Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
Síndrome de Down, sentidos e significados: Contribuições da teoria histórico-cultural
Sense and meaning in Down Syndrome: Contributions from the historical-cultural theory
Iracema Neno Cecílio Tada *; Marilene Proença Rebello de Souza
Universidade Federal de Rondônia - Departamento de Psicologia
Universidade de São Paulo - Instituto de Psicologia
RESUMO
Fundamentado na teoria histórico-cultural de desenvolvimento humano, o artigo objetiva analisar o sentido pessoal e o significado social da síndrome de Down atribuídos por uma jovem com essa anomalia, bem como as dimensões de escolarização e de socialização constituídas pela deficiência. Trata-se de estudo de caso, em que participam uma jovem com a Síndrome, seus familiares e professores. Os procedimentos de pesquisa centraram-se em entrevistas, bem como na convivência com a jovem durante um ano. Foram registrados e analisados as atividades e os diálogos realizados nos encontros a partir de categorias tais como: a percepção da jovem sobre a sua condição de deficiência, aspectos de socialização e de escolarização. Observou-se que tanto a jovem quanto as pessoas que se relacionam com ela construíram explicações que, embora reflitam preconceitos vigentes na sociedade sobre a síndrome, procuram questionar o lugar da deficiência no processo de socialização e de escolarização.
Palavras-Chave: Síndrome de Down, Psicologia histórico-cultural, Educação especial.
ABSTRACT
Based on historical-cultural theory about human development, this article aims to analyze the personal and social meaning of Down syndrome to a young carrier of this anomaly. It also analyzes the aspects of the schooling and socialization processes using the method of case study. The participants were a female youth with Down Syndrome, her family and teachers. The procedures used in the research were interviews as well coexistence with the youth during a year. The activities and the dialogues produced into the meetings were analyzed according to the following categories: perception of deficiency, socialization and schooling aspects. The results consider that both the youth and her relationships constructed an explanation that, on one hand reflects existing social prejudices, but, on the other hand, questions the place of handicapped people in socializing and schooling processes.
Keywords: Down’s syndrome, History and cultural Psychology, Special Education.
INTRODUÇÃO
O conceito da Síndrome de Down tem evoluído de acordo com o progresso dos saberes da Medicina, Psicologia e Educação, proporcionando uma melhor compreensão sobre o desenvolvimento das pessoas com essa anomalia. Nesse sentido, pode-se dizer que a gama de informações sobre essa deficiência tem possibilitado a construção de diversos significados sobre ela e sobre quem a possui.
Com relação ao diagnóstico, é possível afirmar que os avanços na área da Medicina contribuíram para a compreensão do funcionamento e dos aspectos clínicos referentes a esta síndrome genética, ocasionada pela trissomia do cromossomo de número 21, de causas desconhecidas, que pode acontecer com qualquer casal (Pueschel, 1993; Schwartzman, 2003a). Um dos aspectos que se destaca centra-se no fato de que, em decorrência do cromossomo extra em todas as células de seu organismo, a criança com Síndrome de Down apresenta deficiência mental, pois, em geral, a quantidade de células nervosas é menor do que a de uma criança sem a Síndrome, bem como as funções quimioneurológicas são diferentes (Schwartzman, 2003a).
Do ponto de vista da Psicologia, vários são os trabalhos de pesquisa que têm discutido a questão do nascimento do bebê com Síndrome de Down e a constituição da relação da família com esta criança não idealizada. Destaca-se o estudo de Regen, Ardore e Hoffmann (1994) sobre as formas de enfrentamento dos familiares frente ao nascimento do bebê com deficiência. Vale ressaltar que a forma como a família lida com o fato de seu filho ter a deficiência pode interferir no seu desenvolvimento afetivo e cognitivo. Sobre a constituição da relação entre pais e filho com Síndrome de Down, pesquisas como de Mahoney, Fors e Wood (1990), Tada (1994) e Tannock (1988) discutem o quanto esta relação se torna não-sincrônica, com os pais assumindo papéis de administradores, professores e auxiliares da relação, não identificando as reais necessidades da criança, prejudicando a sua exploração do contexto no qual se encontra inserida, contribuindo para uma conduta mais passiva e dependente.
Quando a criança com Síndrome de Down atinge a idade escolar, muitas dúvidas cercam seus pais: matriculá-la na escola regular ou especial? Como será recebida por colegas sem deficiência? Como aprenderá matemática tendo em vista sua dificuldade em raciocínio abstrato? Para Costa (1995) e Tunes e Piantino (2001), a escolarização das crianças com Síndrome de Down deve dar oportunidades à apropriação do saber escolar por meio de práticas pedagógicas, distantes da Pedagogia Terapêutica que visa apenas o desenvolvimento de atividades da vida diária e o raciocínio concreto. Dias (2000) e Saad (2003) apontam a necessidade dos pais serem bem orientados por profissionais da Psicologia e da Educação para que possam buscar o melhor caminho para aprendizagem de seus filhos.
Com relação à fase da adolescência, são poucos os estudos e muitos são os mitos, principalmente na área da sexualidade. Castelão, Schiavo e Jurberg (2003) e Moreira e Gusmão (2002) afirmam que o desenvolvimento da sexualidade dos adolescentes com Síndrome de Down é o mesmo das pessoas sem deficiência e que, se tiverem acesso a informações sobre o que está acontecendo com o seu corpo frente à maturação dos órgãos genitais, bem como sobre vida sexual, não apresentariam condutas sociais inadequadas como por exemplo, masturbação em público.
As poucas pesquisas sobre o adulto com esta anomalia discutem a dificuldade de inserilos no mercado de trabalho formal o que, para Costa (1995), está relacionado à falta de incentivos na profissionalização da pessoa com Síndrome de Down, que tem sido “adestrada” em atividades que pouco contribuirão para a sua inserção no mercado de trabalho. Mas, relatos de sucesso na área profissional existem, como por exemplo, os de Dias (2000) e Werneck (1995) que apresentam alguns adultos com a Síndrome trabalhando com carteira assinada em lanchonetes, butiques e supermercados.
A vida do idoso com Síndrome de Down tem sido pesquisada no aspecto da saúde buscando analisar a relação entre a anomalia genética e a doença de Alzheimer (Schwartzman, 2003b).
Os trabalhos citados até este momento têm contribuído para a construção de significados sobre o desenvolvimento da pessoa com Síndrome de Down. A construção destes significados tende a ser mediada pela constituição das relações entre as pessoas sem a Síndrome com aquelas que a possuem. Buscando compreender como as relações interferem no desenvolvimento humano será apresentado a seguir a abordagem teórica de Vygotsky que fundamentou este estudo. Para este autor, o desenvolvimento humano é regido “por leis históricas” que conferem o significado social da condição humana e não “por mecanismos naturais ou biológicos”, ressaltando, assim, o aspecto histórico da produção pelo ser humano “de suas condições sociais de existência”, em função de determinados interesses ideológicos (Pino, 2000, p.59-60).
CONTRIBUIÇÕES DE VYGOTSKY NA ÁREA DA DEFICIÊNCIA
A partir da década de 1980, acentua-se no campo da Psicologia da Educação a presença, nos meios acadêmicos brasileiros, da teoria histórico-cultural, passando a ser difundida em português a obra de psicólogos soviéticos, com destaque para os escritos de Lev Vygotsky. Seu livro intitulado Fundamentos da Defectologia (1997) confirma sua tese de que a vida participativa na sociedade mediada pelas relações sociais seria a base para a construção e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Nesse sentido, Vygotsky (1995) afirma que toda função psíquica superior, a princípio, é social (interpsíquica), por surgir num primeiro plano social para, depois, surgir no plano psicológico (intrapsicológico), sendo esta a base de sua lei genética geral sobre o desenvolvimento humano cultural. Tudo aquilo que era pertencente ao mundo exterior, como normas de comportamentos, éticas, ideais, convicções, interesses passa a ser interno por meio do processo da mediação semiótica.
A mediação semiótica é caracterizada como “toda a intervenção de um terceiro elemento que possibilite a interação entre os termos de uma relação” (Sirgado, 1991, p. 38, grifos do autor). O terceiro elemento é constituído pelos instrumentos e pelos signos construídos socialmente que dão significado às ações, ao mundo e que medeiam as relações. O instrumento possibilita a ação transformadora do indivíduo sobre o ambiente, o signo permite a atividade psicológica, orientada para o próprio indivíduo e na sua relação com o outro, favorecendo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
É por meio da linguagem, um dos signos criados pelo homem, que a mãe vai apresentando o mundo à criança, sendo para Vygotsky (1993) um dos sistemas de relação social mais importante. A criança vai sendo incorporada à cultura não de forma mecânica e passiva, mas por meio da compreensão do significado da fala do outro, assumindo o seu papel de interlocutor neste diálogo.
Para Bakhtin (1992a; 1992b), o diálogo estabelecido entre os interlocutores sofre influências não só do contexto no qual se encontram inseridos, como também, da posição social de seus participantes, de suas idades, do tipo da relação (como por exemplo, mãe-filho, professor-aluno, criança-criança, entre outros), determinando não só a forma do diálogo a ser estabelecido entre eles, mas também o domínio por um dos falantes deste processo.
O locutor elabora o seu enunciado tendo em consideração o seu ouvinte, o grau de informação que o ouvinte tem da situação, seus conhecimentos, suas opiniões, seu ponto de vista, o que gosta ou não, condicionando, assim, sua compreensão responsiva ao seu enunciado, determinando o gênero, o estilo deste e os recursos lingüísticos a serem empregados (Bakhtin, 1992b). Com relação ao ouvinte, o autor explica que a sua réplica é construída conforme sua percepção e compreensão da significação do discurso do outro, ocorrendo, dessa forma a “alternância dos sujeitos falantes” (1992b, p. 294), sendo esta alternância visível no diálogo real.
Quando se analisa a relação entre uma pessoa sem deficiência e outra que possui deficiência observa-se o domínio do processo interativo pela primeira, havendo poucas oportunidades para que a segunda inicie este processo, como verificado por Tada (1994) e Tannock (1988). Tal fato deve estar relacionado com a posição social que se reserva para as pessoas com deficiência que, em geral, são percebidas como inferiores, desprovidas de valores, percepções essas construídas culturalmente (Amaral, 1995; Pessotti, 1984).
Para Vygotsky (1997) o relacionamento mediado pelo preconceito pode interferir negativamente, não só no “destino da personalidade”, mas também nas “conseqüências sociais” e na “realização sociopsicológica” da pessoa com deficiência, contribuindo para o surgimento do sentimento de desvalorização desta pessoa, dificultando-lhe a percepção do seu potencial e da sua capacidade para superar os obstáculos existentes frente à sua deficiência.
Essa concepção traz uma série de questionamentos referentes à pessoa com deficiência, no campo da Psicologia e da Educação. Como uma pessoa com Síndrome de Down entende sua própria condição de pessoa com deficiência? Como se dá a constituição das suas relações na família e na escola? Que papel teriam, portanto, as relações sociais para a constituição do aprendizado de uma pessoa com Síndrome de Down?
Conhecer o significado, que a Síndrome de Down tem, do ponto de vista desta própria pessoa e daquelas que fazem parte do seu dia-a-dia é importante no sentido de que a forma como compreendem a deficiência pode interferir na constituição de suas relações, bem como nas possibilidades de aprendizagem e de desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Esse é o objetivo da apresentação deste estudo de caso, tendo como referencial teórico a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano de Vygotsky.
MÉTODO
Participantes
Participou deste estudo Amanda, uma jovem com Síndrome de Down, 24 anos de idade, que cursava o terceiro ano do Ensino Médio, em 2003, em uma escola regular da rede privada de ensino de Porto Velho/RO. Ela foi escolhida em decorrência do conhecimento prévio de aspectos de sua história de vida, quando atendida em psicoterapia individual, por estagiários de um curso de Psicologia, no período de março de 2000 a setembro de 2002. Também foram ouvidos sua mãe Marta e alguns de seus professores (todos os nomes aqui utilizados são fictícios).
Seguindo as Diretrizes e Normas Éticas de Pesquisa com Seres Humanos, Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Saúde, sobre a participação de pessoas com deficiência mental, primeiramente Marta foi consultada em seu ambiente de trabalho, para saber da possibilidade de realizar o estudo com sua filha, apresentando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esta informou que Amanda era quem deveria assinar o documento e não ela, caso aceitasse participar do estudo. Explicada a questão legal e que a pesquisadora faria um Termo de Consentimento para Amanda, Marta assinou. No contato com Amanda, em sua casa, ao ser explicado o estudo mostrou-se interessada em participar assinando o Termo de Consentimento, afirmando que este estudo era importante para que as pessoas pudessem conhecer melhor as que têm a Síndrome de Down.
A jovem nasceu com lábio leporino e problemas cardíacos, o que aumentou a dificuldade para o diagnóstico da Síndrome de Down, submetendo-se à cirurgia cardíaca e cirurgias reparadoras para o lábio. Reside com sua mãe, seu padrasto e seu irmão de 22 anos. Tem uma irmã de 26 anos que mora em outra cidade. Desenvolve trabalhos informais, como confecção e venda de bijuterias e artesanatos em geral; produção e venda de “din-din” (refresco feito de suco em pó, congelado em saco de plástico individual).
Procedimento
O objetivo deste trabalho era compreender a maneira como uma pessoa com Síndrome de Down entende sua condição de deficiência, realizando-se uma pesquisa qualitativa, com base em um estudo de caso, por permitir “uma investigação para se preservar as características holísticas e significativas dos acontecimentos da vida real” (Yin, 2003, p. 20). Segundo analisa Stake (2000), o estudo de caso possibilita uma análise mais aprofundada do fenômeno pesquisado, permitindo construir um determinado conhecimento a respeito do tema ou da realidade. Assim sendo, considerando-se a ausência de estudos sobre a perspectiva do jovem com Síndrome de Down a respeito de sua condição de deficiência, optou-se por este recorte metodológico a fim de melhor compreender esta complexa realidade.
Como procedimentos de pesquisa, utilizaram-se: anotações no diário de campo de situações vividas com Amanda e os demais participantes da pesquisa; entrevistas semi-estruturadas gravadas em áudio e realizadas no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Rondônia. Além disso, algumas entrevistas foram realizadas na casa de Amanda e na escola e nestes casos, não se utilizou a gravação, sendo elaborados registros ampliados dos encontros realizados. Denominou-se estes encontros de “dialógicos”, tomando como referência a fundamentação da abordagem teórica de Bakhtin (1992a; 1992b). Nesses encontros, a questão da deficiência foi tematizada juntamente com Amanda, seus familiares e professores. A convivência com os participantes da pesquisa durou em torno de 12 meses.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os dados aqui apresentados não se encontram em uma ordem cronológica. Referem-se a temas abordados durante os diálogos estabelecidos entre a pesquisadora e os participantes deste estudo, após ter sido estabelecido vínculo de confiança.
Amanda por ela mesma
Em uma das entrevistas com Amanda (indicada pela letra A), buscando conhecer o significado que ela tem sobre a Síndrome de Down, a entrevistadora (indicada pela letra E) indagou:
“E: O que é ter síndrome de Down, Amanda?
A: .... (silêncio)
E: O que é a síndrome de Down?
A: Sabe que tem horas que nem mais se eu sei! (ri)
E: O que você sabe sobre a Síndrome de Down?
A: É uma doença que nem (pausa) todas as pessoas têm (pausa)”.
Ela, inicialmente, não responde, permanecendo em silêncio, que deve ser interpretado como sua réplica ao enunciado da entrevistadora, sendo, portanto, uma atitude responsiva na sua vez da alternância dos sujeitos falantes neste processo dialógico. Destaca-se aqui que, para Bakhtin (1992a), a pausa tem um papel importante na interlocução, sendo indicativa de que um dos participantes está organizando o seu pensamento diante do enunciado do outro, levando em consideração a forma como foi feita a questão, a entonação apresentada pelo locutor, o tipo de relação estabelecida entre eles, a posição social dos participantes, o contexto no qual se encontram inseridos, entre outros.
Não se pode analisar o silêncio de Amanda como uma dificuldade para responder ou como uma não compreensão da pergunta. Esta, provavelmente não é a primeira vez que foi questionada a esse respeito. As pessoas que fazem parte do seu cotidiano devem tê-la indagado sobre a Síndrome. O silêncio de Amanda denota que ela está organizando o seu pensamento frente ao questionamento feito.
Observando o seu silêncio, a pergunta foi reformulada, ao que Amanda respondeu que, às vezes, nem mais sabe o que é, rindo. Este tipo de resposta indica que ela ainda não elaborou o seu pensamento frente ao questionamento, necessitando de um tempo maior para construir a sua resposta. Talvez, a posição social da entrevistadora, como pesquisadora sobre a Síndrome de Down e professora de uma universidade, informação esta de conhecimento de Amanda, quando foi convidada a participar deste estudo, possa estar, de alguma forma, interferindo na sua réplica.
Quando a pergunta foi modificada para “o que sabe sobre a síndrome” respondeu ser uma doença. Ao afirmar que é uma doença, retrata a representação social vigente, principalmente da Medicina. Doença e deficiência são conceitos que muitas vezes são pouco diferenciados no discurso técnico e na prática social. No campo da Medicina, esta Síndrome é definida como uma doença que apresenta como sinais: cabeça um pouco menor quando comparada com as das crianças normais, contorno do rosto achatado, olhos com pálpebras estreitas e oblíquas, orelhas pequenas, pescoço largo e grosso, prega palmar única, tônus muscular pobre, entre outras características (Pueschel, 1993; Schwartzman, 2003a).
Mas, ao analisar a mesma questão do ponto de vista da Psicologia, Amaral (1995), afirma que a doença estaria relacionada com a falta de saúde e, uma vez instalada a patologia, há três caminhos possíveis a serem seguidos: a cura (ou seja, a saúde), a morte ou o advento de seqüelas. Nesse sentido, a autora conclui que as seqüelas “não são mais doenças necessariamente, embora mantenham com as mesmas vários pontos de tangenciamentos: recursos disponíveis, atendimento profissional e … atitudes sociais frente a elas” (p.62, grifo da autora).
No caso da Síndrome de Down não há cura, e sim seqüelas, como por exemplo, atraso no desenvolvimento motor e comprometimento mental, levando a pessoa a necessitar de recursos disponíveis na área da saúde e da educação, assim como de atendimentos profissionais especializados, podendo o indivíduo vir a enfrentar barreiras atitudinais. Deste ponto de vista, a Síndrome se enquadra como deficiência e não mais como doença.
Amanda sabe que nem todo mundo tem esta anomalia; isto quer dizer que ela possui informações de que existe alguma diferença entre as pessoas que têm esse diagnóstico das que não o têm, e volta a ficar em silêncio, organizando a sua réplica.
Ao ser perguntado “o que diferencia uma pessoa com a Síndrome de uma que não tem” fica novamente em silêncio para depois responder:
“A: O nervosismo.
E: Quem que é nervoso?
A: Eu.
E: Então, assim, é, a pessoa com Síndrome de Down ela é nervosa ou a Amanda é nervosa?
A: A, a, (pausa). Eu sou (pausa). Sou nervosa.
E: Você fica nervosa por que, Amanda?
A: Provas”.
A estratégia do silêncio é empregada de novo, sendo constituinte no processo dialógico de Amanda. A jovem não define a Síndrome e traz uma característica sua, o nervosismo, que algumas vezes a deixa com erupções no corpo, sendo necessária internação em decorrência de forte sangramento nas feridas.
No transcorrer do diálogo, Amanda diz que sua mãe sabia que ela nasceria com a anomalia:
“A: Porque minha mãe, ela já, já sabia que eu ia nascer com, com Síndrome de Down. E ela enfrentou o problema como se fosse (pausa) normal. Até (pausa) hoje as pessoas me (pausa) me perguntam, tu tem alguma doença? Eu digo que não! (ri).
E: E não tem!”.
Amanda tem informações de que a Síndrome de Down é diagnosticada ainda no feto, informação esta construída pela Medicina, importante para o processo de enfrentamento no momento em que a pessoa recebe o diagnóstico de sua deficiência (Regen, Ardore e Hoffmann, 1994), no sentido de que não há nada que as pessoas tenham feito que contribua para o desenvolvimento da anomalia, em decorrência da causa ser desconhecida (Schwartzman, 2003a). A fala de Amanda indica que sua mãe conversou com ela sobre a deficiência em algum momento de sua vida. O interessante a se destacar é que o problema, um feto anormal, foi percebido por sua mãe como normal, o que pode significar que Marta, em sua interação com sua filha, tenta transmitir a informação de que Amanda é uma pessoa como qualquer outra, mesmo tendo a deficiência.
Pode-se inferir que a relação entre elas seja de mãe-filha e não mãe-deficiência, contribuindo para a vivência de experiências do cotidiano significativas para o desenvolvimento de Amanda. Um exemplo é o relato orgulhoso de Amanda de que tem a chave da casa, o que demonstra a confiança que Marta deposita na filha. O estabelecimento desse tipo de relação está orientado para o processo de compensação ou de superação, que se encontra presente no desenvolvimento de qualquer pessoa e que, para Vygotsky (1997), no caso de pessoas com deficiência, é mediada pelos processos sociopsicológicos de desvalorização desta pessoa que, por ter a deficiência, tende a ser isolada de seus pares sem deficiência, prejudicando seu processo de superação das adversidades.
Amanda, em seguida, comenta um fato ocorrido com ela na escola a respeito de sua deficiência, tomando o seu papel de interlocutora no diálogo:
“A: Aí, ontem me perguntaram, se eu tinha alguma deficiência. Eu disse, eu falei, tenho! (pausa). Nós não temos, também, não tem os teus problemas, eu também tenho o meu!
E: Quem te perguntou?
A: Ah, uma menina na oitava série”.
Amanda sabe que tem alguma coisa que a diferencia das pessoas sem deficiência, mas parece que, para ela, isso a incomoda menos do que para a colega da escola. Questionada como ela se sente quando as pessoas fazem esse tipo de pergunta respondeu:
“A: (pausa) Fica assim com (pausa) mal estar.
E: O que te incomoda quando a pessoa te pergunta se você tem deficiência?
A: (silêncio).
E: O que, assim, mexe com você?
A: Com a minha mãe (fala baixo e abaixa a cabeça)
E: Como assim?
A: É porque eu (pausa). Eu não gosto de falar neste caso, sabe por quê?
E: Hã?
A: Porque as pessoas pensam que eu não sou inteligente (pausa). Mas eu sei que eu sou inteligente,
eu sou, sou igual às outras”.
Amanda sente-se mal, quando as pessoas focam a sua deficiência, principalmente por perceber que elas a consideram não-inteligente, incapaz, fazendo uma avaliação negativa de suas possibilidades de compensação ou de superação da deficiência, ao que reage, afirmando ser inteligente e igual aos outros. Na realidade, ela tem uma deficiência mental (Schwartzman, 2003a), mas este déficit intelectual não a impede de se sentir uma pessoa igual às outras, no sentido de que ela tem potencial para se desenvolver, de ser uma jovem inserida na sociedade, apropriando-se dos significados dos signos construídos culturalmente, desde que as pessoas que fazem parte do seu cotidiano, que constituem as suas relações, acreditem em sua potencialidade. Esta análise não está negando a existência do déficit orgânico da Síndrome de Down, mas discute o quanto as pessoas sem deficiência focam sua atenção no atributo que a torna diferente, desacreditando da sua capacidade de se apropriar do saber sistematizado da escola regular, a ponto de uma colega da oitava série ressaltar a deficiência de Amanda.
Buscando compreender o motivo pelo qual Amanda respondeu que sua mãe ficava incomodada, quando alguém perguntava se tinha deficiência, respondeu que, quando sua mãe ficara grávida dela “teve três tipos de malária”, doença endêmica da região transmitida pelo mosquito anofelino. Parece haver uma associação entre as três malárias que a mãe teve durante a gravidez e a informação médica de que o bebê poderia nascer com algum problema genético. Em geral, quando a gestante tem vários episódios de malária na gestação, o bebê pode vir a nascer com a mesma malária da mãe, assim como com baixo peso, ictérico, com hepatite medicamentosa ou prematuro. Na literatura não há correlação entre malária na gestação e o nascimento de bebê com Síndrome de Down. Talvez a ocorrência da malária na gravidez esteja sendo utilizada pela mãe ou pela Amanda para justificar o seu nascimento com a Síndrome, em uma tentativa de construir uma explicação para a desordem genética que, ainda hoje, no meio científico, continua sem explicação.
O mais importante a se destacar é o quanto ela sofre quando é indagada sobre a deficiência, como se quisessem enfatizar a sua diferença em relação às pessoas sem deficiência, da qual ela tem consciência em algum nível de conhecimento que, por sua vez, não é impeditivo do seu direito de pertencer à sua escola, ao seu bairro, a sua cidade como cidadã e não ser vista como um estorvo.
De acordo com Amanda, ela soube por sua mãe que tinha Síndrome de Down quando tinha 10 anos de idade. A jovem ao comentar este fato conta que: “Aí eu tomei um susto! (ri) (pausa). Ah, mas sabe de uma coisa, eu vou levar assim mesmo! (fala baixinho). Aí até hoje!.”
A informação sobre a Síndrome de Down foi transmitida por sua mãe, sendo esta conduta importante para que Amanda pudesse se apropriar do conceito que a diferencia das pessoas sem deficiência. Não se sabe o que foi dito, mas o importante é que sua condição de diferente foi compartilhada, parecendo que ocorreu de uma maneira valorativa de sua potencialidade, pois Amanda decidiu levar sua vida em frente, não querendo que o fato de ter a anomalia selasse negativamente a sua personalidade, como discutido por Vygotsky (1997).
Amanda sabe que existem diferentes níveis de Síndrome de Down, comentando que um vizinho tem a síndrome só que “é pior.”
A: Ele é muito xuxuu (faz gestos com as mãos indicando ser gordo).
E: Gordo?
A: (Sim com a cabeça).
E: E ele, além dele ser mais gordo tem alguma outra coisa nele, mais grave nele?
A: (pausa). Tem e não tem!
E: O que é que seria?
A: É assim (pausa). Quando os meninos ficam bagunçando, ele começa a bater, ele começa a
chorar.”
Ela percebe que o rapaz tem um comprometimento maior que ela, mas parece não saber ao certo o que é, associando a obesidade e à conduta agressiva dele. Parecem faltar elementos para que Amanda caracterize à Síndrome de Down. Ela sabe que tem uma diferença, mas parece não conhecer que diferença é esta, como pode ser observado, no diálogo a seguir:
“E: Isso era antigamente, porque não se sabia nada sobre deficiência mental, sobre qualquer deficiência. E ainda hoje, tem muitas pessoas que têm preconceito, não sabem o que é a Síndrome de Down.
E: Amanda, o que é a Síndrome de Down para você?
A: Ah, é assim, nervosismo.
E: Mas me diga uma coisa Amanda, o que você, que tem Síndrome de Down, difere de mim, por
exemplo que não tenho Síndrome de Down?
A: Ah, assim, ser gordinha.
E: Você sabe Amanda, que uma das características da Síndrome de Down é a deficiência mental?
A: Eu não tenho isso não!
E: Na Síndrome de Down tem vários níveis de deficiência mental, do mais leve ao mais grave.
Além disso, tem um risco só na mão.
A: (olha a sua mão). Mas eu não tenho isso não. (mostra a mão).
E: É, mas tem também os olhos assim puxadinhos. (E mostra, puxando os olhos).
A: Os meus não são assim não!
E: Essas são algumas características das pessoas que têm essa síndrome, que você tem e que são
pessoas que têm os mesmos (ela interrompe a fala do entrevistador).
A: Direitos como os outros.”
Em suas réplicas à explicação da entrevistadora sobre as características da pessoa com Síndrome de Down, Amanda demonstra sua falta de informação sobre elas afirmando, enfaticamente, não tê-las. Neste diálogo, comparece novamente uma questão: o que é a Síndrome de Down para Amanda? Ela sabe que tem a síndrome, tem consciência de que é diferente das pessoas sem deficiência, mas parece não saber pontuar que diferenças são essas. Quais foram as informações fornecidas a ela? Até que ponto esse conhecimento incompleto da deficiência pode vir afetar, positiva ou negativamente, a sua formação como indivíduo inserido em uma sociedade?
Pode-se dizer que Amanda, na sua relação com as pessoas que fazem parte do seu cotidiano, construiu um olhar a respeito de si mesma e sobre a sua deficiência, ao falar que é inteligente, mesmo sabendo que os outros a percebem de outra forma, como menos inteligente. Tendo essas questões formuladas apresentar-se-á, a seguir, as falas de algumas pessoas que convivem com Amanda a respeito da Síndrome, para que se possa compreender como se constituem essas relações mediadas pela deficiência.
Amanda por aqueles que fazem parte de sua vida diária
Considerando que as relações sociais constituem o indivíduo de forma a permitir o seu desenvolvimento, serão apresentadas duas dimensões da vida de Amanda apontadas pela literatura como fundamentais no processo de internalização da condição de pessoa com deficiência, a saber, a escolarização e a socialização. Para tanto, serão utilizados depoimentos e questões apresentadas por aqueles que participaram mais diretamente do seu processo de escolarização e de socialização, a saber, a mãe e professores, por meio dos encontros dialógicos realizados em casa e na escola.
Aspectos da escolarização de Amanda
Em um dos depoimentos, a mãe de Amanda comenta, com tristeza, que a filha está com dificuldades na Matemática e se for reprovada novamente nesta disciplina, pensa em transferi-la de escola por considerar que o colégio não está entendendo o problema da filha.
Aqui a Síndrome de Down é percebida como problema, algo não resolvido. Mas o que se encontra não resolvido? O seu conceito foi construído por John Langdon Down em 1866 e, complementado por Jerome Lejeune em 1958 (Pueschel, 1993; Schwartzman, 2003b). Talvez o problema aqui esteja relacionado à clara diferença de Amanda em relação às pessoas que não têm deficiência.
Para Dias (2000) e Saad (2003), é comum que as pessoas com Síndrome de Down apresentem dificuldade de abstração, afetando a aprendizagem da matemática. Por outro lado, questões precisam ser ressaltadas referentes às práticas pedagógicas desenvolvidas na escola em que Amanda encontra-se matriculada. Que estratégias pedagógicas são utilizadas para o ensino de matemática? Será que propõem o desenvolvimento das atividades em pequenos grupos de alunos, favorecendo a relação entre aqueles que dominam bem a matéria com os que não dominam, tendo como base teórica em suas ações a zona de desenvolvimento próximo de Vygotsky (1993).
Pode ser também que, pelo fato de Amanda ter a deficiência, a mãe esperasse que a escola facilitasse, de alguma forma, o seu processo de escolarização, visto cursar o último ano do Ensino Médio na escola regular. Mas, facilitar a escolarização de Amanda pode significar a utilização de práticas educativas simplificadas que, de acordo com Costa (1995), centralizam-se apenas no raciocínio concreto, não favorecendo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Tais práticas educativas, pertencentes à Pedagogia Terapêutica, têm como foco a deficiência, levando o professor a apresentar ao aluno conteúdo escolar distinto de seus pares sem deficiência, contribuindo para uma apropriação limitada deste saber, criando a idéia em seus colegas de que ele parece não ter capacidade de pertencer àquele grupo social, e, conseqüentemente, favorecendo o aparecimento do preconceito (Vygotsky,1997).
Alguns professores de Amanda também percebem a Síndrome de Down como problema. O professor de Física, ao se referir a um namorado de Amanda que tem o mesmo diagnóstico, que fora levado à escola por ela, comenta que ele parecia ter o mesmo problema que ela, só que de uma forma mais grave. Nesse caso, o professor pode constatar que a Síndrome não é um quadro homogêneo e, como apresentado por Pueschel (1993) e Schwartzman (2003b), existem vários níveis de comprometimento.
Este professor relatou não ter recebido nenhuma informação sobre a deficiência da aluna, descobrindo uma forma de se relacionar com ela, conversando sobre namorados: “E aí Amanda, tá de namorado novo? E assim a gente vai levando.” Essa falta de informação sobre a deficiência da aluna ou a informação superficial e incompleta pode trazer problemas, não só nas relações constituídas na escola com a aluna, mas também pode interferir na prática escolar, visto o professor priorizar conversas informais com Amanda sobre namorados e não a construção de um diálogo mediado pelo tema de sua disciplina, o saber sistematizado. Disse também ter arredondado a nota da aluna para que não ficasse de dependência em sua matéria, pois acredita que isto não a ajudaria em nada devido ao seu problema.
O professor de Educação Física relatou que, em decorrência do problema de Amanda, não exige muito dela frente às atividades por ele dirigidas. Denota-se, assim, que o fato de Amanda ter um problema justifica a falta de exigência da sua participação efetiva nas atividades desenvolvidas com os alunos sem deficiência. Cabe aqui lembrar que, do aluno sem deficiência exige-se o cumprimento das atividades desenvolvidas. Mas, no caso de Amanda, isso parece não ocorrer, ficando uma impressão de que sua presença é ignorada pelo grupo, o que pode contribuir para que Amanda vivencie o sentimento de não pertencer a este grupo, tão discutido por Vygotsky (1997).
No caso do professor de Geografia, a mediação da deficiência na sua relação com Amanda pode ser observada, quando ele afirma que deixa a aluna fazer individualmente as atividades de grupo, por acreditar que ela não gosta de interagir com os colegas. Mas, ele mesmo se contradiz, ao falar que Amanda comentara com ele que preferia fazer as tarefas sozinha, porque os colegas zombavam da sua condição diferente de ser!
Aspectos da socialização da pessoa com Síndrome de Down
Além da conotação de problema, a deficiência de Amanda é associada por sua mãe a algo que gera progressos ou regressões em seu desenvolvimento ao relatar a entrevistadora que a filha esquecera o encontro marcado com a entrevistadora, indo comprar roupa para a Festa Junina: “Esse comportamento de Amanda é assim, ela vai, progride, mas tem hora que ela regride.” É interessante observar como a deficiência de Amanda está interferindo na análise de sua mãe sobre o fato de ela não ter honrado o compromisso. Mas o esquecimento de compromissos faz parte da condição humana, não sendo, portanto, um problema criado pela deficiência. Pode-se dizer que a análise de Marta sobre o esquecimento da filha está mediada pelo preconceito frente à deficiência, não percebendo o fato de ela ter privilegiado outro acontecimento, a Festa Junina.
Vale lembrar que, em outro encontro, Amanda necessitou ir à casa de seus avós paternos, e por não encontrar o número do telefone da entrevistadora, deixou recado com sua mãe, que permanecera em casa, para que dirigisse para lá, mostrando responsabilidade em suas ações.
Outro ponto importante a ser destacado é a queixa de Marta com relação à necessidade de ter que comprovar anualmente a deficiência de Amanda para o Departamento de Recursos Humanos (DRH) do local onde trabalha:
“M: E esse ano eu tenho que voltar no DRH e tirar toda a papelada de novo, todo ano é assim, eu tenho que entrar com os papéis pra comprovar que Amanda ainda tem Síndrome de Down. Eu não sei o que esse povo tem na cabeça não, eles acham que a Síndrome de Down acaba de um ano para outro? Eu é! Todo ano é isso.”
O DRH possui regras instituídas por meio da ideologia vigente, que necessitam serem cumpridas, mas a rigidez dessas regras parece gerar descontentamento em Marta, que precisa despender um tempo do seu dia e de Amanda para submetê-la a uma perícia médica a fim de comprovar a existência da Síndrome de Down. Tal conduta necessita ser reavaliada, pois, no caso da Síndrome, qual a necessidade dessa perícia anual? Essas regras vêm demonstrar, sim, a falta de informação sobre a deficiência e, talvez, a necessidade de reafirmar a diferença de Amanda das pessoas sem deficiência, podendo trazer para ela sentimentos de desvalorização social (Bakhtin, 1992a, Vygotsky, 1997).
Marta parece buscar em sua relação com Amanda a autonomia de sua filha, como nas verbalizações e atitudes no momento de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, citado anteriormente. Isto pode indicar a confiança que deposita em sua filha para tomar decisões que dizem respeito à sua vida, contribuindo para que Amanda aprenda a ter autonomia nos seus atos, o que de fato, de alguma maneira, veio a se confirmar no decorrer deste estudo. Ter a confiança na capacidade do filho com Síndrome de Down em desenvolver habilidades sociais historicamente construídas possibilita-lhe a autoconfiança para enfrentar os desafios do dia-a-dia (Tunes e Piantino, 2001).
Nesse sentido, parece que Marta se preocupa com que sua filha tenha acesso aos mesmos recursos oferecidos à população em geral, como, por exemplo: ter uma conta bancária; usar transporte coletivo; ter um telefone celular; entre outros. Isso não quer dizer que Marta desconsidere a deficiência de Amanda, mas, sim, que a jovem pode vivenciar experiências sociais significativas que lhe permitam participar da sociedade, como uma pessoa apropriando-se da cultura. Um exemplo desta preocupação foi a sua fala sobre a solicitação que fizera ao Banco de um cartão bancário para Amanda. Mas, conta com tristeza, que encontrou muita burocracia, sendo necessária uma autorização do juiz, o que iria demorar em decorrência da greve no Tribunal de Justiça. A necessidade do aval jurídico para que Amanda tenha acesso ao cartão magnético vem demonstrar os obstáculos que ela e seus familiares encontram para participar ativamente da sociedade, caracterizando-se como barreiras atitudinais.
Para Vygotsky (1997), as conseqüências dessas atitudes interferirão negativamente no desenvolvimento da personalidade do indivíduo com deficiência, assim como em sua realização sociopsicológica. Pode-se dizer que tais conseqüências também afetaram os familiares, visto Marta, mostrar-se triste diante da burocracia encontrada para que sua filha tenha um cartão bancário.
Outra situação relatada por Marta com tristeza foi em relação aos seus ex-sogros que a criticam pela liberdade que dá a sua filha, para sair de casa sozinha ou com suas amigas:
“M: O avô dela é que não gosta, acha que eu tenho que sair com ela, mas se ela não sair sozinha, ela não vai ficar assim, independente. Eu acho que ela tem que aprender a se virar sozinha, mas ele acha que não, que ela pode ser assaltada (parece magoada com os ex-sogros). Mas eu falo para ela, quando sair, tomar cuidado, não ficar usando o celular pela rua, que chama a atenção, eu converso com ela (fala com tristeza) .
I: É, isso é importante para ela, para que ela se torne mais independente, isso é importante.
M: Mas o avô dela não acha! (com tristeza)”.
Embora em conflito com seu ex-sogro, Marta tem consciência da importância de Amanda ser independente, acreditando na capacidade de sua filha para sair sozinha e lidar com as situações do dia-a-dia. Dessa forma, está proporcionando a ela oportunidades de se relacionar com pessoas diferentes, enriquecendo não apenas a sua vida social, como também a sua experiência verbal, dando, inclusive, soluções a alguns dos problemas diários que venham a ocorrer.
Não se pode esquecer que a vida social possibilita ao indivíduo adquirir informações que foram construídas culturalmente (processo interpsíquico), que serão transformadas em um processo intrapsíquico, permitindo-lhe a aprendizagem de conceitos e de condutas que contribuirão para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Vygotsky, 1995).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo teve como objetivo conhecer o significado da Síndrome de Down para Amanda, uma jovem com esta Síndrome, bem como para as pessoas que fazem parte do seu cotidiano, buscando analisar a contribuição dessas relações na sua constituição como pessoa inserida na cultura e na comunidade.
Como referencial teórico utilizou-se a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano, na qual a constituição do indivíduo se dá por meio da mediação que se estabelece nas relações sociais, buscando o diálogo estabelecido entre Amanda, sua mãe, seus professores e a entrevistadora, de acordo com os postulados teóricos de Bakhtin e Vygotsky.
Ao analisar a questão do significado da Síndrome de Down, observa-se a presença de informações desencontradas sobre a síndrome e suas características, articulando-se elementos do senso comum e da concepção médica tradicional, principalmente na incompreensão da relação entre doença/deficiência. No caso da história de vida de Amanda, os significados atribuídos à síndrome estão, também, atravessados por consequências de outros problemas de saúde que trouxeram a necessidade de cuidados médicos consideráveis em seus primeiros anos de vida em decorrência do problema cardíaco, do lábio leporino e pelo fato de ter nascido em um estado brasileiro com poucos recursos profissionais na área da deficiência, na época de seu nascimento.
O estabelecimento de um diálogo cuidadoso, ao mesmo tempo em que possibilitou falar sobre a Síndrome de Down e seus significados na relação estabelecida com Amanda, constituiu-se em um importante espaço de problematização e de esclarecimento que precisa ser ocupado por aqueles que se propõem a discutir ou atuar na área da deficiência.
A relação social de Amanda com os demais participantes do estudo foi constituída com foco na deficiência, dificultando a compreensão das pessoas e da própria Amanda sobre o que vem a ser a Síndrome de Down, que tende a ser verbalizada como “problema” ou “doença”, como foi observado nas falas de Marta e de seus professores. A falta de informações sobre o diagnóstico dificulta a constituição da subjetividade da própria Amanda, o que pode vir a contribuir para sua desvalorização social.
Na escola, verificou-se que, da Amanda, uma aluna com Síndrome de Down “incluída” no ensino regular, não era exigida a apropriação do saber sistematizado, em decorrência de práticas pedagógicas inadequadas como, por exemplo, permitirem que ela ficasse em sala de aula sem realizar as atividades e o arredondamento de sua nota para atingir a média final. Vale lembrar que estas práticas pedagógicas foram construídas historicamente, em decorrência do processo de exclusão escolar do aluno com deficiência, que era encaminhado para classes ou escolas especiais, tendo como ênfase atividades que envolviam as funções psicológicas elementares.
A ambivalência aqui apontada nas relações constituídas com Amanda não é apenas psicológica, mas também é construída na própria relação social, na qual diferentes elementos se articulam na constituição dessa ambivalência como, por exemplo, a própria legislação que, às vezes, apresenta-se ambígua, contribuindo ainda mais para o preconceito frente às pessoas com deficiência.
Essas ambivalências se constituem como eixo das relações sociais entre as pessoas sem deficiência e Amanda. Para a superação, ou melhor, a minimização dessas ambivalências, faz-se necessário que a sociedade reflita a respeito da deficiência como uma condição humana. Ao analisar a construção histórico-cultural da deficiência, verifica-se que foram quase nulos os modelos sociais que buscaram romper com essas ambivalências. Nesse sentido, a importância de se fazer uma discussão social sobre a inclusão social e o respeito à diversidade humana é indiscutível, para que se possa ter uma compreensão social do significado do lugar de Amanda na sociedade.
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Recebido em 10/07/2007
Revisto em 29/09/2008
Aceito em 02/10/2008
* Endereço para correspondência: Depto. de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia – Campus de Porto Velho, Br 364, km 9,5. Porto Velho - Rondônia. CEP: 78900-970. Fone: (69) 3225-6642; E-mail: iracematada@ig.com.br.