Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
A jornada do herói na trajetória de Batman
Hero journey in Batman trajectory
Luísa de Oliveira*
Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
Com base nos conceitos da Psicologia Analítica e de Joseph Campbell, este artigo consiste na análise simbólica da personagem de quadrinhos Batman & uma imagem contemporânea do herói, desde sua criação, por Bob Kane, em 1939, até os dias atuais. Identificaram-se as grandes etapas do ciclo heróico, discriminadas a partir dos diferentes momentos da evolução da personagem, como apresentadas em histórias em quadrinhos, séries e filmes. O foco da análise recaiu sobre as características do herói e tarefas realizadas, ressaltando as transformações ocorridas. A análise dinâmica desse tipo de herói permite uma aproximação dos temas psicológicos correntes na atualidade. A realização do ciclo heróico, tal como formulado por Campbell, evidencia características arquetípicas do personagem Batman.
Palavras-Chave: Super-heróis, Arquétipo do herói, Batman, Psicologia Analítica.
ABSTRACT
This article offers a symbolic analysis of Batman, a contemporary hero image, from his creation by Bob Kane in 1939 up to the present based on the concepts of Analytical Psychology and Joseph Campbell. Crucial stages in the heroic cycle are identified, discriminating the main themes in comic books, series and films at the length of the different periods into the character’s evolution. The analysis focuses on the hero’s characteristics and tasks accomplished, emphasizing transformations that take place. The dynamic analysis of this type of character provides ways for approaching the prevalent psychological issues of our times. The completion of the heroic cycle, as formulated by Joseph Campbell, evidences archetypal aspects of the character Batman.
Keywords: Super-heroes, Hero archetype, Batman, Analytical Pasichology.
INTRODUÇÃO
Diariamente, os meios de comunicação (televisão, jornais, revistas em quadrinhos) produzem e veiculam histórias que comovem grande parcela da população. Essas produções, em sintonia com o público, estão atreladas às demandas do mercado para garantir audiência e vendas. Os quadrinhos constituem uma importante fonte de criação e divulgação de personagens, que posteriormente são lançados em outros formatos como cinema e televisão.
Na década de 30, período entre as duas Grandes Guerras Mundiais, os superheróis surgiram nos Estados Unidos. Houve uma profusão de personagens com características extraordinárias, idealizados para salvar a humanidade da ação das forças do mal.
Alguns personagens como Batman e Super-Homem continuam, ainda hoje, no imaginário do grande público. Suas trajetórias foram contadas e recontadas ao longo de mais de 60 anos.
Pode-se considerar que os motivos abordados pelos meios de comunicação expressam necessidades coletivas em destaque no momento histórico em que elas se apresentam e inserem. Para Vergueiro (1998),
“Enquanto meio de comunicação, elas [as histórias em quadrinhos] seguem a tendência geral da indústria cultural, de pasteurizar conteúdos, esconder individualidades locais e regionais, buscando atingir o máximo de pessoas possível. ... Em tese, pelo menos, quanto mais universais forem as problemáticas tratadas nesses meios, maiores as chances de seus produtos atingirem um amplo espectro da população”.
Nesse sentido, os personagens ganham evidência ao traduzirem temas universais que ressoam nos leitores, atendendo às necessidades de expressão dos conflitos constelados no momento histórico a que se referem.
Os analistas junguianos tradicionalmente se dedicaram ao estudo dos contos de fadas, por considerá-los uma das formas mais puras de expressão do inconsciente coletivo. Nessas histórias, aspectos individuais e culturais foram minimizados, possibilitando uma expressão mais clara das estruturas e processos psíquicos. A idéia central é que as histórias contadas e recontadas pela humanidade ao longo do tempo perdem características regionais, até a representação tornar-se cada vez mais coletiva, sobressaindo o núcleo de significado. As necessidades humanas mais fundamentais e os mecanismos utilizados para lidar com elas são expressos de maneira simbólica, capaz de tocar a sensibilidade humana.
Os meios de comunicação apresentam imagens arquetípicas manifestas na atualidade e impregnadas por aspectos culturais. Para Beebe (2001), a compreensão dessas imagens é importante na medida em que elas se referem à cultura na qual estão imersas as pessoas que recorrem à psicoterapia.
Por entender que a análise simbólica de produtos dos meios de comunicação pode lançar luz sobre dinâmicas consteladas na contemporaneidade, este artigo realiza a análise simbólica de Batman, uma imagem contemporânea do herói.
No âmbito da Psicologia Analítica, a aproximação dessa imagem remete ao arquétipo do herói & motivador do processo de desenvolvimento da consciência.
“O herói é o precursor arquetípico da humanidade em geral. O seu destino é o modelo que deve ser seguido e que, na humanidade, sempre o foi & na verdade, com atrasos e intervalos, mas o suficiente para que os estágios do mito heróico façam parte dos constituintes do desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo (Neumann, 1990, p. 107).
Além dos conceitos da Psicologia Analítica, esta análise da trajetória de Batman recorre às idéias de Campbell (2002), segundo as quais o herói deve realizar duas grandes tarefas: na primeira, ele se retira do mundo cotidiano para iniciar uma jornada pelo desconhecido, saindo do mundo externo para o mundo interno.
“A primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação direta e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas” (Campbell, 2002, p. 27).
Realizada a primeira tarefa, o herói “deve retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu” (Campbell, 2002, p. 28).
Assim, as grandes etapas do ciclo heróico foram identificadas, discriminando os temas em destaque em histórias em quadrinhos, séries e filmes em diferentes momentos da evolução do personagem. Para a consecução deste estudo, foram desenvolvidas as seguintes etapas:
OS PERSONAGENS SERIADOS E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: DE YELLOW KID A BATMAN
Os quadrinhos com personagens seriados começaram a se desenvolver nos Estados Unidos. Em 1895, o primeiro personagem seriado & Yellow Kid &, um menino que usava um camisolão amarelo com frases cômicas e/ou sarcásticas, surgiu na imprensa norteamericana. Este personagem fez muito sucesso e possibilitou a percepção de que os leitores preferiam quando o texto era acompanhado por imagens. A camisola deu lugar aos baloons e Yellow Kid foi a base para o surgimento das histórias em quadrinhos com personagens seriados e periódicos tal como se apresentam hoje (Moya, 1997).
A partir deste precursor, surgiram vários outros personagens. Em 1911, foi a vez de Krazy Kat, seguido do Gato Félix e dos personagens de Walt Disney. O ano de 1929 foi considerado o início da era de ouro dos quadrinhos, com o aparecimento de três personagens que fizeram imenso sucesso: Tarzan, Buck Rogers e Dick Tracy. A década de 30 trouxe novos personagens envolvidos com os mesmos temas: a vida nas selvas, o espaço e o mundo do crime. São eles: Jungle Jim, Flash Gordon e X-9.
Até esse momento, as histórias desses personagens eram publicadas em jornais, em tiras diárias e páginas dominicais. Em 1934, surgiram os primeiros gibis com a republicação das tiras em histórias completas. Neste mesmo ano, surgiu o Mandrake. Em 1936, foi a vez do Fantasma.
O grande evento das histórias em quadrinhos viria a ocorrer em 1938, com a criação do Super-Homem. Lançado experimentalmente pela DC Comics, na Action Comics Magazine, este personagem conquistou a imaginação das crianças norte-americanas e rapidamente a revista dobrou a tiragem. Estava aberta uma nova frente nos quadrinhos: a era dos super-heróis.
Em maio de 1939, foi publicada, na Detective Comics, a primeira história do Batman, criada por Bob Kane.
AS ORIGENS DE BATMAN
As primeiras histórias de Batman foram desenhadas por Bob Kane e escritas por Bill Finger, mas esse empreendimento se mostrou grande demais para duas pessoas. Uma série de outros autores assinou histórias, sendo incontáveis os ghost writers1 envolvidos no processo de criação. No entanto, nenhum desses autores promoveu alterações significativas no núcleo da história, ou seja, a forma como Bruce Wayne se transformou em Batman.
A história básica de Batman pode ser assim resumida: aos 10 anos, Bruce foi ao cinema em companhia de seus pais. Quando procuravam um táxi para voltar para casa, foram abordados por ladrões. Bruce presenciou, nessa tentativa de assalto, o brutal assassinato de seu pai e sua mãe. Profundamente chocado, ele prometeu nunca esquecer esse evento e dedicar sua vida a fazer os criminosos pagarem por seus crimes. Bruce afastou-se de sua vida rotineira para se preparar física e mentalmente para sua tarefa. Adulto, ele sentia falta de um disfarce e pensou nas suas metas: “criminosos são supersticiosos e covardes, então o meu disfarce deve ser capaz de levar o terror a seus corações. Eu devo me tornar uma criatura da noite, negra, terrível... Um... Um...” (Daniels, 1999, p. 35). Nesse momento, um enorme morcego invade a sala na qual Bruce se encontra, oferecendo a máscara que ele necessitava.
APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS
Os Arquiinimigos
Batman conta com uma extensa lista de arquiinimigos. Os primeiros foram o Coringa e a Mulher-Gato, em Batman nº 1 (1940). Esses dois personagens têm em comum a ausência de história pregressa. Simplesmente, quando o Batman apareceu, eles estavam lá.
Os demais inimigos (Pingüim, Duas Caras, Espantalho, Cabeça de Ovo, Charada, etc.) contam com uma identidade original e algum acontecimento que os fez mudar, transformando-os em grandes vilões.
Coringa e Mulher-Gato, objetos desta análise, eram os únicos que ninguém sabia exatamente quem eram e que acontecimentos os originaram. Ao longo dos anos, foram feitas tentativas de construção de uma história prévia. Algumas geraram resistência e insatisfação junto ao público, outras tiveram maior aceitação.
Coringa
Coringa é o primeiro e mais importante membro da galeria de arquiinimigos de Batman. Ele está permanentemente arquitetando crimes e assassinatos. O crime perfeito, para ele, é aquele que pode promover gargalhadas. Seu principal alvo é o próprio Batman. Enquanto Batman é sério, circunspecto e austero, Coringa é expansivo, alegre e barulhento.
O passado de Coringa é incerto. Alguns acham que ele sofreu um acidente numa indústria química que resultou em sua pele branca, seus cabelos verdes e seu sorriso permanente. Outros acreditam que ele foi um comediante frustrado e fracassado. Ele teria uma esposa, que morreu grávida e na miséria, pois Coringa era incapaz de se estabelecer profissionalmente.
Essas versões não exerceram um impacto definitivo. No contexto das histórias em quadrinhos, apenas o próprio Coringa pode saber o que aconteceu. Sabe-se, certamente, que ele é capaz de praticar todo tipo de crime, que matou Jason Todd (o segundo Robin) e Sarah Gordon, esposa do Comissário Gordon e que disparou o tiro que deixou Bárbara Gordon (a segunda Batgirl) paraplégica.
Mulher-Gato
A Mulher-Gato participa das histórias do Batman desde a primeira revista, lançada em 1940, na qual ela era simplesmente Cat. A partir da revista nº 2, ela passa a ser conhecida como Mulher-Gato.
Tal como o Coringa, houve algumas tentativas de retratar uma história pregressa e uma identidade original para a Mulher-Gato. Mas, contrariamente ao que aconteceu com o Coringa, uma das versões (a de 1987) obteve a adesão dos fãs.
A Mulher-Gato é Selina Kyle, filha mais velha de uma família desestruturada. Após o suicídio de sua mãe, Selina e uma irmã viveram em instituições para menores abandonados, tendo sofrido toda sorte de maus-tratos. Aos 13 anos, ela fugiu e foi morar nas ruas, onde aprendeu a ser uma exímia ladra. Com o aparecimento de Batman e inspirada por ele, Selina, até então conhecida como Cat, passa a usar traje negro e se autodenominar Mulher-Gato.
Sua eficiência em roubos possibilitou que ela acumulasse muito dinheiro e começasse a freqüentar a alta sociedade de Gotham City. Foi nessa época que Selina namorou Bruce Wayne. A Mulher-Gato é a grande paixão de Batman.
Os Auxiliares
Alfred
Mordomo da família Wayne, Alfred ficou encarregado de cuidar de Bruce desde o assassinato de seus pais. Ele está entre os mais confiáveis e constantes aliados de Bruce e de Batman. Além dos cuidados cotidianos, Alfred possui profundos conhecimentos de Medicina, auxilia nas investigações e é excelente motorista. Ele zela pelos segredos de Bruce/ Batman, cuida de suas feridas e lembra-lhe suas limitações (Miller e Mazzucchelli, 2002a). Apareceu pela primeira vez na revista Batman nº 16, em 1943.
Comissário Gordon
James Gordon sempre foi um policial correto, combatendo o crime e a corrupção do departamento de polícia. A retidão de seu caráter chamou a atenção de Batman, que desenvolveu com ele uma forte aliança, favorecendo sua ascensão ao cargo de comissário. As principais ocorrências policiais de Gotham City são comunicadas a Batman pelo Comissário Gordon.
Batgirl
A Batgirl mais conhecida é Bárbara Gordon, filha adotiva do Comissário Gordon. Ela foi inspirada por Batman, mas contava com recursos próprios e se fazia presente em todos os confrontos importantes. Sua carreira como Batgirl foi interrompida abruptamente por um tiro do Coringa, que a deixou paraplégica. Em cadeira de rodas, Bárbara tornou-se especialista em computação, organizando e acessando uma imensa base de dados. A partir de então, ela se tornou o Oráculo, dedicando-se à investigação e orientação de novos combatentes do crime (Moore, 2002).
Robin
Dick Grayson e toda sua família eram trapezistas. Depois da morte de seus pais (assassinados por Duas Caras), ele se tornou pupilo de Batman. Jovem, hábil, atlético e inteligente, o menino-prodígio participa das aventuras de Batman desde 1940. Segundo Daniels (1999), Bob Kane decidiu criar Robin porque entendia que Batman estava encerrado em uma solidão insuportável. A capacidade lógica de Robin fez dele um excelente parceiro nas investigações da dupla dinâmica.
A AVENTURA DO HERÓI
A presente análise da trajetória de Batman foi organizada considerando três períodos: de 1939 a 1960, de 1970 a 1980 e de 1990 a 2000. A participação de muitos autores no processo de criação de enredos para Batman promoveu diversificações nos rumos da história, por meio de mudanças na apresentação, caracterização e rede de relações dos personagens. Mesmo que a origem de Batman não tenha sido significativamente alterada, foram e são realizadas revisões regulares que harmonizam a diversidade de histórias produzidas. No caso de Batman, a primeira grande revisão ocorreu na década de 1960. A definição dos três períodos analisados teve como critérios a ocorrência de grandes revisões e o surgimento de mudanças expressivas quanto ao sentido da jornada heróica.
1939-1960
O primeiro passo da jornada do herói é o chamado da aventura. Algum acontecimento tira o herói do cotidianamente conhecido. Segundo Campbell (2002, p. 66), “o chamado da aventura & significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro da gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida”.
A morte violenta dos pais de Bruce Wayne, quando ele contava 10 anos de idade, chamou-o para a jornada. Seu mundo foi transformado radicalmente. As referências familiares desapareceram e o pequeno Bruce foi lançado em uma realidade brutal. Nesse momento, ele prometeu não esquecer o que lhe acontecera, dedicando sua vida à luta contra o crime, num esforço para que sua história não se repetisse com outros.
Bruce Wayne atende imediatamente ao chamado. Abandona sua vida cotidiana para dedicar-se a sua missão. Ninguém sabe exatamente onde ele esteve durante um período de 12 anos. A população de Gotham City acredita que ele fez uma viagem ao exterior, mas a possibilidade mais verossímil é que ele tenha permanecido na cidade, escondido em uma caverna desconhecida, situada embaixo da mansão dos Wayne. Nesse local, Bruce realizou seu treinamento, desenvolvendo suas aptidões físicas e mentais (Miller e Mazzucchelli, 2002b).
A caverna é um símbolo análogo ao do ventre da baleia, presente em numerosos mitos de origem, de renascimento e de iniciação. Região desconhecida, sombria, de limites inexplorados, a entrada na caverna é um caminho para dentro, uma interiorização, um retorno às origens, ao centro.
“O caráter central da caverna faz com que ela seja o lugar do nascimento e da regeneração; também da iniciação, que é um novo nascimento. ... Entrar na caverna é, portanto, retornar à origem e, daí, subir ao céu, sair do cosmo” (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 216).
Dessa descida, Bruce Wayne volta transformado. Sente-se pronto para cumprir sua tarefa, contudo, uma nova identidade é essencial. Um disfarce que possa torná-lo reconhecido como uma força eficaz contra o crime. O morcego que invadiu a sala de sua casa trouxe a imagem que necessitava. Este evento é um aceno sobrenatural que sintetiza os anseios de Bruce e aponta para a transformação final. A partir desse momento, ele é Batman.
Esses dois símbolos intimamente relacionados & a caverna e o morcego & passam a fazer parte de Batman. A caverna é a morada do morcego, único mamífero capaz de voar. Ele é um animal noturno que vive em grutas e cavernas. De acordo com as ONG’s, International Bat Conservartion e Friends of Bats, existem cerca de 900 espécies de morcegos das quais apenas três se alimentam de sangue. As demais se alimentam de frutas e insetos, exercendo importante papel na polinização (Aprile, 2006).
Os aspectos positivos não são suficientes para evitar o caráter sinistro ligado ao morcego, pois o morcego
“inclui-se no rol daqueles que vivem na escuridão, nas trevas, que se escondem do mundo diurno. Mora em grutas de difícil acesso ou em casas arruinadas. Como se não bastasse, passa o dia inteiro dependurado de cabeça para baixo. É mamífero e, contudo, voa. Parece criatura de um mundo que funcionaria às avessas do nosso” (Augras, 1995, p. 161).
Na Idade Média, para retratar o demônio eram-lhe atribuídas asas de morcego, contrastando com as asas resplandecentes dos anjos (Augras, 1995). Além disso, o morcego está associado à longevidade, “porque se supõe que ele próprio a possua, uma vez que vive nas cavernas & que são uma passagem para o domínio dos Imortais &, e ali se alimenta de concreções vivificantes” (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 216).
Nesse período, Batman foi confrontado com duas tarefas: tornar-se conhecido pelos bandidos e ser aceito pela população de Gotham City. Ele havia se preparado racional e intencionalmente para cumprir sua missão, contou com a colaboração de auxiliares eficazes e pôde, então, integrar-se à estrutura social na qual convivia, como um recurso do departamento de polícia.
Batman é um herói da ação. Seus atos são de coragem. Suas qualidades são persistência, determinação, disciplina. Ele desenvolve e maneja amplo arsenal de armas, é hábil na luta. Recebe o chamado, sofre uma transformação e retorna para colocar as habilidades desenvolvidas a serviço de sua cidade, sem que haja conflitos aparentes, com total desprendimento de sua vida pessoal. O Bem e o Mal estão bem definidos, não sendo necessária qualquer reflexão para identificá-los. Os sacrifícios pessoais não são avaliados. Batman tem uma missão e a cumpre.
Wahba (2004) propõe e analisa três tipos de heróis: o herói da razão, o herói da missão e o herói da complexidade. A caracterização do herói da razão é um retrato da organização de Batman:
“O herói da razão é o herói do dever. Neste, os limites estão bem demarcados e são fixos, inquestionáveis. O mal está fora, combatê-lo se torna prioritário e o ato heróico está acima de qualquer relacionamento. ... A luta heróica é diária, a lógica, infalível; a ação guerreira ou mental segue coordenadas muito bem estabelecidas. ... Coragem significa aferrar-se às convicções e lutar por elas com bravura e decisão unívoca” (Wahba, 2004, p. 218).
Ao acompanhar a trajetória de Batman, percebe-se que o caminho a ser percorrido é aparentemente claro, pois diante dele surgem duas forças desconhecidas e irracionais, condensadas nos personagens Coringa e Mulher-Gato.
1970-1980
Nesse período, a história pessoal do personagem, com suas perdas e conflitos, começa a ganhar destaque. Batman relembra regularmente o momento traumático quando ele presenciou a morte de seus pais. Suas atividades como super-herói tornam-se um testemunho de suas perdas. A tristeza é o sentimento dominante, pois a cada batalha ele resgata o menino abandonado diante dos pais mortos.
À medida que os sentimentos tornam-se preponderantes, ele se aproxima da Mulher-Gato. O gato é um símbolo ambivalente, que transita entre a bondade e a maldade. No Egito Antigo, especialmente em Bubastis, na 22ª dinastia (945-715 a.C.), o gato era venerado como a deusa Bastet, protetora e benfeitora do homem. Esta deusa estava ligada ao canto, à música e à dança, considerada protetora das mulheres grávidas, do amor, da alegria e do prazer de viver. Posteriormente, os gatos foram associados a poderes demoníacos e ao feminino.
Von Franz (2000, p. 70) analisa a simbologia do gato:
“Era voz corrente [na Idade Média] que algumas mulheres tinham o poder de introduzir suas almas em gatos pretos. Essas mulheres seriam bruxas, dedicadas não mais aos poderes da luz, mas aos poderes das trevas, ao demônio. A dissociação católica com relação aos instintos, à sexualidade e, falando de modo geral, ao elemento natural feminino, provavelmente tem muito a ver com esse desenvolvimento do gato como símbolo do feminino instintivo e destrutivo”.
O gato foi visto também como meio, como mediador entre o Bem e o Mal, entre as esferas humanas e divinas, pois,
“Como ele tem acesso a ambas as esferas e se sente à vontade nas duas, ele tem muita sabedoria profética a oferecer e pode ensinar-nos a manter em equilíbrio valores conflitantes. Como símbolo da consciência, o gato é uma entidade psíquica que conhece o caminho & desde que aprendamos a confiar nele, respeitando-o, obedecendo-o e seguindo-o para onde quer que ele vá” (Von Franz, 2000, p. 72).
Compreendidos simbolicamente, o morcego e o gato partilham intimidade com alguns pares de opostos: o bem e o mal, o terrestre e o celeste.
Batman e a Mulher-Gato estão profundamente ligados. É como se eles tivessem sido feitos um para o outro, mas as correspondências simbólicas encontram resolução em atitudes opostas. Batman, em resposta à agressão que sofreu, defende a estrutura social tal e qual ela se apresenta, como se isto tornasse possível a recuperação da unidade perdida. A Mulher-Gato, por sua vez, volta-se contra essa organização em ataque aos seus agressores, que se enquadram no sistema, como se assim pudesse ter seus valores reconhecidos. O que fica fora do campo visual de ambos é que tanto os agressores dele quanto os dela são fruto de um mesmo desequilíbrio.
1990-2000
No período mais recente, Batman começa a prestar atenção em como sua ação engendra efeitos negativos no seu ambiente. O embate com o Coringa ganha destaque. A contraposição exercida pelo Coringa passa a ser compreendida no contexto do relacionamento com Batman. Enquanto Batman é controlado, dissimulado, silencioso, lógico, obscuro, o Coringa é impulsivo, aleatório, fantasioso, escancarado, colorido, alegre, musical.
O Coringa é o contraponto de Batman. Todo e qualquer acessório que Batman cria é imediatamente assimilado pelo Coringa. Ao longo das histórias, esse embate é o mais vigoroso e o de mais difícil negociação.
O Coringa faz referência clara às cartas do baralho. No tarô, a carta coringa é o Louco. Ele não é numerado e está fora do jogo, porque “o louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade” (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 560).
Batman, como vários super-heróis (Homem-Aranha, Hulk, Wolverine), foi criado pela ciência e pelo conhecimento tecnológico. A apropriação do desenvolvimento tecnológico lança-os num caminho de ultrapassagem das limitações humanas. Eles se tornam superiores. A tecnologia é investida de autonomia. Conseqüentemente, as oposições encontradas são igualmente autônomas e radicais. Em Batman, há oposição entre dever e alegria de viver, masculino e feminino, razão e sensibilidade, luz e trevas. A sensibilidade está a serviço do crime.
Batman começa a perceber que as oposições que encontra estão relacionadas às suas atitudes. Surge, então, um herói capaz de tirar seu uniforme e expor suas cicatrizes. Não se trata mais da revelação de complexos infantis, mas da aproximação às marcas engendradas por sua trajetória específica. O sentido e o significado da batalha ganham importância. Ele passa a avaliar, se seus atos heróicos estão alicerçados numa preocupação genuína com o outro ou se eles servem à necessidade de vingança. É possível perceber, então, uma relação diferente entre as forças do Bem e do Mal. Elas já não são tão definidas e de fácil identificação. Observação, análise e reflexão são necessárias.
Neste momento, a luta heróica de Batman está destinada mais à manutenção do equilíbrio entre essas forças do que à tentativa de destruição da oposição.
CONCLUSÕES
A análise dinâmica desse tipo de personagem permite uma aproximação dos temas psicológicos correntes na atualidade. A realização do ciclo heróico, tal como formulado por Joseph Campbell evidencia características arquetípicas do personagem Batman.
Considerando as etapas do processo de individuação, Batman está conscientizando e elaborando aspectos da sombra (Jung, 1981, 1998). Conteúdos reprimidos do inconsciente pessoal são resgatados, trazendo à tona a criança ferida. Há uma ampliação do contato com os próprios sentimentos e o conseqüente aprofundamento dos relacionamentos afetivos. Elementos não-desenvolvidos, qualidades mantidas inconscientes, ganham forma nas projeções identificadas no Coringa. A tensão entre opostos fica evidenciada, com menor tendência à unilateralidade. Esse processo de ampliação da consciência permite que Batman ultrapasse uma visão bidimensional da realidade e busque novas perspectivas, que o aproximam da complexidade humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Recebido em 22/05/06
Revisto em 14/12/06
Aceito em 20/12/06
1 Expressão de uso corrente empregada para indicar autores que não assinam sua participação nas publicações.
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