Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
O ensino da Psicologia analítica e o desenvolvimento do estudante
The teaching of Analytical Psychology and the student’s development
Liliana Liviano Wahba*
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
O ensino da Psicologia Analítica na universidade compreende três objetivos que podemos denominar: acadêmico-informativo, indicação de aplicabilidade profissional e educativo-formativo. Na experiência com alunos da PUCSP da graduação e da pós-graduação tais objetivos puderam ser percebidos durante as aulas, delimitando seu alcance e funcionalidade, assim como os papéis exercidos pelo professor de acordo com cada etapa desses objetivos. Percebe-se no decorrer dos respectivos cursos que a reflexão é estimulada de acordo com símbolos emergentes em cada situação que favorecem o desenvolvimento do aluno, inserido na família, na cultura e na faculdade. O alcance do ensino é pedagógico-psicológico de acordo com os pressupostos do processo de individuação proposto por Carl G. Jung.
Palavras-Chave: Ensino, Desenvolvimento humano, Processo de individuação.
ABSTRACT
The teaching of Analytical Psychology at the university encompasses three main objectives that may be termed academic-informative, indication of theoretical and practical application, and educational- formative. In the experience with graduate and post-graduate PUCSP’s students, these objectives had been observed during classes, defining their range and function, as well as the roles carried out by the teacher within each of the stages of these objectives. It is clear during these courses that reflection is stimulated according to symbols that emerge in each situation, favoring the students’ development in the family, culture and university. The reach of the teaching is pedagogic-psychological, according to the individuation process proposed by Carl G. Jung.
Keywords: Teaching, Human development, Individuation process.
O objetivo deste artigo é assinalar a participação do professor no processo de formação do aluno, que não se restringe à transmissão de conhecimentos e inclui a observação de comportamentos e a reflexão sobre atitudes. Utiliza-se o modelo junguiano de processo de individuação, o qual é entendido como o desenvolvimento da individualidade psicológica que se distingue do grupo; um processo de diferenciação que tem como objetivo o desenvolvimento da personalidade individual (Jung, 1974). Neste processo as potencialidades são ativadas ao máximo visando à completude da pessoa, a integração possível entre consciente e inconsciente.
O ensino da Psicologia Analítica na Universidade se insere na Academia à procura do aprimoramento do saber e da comunicação científica, mas também dentro da vasta área do desenvolvimento humano no qual cada vez mais o professor contribui com sua atuação pedagógico-psicológica.
A disciplina Psicologia Analítica é oferecida na PUC para os alunos de 2º ano da graduação, para alunos de 5º ano em atividade de atendimento, orientações de trabalhos de conclusão de curso do 4º ano, uma matéria optativa do 5º ano, um curso de especialização para profissionais e na Pós Graduação (desde 2002) onde foi implantado o Centro de Estudos Junguianos.
Cada um destes cursos tem objetivos específicos e objetivos gerais em comum, os quais podem ser postulados como uma busca de reflexão dos princípios básicos da Psicologia Analítica e o desenvolvimento do processamento simbólico compreendendo o indivíduo e a cultura. Os objetivos específicos, adequados a cada nível são: o acadêmico-informativo, a indicação de aplicabilidade e o educativo-formativo.
OBJETIVO ACADÊMICO INFORMATIVO
Este é um objetivo que visa a construção do conhecimento embasado em informações sobre a teoria e seu fundador. É feita uma apresentação do autor e de seu método. Em primeiro lugar, apresenta-se Jung e sua teoria dentro do âmbito da Psicologia profunda. Procura-se destacar o que diferencia este pensamento de outras escolas psicanalíticas e quais são as interfaces entre as mesmas.
A teoria junguiana é inserida no pensamento científico da atualidade e busca-se esclarecer a separação da Psicologia analítica da Psicanálise e o rompimento entre seus fundadores.
Este é um momento de diferenciação para o aluno iniciante, que tem a oportunidade de ser confrontado com idéias pré-concebidas que fazem parte do imaginário cultural. São relatadas relações com a Parapsicologia ou com postulados místicos, o autor, como um discípulo de Freud que enlouqueceu, foi considerado pouco científico e determinista. Estas considerações são debatidas no cenário do pensamento científico da atualidade e da necessidade de diferenciar a objetividade da subjetividade. Um excesso de subjetividade fantasiosa é a outra polaridade da objetivação, a qual enrijece se seus limites permanecerem no construto positivista de início de século XX.
Desse modo o pensamento junguiano surge como um novo paradigma que repercute popularmente como sendo desprovido de sustentação científica. A oportunidade de discutir o conceito de ciência, a diferenciação entre ciência e crendice, nasce desse confronto. Após a delimitação do campo científico, são apresentados e desenvolvidos conceitos teóricos básicos e, no curso de Pós-graduação, são aprofundados e associados a pesquisas e a métodos de investigação.
Na graduação os conceitos são relacionados a exemplos que fazem parte da vivência do aluno, com o intuito de consolidar um aprendizado que não se restrinja à conceituação teórica desprovida de vinculação com a prática. A Psicologia analítica procura ser validada empiricamente, assim como foi consolidando seus pressupostos a partir das observações sobre a psique humana. As aulas procuram motivações do repertório de experiências grupais, tais como o simbolismo da Páscoa, na data de sua celebração, quando se realiza uma pesquisa sobre os rituais de Páscoa na religião cristã e judaica, e o significado dos símbolos e ritos envolvidos. Um outro exemplo é o estudo do Teste de Associação de Palavras (Jung, 1980), quando a base teórica dos complexos e do funcionamento da consciência é exemplificada com a aplicação do teste e a análise feita pelos alunos.
A leitura psicológica de símbolos da cultura, da história comparada, da religião e da arte é constantemente elucidada e discutida em todos os graus, até nos cursos profissionalizantes, quando há a discussão de estudos clínicos.
Aqui o professor tem um papel de mestre - orientador e recebe projeções de autoridade poderosa que pode ser admirada ou contestada. O aluno projeta figuras parentais ou dominantes na sua formação. O professor recebe projeções despertadas por esta autoridade no inconsciente do aluno, que pode responder com emoções de gratificação ou de afastamento e repudio, ocasionando contestação e agressividade. O questionamento, por sua vez, quando apresentado em forma de debate, é uma forma de exercer um diálogo consciente, não atrelado às projeções, ou pelo, menos, com um grau mínimo destas.
OBJETIVO DE INDICAR APLICABILIDADE PROFISSIONAL
Trata-se de mostrar a aplicabilidade da teoria junguiana na prática clínica assim como em outras áreas de atuação profissional. No curso de Pós-graduação visa-se formar professores e pesquisadores nos diversos campos de atuação profissional e, na graduação, exemplos de aplicabilidade da teoria e prática analítica são assinalados tais como: Psicologia organizacional, Psicologia da educação, Terapia ocupacional e Psicologia hospitalar.
O professor é visto como modelo de atuação e sucesso profissional e recebe projeções de sucesso com idealização e desidealização. A idealização é um processo de formação da identidade, ligado ao ideal de eu e ocorre naturalmente com as figuras que são consideradas modelo. Devido à idade dos alunos jovens, sua diferenciação da família enquanto modelo está em processo e os pais são desidealizados, como uma forma de separação para adquirir autonomia psicológica. Assim, ocorre que, muitas vezes, a desidealização se dá na sala de aula, com intercorrência de episódios de mal entendidos sem causa aparente ou desproporcionais ao fato em si, tais como desapontamento com algum ato, ciúmes entre colegas em relação a determinado professor, grupos oponentes “torcendo” por determinado professor.
OBJETIVO EDUCATIVO-FORMATIVO
Este é sem dúvida o mais complexo e concentra-se particularmente nos alunos jovens da graduação. A atitude profissional, a adequação de papéis, o modo de se apresentar e de lidar com o outro começa a ser treinado. A responsabilidade profissional e a postura ética são fundamentais para o ensino em seu aspecto educativo.
A atitude visada, no entanto, não se restringe à atuação profissional; é o aluno e sua individuação que está envolvido e esta é a verdadeira base da formação. Cabe ao professor acompanhar o desenvolvimento de seus alunos, promovendo uma atitude reflexiva e simbólica, inserida no significado da vida, unindo o conteúdo do mundo interno com os fatos do mundo externo.
Um sintoma psicológico das sociedades modernas são as defesas contra a ansiedade que ameaça aniquilar o sentido do ser. A aceleração dos tempos atuais e dos meios de comunicação pressiona a dar respostas imediatas que ativam, por sua vez, instintos primitivos e regressivos, por estimularem o ato reflexo simples do estímulo-resposta e inibirem o instinto de reflexão proposto por Jung (1978).
A aceleração compreende a competição exagerada, a agressividade e até a violência (Guggenbühl-Craig, 1995), a objetivação do indivíduo, a manipulação e o controle, a alienação e a ameaça. Cria-se um ser bi-dimensional superficial com tendência à fuga, ao embotamento ou, reativamente, com atuação irrefletida de seus impulsos.
Estes sintomas estão presentes principalmente no estudante jovem, próximo à adolescência, quando se opera a iniciação para a vida adulta em sociedade e a necessidade de firmar sua identidade. Quando esta transição está ameaçada, particularmente em uma sociedade que oferece muitas ameaças à integridade do ser, torna-se usual o uso de álcool, drogas, a indiferenciação sexual e o escapismo. Num grau de desajustamento grave há síndromes de dependência, transtornos alimentares, depressão ou transtornos obsessivo-compulsivos.
Um reflexo desse fenômeno no jovem estudante é que apresente nas aulas sintomas de desatenção, dificuldade de concentração, um estado de quase suspensão à espera de um evento espetacular.
Tais estudantes costumam responder com comportamento crítico defensivo ou seu oposto, a indiferença paralisante. Nesta conduta percebe-se a projeção na sala de aula de conteúdos inconscientes das polaridades autoridade-submissão, poder-impotência e plenitude-vazio.
Tratar desta problemática, sem invadir a privacidade de cada um, é uma tarefa que cabe ao professor em sua função pedagógico-profilática. Nas aulas abordam-se temas que retratam o cotidiano, os ideais e os conflitos dessa fase da vida dos alunos. Isto é feito mediante ilustrações clínicas, da literatura, do cinema e da cultura em geral. Assim, quando o professor traz um exemplo clínico de um adolescente em risco, que vive o mito do herói, eles são levados a refletir sobre o estado de inflação e seus próprios mitos heróicos, e as conseqüências da possessão pelo inconsciente e da atuação (acting out) defensiva.
Com certa freqüência, pedem orientação para terapia ou relatam algum conflito pessoal ao professor, procurando-o individualmente. As projeções relativas ao professor são em geral de figuras parentais maternas ou paternas, com seus aspectos positivos de proteção e conforto e negativos, de controle e censura.
A atenção dada ao desenvolvimento de atitudes, junto à aquisição cognitiva, favorece o estímulo à criatividade e incentiva-se que cada um deles realize elaborações pessoais mediante análises, compreensão de textos, de símbolos, relatos e exemplos individuais. Os alunos mais interessados mostram uma produção original e variada.
Nos trabalhos de conclusão de curso do 4o ano, aqueles que escolhem Psicologia analítica revelam maturidade em suas escolhas e dedicação para executar seus projetos. Nesses trabalhos e nas orientações de teses da Pós-graduação, o processo de individuação do aluno é particularmente acompanhado pelo orientador, quando ocorre uma descoberta em conjunto dos símbolos de uma trajetória individual.
O arquétipo do mentor-guia torna-se o principal e, apesar de continuarem projeções de tutor, mestre, figuras paternas e maternas, acentua-se a dialética e a possibilidade da alteridade.
Faz parte da dialética energética da psique lidar com os pólos arquetípicos opostos e, no caso do ensino, com os bloqueios decorrentes de dificuldades da estrutura universitária, crises sociais, desajustes com os alunos e a criatividade estimulante da força do conhecimento utilizado com consciência e integridade. O saber, ainda que consolidado enquanto aquisição, pode ser mal empregado. O antídoto do conhecimento destrutivo estaria no próprio conhecimento e, para isso, a compreensão simbólica é fundamental.
A inserção na universidade do ensino da Psicologia Analítica delimita seu alcance de acordo com os pressupostos básicos que a fundamentam. Jung pesquisou arduamente a perspectiva evolutiva da consciência humana e o alcance de sua capacidade para o bem e para o mal. Aliar a ciência à consciência, o pensamento ao sentimento, a reflexão à ética, a precisão à criatividade, parece ser o rumo investigativo a ser aprendido e ensinado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Guggenbühl-Craig, A. (1995). From the wrong side. Connecticut: Spring Publications. [ Links ]
Jung, C.G. (1974). Psychological types. Princeton: Princeton University Press. [ Links ]
Jung, C.G. (1978). Instincts and the unconscious. In: C.G. Jung, The Structure and dynamics of the psych. Princeton: Princeton University Press. [ Links ]
Jung, C.G. (1980). The Tavistock lectures. In: C.G. Jung, The Symbolic life. Princeton: Princeton University Press. [ Links ]
Recebido em 22/05/06
Revisto em 20/03/07
Aceito em 22/03/07
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