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Boletim de Psicologia

 ISSN 0006-5943

     

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A paternidade de filhos adolescentes: a crise do meio da vida e o processo de individuação masculino

 

Parenthood of adolescents sons: the middle life crisis and the masculine individuation

 

 

Durval Luiz de Faria*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Faculdade de Psicologia, Núcleo de Estudos Junguianos

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão sobre a paternidade de filhos adolescentes, a crise do meio da vida e a individuação masculina, com base em uma pesquisa de qualitativa, concluída em 2001, que utilizou como procedimento um Grupo de Pais, com cinco homens participantes, que se reuniram, para discutir as dificuldades e conflitos do exercício da paternidade no mundo contemporâneo. Com base no referencial teórico da abordagem junguiana, a literatura aponta para momentos da paternidade, dos quais ressaltamos dois: o primeiro, regido pelos Arquétipos materno e paterno, visa os cuidados primários e as funções, educativa e interditora, respectivamente. O segundo momento ocorre no tempo de duas crises concomitantes e sincrônicas: a entrada do pai na segunda metade da vida e a crise da adolescência do filho. São apontadas as principais dificuldades paternas nesse momento: a de lidar com os limites e a construção da autonomia do jovem e de aproximação afetiva e de lidar com críticas e a agressividade do adolescente. Conclui-se que os conflitos podem oferecer uma oportunidade de crescimento para os pais, desde que estes questionem a persona do pai heróico e possam entrar em contato com a sombra e as feridas do passado, abrindo a possibilidade para a renovação de si mesmos, de seus projetos, caminhando em seu processo de individuação.

Palavras-Chave: Paternidade, Adolescência, Individuação, Jung, Arquétipos.


ABSTRACT

This paper presents a study about fatherhood of adolescents, the middle life crisis and the masculine individuation. The study concluded in 2001 used a qualitative approach. The sample of the study was composed by a group of five men who discussed the difficulties and conflicts involved in fatherhood nowadays. Within the theoretical Jungian approach, the literature defines moments of the parenthood, two of them were emphasized: the first moment is driven by Mother and Father Archetypes, which are present in primary care and in the educative functions. The second moment occurs at the same time of two crises: the beginning of the second part of life to the father, and the son’s adolescence crisis. This study shows the main difficulties of that father at that moment: the difficulty of dealing with the limits and the construction of the autonomy of the adolescent; the difficulty in being close to the son and the difficulty to deal with the adolescent aggressiveness and criticism. It was concluded that the conflicts offer an opportunity of growth to the father, considering that they allow him to question the persona of the heroic father. Through these conflicts the father can be able to reach the shady aspects of his psyche and his damages, opening pathways to his own renewal and the renewal of his projects which enable him to continue his individuation process.

Keywords: Parenthood, Adolescence, Individuation, Jung, Archetypes.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo está baseado numa pesquisa de natureza qualitativa que realizamos na Clínica Psicológica “Ana Maria Poppovic”, da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, entre 1999 e 2001. Nesta pesquisa, que foi nosso doutorado em Psicologia Clínica, utilizamos como procedimento um Grupo de Pais, cujo objetivo era o de discutir e problematizar os conflitos daqueles pais com seus filhos. Os cinco pais que se apresentaram como participantes, em sua maioria, tinham filhos no período da adolescência (15-20 anos) e atravessavam o meio da vida (38 a 50 anos).

No entanto, não gostaríamos, neste artigo, de sintetizar nossa pesquisa ou publicá-la na íntegra, o que já foi realizado. Desejaríamos, sim, realizar uma reflexão sobre a vivência de pais que têm filhos adolescentes, apontar a sincronia entre a crise do meio da vida do pai e a crise da adolescência, os conflitos que advêm deste momento e a oportunidade de crescimento do homem rumo à sua individuação. Em outras palavras, ressaltar a paternidade, o homem que é pai e seus conflitos nesta fase da vida.

Para tanto, trataremos primeiramente dos momentos da paternidade, assinalando em cada um deles os principais conflitos presentes, apontados pela literatura e pelas nossas observações. Posteriormente, assinalaremos as características da paternidade de filhos adolescentes e os principais conflitos encontrados em nossa pesquisa e cujo enfrentamento pode levar a uma transformação e individuação do homem no meio da vida.

Partimos do esquema do Ciclo Vital, desenvolvido por Stevens (1993), adaptado por nós, para o enfoque da paternidade. Neste esquema, encontraremos não apenas as fases do ciclo vital individual, mas também o relacional, o ciclo bipolar pai-filho, nas seguintes etapas: o pai adulto jovem e o filho criança (em dois momentos: primeira e segunda infâncias); o pai adulto na passagem para o meio da vida e o filho adolescente; o pai na maturidade e o filho adulto jovem; o pai na passagem para a velhice e o filho no início da maturidade e, finalmente, o pai idoso e o filho maduro. Apresentaremos aqui apenas as duas primeiras fases.

 

A PATERNIDADE E SEUS MOMENTOS

A paternidade pode ser entendida como um comportamento adulto, masculino e que se expressa pelo cuidado (Souza, 1994). Colman e Colman (1990) assinalam que a paternidade tem uma ressonância muito forte na vida de um homem, modificando para sempre sua identidade, seu modo de se perceber, sua relação com o trabalho, com o casamento, a interação com seus pais e com a sociedade. E esta “revolução”, que ocorre em sua vida, será integrada paulatinamente, pois, se ele é um pai tradicional (centrado no papel de provedor), nem sempre perceberá a profundidade dessa mudança.

A primeira fase da paternidade (pai adulto jovem e criança) se divide em duas subfases. A primeira subfase segue o padrão arquetípico da Grande Mãe, na qual os cuidados, que podem ser denominados de primários, giram em torno da alimentação, cuidados higiênicos, de saúde e proteção do infante. Poderíamos dizer, numa imagem, que é como se a família utilizasse sua energia psíquica na formação de um ninho protetor onde pai, mãe e filho possam se desenvolver.

A mãe ou substituta se articula nessa fase como um elemento imprescindível e mais ativo nos cuidados primários, embora o homem, em nossa cultura, também comece a compartilhar essas tarefas com a companheira (Lamb, 1986). Em nossas observações, o desejo de cuidar de forma direta é bastante grande nos pais, mas, apesar de o homem, hoje, se mostrar mais solícito nessa direção, as falas deixam transparecer que tais cuidados são “naturais para a mulher”, não são da natureza do homem (Faria, 2003). O que podemos observar, em termos da mobilização da energia psíquica, é que os homens se sentem mais mobilizados a ir para fora, em busca do dinheiro e do sustento (o provedor).

Há um discurso modernizador segundo o qual o homem deve participar dos cuidados primários e não apenas como provedor, embora isto não seja natural para ele. Há, portanto, um conflito dentro do pai nesta etapa - ele quer participar e cuidar de seu filho de maneira direta, mas não se sente muito à vontade.

O que isto pode significar? Estamos acostumados ao discurso de que o homem se acomodou a não fazer nada dentro de casa e se mantém distante daquilo que é imaginado apenas como feminino, tomar conta de criança. E feminino significaria ser menos, ser desvalorizado.

Pensamos que talvez exista, na verdade, um temor, um estranhamento do homem em relação ao feminino, ao contato, ao sentimento. É como se nesse momento de sua vida os âmbitos psicológicos do masculino e feminino estivessem bem separados e precisassem estar. Ele se arrisca em certos momentos nessa área, mas precisa voltar logo para o seu domínio.

De seu lado, talvez a mulher também precise defender o seu domínio do invasor. Numa investigação realizada em 1996 (Rezende e Alonso, 1995), duas pesquisadoras, entrevistando pais usuários de um posto de saúde em Florianópolis, com o objetivo de verificar a percepção deles em relação ao cuidado direto, concluíram que estes homens desejavam se envolver mais com seus bebês, mas este desejo não era compreendido, nem estimulado por parte de suas mulheres e da equipe de profissionais de saúde.

Uma outra questão que pode ser conflitiva para o pai jovem adulto é o da inclusão do terceiro no relacionamento. No círculo familiar, não serão mais dois elementos no grupo, mas três, o que poderá abalar o padrão relacional construído &– antes, homem e mulher tinham uma fantasia de viverem “um para o outro”, o afeto não tinha que ser dividido e a vida se constituía, de certo modo, como um prolongamento da vida de solteiro.

Para muitos casais, se a relação anterior ao nascimento do primeiro filho tiver sido mais de fusão do que propriamente de intimidade, a presença do terceiro se constituirá num fator estressante muito grande (McGoldrich, 2001). Para a autora, o relacionamento fusional advém de uma não resolução dos conflitos com os pais e, na linguagem junguiana, com os complexos materno e paterno.

Tal opinião é compartilhada por Sanford e Lough (1988), que afirmam que as mudanças na relação marital após o nascimento dos filhos podem ser particularmente penosas para um homem que espera uma conduta maternal de sua mulher para consigo.

Se o complexo materno no homem for muito arraigado, a perda da Mãe na companheira poderá constelar mudanças de humor, depressão, agressões, que podem resultar, muitas vezes, em separação. E tudo isso afetará, certamente, sua relação com o filho.

A segunda subfase do primeiro momento da paternidade será regida pelo Arquétipo do Pai e está centrada nas tarefas educativas e de interdição. A entrada no mundo do Pai significa uma transformação da consciência, que será então regida por este arquétipo.

O pai é aquele que, primordialmente, veicula as funções arquetípicas do arquétipo do Pai para o infante e introduz a criança no mundo da cultura; ele, de certo modo, cria um novo mundo em que o regresso à Mãe é parcialmente proibido, pois a Mãe simboliza um paraíso perdido, no qual a criança se sentia completa. O Pai realiza, desta maneira, uma interdição a um retorno total à Mãe, o que implica a proibição do incesto simbólico.

Por esta razão, a fase patriarcal implica uma aceitação da interdição ou da falta. A falta pode ser entendida como um registro simbólico da separação do Paraíso, de que a cultura apresenta limites para o comportamento humano, a aceitação por parte da criança que ela estará apartada da relação primal e urobórica1.

Aqui os pais se deparam com a necessidade, cada vez maior, de exercer tarefas desenvolvimentais educativas que visam, exatamente, a uma adaptação da criança perante a cultura. Estas ações resultam na estruturação da identidade infantil, em vários âmbitos, como o sexual, o social, etc. No entanto, nem sempre os pais e, no nosso caso, o pai, se encontra preparado para cumprir esse desígnio, pois, muitas vezes sua identidade se apresenta mal estruturada.

Destacaremos, entre as tarefas educativas que devem ser exercidas pelos pais, nesta etapa: as ações interditoras, as ações que visam ao conhecimento do mundo e as ações que preparam a criança para o desenvolvimento de sua autonomia.

Consideramos as ações interditoras como aquelas que fornecem a noção de limites para a criança &– limites entre ela e a relação do casal, entre ela e seus iguais, entre ela e o mundo. Podemos considerar que a interdição pode ser realizada com relativo sucesso se os pais tiverem tido uma estruturação adequada na etapa patriarcal, se eles construíram subjetivamente a noção de limites, para si mesmos e para com os outros.

Caso contrário, muitos conflitos poderão surgir na relação com o filho, pois o modo onipotente e inflado do pai constelará o mesmo estado no filho, ficando os dois presos num estado narcísico do ego, no qual a falta é negada e o egocentrismo impera.

Cytrynowicz (2000) assinala que podemos entender limite por meio de dois movimentos: o primeiro deles sugere limite como até onde: até onde a criança pode ir e até onde o outro pode, que podemos pensar tanto em termos de espaço, como em termos de direitos. Esse movimento aparece nas preocupações da educação: “até onde as crianças podem ir? Até onde sua conduta não desrespeita o outro? Ou até onde sua conduta é prática de liberdade e não um excesso indesejável?” (p. 56-57). Aqui o limite será compreendido como fim, como impedimento.

O outro significado do termo limite é o de de-limitar, que não é aquele que aponta para uma restrição, para um impedimento, mas para uma abertura do eu para as possibilidades: o pai poderá abrir, pela sua ação educativa, um campo de outras possibilidades para a criança naquele momento, naquele contexto.

A percepção das possibilidades, que podem ser vividas ou não pela criança, vai sendo despertada no relacionamento com seus pais, até que ela consiga discriminar, num processo que irá até a adolescência e quiçá até mais tarde, os vários modos de lidar com os limites em vários campos de atividade, como nos jogos, na educação e na aprendizagem, no relacionamento com a família e nos vários grupos sociais e, ainda, num movimento mais interior, a construção de um ego com limites.

A ação dos pais é fundamental, portanto, para o desenvolvimento de um ego que possa se inserir na cultura, discriminando uma ética do significado dos limites. Uma das maiores queixas dos educadores e professores de hoje em dia é a de que as crianças não têm mais limites em sua atuação, não sabendo se disciplinar nas várias situações que a escola proporciona. As escolas esperam, e com alguma razão, que os pais comecem a perceber o fracasso da educação familiar de quarenta anos para cá, quando a família cedeu ao apelo “cientificista” da Psicologia e das escolas renovadoras, que passavam uma mensagem oposta à educação autoritária até então predominante.

Deste modo, a escola e a maioria das famílias passaram de uma educação rígida e com limites severos, como os castigos físicos, para uma educação sem limites, no qual a criança era o centro do poder decisório, porque qualquer interferência representaria uma repressão à sua liberdade e capacidade de autonomia. Esta experiência inovadora trouxe muitas contribuições para reformularmos as relações na família e na escola, por outro lado, desvalorizou a autoridade legítima dos pais e da escola, igualando autoridade e autoritarismo.

Para diferenciar autoridade de autoritarismo é necessário percebermos o modo como as restrições são colocadas. No autoritarismo o adulto decide uma forma correta de comportamento e exige que esta forma seja cumprida pela criança, por meio de coerções, como a repetição exaustiva da ordem, a ameaça, a mentira e a força física (violência).

Na relação em que existe a presença da autoridade, o adulto procura compreender o significado da conduta da criança e procura orientá-la e educá-la no que se refere ao significado da ação inadequada e sobre as conseqüências que podem ocorrer para ela e para os outros, se a ação persistir. Entendemos que o pai pode utilizar sua autoridade de um modo relacionado e não apenas impulsivo, dando margem para a criança compreender o uso da autoridade e do limite.

Entendemos também que, embora nossa cultura seja denominada muitas vezes de falocrática, os homens possuem pouco contato consciente com Phallos, daí a sua extrema dificuldade em exercer a autoridade e colocar limites.

Monick (1993) entende o falo como um arquétipo relacionado à potência (não apenas sexual), à atitude afirmativa e desbravadora diante da vida e dos obstáculos. Ele não se reduz à imagem do pênis. Sua simbologia diz respeito à agressividade, “fortaleza, determinação, eficácia, penetração, avanço, dureza, força” (p. 10).

As ações interditoras exigem que o pai tenha uma conexão com o falo, uma vez que este aspecto é que possibilitará o desenvolvimento do limite e da agressividade na criança; no entanto, muitos pais não têm uma boa conexão com esse arquétipo, pois o seu contato com ele pode ter sido prejudicado pela atuação dos complexos; conseqüentemente, o poder fálico muitas vezes é reprimido, advindo daí duas atitudes prejudiciais ao exercício das ações interditoras: ou o ego paterno se torna fraco perante os filhos, perdendo sua autoridade e se ausentando, ou o ego é tomado por Phallos, tornando-se o pai tirano, machista e autoritário.

No entanto, as tarefas da paternidade nessa subfase patriarcal não se resumem à postura delimitante, mas também exigem do pai uma investidura do Logos, entendido como um espírito que vai vivificar sabiamente a criança, apresentando a ela um universo de conhecimentos, de leis, de regras de funcionamento da ordem do mundo.

Neste sentido, o pai será o herói para a criança, o herói patriarcal e idealizado. O pai será visto, de acordo com Colman e Colman (1990), de uma forma romântica, no qual as crianças projetam seus deuses e heróis, demônios e figuras maléficas. Se, de um lado, os pais são vistos pelos meninos como heróis que indicam o caminho de separação da mãe, por outro, eles causam medo, pois não são imaginados seguros como a mãe. Para as meninas, além da fantasia romântica, o pai se reveste também de um heroísmo e de uma idealização que podem salvá-las das situações adversas e também da possessividade da mãe.

Em nossa pesquisa, essa fase foi percebida como possibilitadora de uma grande satisfação para os pais; é como se os homens estivessem em seu próprio território, território de heróis, atletas e conquistadores; legisladores e professores; modelos para a vida futura de seus filhos; criadores de ideais e de conduta ética.

É também uma fase em que o homem adulto exerce o ordenamento e, sentado em seu trono, pode dizer o que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve, aquilo que seria bom e o que seria mau para o seu filho.

 

PATERNIDADE E ADOLESCÊNCIA

A segunda fase da paternidade compreende, neste estudo, a crise do início da segunda metade da vida e a crise do filho adolescente. Aqui se inicia, para Jung (1984), o processo de individuação, o tornar-se um ser único, uma possibilidade de alcance de nossa singularidade mais íntima.

Até o meio da vida o ego tem a concepção de que ele é o centro da psique, o que possibilita ao indivíduo a sua afirmação no mundo e o levando a um processo adaptativo que tem como mecanismos a razão, o controle do pensamento e a vontade. No entanto, no meio da vida essa concepção tende a começar a falhar &– podem surgir conflitos na conjugalidade, no casamento; o trabalho pode se tornar tedioso; os filhos entram na adolescência e não apenas não querem mais a companhia do pai, mas começam a vê-lo como velho e ultrapassado.

Todas essas pequenas crises concomitantes exigem que o homem se volte mais para si mesmo e comece a pensar no sentido de sua vida. Seu primeiro movimento será o de achar que a vida que viveu até aquele momento não tem mais sentido, que todo o progresso e a satisfação que viveu agora se tornam uma ilusão. Vejamos como essa crise se processa na paternidade.

Os dois primeiros momentos da paternidade são eivados pela idealização, em que o pai, em geral, identifica-se com uma imagem heróica e passa a vivê-la na relação com o filho que, de seu lado, também projeta uma imagem divinizada no pai, transformando-o em seu herói, seu modelo de identificação.

O filho, por seu lado, para agradar ao pai, objeto de seu amor, também passa a corresponder a uma imagem de “bom menino” esperada por ele, reprimindo seus sentimentos mais negativos - a raiva, a inveja, a competição. Estes sentimentos reprimidos passam a constituir o complexo paterno, alojado na sombra.

No entanto, com o decorrer do tempo, paulatinamente e com a chegada da puberdade e da adolescência, essa imagem divina que a criança projeta no pai começa a ser questionada &– aquele menino bonzinho de repente se transforma num contestador, num crítico dos atos de seu pai, pois descobre nele suas características negativas.

Do mesmo modo, o pai reage à atitude diferente de seu filho, vendo nele alguém que subitamente se tornou detestável, agressivo e crítico &– onde estaria aquela criança doce e idealizada de outros tempos? Assim, todo o ressentimento de muitos anos começa a vir à tona, originando conflitos constantes no relacionamento.

Nesse momento da paternidade, começa a haver um descolamento da persona do pai como herói e do filho como o bom filho do herói; os conflitos indicam esse descolamento e a emergência da sombra que estava por trás dessa cisão. A desidentificação do ego com a persona provoca grandes perturbações na consciência de pai e filho. Para o filho, essas perturbações revelam sua entrada num ensaio para o próximo ciclo, o da Alteridade (Lima Filho, 2000). E para o pai esses conflitos representam a entrada no Ciclo da Alteridade, no qual os arquétipos regentes não serão mais os parentais, mas o da Anima e Animus.

Assim, esse momento é caracterizado por um estranhamento entre pais e filhos, por um afastamento ou alienação, tal como o denominam Colman e Colman (1990). É também caracterizado por uma desidealização, uma descoberta de aspectos sombrios e desagradáveis de ambos os pólos do relacionamento.

O processo de desidealização, que ocorre conjuntamente para pais e filhos, por mais doloroso que seja, pode possibilitar que pais e filhos não apenas se desidealizem reciprocamente, mas que percam a idealização a respeito de si mesmos. Se pais e filhos estiverem suficientemente abertos para ouvir o que pensam e sentem uns em relação aos outros, poderão começar a tomar contato com os conteúdos sombrios de cada um. Somente desta maneira conseguirão crescer para uma etapa seguinte &– o filho começando a assumir o seu lado adulto responsável e o pai deixando-se fertilizar pela criança e pelo adolescente esquecidos de seu passado.

Em nossa pesquisa, notamos que pai e filho atravessavam crises sincrônicas e o choque dessas crises era extremamente doloroso para ambos os pólos do relacionamento. Como estamos discorrendo sobre a paternidade, apontaremos aqui as principais dificuldades dos pais nessa fase: como lidar com a autonomia crescente dos jovens, como suportar suas críticas e agressões e como ter uma aproximação afetiva.

Durante o processo da pesquisa vimos também que essas dificuldades se baseavam em alguns fatores, que passaremos a nomear. Em primeiro lugar, muitos pais não conseguiam lidar com seus filhos adolescentes, pois sua própria adolescência, assim como o conflito com os pais, encontrava-se bastante inconsciente (Preto, 2001).

Em suas famílias de origem, os participantes tinham com seus pais um padrão de relacionamento baseado na submissão/revolta, não elaborado: sentiam-se submissos aos pais e revoltavam-se internamente, mas raramente expressavam isto. Esse elemento do complexo, por estar inconsciente, também aparecia na relação com os filhos, tornando-a conflitiva, pois, ou o pai se submetia aos filhos ou se tornava tirano. Assim, embora conscientemente quisessem ser diferentes de seus pais, acabavam por ter uma conduta bastante parecida.

Na persona, portanto, os pais apresentavam um comportamento (pseudo) amoroso, mas que rapidamente se transformava em rancor, ressentimento e cinismo. Por quererem ser bons pais e diferentes dos seus, não percebiam os sentimentos “negativos”.

Em segundo lugar, a dificuldade dos pais em colocar limites e promover autonomia provinha do fato de não conseguirem vivenciar o seu lado fálico de forma relacionada; em geral não tinham coragem de enfrentar os filhos, escamoteando essa dificuldade com defesas, como: falar e ordenar compulsivamente, agredir verbalmente, mentir e chantagear. Enfrentar os filhos significaria, então, transformar uma violência do pai tirano numa assertividade no relacionamento, dentro de um contexto relacional humanizado, tal como aponta Whitmont (1991).

Em terceiro lugar, a criação de um espaço de autonomia para o jovem implicaria abdicar do poder absoluto do pai e desenvolver um sentimento de confiança no filho como capaz de se tornar adulto. Ver o filho como outro e não apenas como parte de si mesmo.

Aqui vemos como fundamental a criação de uma abertura em poder se colocar não apenas racionalmente, mas também com o coração (Eros), nos amores e rancores, de modo que o pai pudesse ser mais autêntico consigo mesmo e com seus filhos. Mas como os pais poderiam se abrir para os sentimentos dos filhos, se eles estavam desconectados de seus próprios sentimentos?

O entendimento entre pais e filhos na adolescência pressupõe que os pais percebam suas defesas, sua persona heróica contestada e a aceitação da incerteza, do não saber e da falibilidade. O desarme dos pais, que envolve sua confissão de “fragilidade”, poderá criar uma ponte para o desarmamento do filho, abrindo um espaço para que um novo relacionamento possa emergir, baseado no respeito a si mesmo e ao outro como diferente, desconstruindo um relacionamento baseado na assimetria e no poder. Em vez do poder, os acordos, ao invés do mando, as negociações e o diálogo.

 

CONCLUSÃO

Classicamente, segundo von Franz (1981), a individuação ou a busca constante e nunca alcançada do Si-mesmo percorre fases, não lineares e interdependentes: a desidentificação com a persona, o confronto com a sombra, o embate com a anima e o encontro com o Self.

Na segunda metade da vida, o ego heróico patriarcal masculino começa a dar sinais de esgotamento e os pais se defrontam com a crise dos filhos adolescentes. Esta sincronicidade de crises abre um novo capítulo no desenvolvimento masculino, que poderá se dar, na paternidade, no confronto do pai consigo mesmo.

Arraigado à persona do Bom Pai, que faz dupla com o Filho Obediente, as idealizações entre pais e filhos começam a se romper, à medida que questionam os papéis estabelecidos. O contato com o lado do Pai terrível e sombrio, faz com que o homem reveja o relacionamento com seus pais e as situações não resolvidas de seus complexos materno e paterno.

O confronto com a sombra traz ao homem a humildade e a percepção de seus limites e defeitos, conduzindo-o à situação de humano, que pode agora ver o seu filho também como um ser humano imperfeito. Talvez isto abra o seu coração e desperte nele o Eros e os conteúdos benéficos do feminino que poderão levá-lo a uma abertura para o desconhecido.

Assim, a paternidade no meio da vida pode ser uma grande oportunidade para que o homem reveja sua vida, enfrente as feridas do passado e construa um futuro no qual impere não o poder e a prisão a um padrão coletivo, mas o contato mais profundo consigo mesmo e com os outros. O embate com o filho, às vezes, experienciado como angustiante e conflitivo, pode resultar numa solução bastante criativa para ambos: para o filho, o ganho da autonomia; para o pai, uma aproximação maior com a vida em seu sentido mais amplo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 22/05/06
Revisto em 26/10/06
Aceito em 30/10/06

 

 

1 Urobórica refere-se à relação primal, onde a criança repousa na psique materna, numa totalidade indiferenciada. O termo provém de Ouroboros, a serpente mitológica que engole a própria cauda.
* Endereço para correspondência: R. Ministro Gastão Mesquita, 418, ap. 42. São Paulo. CEP 05012-010. Fone: 3673 3579; Fone / Fax 3864 2170; E-mail: dl.faria@uol.com.br.

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