eles vêm aqui e a gente busca dar essa vertente a eles, esse conhecimento do que é direito do usuário, do que não é, esses cursos para dar autonomia, para que o usuário possa buscar o que lhe é de direito e saber os meios para qual procurar e escapar de todas as suas necessidades, porque são públicos extremamente vulneráveis os que estão aqui, os que procuram os nossos serviços (E3/PSIb).

A finalidade última dos serviços está em "emancipar" os sujeitos e as famílias, atuar para promover a autonomia e o reconhecimento dos direitos: "É sempre dar autonomia para que o usuário busque e consiga resolver as suas demandas" (E3/PSIb) ou "conscientizar para os direitos, para que possam mudar sua realidade e sua história", entendendo que o papel do técnico é "fazer o encaminhamento e conversar, às vezes, com outro profissional" (E3/PSIb). Há uma preocupação em não "tutelar o serviço", "se não a gente vai virar mãe. A gente sempre indica, se ele não souber, pode perguntar. A gente orienta e a pessoa vai de livre vontade" (E3/PSIa).

A ideia de autonomia aparece fundamentalmente relacionada ao uso da própria rede de serviços, entendendo que o usuário deve ter compreensão dos caminhos e seguir de modo independente, procurando soluções para os problemas apresentados por meio dos meios que as políticas oferecem. Partem de uma perspectiva de produção de autonomia que somente é possível a partir da conscientização dos usuários acerca dos seus direitos. Essa postura reflete os princípios adotados pelo SUAS, que propõe uma ruptura do viés assistencialista, trazendo em suas bases a necessidade de atendimento igualitário e universal, substituindo uma política de troca de favores. Porém, mostra-se em muitos momentos a reprodução automática de discursos amplamente disseminados, mas que não representam os fins das práticas cotidianas exercidas nos contextos dos CRAS. Como bem destaca Romagnoli (2016),

abalar e transformar essa herança assistencialista e clientelista, deslocando a condição de necessitado ou carente para a condição de portador de direitos sociais, não se resume somente à alteração dos documentos que embasam as ações de combate à exclusão social, embora estas sejam essenciais nesse processo de mudança. (p. 152)

Desse modo, as mudanças almejadas no sistema de políticas sociais requerem desde a reformulação dos princípios que ancoram as ações de assistência, à mudança nas representações que os profissionais têm do serviço, do usuário e das demandas, bem como a construção de práticas embasadas em contínuas reflexões, que sejam orientadas pela política, mas traçadas em conformidade ao contexto de abrangência dos CRAS e às particularidades apresentadas pelas comunidades e necessidades concretas das famílias, rejeitando medidas exclusivamente protocolares e a homogeneização das demandas, muitas vezes ocasionada pela própria tipificação.

Em alguns momentos aparece a premissa de que a baixa adesão de usuários ao serviço se dá por "acomodação". Chama a atenção a análise da assistente social da E7, que reproduzimos na íntegra:

A gente quer estar aqui disponível para ofertar o serviço, mas tem muito usuário que ele é acomodado, então mesmo você ofertando, ele não quer, ele põe dificuldade, "ah, que eu não posso sair de casa todo dia", "ah, porque nesse horário não dá para mim", então quer dizer a gente oferta, mas nem sempre eles tão disponíveis para vir e aproveitar desse direito deles. Agora, enquanto tem uns que não fazem questão, tem outros que adoram, e que querem continuar todos os anos participando dos grupos, é tanto que a gente diz "não, mas ano que vem a gente dá oportunidade para outras pessoas, por que você já superou isso que você estava passando, então agora a gente vai chamar outras famílias", "ah, mas eu quero participar", muita gente é assim, então eles gostam muito. Mas, sempre tem os que não dão importância para os direitos deles, então a gente deixa bem claro "oh, não é um favor, não é uma caridade que a gente está fazendo pra você, é um direito de vocês essa política da assistência social, então vocês podem fazer usufruto delas, porque a gente tá aqui para ofertar isso pra vocês, mas não é um favor, é um direito", a gente deixa isso bem claro (E7/ASa).

Para a assistente social, não fazer uso dos serviços significa não conferir importância aos próprios direitos, e as justificativas apresentadas pelos usuários que indicam não poder participar não são consideradas dificuldades genuínas, apenas desculpas. Nesse prisma, o fato de ser "um direito" já deveria em si garantir adesão, não há em nenhum momento uma problematização acerca do modo de funcionamento dos serviços, de como as demandas são avaliadas em suas variadas formas de expressão (reduzidas à tipificação e identificação a partir do crivo dos técnicos), bem como dos efeitos produzidos nessas vivências, para além do "gostar ou não gostar". Também não se problematiza o fato de o serviço ser confundido com "caridade" ou "favor", o que dá a entender que os modos de operar permanecem, apesar de os profissionais se ampararem reiteradamente na retórica dos direitos, como se suficiente para transformar a realidade dos serviços. Ressalta-se, ainda, a crença de que a participação nos grupos promove, via de regra, a superação da condição anterior, não requerendo maiores análises. Por sua vez, reforça-se o caráter recreativo das ações na medida em que usuários que já passaram pela vivência manifestam interesse em continuar, algo visto como positivo.

Acerca das potências e dos impedimentos da atuação no CRAS, os participantes apresentam muito mais dificuldades no exercício das suas funções. Enquanto potência mencionam, principalmente, a garantia de direitos, a possibilidade de melhorar as condições de vida das pessoas, de enfrentar as situações de vulnerabilidade e minimizar as dificuldades das famílias que se encontram "marginalizadas e excluídas da sociedade de alguma forma, ou excluídas do mercado de trabalho, da escola, ou saúde" (E1/ASb). Segundo a psicóloga, é positiva "essa oportunidade de ir ao encontro das pessoas, acho isso bacana, sair da instituição, do espaço físico, sabe? E ir ao encontro, buscar vida" (E4/PSI). A assistente social da E5 considera que a potencialidade do CRAS é organizar e padronizar as ações de assistência social do município e ser um ponto de referência dessa política.

Com a implantação do CRAS nos municípios houve uma unificação das ações de assistência social e isso é algo muito positivo, porque antes não era critério para um município implantar a assistência social, então o gestor podia conduzir o município da forma que ele quisesse (...) As pessoas hoje buscam os vereadores políticos ainda como forma de assistência, mas, com a implantação dos CRAS mudou um pouco esse cenário (E5/AS).

Enquanto impedimentos remetem aos sistemas burocrático, administrativo e de gestão próprios do setor público, bem como à morosidade na mobilização de recursos necessários ao exercício da assistência, à falta de motivação, de credibilidade, de autonomia e à descrença no serviço, a gestão é apontada como um entrave ao invés de um facilitador. Entre a identificação de necessidades e a resposta do serviço para atendê-las há uma distância, e nem sempre a efetivação das ações é possibilitada.

Entre as cidades visitadas, três contam com mais de uma unidade CRAS, enquanto as demais com apenas uma. A estrutura física dos espaços é por vezes considerada imprópria para a realização plena das atividades previstas.

Aqui é uma casa alugada e a política de assistência não avançou como a saúde avançou, você não chega mais em um lugar de saúde e é uma casa, (...) a unidade de saúde tem aquela estrutura característica, e os CRAS ainda não (E3/ASa).

Segundo os participantes, os locais de instalação do CRAS são caracterizados da seguinte forma: três unidades se encontram numa região central de fácil acesso para quem vive na cidade, mas distante de alguns povoados; outras três estão localizadas em zonas de vulnerabilidade (em diferentes níveis) e são acessíveis; e duas estão em uma região de baixa vulnerabilidade, sendo que o acesso se torna dificultoso em virtude da distância dos povoados que compõem o quadro de abrangência e da ausência de transporte público. Uma assistente social menciona a inexistência de casas com uma estrutura mínima requerida para o funcionamento do CRAS em regiões de alta vulnerabilidade, o que inviabiliza a instalação do equipamento.

A descontinuidade dos serviços é um problema enfrentado por todas as unidades, ocasionada por mudanças de endereço, da equipe e pelo repasse insuficiente de verbas. As trocas de endereço acontecem em virtude de não haver um local próprio para o CRAS e "envolve questões políticas também, né? Porque a pessoa que alugou não vai mais alugar para essa gestão. Então, eu acho que seria necessário um ponto, nem que seja onde fosse, mas que seja fixo, né?" (E3/PSIa). A política eleitoral da gestão pública municipal aparece também atrelada às mudanças no quadro de profissionais que integram os CRAS, pois no período de eleições comumente ocorrem demissões e a reconfiguração das equipes. Os profissionais se queixam da impossibilidade de dar seguimento ao trabalho:

Nós não dispomos de mecanismos suficientes para sanar certas demandas, porque depende de recursos federais, estaduais, onde os municípios não recebem para estar ofertando, então é feita tentativas de amenizar aquela eventualidade. (E8/AS)

Aquelas pessoas que estão ali, elas não estão à toa, elas estão ali porque precisam, então de repente você ofertava aquele serviço e você tem que parar, e aquela pessoa não foi nem preparada (E7/ASa).

Volta do zero, começar de novo, porque tudo que você fez, você perdeu ali (E7/ASb).

Isso impede o estabelecimento de relações duradouras entre a comunidade e a equipe, aspecto importante no que diz respeito ao amplo conhecimento do território e de suas vulnerabilidades, bem como das condições de vida das famílias assistidas.

Conhecer o território é fundamental para que os profissionais articulem projetos coerentes com as demandas da comunidade, bem como acompanhar os efeitos de seu trabalho na realidade das pessoas atendidas. Além disso, chama a atenção a ausência de compromisso por parte das gestões públicas municipais com a população atendida, cujos interesses são postos em prioridade e atravessam o funcionamento das políticas sociais. Como estabelecer uma prática na direção da criação e do fortalecimento de vínculos se não sabemos como e quem pertence ao território?

Os profissionais mencionam também a organização da estrutura técnica, que nem sempre corresponde à normativa.

A demanda é grande, unidade pequena, poucos técnicos. E querendo ou não você percebe que isso aí, é, não dá para você desenvolver um trabalho tanto como você gostaria que fosse, né? Porque o CRAS ele não atinge tanto quanto ele deveria atingir (E7/Coord).

O pequeno número de profissionais que atua no serviço impossibilita o acompanhamento frequente das famílias, bem como o atendimento daquelas que residem em locais mais distantes. A psicóloga da E5 fala da necessária "boa vontade" dos profissionais, que precisam ir "dando um jeitinho e ir fazendo". Isso é dificultado ainda pela inexistência de um carro exclusivo, havendo apenas um veículo para uso de toda a rede das cidades visitadas.

Nós íamos com o nosso próprio carro, porque a gente não podia se atrasar e a justiça lá cobrando, e foi rodando aqui com o nosso próprio combustível. A gente não vê como má vontade, a gente vê como prioridade deles, até a saúde e educação eles priorizam como algo necessário que não pode faltar mesmo, aí é um motorista só um carro só (E5/PSI).

Se fosse às vezes outro profissional, com a visão mais acomodada, diria: não, não tem mesmo, não vou fazer, não tem carro hoje para fazer a visita, então deixe (E5/AS).

As dificuldades enfrentadas no exercício do trabalho no contexto das políticas de assistência social são inúmeras e identificadas em uma série de pesquisas que trazem elementos semelhantes no que diz respeito ao funcionamento e à estrutura dos serviços, repasse de recursos e condições de trabalho, em distintas partes do país (Macêdo et al., 2015). Ao dialogar sobre o alcance das ações dos profissionais que compõem o serviço, muitos mencionam o sentimento de impotência e angústia, ao esbarrarem nas limitações que se apresentam na efetivação da política.

Tem uma estudiosa do serviço social que escreveu sobre isso há muito tempo, que tem duas profissionais, a fatalista e a messiânica. A messiânica é aquela que acha que vai resolver tudo, que é o herói, e a fatalista é aquela que diz "eu não posso fazer nada, tudo está dado e eu não tenho o que fazer". As duas estão equivocadas (E3/ASb).

Como destaca Romagnoli (2016), a experiência de trabalho no âmbito da assistência social está permeada por "angústias, indagações, desestabilizações, endurecimentos, invenções, precarizações acometem as equipes em suas atuações" (p.153), reflexos das lacunas existentes entre o que está estabelecido nas diretrizes formais da PNAS e o que de fato se desenrola na prática cotidiana dos CRAS. Ao se depararem com os entraves do campo, os profissionais se sentem frustrados por não poderem realizar suas ações como deveriam. Diante disso, alguns se acomodam à dinâmica institucional, enquanto outros vivenciam continuamente o conflito. Esse é um mecanismo que age não somente sobre os profissionais, mas que atinge também os usuários do serviço e a relação que estabelecem com o equipamento.

Eu particularmente sinto que gostaria de dar uma contribuição maior para aquelas famílias dentro da realidade que elas apresentam. É um trabalho que é gratificante e que ao mesmo tempo se torna angustiante pelas dificuldades de recursos que eles têm (E4/Coord).

Quando a gente não consegue que a gente fica com aquele sentimento de culpa de querer fazer algo a mais só que a política, e a política que eu falo em termos de assistência, não permite que a gente avance até mesmo para que não tenhamos a conotação de assistencialismo (E4/PSI).

No início eu tinha muita dificuldade porque eu cheguei da faculdade, recém-formada, cheia de ideias na cabeça, ah, tal dia vamos fazer uma ação, uma ação grandiosa na cidade, aí você ia pedir na secretaria e era informada que não tinha recursos (E5/AS).

Outro aspecto apontado como dificultador diz respeito à resistência das famílias. A fala da coordenadora da E7 aponta para a não aceitação das orientações fornecidas e a dificuldade de conscientizar as famílias.

Como é que você vai conscientizar uma família que vivenciou tantas... tem todo um contexto familiar, e você conscientizar essa pessoa que "não, aquela realidade não está certa, vamos orientar para que você saia dessa realidade, sua realidade tá errada", essa conscientização que ela precisa mudar, acho que o desafio maior seria esse nos CRAS, né? (E7/Coord).

Para a coordenadora, conscientizar remete a reconhecer que a realidade da família não está adequada e que, para que haja uma mudança, ela deve aderir a outra forma de viver, enquanto a orientação ganha contornos de convencimento. Esse tipo de atuação cria uma espécie de polarização de realidades, colocando em oposição a realidade das famílias e a idealização da constituição familiar normatizada por parâmetros que não atentam para a construção histórico-cultural das comunidades. Entender as famílias em sua territorialidade é construir novas relações de saberes, para que não haja uma hierarquização de saberes camuflando a autonomia das famílias (Pereira & Guareschi, 2017).

Com isso, queremos afirmar que não se emancipa quando se objetiva a conscientização, pois se pressupõe que o saber está conosco e não com ele. A emancipação acontece quando se reconhece no outro uma igualdade de inteligências (Rancière, 2015), quando se compreende suas formas de vida e suas práticas culturais como parte do mesmo mundo em que habitamos, quando se percebe que suas formas de ação são disparadas pelos mesmos dispositivos que as ações de qualquer outro ser humano. Para sua efetividade, a política de assistência social precisa partir desse pressuposto.

O SUAS é uma política que ainda se encontra com inúmeras lacunas para sua efetivação. Esse pouco avanço traz a marca de uma política "pobre" voltada para os menos favorecidos, sobretudo se comparada à inserção dos psicólogos e assistentes sociais no campo da saúde.

É como eu costumo dizer, a política de assistência social é uma política pobre para o pobre, é como se dissesse: dá algum mimo social aí para esses pobres, que pobre se conforma com qualquer coisa. É onde o Estado deveria atuar mais para solucionar a questão das desigualdades sociais, é onde deveria haver mais investimento (E5/AS).

Nas assimetrias de poder entre as políticas públicas, a PNAS ainda é considerada por muitos como menor em relação à política pública de saúde, da qual tirou a referência para seu sistema e seus equipamentos (Romagnoli, 2016). A precariedade das políticas públicas em sua implementação e os distanciamentos entre as normativas e o cotidiano dos serviços já são de conhecimento comum, sendo que no âmbito da assistência social isso é observado de forma mais contundente, considerando que tal política ainda não atingiu o pleno status de política pública, como asseveram Motta e Scaparo (2013).

 

Considerações Finais

Muitas dificuldades foram expressas nas conversas realizadas com as equipes dos CRAS, envolvendo elementos estruturais, organizativos, relacionais, materiais. Observa-se uma distância entre o que se preconiza e o que é possível realizar, fazendo com que se acentuem os impedimentos em detrimento das potencialidades. Evidenciam-se a falta de um projeto consistente, contextualizado, e a inexistência de meios de avaliação que mostrem os resultados do serviço, bem como a reiterada reprodução de discursos adotados pela atual política de assistência social que comumente não se mostram nas práticas. Quando as visitas e atendimentos se concentram em tipificar e enquadrar, elementos importantes são perdidos no que concerne a um estudo aprofundado da dinâmica comunitária, dos processos culturais que a atravessam e das necessidades das famílias. A forte vinculação entre a administração dos CRAS, a contratação dos profissionais que atuam no equipamento e a política eleitoral da gestão municipal faz com que os serviços fiquem sujeitos a esta última, ocasionando alta rotatividade de profissionais e interrupção regular das atividades.

Cabe questionar em que medida as ações estão realmente próximas das necessidades da população, quando a preocupação central reside em seguir de forma protocolar as diretrizes da política, sem que haja um significativo espaço para reflexões e análises pormenorizadas. Faz-se fundamental ter uma compreensão ampla do alcance da política e dos resultados produzidos, enquanto um dispositivo de transformação da realidade social e das condições de vida das populações em situação vulnerável, por meio de uma mediação, para que ocorram o enfrentamento e a interrupção dos processos que possam ocasionar violação de direitos.

Ainda que a linguagem dos direitos esteja presente, e que se reiterem nos discursos os princípios da autonomia e da liberdade enquanto propósitos da ação, esta ganha muitas vezes contornos de tutela, quando vemos traços assistencialistas ao não se reconhecer a possibilidade de agência das famílias atendidas, quando se evidenciam práticas de controle travestidos de garantia de direitos, quando a dificuldade de manutenção da adesão da família é atribuída à falta de vontade desta ou a entraves de ordem externa, mas não se problematiza a própria dinâmica dos serviços, sua relação com os usuários ou a política de modo mais amplo. Não se trata de culpabilizar os profissionais que atuam nas políticas sociais como se a plena realização destas dependesse de suas condutas. É preciso pensar estratégias de avaliação eficazes dos desdobramentos da política, atentar para as possibilidades concretas de pôr em execução suas diretrizes, ampliar o escopo de análise para as múltiplas dimensões que a envolvem, bem como as estratégias de identificação das demandas, e produzir respostas compatíveis dentro dos princípios do SUAS.

No âmbito da Psicologia, a formação para o trabalho na assistência social é recente e diz respeito às diretrizes dos últimos anos. Sem dúvida, um desafio para os currículos dos cursos de graduação e de sua capacidade em construção de ênfases de atuação voltadas aos coletivos e contextos comunitários. Dois desafios se colocam aos nossos trabalhadores das equipes de assistência social: ser um mediador na construção e no fortalecimento de vínculos familiares, coletivos e comunitários nos territórios; e compreender o usuário como um sujeito, como uma inteligência em ação que, como todo ser humano, aprende focando a atenção, comparando e interpretando.

Nosso desafio segue antes em nossa postura diante do outro, na forma de qualificá-lo para compreender que podemos ser mediadores para a construção do comum, do coletivo, como única forma de enfrentamento à condição de vulnerabilidade, de fortalecimento da vida, diante da precariedade de nossa condição de existência. Só tomando a igualdade como uma condição de partida entre todo e qualquer ser humano é que compreenderemos o sentido da desigualdade e seu enfrentamento.

Diante do atual quadro situacional, a política do SUAS é nossa maior e melhor alternativa de trabalho nessa direção. É preciso fortalecê-la, alimentá-la e fazê-la crescer na direção de uma política social efetiva no enfrentamento das desigualdades. Lutar para seu fortalecimento é nosso desafio, atuando sobre a formação das equipes e, ao mesmo tempo, lutar por sua efetiva continuidade e crescimento no país, apesar dos tempos difíceis.

 

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Recebido em: 13/12/2018
Aprovado em: 8/9/2019

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