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Boletim de Psicologia

 ISSN 0006-5943

     

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A psicanálise dentro dos muros de instituições para jovens em conflito com a lei

 

The Psychoanalysis in the fields of prisional intitutions for young people

 

 

Marlene Guirado1

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O presente texto justifica a necessidade de repensar a clínica psicanalítica, quando ela se faz em instituições outras que não consultório, considerando-se o contexto desse atendimento (que inclui, mas não prioriza, as particularidades de sua clientela). Mais especificamente, apresenta a supervisão de um atendimento a um interno da FEBEM-SP, como parte das ações de um Projeto Sócio-Educativo, o Fique Vivo. Partindo do pressuposto de que o trabalho psicanalítico é possível fora dos muros em que foi historicamente construído, defende-se a necessidade de ajustes que vão além da técnica para alcançar os pontos-cegos que a teoria produz na escuta do psicanalista. Dois conceitos são diretamente tratados: o de transferência e o de contexto institucional. Apesar de esses termos constituírem discursos diferentes, de diferentes regiões do conhecimento (transferência/psicanálise e contexto/análise de instituições concretas), é demonstrada a inevitabilidade da concorrência de ambos para constituição de escuta clínica.

Palavras-chave: Contexto institucional, Transferência, Escuta analítica, Jovens em conflito com a lei, Violência.


ABSTRACT

This text justifies the need to rethink the psychoanalytic clinic when it’s done in institutions that are different from that of private offices, considering not only the characteristics of the clientele, but also those of the new institutional set. Basically, the present article describes and comments a psychological service to young people who live in FEBEM-SP. This service is a part of a socio-educational project, called Fique Vivo! (Stay alive!). There is a presupposition that psychoanalytic work is possible beyond the recurrent office practices beyond the knowledge fields from where it was developed. Techniques and some of its concepts must be thus adapted, in order to achieve satisfactory results. Two concepts are most directly treated: transfer and institutional context. In spite of their pertinence to different discourses (transfer/psychoanalysis and context/institutional analysis), they both constitute the analytical listening.

Keywords: Institutional context, Analytical listening, Young people in conflict to law, Violence.


 

 

Um evento1, como este, sobre os desafios da clínica (psicanalítica) de adolescentes sugere, de saída, a idéia de que exista algum tipo de especificidade nessa prática da psicanálise. Mais que isto, sugere que há uma expectativa em torno de alterações para que se atenda à especialidade dessa clientela.

A presente Mesa sobre atendimento institucional, por sua vez, tem um objetivo ainda mais particular: o de colocar em discussão o atendimento a adolescentes em condições especiais, incluindo sob este nome aqueles que se expõem a serviços “institucionais”, porque são oferecidos por clínicas-escola, organizações não governamentais e, mesmo, governamentais (como a FEBEM). Uma Mesa que trata da especialidade dentro da especialidade (não apenas adolescentes, mas adolescentes em situação de atendimento diferenciado) tem, por certo, responsabilidade dobrada.

Por ocasião do convite que me foi feito pela Comissão Organizadora, foi enfatizado que o tema fundamental seria o da necessidade (ou não) de se proceder a alterações na clínica psicanalítica, quando se trata do atendimento a adolescentes, sobretudo aqueles com graves perturbações, em instituições.

Tendo esta questão como norte, dedico-me a partir de agora a argumentar em favor de uma determinada posição.

Antes de tudo, quero deixar claro que ajustes devem ser feitos. Isto porque não há nada mais fossilizado do que um conhecimento ou um saber que se coloca acima e, portanto, fora da situação concreta de seu exercício. Este é o princípio teórico e ético de que partimos.

No caminho de discutir o que são estes ajustes ou estas alterações, desenvolverei minha fala, apoiada numa situação/instituição concreta que é a FEBEM - SP e o atendimento clínico aos internos, que são sua (e então nossa) clientela.

Apontarei para as decorrências de pensar essa questão, do interior da estratégia teórico-metodológica que tenho proposto sob o nome de Leitura Institucional da Psicanálise, da Psicologia, da Clínica (Guirado, 1987; 2000).

 

A PSICANÁLISE COMO INSTITUIÇÃO

Talvez caibam, aqui, algumas palavras para circunstanciar o que é essa Leitura Institucional da Psicanálise.

Há alguns anos, venho depurando uma modalidade de pensar a Psicologia, a Psicanálise, e inclusive a clínica psicanalítica como instituições. Parto da definição de instituição concreta de Albuquerque (1978;1982): práticas sociais que se repetem e, nessa repetição, se legitimam, se naturalizam. Com a perspectiva que tal definição abre, posso atribuir um caráter instituído ao conhecimento e à prática clínica da psicanálise. A cada sessão que se inicia, (do mesmo atendimento ou de atendimentos diferentes), a instituição psicanálise se reinstaura, em ato, na medida em que se repete um modo de proceder, à margem ou à revelia de nossa consciência. À revelia, ainda, da diferença inegável entre os clientes e do sincero convencimento, por parte do analista, de que o que ouve e interpreta guarda uma inequívoca relação de verdade com a realidade inconsciente do paciente. Mas, é exatamente esta auto-evidência das práticas que, na repetição silenciosa de seus procedimentos, nos “convence” da legitimidade, da naturalidade do fazer psicanalítico. E... é com isso, por isso e nisso que se faz uma instituição!

Com essa estratégia de pensamento (a análise institucional), inevitavelmente, põe-se em suspenso o caráter de verdade que, também por definição, credita-se ao conhecimento produzido por uma determinada disciplina ou prática institucional.

Assim, considerar a psicanálise como instituição é retirá-la de seu campo de verdades consagradas e retroalimentadas pela teoria, para devolvê-la ao campo da relatividade daquilo que se ouve, pensa e fala; relatividade ao contexto, aos ritos e mitos de suas práticas concretas (Guirado, 2000).

 

PARA ALÉM DAS ALTERAÇÕES TÉCNICAS: OS AJUSTES CONCEITUAIS

Dizíamos de início que, por princípio teórico e ético, ajustes são exigidos. Mas, quais?

As alterações técnicas, já tão decantadas na literatura a respeito da saída da psicanálise dos consultórios (seu território-rei) não são as mais significativas. Por exemplo: a redução do número de sessões semanais, a retirada do divã, o fato de o analista falar mais ou menos, ou de interpretar mais ou menos diretamente o que considera serem manifestações do inconsciente são alterações que a maioria dos profissionais que oferecem seus trabalhos no interior de outras instituições já consideram inevitáveis.

Hoje, ao que parece, nenhum psicanalista defenderia que o atendimento que presta em um posto de saúde ou numa escola deveria respeitar essas exigências tão “consultoriais” e que, inclusive no pensamento leigo, são tão caracteristicamente ligadas às análises.

Aliás, essa imagem que os profissionais, os clientes e o público têm do atendimento em psicanálise se enraíza nos cânones que histórica e tradicionalmente definem o fazer clínico e que, em grande medida, foram reforçados pelos institutos de formação e consolidados pelas comunidades discursivas dos psicanalistas. Isto é exatamente o que chamamos de instituição (ou, processo de institucionalização) da psicanálise. Aí está a naturalização, a legitimação e, por decorrência, a força dessa instituição.

O próprio Freud (1975c) recomenda a jovens médicos um conjunto de atitudes e modos de proceder em sessão. Tudo indica que ele supunha a necessidade de instituir modos de agir para que as práticas psicoterapêuticas se difundissem. Apesar de sua curiosa justificativa para o uso do divã (ele não suportaria passar horas frente a frente com os clientes); apesar de a menção a sessões de uma hora por dia (cada paciente “teria à sua disposição” uma hora do dia de trabalho de Freud) apenas sugerir, sem grandes fundamentações, uma racionalidade de rotina de trabalho dele, como médico psicanalista; apesar desse prosaico desenho da teoria da técnica, por uma espécie de “tradição oral”, o divã, o número de sessões semanais e a duração delas acabaram se tornando signos (da e na reprodução) da prática psicanalítica. E, mesmo que não sejam alvo expresso do ensino formal, são transmitidos, por sua circulação no discurso, como intrínsecos à natureza do processo analítico.

Não nos esqueçamos, no entanto, que todas essas recomendações, e mesmo a imagem de que são ocasião, colocam analista e cliente no consultório. Consideremos então, o caso de o atendimento clínico acontecer fora dele. Nada mais estranho do que portar para o novo contexto exatamente os signos que acima destacamos. Resistências, digo, reações, com certeza, ocorrerão (não passíveis de interpretação ao sabor do saber tradicional da psicanálise, é claro!). Quem trabalha nessas instituições sabe que, ora a clientela desiste, ora os outros profissionais se queixam, ora o trabalho corre o risco de ser suspenso.

O fato é que a saída dos consultórios deixa para trás esses recursos que chamamos de técnicos; não mais se ousaria repeti-los fora do campo protegido de sua história.

Acontece que só isto não é suficiente para dar conta, efetivamente, da nova realidade do atendimento. As alterações técnicas deveriam ocorrer como conseqüência de considerar um outro aspecto, sob pena de elas não alterarem coisa alguma da psicanálise como forma de conhecimento. Esse outro aspecto são os pontos-cegos gerados pela teoria e, disso, trataremos aos poucos. Por ora, apenas assinalo que é fundamental considerá-lo.

 

EM NOME DE QUE MUDAR?

Para prosseguir nesse sentido, é preciso fazer uma pergunta: quem ou o que demanda as alterações?

Pela preocupação que me parece ser a deste Evento, a mudança se faria em nome de a clientela do psicanalista ser a de adolescentes e, mais especificamente, adolescentes severamente prejudicados. De um lado, parece que uma faixa etária com características próprias imporia alterações (de “rota”?, de recursos?) no atendimento clínico. De outro, parece que uma intensificação da tensão e dos problemas, nessa idade, é que convocaria mudanças. De outro ainda, como disse antes, sobretudo no caso desta Mesa, sugere-se que a necessidade de mudar é devida ao fato de o atendimento clínico ser “fora do consultório”.

Minha hipótese é a de que o fator “características da clientela” (sejam elas quais forem) só será importante, quando estiver associado a outro; este sim, radicalmente demandante de ajustes na prática e no conhecimento clínico e psicanalítico: o contexto, ou o conjunto das relações e do imaginário nelas constituído, quando da migração da clínica psicanalítica para outros territórios.

Há pelo menos uma década, escrevi sobre a importância de pensar a transferência, o conceito de transferência, quando o atendimento clínico se faz em instituições de saúde e clínicas-escola (Guirado, 1995). Lá, desenvolvi a tese de que, nesses casos, quando um cliente nos procura ou nos é conduzido para terapia e diagnóstico, a transferência que conta como fundamental é aquela feita com a instituição procurada e não, propriamente, com o profissional destacado para seu atendimento. O que importa são as imagens e expectativas que se criam em torno do serviço oferecido por estas instituições, bem como as imagens definidas (antes mesmo de chegar à frente da pessoa que vai atender) a respeito daquela instituição. Assim, o que se costuma chamar de “fantasia a respeito do tratamento” não mais diz respeito, apenas, a uma relação imediata terapeuta/cliente, e sim, a uma relação entre o terapeuta e o (seu) paciente do Posto de Saúde ou da Clínica-Escola.

Aliás, esta frase seu paciente do Posto de Saúde ou da Clínica-Escola, em sua organização, porta o sentido exato do que quero demonstrar (apesar de, pelo que se observa nas supervisões a instituições ou a alunos, ser o que menos se considera, sobretudo nos primeiros atendimentos). Ela já diz, em sua ambigüidade, que o cliente não é mais meu, e sim, da instituição onde é atendido por mim. E é isso que precisa ser pensado, até o fim, em sua radicalidade. É isso que deveria orientar, por exemplo, o referido ajuste no conceito de transferência. Se nada mudar no plano conceitual, a teoria sobre transferência pode funcionar como ponto-cego do analista na relação com o paciente. Ele pode recair no lugar comum de pensar as atitudes e as falas deste último como recusa ou resistência (ao analista ou à análise), como movimento de aproximação e fuga do conhecimento sobre si que a análise lhe tem reservado, ou como transferência de modelos de relação amorosa com as figuras parentais. No mínimo, está-se fazendo, assim, uma atribuição apressada de sentidos; está-se produzindo uma dissociação básica, que nega o contexto da relação; está-se privilegiando uma série de informações e conhecimentos já estabelecidos pela teoria.

Para que eu não seja acusada de proferir afirmações infundadas, cabem aqui algumas palavras a mais sobre uma curiosa e corajosa “invertida” que Freud faz nas concepções que poderiam ser chamadas de ultra-psicanalíticas.

O texto Construções em Psicanálise (Freud, 1975a) é um dos últimos escritos do autor e traz uma interessante consideração a respeito dos limites e alcances da fala do analista em sessão. Ela (a fala do analista) deveria favorecer ao paciente a “procura de um quadro dos anos esquecidos”. Não necessariamente com uma interpretação e, sim, como uma construção, ou se se preferir, reconstrução. Atento ao que lhe diz o paciente, naquela e em todas as sessões, o analista “procura” uma cena que poderia organizar várias “lembranças” aparentemente esparsas e não relacionadas.

Uma memorável construção feita por Freud, em seus atendimentos, está no historial clínico do Homem dos Lobos (Freud, 1975b). A análise de um sonho que o paciente tivera aos quatro anos e do qual acordara em extrema ansiedade, é exemplar nesse texto. Seus disparadores nada têm de interpretações demoradas ou explicativas. Simplesmente, Freud lhe fazia perguntas a respeito de detalhes das cenas relatadas, tais como: a cor dos lobos e de suas patas, posições, ações, inversões de sujeitos das ações. Pareciam provocações para associações livres do paciente, que foram trabalhadas de tal forma a “desenhar” uma cena que poderia ter, ou não, ocorrido de fato, mas que, ao modo de um quebra-cabeça, uma vez encaixada na história, permitiria entrever o lugar de umas tantas peças soltas. Foi o analista quem formulou a construção e o paciente (nesse caso, de imediato), lhe deu crédito: com um ano e meio de idade, de seu berço, presenciara uma relação sexual a tergo de seus pais. O capítulo V traz, então, uma discussão teórica valiosa e um tanto desnorteadora para o leitor estudioso da obra de Freud: não há possibilidade de qualquer certeza de que as coisas tenham, efetivamente, se passado do modo como ele as “descrevera” ao rapaz; poderia ter sido um fato real, ou poderia ter sido uma “montagem” a partir de percepções, sensações e afetos vividos em situações diversas, mas que, de alguma forma, se relacionavam com o modo como o Homem dos Lobos, quando criança, via-se nas relações com personagens tão significativos como aqueles de sua história (babás, irmã, pai, mãe).

Por que comentamos isto agora? Porque é assim que Freud situa o valor heurístico da interpretação: na sua melhor forma, será uma construção de sentidos.

Faz, ele, ainda, uma advertência: a formulação do analista não deveria ser acompanhada de uma insistência de sua parte para que o paciente reconheça ali uma verdade sobre si. Ela é, em si, um disparador. E o que deve ser considerado é a orientação da fala do paciente a partir dessa intervenção. E tudo se presta a um trabalho de “reconstrução de uma verdade histórica”, em que cada um tem sua parte. Afinal, como diz ele, o analista não pode lembrar de qualquer coisa, porque não foi ele que viveu essa história. Nesse momento, Freud chega a afirmar que a construção é uma espécie de delírio do... analista; bem calculado e pensado; mas um delírio. E, na esteira dessa afirmação, como que num passe de mágica, outorga verdade histórica ao delírio dos... pacientes. Dá destaque à incorporeidade do fato real, à insubstancialidade da verdade, à sua condição de produção histórica. Golpe de mestre! É dele que retiro ensinamentos que me permitem prosseguir, hoje, pensando em voz alta, com vocês.

Insidiosamente, essas idéias constituirão argumentos importantes na defesa da tese que vínhamos desenvolvendo. Isso porque Freud turva as águas e retira, tanto as lembranças do cliente quanto as intervenções do psicanalista, do campo das verdades, dos fatos reais inquestionáveis, das certezas antecipadas. Relativiza todos os “achados” das interpretações. Relativiza o ponto de partida e o ponto de chegada de uma análise.

 

RETOMANDO O FIO: TEORIA, CONTEXTO E ESCUTA

Dizíamos antes dessa extensa referência ao criador da psicanálise, que é preciso pensar em alterações na clínica psicanalítica que vão além das estritamente técnicas, para atingir o plano dos conceitos. Especialmente o de transferência. Os motivos deste último destaque, como já se pode depreender, e como melhor se observará até o final desta apresentação, tem a ver com o recorte teórico-metodológico que considera a psicanálise como instituição.

Pois bem. Fazer ajustes conceituais é trabalho tão sério, que buscamos apoio no modo como Freud reconsiderou a questão da verdade nas interpretações. É, sem dúvida, um apoio de peso para a leitura institucional que vimos desenvolvendo; e vamos contar com seu aval para supor que o contexto do atendimento clínico, quando ele se dá no interior de outra instituição, seja determinante dos sentidos que se constroem para a relação analista/cliente. Até porque, os lugares que constituem a cena analítica são atravessados por aqueles da situação em que ela agora se instala. Muitas certezas e vontades de verdade deverão ser, portanto, relativizadas... Não por mero exercício de contestação, mas sim, por coerência argumentativa. Vejamos.

A pergunta que me fazia e com que provocava nossa discussão era: “em nome de que se procederia a alterações?” E é ela que põe, como foco da resposta, o funcionamento da teoria como ponto-cego e o contexto como demandante de mudanças no plano conceitual. Isto, acima das características mais ou menos específicas da clientela atendida (faixa etária, agravamento de condições psíquicas, entre outras).

A pergunta que me fazia e com que provocava nossa discussão era: “em nome de que se procederia a alterações?” E é ela que põe, como foco da resposta, o funcionamento da teoria como ponto-cego e o contexto como demandante de mudanças no plano conceitual. Isto, acima das características mais ou menos específicas da clientela atendida (faixa etária, agravamento de condições psíquicas, entre outras).

Se pararmos um pouco para pensar o que acontece quando um aluno do 4º ou 5º ano de Psicologia atende, não só a transferência que o paciente possa fazer deve ser conceitualmente re-situada para dar conta das expectativas organizadoras da relação com o aluno-terapeuta. Também, e ao mesmo tempo, como que num mesmo golpe, devem ser consideradas as expectativas e imagens que esse terapeuta faz de si, do atendimento e do cliente, enquanto atende. Tudo isso é determinante do que o aluno-terapeuta “pensa” sobre o que ouve.

Se nossa escuta é formada e informada pela teoria e pela prática em sua repetição, o resultado é que ouvimos aquilo que a constitui. Se o ponto-cego é o que obstrui o caminho até a fala de um paciente, nossa escuta é pontilhada de cegueiras... ou de surdez.

Ora, isto é assim também na clínica ou no consultório. Quando recebo alguém, vou ouvi-lo com os termos que tenho para ouvir. Daí, cria-se, até certo ponto, um fosso intransponível entre a fala do paciente e a minha interpretação. Por isso, é razoavelmente saudável relativizar ou suspender as certezas que temos a respeito do estatuto de verdade de nossas ponderações analíticas. É importante que se perceba que aquilo que julgamos ser transferência no discurso do paciente, por exemplo, supõe sempre o discurso do analista, como um discurso que deve se pôr, também ele, em análise. Ou seja, o que interpretamos como transferido para nós implica, necessariamente, aquilo que consideramos ser “manifestação inconsciente” do paciente; implica o que aprendermos ser o psiquismo, sua constituição, motivações e, inclusive seu tratamento.

Por fim, no caso de o atendimento psicanalítico se fazer fora do consultório, a escuta será construída não apenas pelo que se aprendeu nos livros, na formação, nas repetições da prática clínica estritamente consultorial, nas supervisões, mas também pelo fogo cruzado dos procedimentos da instituição que nos recebe, em que o exercício da clínica se faz.

 

A FEBEM COMO CONTEXTO

O que dizer quando o atendimento, assim clínico, se fizer no contexto de instituições para adolescentes em conflito com a lei?

A caminho desta outra resposta que nos dispomos a formular, repetimo-nos: se a questão do contexto predomina sobre as características da clientela e é determinante para pensar a urgência dos ajustes, é importante considerar as características da instituição "hospedeira; isto, para configurar as expectativas cruzadas na parceria cliente/terapeuta que acontecerá.

Na condição de “hospedeira”, tal instituição é dominante e tem vida própria para além do trabalho terapêutico; é ela que, em última instância, dá as cartas desse jogo desafiador do exercício da clínica bem distante do seu berço histórico, entre os muros de uma instituição prisional.

Pelo recorte teórico-metodológico que fazemos, práticas institucionais superpostas, com seus devidos objetos institucionais (ou seja, aquilo em nome de que elas se dão), dão o campo possível do exercício de atendimento clínico e exigem relativização na escuta e nas interpretações. No como atender. Se o atendimento for feito numa instituição de custódia a adolescentes que, por algum motivo, estão em regime de privação de liberdade, o contexto configura uma diferença inapelável em relação ao das origens da psicanálise e das práticas clínicas habituais.

Consideremos o caso da FEBEM, para prosseguir pensando. Ela é, hoje, uma instituição de características prisionais, suspensas por um Estatuto da Criança e do Adolescente. Quando falo “suspensas” não quero dizer “extintas”. Quero só dizer que estas características estão ali, como “fantasmas do meio-dia” a gerar crenças e visões naqueles que a fazem. Inclusive, o Presidente atual da Fundação é o Secretário de Segurança do Estado de São Paulo. É uma instituição que atende jovens em conflito com a lei, em condição de privação de liberdade e que, por isso e nisso, exerce e reproduz uma relação marcada pela violência. Uma violência cujo efeito, ao que tudo indica, faz conservar a infração e o delito – o exato motivo da reclusão. Uma violência que se exerce por todos os poros dessa relação, por todos os cantos, em todos os grupos institucionais e entre eles. Uma violência que se apresenta das maneiras mais insidiosas e pelos agentes mais insuspeitos.

Justificam-se, então, todas as concepções mais ou menos preconceituosas que se têm, do lado de fora, a respeito de o que é a FEBEM, sua clientela, seus funcionários. Em geral, os mais politicamente corretos afirmam que a instituição é a excrescência da humanidade e que, nisso, são os monitores que agridem os rapazes; a população, normalmente, olha esses internos como a degenerescência da humanidade, temem sua violência e os prefere lá dentro e apanhando (porque o mereceriam); as pessoas de boa vontade rezam para não se encontrarem com nenhum deles, a céu aberto e desprotegidas, mas mesmo assim, resgatam a condição humana desses meninos.

De certa forma, isso que se diz e pensa tem seus fundamentos: a violência se exerce dos monitores para com os internos, destes para com aqueles e entre os próprios internos. Os “seguros”, as pancadarias, os reféns, as ameaças já se instituíram como relação. Mais: para quem conhece de dentro a instituição, o medo e o desamparo são moeda de troca; são o avesso da violência.

Disso falei e escrevi, como Doutorado, já há alguns anos. Sobre as características dessa relação, sobre a subjetividade que aí se produz, pensei e registrei (Guirado, 2004b).

As particularidades a respeito da subjetividade construída nesse e por esse contexto podem ser mais detalhadamente acompanhadas no livro Instituição e Relações Afetivas (2004b). Para o momento, basta o destaque que fiz da conotação geral de violência intra-muros. Talvez, sejam necessárias apenas algumas palavras de síntese, sobre os internos e o modo como concebem as relações e os vínculos afetivos.

Para esses jovens, a marginalidade é realidade e mito, indistintamente; matar ou morrer também não se distinguem; e, o estar à margem é identificado com o estar vivo, enquanto o estar vivo se indiscrimina do morrer.

Ora, o que deu para notar é que essas são as regras do jogo também dentro dos muros da instituição. E a relação marcada pela violência é prova disso. Desse mal, atendentes e atendidos, instituição e clientela padecem.

Pois bem. Foi esse o cenário em que concretamente se fez atendimento clínico-psicológico a internos. Participei do trabalho como supervisora, até o ano passado, quando por ordens da presidência da FEBEM, tivemos que interromper.

O atendimento fazia parte dos serviços que o Projeto Fique Vivo oferecia à Fundação. Não vem ao caso descrevê-lo. Basta assinalar que se tratava de uma proposta de desenvolvimento de cidadania e, portanto, estava na contracorrente do que lá acontecia (Guirado, 2004a).

O atendimento psicológico se fazia no pátio onde os meninos ficam por várias horas do dia, sem qualquer atividade programada. Lá circulam todas as marcas da relação ali vivida. O pátio é um local onde os meninos ficam em seus grupos de pertença, enquanto os funcionários vigiam e supostamente “seguram” a violência, por algum tipo de ameaça, nem sempre expressa, mas sempre exercida, por meio de posturas, movimentos, olhares, ou, pela simples presença.

A decisão de que o atendimento fosse lá, nasceu de uma discussão que considerou alguns aspectos como, por exemplo, o de não expor os meninos que procurassem ser atendidos; não expô-los tanto diante dos outros internos quanto diante dos funcionários que temiam a circulação de informações a respeito de agressões. Optou-se pelo pátio, portanto, para evitar formas de pressão e repressão sobre alguém que ao falar entre quatro paredes pudesse revelar um segredo absolutamente conhecido: o espancamento.

Enfim, alterações da técnica e da forma como o atendimento seria feito foram decididas com a clareza que aqueles momentos permitiam. Mesmo assim houve contraposição dos funcionários.

O relato visa a demonstrar exatamente o que ainda precisa ser considerado a bem de quem é atendido (os rapazes, portanto), sobretudo no que diz respeito aos determinantes da escuta. E isso é a alteração que considero mais importante. Uma tentativa de demonstrar as condições de possibilidade dessa proposta para o trabalho com a clínica psicanalítica.

 

A CÉU ABERTO E ENTRE-MUROS, UM ATENDIMENTO CONCRETO

A terapeuta é psicóloga formada. Tem formação também em psicanálise e há alguns anos trabalha com consultório. Pelo Fique Vivo, no entanto, atendia conforme o enquadre especificamente pensado para as condições da FEBEM. Doravante, será chamada de Ana, nome fictício.

Na supervisão, apresentou o atendimento que, segundo ela, estava causando certa preocupação, pelo tanto de angústia que lhe despertava.

Iniciou seu relato, falando dos boatos de rebelião que corriam a boca pequena, mas que faziam grande ruído. Sentava-se no banco destinado a seu trabalho, quando ouviu a monitora do pátio perguntar-lhe, em alto e bom tom, se havia ido sozinha, naquele dia. Considerou aquilo uma provocação, ou, no mínimo, uma menção à sua coragem, por estar ali, desprotegida, em meio a muitos riscos. Não é preciso dizer que associou a fala e o tom com as ameaças mal veladas de rebelião na casa.

Aproximou-se, então, um rapaz (Dario, nome também fictício), todo marcado por espancamentos, como que para conversar com ela, plantonista do atendimento psicológico do Fique Vivo. Pediu notícias do “mundão lá fora” e falou da namorada, de cujo rosto começava a se esquecer, porque há muito não a via. Mencionou também a mãe que costumava, ao visitá-lo, contar-lhe coisas do referido “mundão”.

Ana diz ter se incomodado com a atitude do rapaz, que não sustentava o olhar. Entendeu isso como esquiva e ameaça. Sentiu medo e sentiu-se “pesada”. E, nesse desconforto, acompanhou o minucioso relato que lhe foi feito: um assalto a supermercado, em que Dario dera um tiro na balconista-caixa, sem ver-lhe o rosto. Tudo pareceu à psicóloga, um enredamento que partia de uma tentativa de sedução e que a imobilizara.

No plantão seguinte, ele chega dizendo que pensou que talvez tivesse deixado um grande peso com ela e conta do espancamento que sofrera, no dormitório. Tema este que, apesar de estar marcado no corpo, não havia sido posto em palavras, nem por ele, nem por ela. Tema que ficara apenas assinalado nas marcas físicas, na primeira conversa.

Interrompo este breve e excessivamente pontuado relato, por considerar que dispomos, até aqui, do suficiente para tecer as considerações que parecem necessárias, no âmbito do que nos propomos com esta Mesa Redonda. Temos o suficiente para demonstrar as exigências de ajustes das práticas clínicas, considerando o contexto. Agora, não mais como uma realidade material externa ao atendimento, mas sim, como formador da escuta e da transferência.

Assim, destacou-se na supervisão que tudo o que Ana “ouvira” do rapaz, já estava desde o início no ar: provocação, violência, peso, medo, desamparo. O sentir-se “amarrada”, paralisada, parece ter funcionado como um impedimento a que ela se desse conta de que Dario, ao falar, construíra cenas em que ela e as outras mulheres (mãe e namorada) eram ocasião de ele não perder o elo e o contato com sua própria vida, com sua história, apesar de toda a violência.

No mínimo, pode-se afirmar que o que a psicóloga ouvira já não era mais, ou pelo menos já não era mais algo a respeito da relação do menino com ela; e sim, algo que atravessava toda a cena do atendimento, incluindo a própria terapeuta. Ela se sentia ameaçada e provocada pelos boatos e pela monitora, pelo conhecimento antigo e recente daquela unidade. Todo o contexto estava “na cabeça da psicóloga”, não como uma coisa que a envolvia pelo lado de fora e sim como o que vivia.

Se o atendimento fosse em sala fechada, seria diferente? Talvez. Mas é inegável que adentrar aquele espaço físico, é reativar todas as expectativas socialmente veiculadas a respeito do que lá acontece e, ao mesmo tempo, viver tudo isso na pele. Atender esses rapazes, nessas condições, é ativar as expectativas que constituem o contexto e o intercontexto do atendimento clínico. E é por ele e nele que os ajustes devem ser feitos.

Coube à supervisão, destacar o que pode não ter sido ouvido, exatamente pelo “clima” e pela transferência da terapeuta ao imaginário daquela relação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 03/10/05
Revisto em 02/02/06
Aceito em 07/02/06

 

 

1 Endereço para correspondência: Rua Canário, 755, apto. 71, Moema. São Paulo, SP. CEP 04521-003; Telefone: 50554773/50510020; Fax: 50554597; E.mail: mguirado@terra.com.br.
2 Palestra proferida no Seminário Adolescência no Séc. XXI: desafios e peculiaridades, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em abril de 2005, em São Paulo. O texto foi praticamente mantido em sua forma original, escrito para ser falado.

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