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Boletim de Psicologia

 ISSN 0006-5943

     

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

“Morreu com as mãos sujas de graxa”: Um olhar fenomenológico-existencial sobre a morte, na prática do plantão psicoeducativo1

 

“He died with greasy in his hands”: A phenomenological existential perspective towards death in psychoeducational practice

 

 

Rafael Ogalla Tinti; Heloísa Szymanski *

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 


RESUMO

A morte violenta é um fenômeno que faz parte do cotidiano de pessoas das camadas sociais de baixa renda, moradores da periferia de São Paulo, como atestam estudos e noticiários de jornais. O objetivo desta pesquisa foi descrever e analisar, na perspectiva fenomenológica existencial heideggeriana, como a morte foi percebida e, conseqüentemente, qual o sentido dessa morte que se desvelou para uma jovem entrevistada, moradora na periferia de São Paulo. A pesquisa teve como material de análise a descrição de um caso escolhido entre todos os encontros do plantão psicoeducativo feitos nessa comunidade. De acordo com o método fenomenológico, a análise dos dados foi fundamentada pela proposta hermenêutica e indicou vários sentidos para a morte, tais como: uma solução; contradição e ambigüidade; desespero e abandono; clamor para propriedade; honra; dignidade e pagamento de dívida.

Palavras-Chave: Morte, Plantão psicoeducativo, Fenomenologia, Morte, comunidade de baixa renda.


ABSTRACT

Violent death is a phenomenon that is part of everyday life of people living in São Paulo low income neighborhoods, which is confirmed by research results and newspapers information. The purpose of this research was to describe and analyze a psycho educational practice in the perspective of a heideggerian existential approach. It investigated how death was perceived and which was its meaning to a young woman living in a low income suburb of São Paulo. It was analyzed a case chosen among all attendances offered to that community. According to the phenomenological method, the analysis was based on hermeneutics and indicated the following meanings related to death: a solution, contradiction and ambiguity; despair and abandon; an outcry for property; honour; dignity and payment of a debt.

Keywords: Death, Psychoeducational practice, Fenomenology, Death, Low income neighbourhoods.


 

 

Numa pesquisa que inclui a questão da morte, perguntamo-nos como a pessoa, em vida, pode experienciá-la. Essa pergunta é fundamentalmente o cerne do trabalho e, como não poderia deixar de ser, difícil de ser esclarecida. Qual seria, então, a melhor maneira de deixar essa experiência falar por si? Como investigá-la para que a questão que nos parece intangível possa tornar-se acessível? A princípio, acharíamos impossível desbravar essa empreitada, pois, como um ser vivo pode experienciar a morte, se é exatamente o fato de não possuí-la, que o torna o ser que ele é?

É com grande admiração que podemos observar na Igreja de São Francisco (uma das primeiras construídas no Brasil), localizada na cidade de Salvador, um mural em azulejo, no qual lemos estes dizeres em latim: “a verdadeira filosofia é meditar sobre a morte”. O que podemos falar sobre a morte? Ao fazer esse exercício, pensamos que é possível pensar acerca desse assunto. O dizer da morte é, antes de tudo, um dizer peculiar, e é esse dizer que aqui terá o seu lugar, que aqui deve ter o seu tempo de parada. Um dizer que diz da morte. Talvez seja essa a grande questão deste trabalho, um entrar em contato real e verdadeiro com o fenômeno da morte, deixando-o brilhar em sua luminosidade.

Esta pesquisa foi parte de um amplo projeto de Apoio Psicoeducativo a famílias, creche e comunidade, realizado em um bairro de baixa renda na periferia da cidade de São Paulo. É um projeto que entende a educação por meio de suas práticas dialógicas, abrindo espaço para a realização dos plantões psicoeducativos, que consistem em atendimentos individuais às pessoas dessa comunidade. Desses plantões, trouxemos os relatos e visões sobre a morte expressos por essas pessoas e, conseqüentemente, sobre sua vida. Com esses relatos realizamos análises de base fenomenológica existencial. Assim, deixamos a fala desvelar o sentido da morte para elas. Dentro do referencial proposto, fizemos uma pesquisa-intervenção, pois, ao coletarmos os dados, intervimos na comunidade, oferecendo um espaço de diálogo, acolhimento e compreensão.

 

INTRODUÇÃO

É importante explicitar a multiplicidade de olhares que podemos lançar em direção ao fenômeno da morte. Inúmeros trabalhos sobre a morte e o morrer foram desenvolvidos num referencial historiográfico, científico, filosófico, teológico, ou artístico, entre outros. Para ilustrar esse fato, dentro do olhar teológico, temos Kierkegaard; dentro do artístico, Fernando Pessoa; dentro do científico, Kluber-Ross; dentro do historiográfico, Ariès, e dentro do filosófico, Heidegger.

Ariès (2003), em seu livro “A história da morte no ocidente”, traça um estudo minucioso de interpretação dos dados arquivados na história, que dizem respeito à morte. O seu livro é um, dos muitos, que falam sobre esse tema peculiar, trazendo motivos e razões que explicam o que aconteceu, acontece e acontecerá na vivência da morte e do morrer. Segundo Ariès (2003), as primeiras evidências (séc. X) mostram que o homem tinha uma relação mais próxima com a morte. Naquela época, não se morria sem antes ser advertido do que iria acontecer. As pessoas sabiam a hora e o momento de sua morte e se preparavam para ela. A partir de então, entregavam-se a Deus e não tinham a menor intenção de retardar o momento final. O temor não dizia respeito à morte; quando ela estava próxima, os rituais eram feitos com simplicidade, com pouca carga emocional e os moribundos a esperavam com calma. O momento era público e havia a presença de crianças no recinto. Até o século XVII, não havia preocupação em separar os vivos dos mortos, ossos expostos não impressionavam as pessoas, que estavam familiarizadas tanto com a própria morte quanto com os mortos.

A visão perante a morte, que o livro de Ariès (2003) traz, mostra que no passado havia familiaridade com ela, o que vai desaparecendo até os dias de hoje, passando a ser objeto de interdição. O moribundo, em seu leito de morte, é poupado de saber o seu estado precário que, com o passar dos dias vai piorando, a ponto de a verdade saltar aos olhos e não ser mais possível escondê-la. Em suma, a verdade começa a ser problemática. O que na Idade Média era visto como o melhor jeito de morrer, a saber, conhecer os passos da própria morte e esperar por ela, hoje é visto como proibição e interdição. A morte toma o lugar da sexualidade no que diz respeito ao não-falado, segundo Ariès.

Se levarmos em conta o mecanismo da nossa sociedade, torna-se claro esse caminho que traça o autor em questão. A necessidade de preservar a vida em detrimento de uma morte vista como chocante, feia e vergonhosa, é nítida. Assim, o livro indica que não se morre mais em casa, mas num lugar reservado para o fenômeno, o hospital. O que era um ritual público, passa a ser privado e solitário. Ariès (2003, p. 85) disse: “Morre-se no hospital porque os médicos não conseguiram curar. Vamos ao hospital não mais para sermos curados, mas precisamente para morrer

Um outro modo de compreender a morte e o morrer nos aparece através das palavras de Kluber-Ross (1998). Em seu livro “Sobre a morte e o morrer”, delineia um estudo voltado à Psicologia de pacientes com doenças terminais. Nesse caso, sabe-se, por meio do diagnóstico médico, que o paciente em questão irá morrer. A autora desenvolve o seu livro, relatando as fases em que observou as pessoas passarem, até sua morte. “Ao tomar conhecimento da fase terminal de sua doença, a maioria dos mais de duzentos pacientes moribundos que entrevistamos reagiu com esta frase: ‘Não, eu não, não pode ser verdade’” (Kluber-Ross, 1998, p. 43).

São cinco estágios que se sucedem até a morte do paciente. Alguns desses moribundos não chegam aos últimos estágios, revelando grande dor psicológica no momento da morte.

Claro está que a Psicologia científica de Kluber-Ross fala mais do morrer do que exatamente da morte, fala do medo e da dor até sua ocorrência, enquanto que a historiografia de Ariès fala do contexto social que a morte ocupava e ocupa. Não se pretende, neste artigo, percorrer todos os caminhos e olhares lançados em direção à morte, mas tentar compreender como ela se desvela. Para isso, recorremos a um caso específico de uma pessoa que mora na periferia de baixa renda de São Paulo e nos posicionamos de acordo com o olhar da ontologia fundamental de Heidegger que, por muitos, é considerado um filósofo da finitude.

Quando pensamos na morte, tanta coisa se mistura! Brotam palavras como fim, finitude, nada, negação, falta e desfecho. Não por acaso, todas estão, de uma certa maneira, relacionadas com a morte. Heidegger (2000), como iremos observar, transita entre essas palavras para nos mostrar o modo como estamos vivendo. Irá tocar constantemente na questão da morte, pois é ela que se esconde como pedra de toque do nosso buscar. É ela, como negação, como nada, que se põe como “propósito” e, por isso mesmo, propositalmente esquecida, ou melhor, encoberta. É ela que está presente em nossas questões. Exatamente por isso é importante permanecermos um tempo maior nessa questão. Refletir sobre a morte, sobre o nada, para Heidegger é ser-para-a-morte. Veremos.

Claro está que, se perguntarmos pelo nada, por exemplo, nada estamos perguntando. Novamente damos brecha à sobriedade e severidade da ciência para abandonarmos novamente esse nada que nos incomoda. Nada podemos falar do nada? Cientificamente, o Nada nada mais é do que um grande trocadilho de palavras, fantasmagoria, inutilidade. Se o homem, hoje, vê a verdade através das lentes da ciência e a ciência nada quer saber do Nada, então o homem, entificado, também nada quer saber.

Para essa busca, existem alguns obstáculos que aparentemente impediriam nossa empreitada. O primeiro é o da lógica. Como perguntar pelo Nada, se o Nada nada é? Pela lógica, a negação dessa pergunta é clara. Mas a sua própria negação só é possível porque antes o nada existe. Para tal explanação, recorreremos novamente a Heidegger:

Como podemos nós, pois, pretender rejeitar o entendimento na pergunta pelo nada e até na questão da possibilidade de sua formulação? Mas será que é tão seguro aquilo que aqui pressupomos? Representa o ‘não’, a negatividade e com isto a negação, a determinação suprema a que se subordina o nada como uma espécie particular de negado? ‘Existe’ o nada apenas porque existe o ‘não’, isto é, a negação? Ou não acontece o contrário? Existe a negação e o ‘não’ apenas porque ‘existe’ o nada? (Heidegger, 1973, p. 235).

Aqui, assumimos que o nada é mais originário, assim sendo, algo só pode ser negado pelo entendimento, porque antes e no início estava o nada. Desse modo, também como irrupção do entendimento, ele próprio está subordinado ao nada e a ele nada pode negar. Continua Heidegger (1973, p. 235): “Como poderá então o entendimento querer decidir sobre este [o nada]? Não se baseia afinal o aparente contra-senso de pergunta e resposta, no que diz respeito ao nada, na cega obstinação de um entendimento que se pretende sem fronteiras?

Superado o primeiro obstáculo, vamos ao segundo. Quando buscamos algo, já supomos, antecipadamente, que esse algo existe, de uma certa forma está lá. Aonde podemos procurar o nada? Esta busca parece-nos absurda, mas será que não poderia existir um buscar, ao qual pertencesse um encontrar originário? Como Heidegger coloca: “um puro encontrar” (Heidegger, 1973, p. 236), de modo que a busca seja totalmente franca: O nada é realmente aquilo que procuramos no sentido primeiro da palavra procurar, pois nada sabemos dele. O mesmo acontece com a morte; para podermos achá-la, temos que abrir alguns horizontes e buscá-la abertamente, pois o que exatamente sabemos a seu respeito? Como achar a morte, se ninguém que a experimentou pode nos relatar o que ela “é”? Será que é dessa forma que temos que buscá-la? A morte e o nada são “fatos” que estão essencialmente em tudo e em nada, é a plena negação da totalidade do ente, isso configura o pleno interrogar, o pleno buscar e investigar.

Nesse pleno buscar, é importante resgatar o que Heidegger (2000) chama de afinação. Esta pode ser relacionada aos estados de humor, ou seja: como aquilo para o que eu estou aberto me atinge. O nada me atinge, segundo o autor, num estado de humor bastante raro, chamado angústia. A angústia, diferente do temor, não tem um objeto determinado que a provoque, como é o caso do temor. No temor, tememos isto ou aquilo, temos medo de..., temos medo por... Nesse estado de humor, ficamos petrificados ou perdemos a cabeça. No caso da angústia, ocorre, ainda, segundo o autor, algo bem diverso; nela não nos angustiamos disto ou daquilo, não há o ente determinado da angústia. Nesse estado de humor ocorre essencialmente a impossibilidade de determinação e, ao contrário do temor, acompanha-nos uma certa tranqüilidade.

Na angústia – dizemos nós – ‘a gente se sente estranho’. O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém – na fuga do ente – este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada (Heidegger, 1973, p. 237).

Como na angústia o ente está em fuga na sua totalidade, ela nos põe em suspenso. O nada, como a morte, deixa-nos flutuar, não existe mais eu ou tu, isto ou aquilo. Por essa razão, insistentemente recorremos às coisas, aos entes, e aqui ficamos. O nada corta a palavra, é o não dito pelo fato de ser o absoluto não-ente, é onde não existe a ação da palavra “é”. Se tentarmos romper o silêncio da angústia, deparamos-nos apenas com palavras sem sentido, turbulentas, que só mostram o grande vazio desse humor e a presença do nada. Quando voltamos à presença dos entes e tentamos analisar o que passamos na angústia, percebemos que foi exatamente nada, propriamente nada. O nada estava lá.

Essa aproximação que estamos tentando elucidar entre o nada e a questão da morte pode ainda estar encoberta. Lembrando agora de tudo o que foi mencionado até aqui, percebemos que a questão do nada está na base da pergunta pelo pensamento metafísico2. De um lado, por discutir a origem da negação e por outro, mas não em oposição, por duvidar da unanimidade com que se assume a lógica como fundamento do modo de ser e pensar. Heidegger completa e conclui: “Somente no nada do ser-aí o ente em sua totalidade chega a si mesmo, conforme sua mais própria possibilidade, isto é, de modo finito” (Heidegger, 1973, p. 241), ou seja, é na possibilidade da finitude (morte) que o homem (ser-aí) pode experimentar o nada (angústia) e chegar a si mesmo. Para a questão da morte, a lógica não é legitimada. É no modo finito, na morte, que o homem pode ser nada.

Os mortais são os homens. Chamamo-os mortais, porque podem morrer. Morrer significa: ser capaz da morte enquanto morte. Somente o homem morre. O animal perece. Ele não tem nem diante nem atrás de si a morte como morte. A morte é a arca do Nada, a saber, daquilo que, em todos os sentidos, não é nunca um simples ente, mas que, entretanto, é, a ponto de construir o segredo do próprio ser. A morte, enquanto arca do Nada, abriga nela própria o ser mesmo do ser. Enquanto Arca do Nada, a morte é o abrigo do ser. Aos mortais, damos o nome de mortais – não porque a sua vida terrestre tenha fim, mas porque são capazes da morte enquanto morte. É enquanto mortais que os mortais são aqueles que são, encontrando seu ser no abrigo do ser. Eles são a relação, que se efetua ao ser enquanto ser (Heidegger, 2002, p. 156).

É no modo da morte que o homem é, deixando as coisas saírem da escuridão e ganhando vigor, estabelecendo relações com e entre elas. Essa luz chama-se linguagem. Ao cortar sua palavra, com angústia, o homem morre. Nada e morte se avizinham e podem aparecer na ausência da linguagem imprópria. Essa é a busca pela linguagem própria da morte e do nada que aqui deve ter o seu espaço e tempo, pois é exatamente aí que se encontra o segredo do próprio ser: a linguagem própria da morte, a arca do Nada. Deixar a fala falar como ela mesma e não a partir de qualquer fundamento, deixar a fala falar como ser, que é fundante, mas não fundamento.

Com essas considerações em mente, objetivou-se na presente pesquisa compreender como a morte pode ser percebida e que sentidos para ela puderam se desvelar no encontro do plantão psicoeducativo junto a uma jovem moradora de um bairro da periferia de São Paulo.

 

MÉTODO: CAMINHOS

Escolheu-se como método o caminho proposto pela fenomenologia existencial, que tem na descrição a sua base e na hermenêutica seu caminho de compreensão. O caminho (metha odós) tem sempre direção, o que nos remete ao sentido da rota. Assim, o caminho só se mostra no sentido em que se pretende, na direção em que se criou. Método, para a fenomenologia é, então, o sentido do ser dos entes, instalado na própria duplicidade entre ser e ente e iluminado na clareira pela claridade, distinguindo, assim, o que é vigente na sua vigência. Essa busca de sentido chama-se hermenêutica.

O método da fenomenologia exige uma descrição do fenômeno do encontro. Uma mensagem deve estar bem descrita para que se construa no seu sentido. A descrição faz com que atentemos para o fenômeno, clareando o ser dos entes no que se é digno de se mostrar, no modo que se deu. Uma boa descrição é fiel a uma compreensão e plausível para o interlocutor.

Penso numa descrição de fenômeno e já percebo uma compreensão que brota das palavras. Quando penso o sentido, que é essa compreensão, encontro-me num lugar onde sempre estive, mas nunca havia experienciado. Segundo Fernando Pessoa, “Não há nada de real na vida que não o seja porque se descreveu bem” (Pessoa, 1995, p. 63).

O trabalho do método fenomenológico é também saber doar às coisas o seu tempo, respeitando-as e compreendendo-as: deixando-as ser.

 

DO PLANTÃO PSICOEDUCATIVO

O plantão psicoeducativo é uma faceta de cunho educacional do plantão psicológico, que foi constituído por Rachel Rosemberg, no Serviço de Aconselhamento Psicológico da USP, nos anos sessenta, baseado na abordagem centrada na pessoa de Carl Rogers, proporcionando um tipo de acolhimento único. Em curto espaço de tempo, as pessoas podiam expressar-se livremente, apresentando seus problemas, sem necessidade de agendamento prévio. Ao referir-se ao Aconselhamento Psicológico, Morato (1999, p.88) descreve-o como um lugar de fronteira que “expressa trânsito, pois na linha de mudança de território, tudo e todos podem ser ou pertencer. Como uma metáfora, revelando possibilidade de dirigir-se com liberdade de escolha”.

Posteriormente, ampliou-se a discussão sobre o plantão psicológico e sobre a abrangência desse tipo de atendimento, levando-o a instituições escolares públicas e privadas, para a FEBEM e instituições de saúde (Morato, 1999). Nessa perspectiva de ampliação, desenvolveu-se o plantão psicoeducativo, que tem, segundo Szymanski (2004, p. 177): “sua definição de um espaço para reflexão sobre a prática educativa como elemento organizador da demanda; sua apresentação como um serviço de apoio para educadores e famílias; sua inserção institucional em uma instituição educacional (creche e escola)”.

O Plantão delineou-se como um espaço de tempo reservado e privado. Uma vez por semana, num período de aproximadamente quatro horas, disponibilizou-se a estar recebendo pessoas da comunidade em questão, em um local situado num bairro da zona norte, periferia da cidade de São Paulo. A proposta era a de receber pessoas para refletir sobre questões referentes à convivência e educação dos filhos. Nesses encontros, o sigilo das informações é garantido, assim como a utilização desse material na pesquisa em questão, por um termo de consentimento que é assinado pelos participantes.

Essa condição de ajuda proposta pelo plantão não está de acordo com o termo entendido pelo conceito popular de ajuda, que significa dar tudo o que a outra pessoa necessita. O que o plantão faz é favorecer ao outro algumas condições para o seu desenvolvimento. Essa concepção está de acordo com o que Paulo Freire (1986) propõe em suas reflexões sobre a Pedagogia, sempre numa posição horizontal e de crescimento mútuo.

Morato (1999) exemplifica muito bem essa relação de ajuda ao fazer a imagem de uma criança que cai. Ao cair, a criança chora, pedindo ajuda para se levantar. O pai lhe oferece o braço e diz: “Upa!”. Nesse dizer, está contida a idéia de ajuda proposta pelo Plantão. O pai oferece sua disposição, mas é a criança que, com seu esforço, irá se levantar. Sem essa vontade, esse esforço, a criança permanecerá no chão, e sem o braço do Pai será muito mais difícil estar de pé. Essa ajuda pode ser útil para a população moradora da periferia pobre de São Paulo.

O plantão psicoeducativo é um tempo de cuidado e um tempo de descoberta que possibilita o desvelamento de questões existenciais importantes e urgentes. É uma investigação sem pré- determinações, abandonada à urgência do que vem ao encontro. O Plantão psicoeducativo é, portanto, o espaço e o momento em que se privilegiou o encontro, no sentido de fazer com que o tempo não seja somente rapidez e instantaneidade, mas, sobretudo tempo ele mesmo, como aponta Heidegger (2000). Assim, damos conta do método fenomenológico, a saber: buscar o sentido (hermenêutica) da fala daquele sujeito e, numa relação recíproca, trocar conhecimento, ensino e aprendizagem.

O material do plantão, fruto dessa possibilidade, tornou-se a descrição posterior do acontecimento da melhor forma cabível e possível, abrindo espaço para a análise e compreensão. Tal descrição segue o método proposto, visto que se reserva naquilo que o ente manifesta, sem buscar uma explicação prévia. A descrição se recolhe para deixar aparecer o que realmente é mais próprio do encontro, para deixá-lo ser, pois, como Heidegger (2000) coloca, o ser não é, “o ser dá-se”.

O plantão psicoeducativo pode ser considerado uma situação de risco. Quando colocamos a palavra risco, estamos direcionando esse significado para vários campos de entendimento. O plantão é um risco porque, primeiramente, não quer resolver nada. O plantão espera e atenta para a palavra do outro, sem o compromisso de finalizar qualquer coisa, o que significa um risco no sentido de estarmos totalmente à deriva do fenômeno e de sua manifestação, pois acreditamos que se o objetivo fosse o da conclusão, estaríamos apaziguando novamente a questão, a dúvida, a encruzilhada, para um lugar já antes conhecido; tomaríamos um caminho que sempre já tomamos. Quando respondemos e concluímos algo, este deixa de ser um tormento e passa a ser certeza. O risco está em assumirmos o oposto disso, em “ver para crer”, em deixar se revelar. Para tanto, devemos assumir o risco da pura investigação e ir até o problema com a postura de deixá-lo aparecer, problema este ainda insolúvel. Esta é uma maneira legítima de se fazer uma pesquisa que se coloca num buscar originário.

 

CRIANDO ESPAÇOS PARA O APARECER DO FENÔMENO

De início e para recordação do que já foi explicitado anteriormente, lembremos que esta pesquisa já faz parte de um outro projeto para a creche de uma comunidade da periferia de São Paulo. Além disso, tanto o local do plantão como os contatos para sua viabilidade, já estavam previamente encaminhados. Assim, tanto a comunidade como as pessoas da creche que dão suporte ao atendimento estavam, de certa forma, familiarizadas com a intervenção. Tudo isso contribuiu para uma aproximação facilitada. Também é importante ressaltar que tanto o plantão realizado quanto o projeto mais amplo partiram de uma solicitação da própria comunidade em questão.

Os Plantões foram realizados num lugar reservado, numa creche da periferia de São Paulo e, como parte dos procedimentos éticos, era assinado um termo de consentimento livre e esclarecido. Esse termo de consentimento era assinado no final de cada encontro, pois não era possível interromper os participantes na urgência que traziam suas questões. No final de cada plantão, o projeto era sempre explicitado por completo e todos os participantes aderiram sem contestações. O horário do Plantão estava marcado para 12:30hs até às 16:00hs de toda quinta feira. Através do boca-a-boca e por panfletos espalhados pela comunidade, comunicamos o inicio das atividades, que teve boa procura. Foram no total 12 atendimentos. Para a análise, foi escolhido um encontro, aquele que chamou mais a atenção, que exigiu um cuidado mais próximo e delicado.

O que chamou atenção é um critério que leva em consideração alguns aspectos. Diferentemente do outros encontros, esse plantão trouxe a morte como ponto central a ser discutido. A morte era o que tinha de mais urgente a ser tratado, de tal maneira, que a existência da pessoa estava tomada por completo pela questão, com dificuldades em seguir vivendo.

Claro está que seria impossível esgotar todas as possibilidades de apresentação da morte nos plantões na comunidade e que também esse não era nosso objetivo. Como já foi colocado, a essência do ser nunca se apresenta em sua totalidade, mas em clareiras que devemos deixar aparecer, assim, não procuramos o preenchimento de lacunas. Quantidade só é importante, quando ela se mostra importante, o que, nesse caso, não aconteceu. Nesse sentido, o caso escolhido, de Sandra, foi único e especial, porque pôde ser esclarecido, ampliando nossa compreensão do fenômeno da morte.

 

ANÁLISE: FAVORECENDO O DESVELAR

Partiremos, agora, para a apresentação do relato desse encontro com Sandra. Aqui não será apresentada a íntegra desse encontro, mas as principais partes que iluminam a posterior análise. Partes que foram referências para a compreensão do tema para os pesquisadores. Este texto resume a compreensão que os pesquisadores tiveram do relato apresentado por Sandra. Ao tornar-se texto, a sua fala liberta as interpretações que se mostram aos pesquisadores. É sobre esse texto que seguirão os comentários posteriores. Assim, fecha-se o círculo hermenêutico. Da experiência vivida para a interpretação, apresentada em forma de texto e, também ali, aberta a novas interpretações.

Sandra é uma mulher de 25 anos, morena e de estatura mediana. Vestia-se com uma calça jeans velha, uma camiseta verde com listras brancas e chinelos nos pés. Tinha um olhar fixo nos olhos do plantonista, um tom de voz forte e andar firme.

Antes de entrar, perguntou até que horas ficava-se lá para atender as pessoas e, imediatamente, justificou-se, dizendo que precisava trazer sua filha para vir falar com o plantonista, que respondeu que o horário ia até às 12:30hs; ela disse que ia buscar a filha, que precisava de um psicólogo. Seus gestos e movimentos eram rápidos, seus olhos arregalados davam a impressão de urgência. Solicitou-se o motivo que a fazia pensar que sua filha precisava de um psicólogo e, nesse momento, Sandra entrou definitivamente, sentou-se na cadeira localizada à frente do plantonista e disse: “meu irmão morreu e minha filha não pára de chorar”. Assim que ela terminou essa frase, seus olhos encheram-se de lágrimas.

Começou a contar que seu irmão, Danilo, morava junto com ela, com seu marido e sua filha. Apesar de a casa ser dela, ela adorava morar com o irmão, porque sua filha era muito apegada a ele. Quando ele morreu, quem mais chorou foi ela, Sandra, mas, depois conseguiu levar sua vida cotidiana normalmente. Porém, há mais ou menos dois meses, sua filha começou a ficar desesperada e não parava de chorar de saudade do tio. Ela me disse que a filha falava para ela que não estava agüentando de saudade e gritava o tempo todo: “traz o meu tio de volta!” Quando a filha fazia isso, Sandra disse que não agüentava e começava a chorar junto com ela. Nesse momento, Sandra começou a chorar. Colocou a mão nos olhos e tentou conter-se. Tentando fazer com que ela se sentisse mais confortável e confiante na situação do encontro do plantão, o plantonista disse que agora ela podia chorar, que agora ela não precisava esconder e, então, ela começou a soluçar e a chorar mais do que anteriormente.

Depois de alguns segundos, disse que estava desesperada. Baixando os olhos, falou que não sabia o que fazer quando isso acontecia! À pergunta de como era esse desespero de que ela tanto falava, contou-me que era só choro, disse que vinha um choro incontrolável.

Sandra falou que, quando o irmão morreu, ela chorava desesperadamente e a filha a acompanhava chorando junto. Agora era o contrário, a filha chorava e ela a acompanhava. O irmão morreu na 4ª feira, e ela só contou para a filha no domingo. Falou que não sabia o que fazer: não levou a filha no enterro, que foi na 6ª feira. Disse que não queria falar para a filha, mas todos estavam cercando-a, forçando-a a contar, e ela foi obrigada a fazê-lo. Perguntei como foi e ela contou que levou sua filha para a laje da casa e que se lembrava disso como se fosse naquele dia em que conversávamos. Disse que o papai do céu tinha levado o tio dela para o céu, e que ele estava sorrindo lá de cima para elas. Disse que não era para ficar com medo ou com saudade, pois ele estava lá em cima, sempre olhando. Depois disso, ela relatou que a filha apontou para o céu e disse: “você é danado, né tio? você fugiu de mim.” Nesse momento, Sandra começou a chorar bastante.

Passou, então, a falar do seu irmão Danilo. Iniciou dizendo que tinha mais outros dois irmãos e que esses não sofreram tanto quanto o que faleceu. Eles não foram desprezados pelo pai como Danilo foi. Um dia, seu pai chamou Danilo num canto e o chamou de vagabundo, apesar de ele estar trabalhando. Danilo, então, ficou muito furioso com o pai e decidiu não trabalhar mais. A partir daí, passou a se envolver com “pessoas erradas”; ele dizia: “eu não gosto de trabalhar mesmo!” Depois que Danilo virou pai, alguns anos depois, tentou se reorganizar, tentando sair daquela vida; arranjou um outro trabalho. Porém, estava tão envolvido com aquele negócio, já tinha até sido preso por tráfico, seqüestro, que o pessoal mandou-o fugir. Ele foi teimoso e resolveu ficar, dizia que ninguém ia mexer com ele, porque já tinha mudado e não ia prejudicar ninguém.

Nesse período, em que seu irmão estava tentando reorganizar a vida, morava com Sandra e era muito apegado a sua filha. Chorando, Sandra defendeu seu irmão, dizendo que ele morreu com as mãos sujas de graxa, o que mostra que estava trabalhando. Ela disse: “bem na hora que ele estava virando um homem, eles mataram ele; bem na hora que estava virando responsável”.

Depois de relatar essa injustiça de maneira comovente, Sandra ainda falou sobre o seu medo de que as mesmas pessoas que mataram seu irmão viessem atrás dela e da sua família. Ela disse que isso poderia acontecer, pois, afinal, ele estava morando em sua casa. Ela não sabia porque eles a matariam, mas tinha medo e, por isso, não conseguia dormir direito.

Perguntei sobre a mãe dela e de como ela recebeu tudo isso. Sandra me disse que sua mãe era uma pessoa muito nervosa, sempre foi a mais estressada da família, e que achava que ela iria pirar (sic). No final, ela superou melhor que muita gente. Essa frase Sandra contou com um leve sorriso no rosto.

Nesse momento, Sandra olhou seu relógio e disse que precisava ir. Ainda muito emocionada, ela falou que precisava pegar sua filha na escola. Sandra não retornou nas semanas posteriores.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De início, é possível constatar que a primeira palavra encontrada para este plantão é “a busca pela palavra”. Não só pelo apelo que a morte nos convoca, mas também pela morte de Danilo que, a todo instante, pede que achemos algum significado. Com isso, percebemos que Sandra, sofrendo em desespero, estava em busca dessa palavra, desse “porquê” mais oculto. Ela diz: “bem na hora que ele estava virando responsável”. Quase que podemos sentir a questão: “por que agora?” “por que ele?” A questão indica a busca. Qual seria essa palavra, a mais própria? Será ela possível?

Quando se pensa em morte e em tudo o que a envolve, uma sensação paira no ar, como se, na morte, algo “está” para ser compreendido, mas a todo instante que tentamos captá-lo, isso nos foge. Parece que a fagulha de algum significado acontece, mas o pegar fogo que tudo ilumina nunca, ou quase nunca, se dá. Nesse caráter fugidio da morte, ficamos a procurar as palavras certas ou qualquer palavra, e o que fica é uma boca entreaberta no vazio. Heidegger (1973) indica essa dificuldade e nos lembra que um falar da morte, que é também um falar do nada, é ilógico, ou seja, vai contra as convenções a que estamos acostumados. Num primeiro instante, Heidegger diz que quem fala do nada, não sabe o que faz:

Um falar do Nada consta sempre de meras frases sem sentido. Ademais, quem leva o Nada a sério, coloca-se a favor do negativo. Favorece evidentemente o espírito de negação e serve apenas ao aniquilamento. Falar do Nada não é só inteiramente contrário ao pensamento, como solapa também toda cultura e qualquer fé (Heidegger, 2002, p.213).

Voltando à descrição, pois é isso que podemos e devemos fazer, percebeu-se que a palavra “desespero” foi repetida no encontro oito vezes. Ao olhar Sandra, pode-se ver e sentir esse desespero. Na maioria das vezes, ele foi colocado para demonstrar o choro dela ou da filha, ambas muito desesperadas.

Parando um instante para pensar, vemos que a palavra desespero pode ser dividida em duas partes: o prefixo “des”, e o complemento “espero”. Des-espero, então, é o não esperar, ou a não esperança, o que nos indica uma certa relação com o tempo, desde que, quem espera precisa do tempo da espera para esperar. Espera é algo interligado com o tempo futuro, com algo que irá acontecer ou que tem a possibilidade de acontecer.

A relação com o tempo da espera é uma relação tranqüila, é um tempo de calmaria, no qual poucas emoções ou acontecimentos se dão. Já a relação com o tempo do des-espero é uma relação agitada e nervosa, um tempo de “arrancar os cabelos”, como fazia a filha de Sandra. Quem des- espera, então, perde exatamente o espaço de tempo entre o agora e o porvir lá na frente. No caso de Sandra e de sua filha, o futuro de Danilo chegou de supetão ao presente, trazendo junto o desespero. Com essa morte, toda esperança de futuro virou des-esperança, virou sem futuro. O que ela poderia esperar do seu futuro e do da filha agora? O porvir ficou sem lugar para esperar por.

Para compreender a questão da morte nesse encontro com Sandra, temos que investigar o que ela nos fala sobre seu irmão, a pessoa que morreu, para enxergar de perto o desesperar que ela tanto nos traz. Como o apresenta?

Danilo é mostrado por Sandra como alguém que tinha também uma forte ligação com o futuro; sua vida estava em jogo, porque ele sabia o segredo do tráfico e porque não estava mais trabalhando com ele, portanto, o que iria lhe acontecer era incerto. Na descrição, encontramos: “Arranjou um outro trabalho. Porém, ele estava tão envolvido com aquele negócio, já tinha até sido preso por tráfico, seqüestro, que o pessoal o mandou fugir” (Sandra). Danilo tinha que decidir se queria ficar onde trabalhava, num lugar onde sua dignidade foi reconquistada, mas que agora oferecia grande risco, ou se fugia da comunidade, largava tudo, mas salvava sua vida.

Percebemos que Sandra coloca seu irmão como um homem que reconquistou sua dignidade. Apesar de ele ter morrido, e isso a desespera, ele escolheu esse caminho, foi sua decisão. Com esse futuro aberto diante de si, Danilo decidiu ficar e isso pode ser compreendido como escolher a morte.

Essa decisão está relacionada ao conceito Heideggeriano de “de-cisão”. Enquanto a relação com a morte é para Dasein a relação mais própria que ele pode ter consigo mesmo, a de-cisão é uma abertura privilegiada. Enquanto o nosso modo de ser, que é ser-no-mundo, tem por origem sua transitoriedade num mundo de possibilidades, poder-ser, antes e de início, aponta-nos um estar- em-débito também originário. Ao enxergar, angustiado, esse estar em débito com seu ser mais próprio na relação com a morte, a “de-cisão” é um projetar-se a esse débito originário de maneira própria. Portanto, a de-cisão em função do débito e do ser-para-morte compreende Danilo nessa abertura especial. A partir do relato de Sandra, observamos seu irmão, concluindo um projeto que envolveu toda sua existência.

Com a de-cisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da pre-sença, porque a mais própria. A abertura do pre abre3, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do ser-no-mundo, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto ‘eu sou’ (Heidegger, 2000, p.87).

O “pessoal”, que Sandra relata na citação acima, são os outros traficantes que não podiam deixar Danilo vivo, já que, deduzindo, se ele fosse pego pela polícia, poderia relatar fatos que os incriminariam. Ele tinha um segredo e não podia ficar vivo. Aqui estão as cláusulas do contrato que Danilo sofreria com sua decisão: mesmo com um futuro aparentemente digno, resolvendo ficar, ele estava se autocondenando à morte e ao fim desse futuro. A decisão estava nesse Danilo com/sem futuro. Ao mesmo tempo em que a “decisão” de ficar é uma condenação à morte, pode ser compreendida também, na visão pré-reflexiva de Sandra, como uma completa e eterna mudança. Ficando, Danilo escreveria sua história como um bom menino que morreu depois de recuperar sua dignidade. Morrendo, o futuro digno de Danilo estaria sendo traçado. Essa é a dicotomia que podemos chamar de com/sem futuro. A escolha estava lá para ser tomada, e o futuro de Danilo foi traçado. Apesar das lamentações de Sandra, nessa decisão, nossa interlocutora colheu um irmão honrado. Aqui fica claro o significado duplo e contraditório do fenômeno, o que, talvez, estivesse contribuindo e muito para o sofrimento desesperado de Sandra e para o vazio de palavras pressentidas.

Heidegger (2000) diz que a morte é a possibilidade mais própria, certa e irreversível. Percebemos aí a experiência da finitude, e mais adiante, a dor da finitude. Dor, no sentido de que é a morte que dá o caráter ao existente de ser o eterno transitório. É a morte que mostra ao homem que ele é esse eterno visitante, sem um lugar definido, sem hora marcada. A dor fica com os que ainda vivem, é nessa morte que é morte-dos-outros que enxergamos a areia movediça que nos sustenta. Com Sandra não foi diferente.

No caso de Danilo, sua decisão abriu a porta da morte, dessa morte. Compreendendo a situação e seu sentido, percebemos que, ao morrer do jeito que aconteceu, todas as suas falhas anteriores, como traficante e seqüestrador, ficaram apagadas ou reduzidas. Ao morrer desse modo, a partir dessa escolha, Danilo sagrou-se um bom rapaz, resgatou sua dignidade e encerrou sua vida como aquele que havia se transformado e, exatamente por isso, morreu. A morte aqui aparece como solução. A solução não deixa de ser uma faceta da morte; talvez pelo seu caráter irremissível, ela soluciona e eterniza. Danilo escolheu não ter aquele futuro em função de selar sua beatificação. Morreu como alguém que sofreu muito, tomou o caminho errado, transformou-se em homem honrado, pagou penitência e morreu na glória. Mais uma vez, conjeturando sobre o que foi dito, podemos imaginar que Danilo, ao se afastar do tráfico, começou a criar suas dívidas, tanto financeiras quanto dívidas com a palavra em relação ao grupo anterior de que fazia parte. Nessa mudança de ladrão para homem trabalhador, pendências ficaram a ser acertadas.

Como é feita, então, a quitação dessas dívidas? Qual é a moeda de troca? Para quem fazia parte desse mundo, Danilo sabia que quando não se cumpre o que foi acordado, paga-se com a vida. A vida é a quitação da dívida. Nesse sentido, a morte aparece como uma redenção de si mesma, é a garantia de que as coisas ficaram acertadas, a última cláusula do contrato.

Voltando à questão da beatificação, Sandra contou no plantão: “Um dia, seu pai chamou Danilo num canto e o chamou de vagabundo, apesar dele estar trabalhando. Danilo então ficou muito furioso com o pai e decidiu não trabalhar mais”. Em seu projeto, Danilo não foi culpado pelo que fez. Para Sandra, Danilo só foi para o “mau caminho” porque sofreu muito quando jovem. Mais do que seus outros irmãos. O passado de Danilo justifica seus atos e pode ser traduzido mais ou menos pelo seguinte: Quando Danilo era má pessoa, no fundo, não era culpa dele, não era ele, era a má influência do pai agindo nele. O passado com o pai retira toda responsabilidade de Danilo para com o crime, justificando sua trajetória.

Nesse sentido, quando Sandra disse: “ele morreu com as mãos sujas de graxa”, parece que, de certa forma, encontramos a palavra do encontro, aquela que estava buscando no momento do plantão. Quem morre com as mãos cheias de graxa, morre honrado. Essa é a palavra essencial desse encontro no plantão com Sandra. Danilo morreu honrado diante da cruel injustiça da vida.

Apenas a morte poderia trazer tal redenção de Danilo para Sandra. Agora que Danilo não- mais está vivo e não-mais pode nada, Sandra tem a certeza absoluta de quem era seu irmão. A morte conclui toda opinião. E agora a dor persiste. Como vou viver sem essa pessoa tão especial que era Danilo? Afinal, foi ele que morreu e morreu com as mãos sujas de graxa. No labor, no sacrifício daquele que quer fazer o bem e ganhar a vida com dignidade, foi brutalmente assassinado.

A mãe de Sandra foi apontada como aquela que sempre foi a mais nervosa e mais estressada. Além disso, Sandra disse: “No final, ela [sua mãe] superou melhor que muita gente”. Fica a dúvida: como ela superou tão fácil tudo isso? A saber: teve um filho que foi preso, que seqüestrava e traficava, um filho que trilhou um caminho “errado”. Podemos imaginar que uma mãe sempre sonha com aquele filho exemplar, trabalhador e honrado. Assim, será que, com a morte de Danilo e do modo como ela se deu, sua mãe conquistou tudo aquilo que queria? A morte de Danilo pode ter trazido para a mãe de Sandra, talvez, o filho que ela sempre quis ter, um menino honrado e trabalhador. Do jeito que é colocado por Sandra, numa ironia irritada, não é esse o sentido que ela nos traz, mas talvez o de uma mãe que se viu livre de mais um problema. A mãe de Danilo pode ser aquela que, ao invés de perder um filho traficante, ganhou um filho trabalhador. A interpretação pode correr por diversos caminhos, mas não pode ser aleatória e aqui, a palavra do encontro se manifesta novamente. Essa palavra nunca se dá totalmente, mas poeticamente aponta para o essencial do que vigora.

É de extrema importância percebermos o sentido desse encontro: “morreu com as mãos sujas de graxa”. Somente nessa percepção é que podemos compreender todo sofrimento trazido por Sandra e todo conflito de sentimentos ambíguos que ela demonstra.. A direção se torna densa e obscura porque a decisão levou à extinção da própria vida. A morte, que num primeiro olhar pode ser vista como negatividade, como fraqueza, falência dos órgãos, finitude e pesar, aqui tem outra visibilidade. A morte, para Sandra, foi a salvação, a conclusão daquele que se purificou e agora pode ser dito como puro.

Talvez, se isso fosse de algum modo colocado para Sandra, ela pudesse vislumbrar um outro sentido para a morte de seu irmão, caso pudesse achar um tempo possível para que seu futuro acontecesse. A compreensão da morte de Danilo, como foi aqui descrita, poderia abrir um novo espaço para que Sandra não precisasse mais se des-esperar. Um espaço no qual ela pudesse estar aberta ao que aparecesse, acreditando novamente que é possível ter um futuro e ter esperança. Afinal, a morte de Danilo não foi sem sentido. Agora Sandra teria a possibilidade de, tranqüilamente, esperar e ver, na morte, a maior honra de seu irmão. O seu futuro seria, então, a lembrança de um grande homem, um irmão idealizado. Não se trata de dizer que Sandra não sofreria se soubesse disso, mas de apontar para ela um lugar possível, onde essa decisão do irmão pudesse se encaixar. Seria apenas a leitura de uma mensagem que, para ela, estava indecifrável naquele momento. Mas, novamente, o desvelar do sentido não é mecânico e ligeiro. Sendo assim, está se mostrando dessa forma agora, e não antes, da mesma maneira que pode se modificar daqui em diante.

Podemos dizer que o desespero de Sandra vai além da falta de um tempo futuro relacionado à morte do irmão; seu desespero desespera porque ela também corre o risco de morrer. Ela pode ser vista como herdeira da morte de Danilo e a lembrança dessa morte continua viva na forma de ameaça; afinal, ele morava com ela e com sua filha, tudo estava muito próximo. “Qualquer barulho na rua ou dentro de casa, ela desperta com medo” (Sandra). A morte mostra aqui uma outra faceta, a faceta da ameaça para aqueles que não morreram, a faceta de ser sempre um recado. A morte é esse eterno recado de que um dia ela virá. Ela nos lembra, constantemente, disso que somos. Ao mesmo tempo que obriga essa apropriação de nós mesmos, choca-nos a qualquer momento. Ela é esse recado que está sempre aí, dia sim, dia não, nós lemos o bilhete. No caso de Sandra, a mensagem é clara e estrondosa, está na sua frente a todo momento, paralisando-a, irritando-a, amedrontando-a. Esse bilhete diz com o que Sandra deve se ocupar. Pensamos, a morte pode ser essa ocupação que já está sempre lá e que por vezes nos esquecemos dela.

Sandra está sempre desperta, sempre alerta, como se o perigo estivesse muito próximo. Essa tensão constante, essa ameaça presente faz com que ela se canse, perdendo toda energia. Podemos entender seu pedido de ajuda também nesse sentido, um desespero cansado de estar sempre alerta, um desespero enlouquecedor que toma conta de todos os aspectos de sua vida. É como se ela estivesse a todo o instante nessa transitoriedade da vida e da morte. Assim sendo, a falta de futuro e a proximidade da ameaça fazem com que o sofrimento se torne presentificado, desgastando-a, o que aponta para uma extensão do sofrimento; a morte de seu irmão continua acontecendo de diversas maneiras. É exatamente o alongamento indeterminado do tempo do sofrimento que a tira da tranqüilidade, colocando-a no des-espero enlouquecedor. Aqui podemos sentir, muito mais do que explicar a morte apresentando sua irreversibilidade, sendo aquilo que retira do homem sua base cotidiana e apela pela urgência.

A morte do irmão, que é também sua morte em certo sentido, é vivida, dessa maneira, numa “constante” ambigüidade. A todo instante a morte desvela alguns sentidos que são prontamente contraditos logo a seguir. Da mesma maneira, Sandra se comporta e se desespera. Da mesma forma, a morte ironiza a lógica e a tentativa de qualquer coerência. Talvez seja esse o motivo do tema da morte ser um tabu tão especial para o mundo ocidental; a morte não respeita a coerência, talvez nada possa ser realmente feito, realizado, no que diz respeito à morte, apesar de o homem do ocidente ser especialmente efetivo nesse quesito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS

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Heidegger, M. (1973). Os pensadores. Que é metafísica? (M. S. Cavalcante. trad.). São Paulo: Abril Cultural.         [ Links ]

Heidegger, M. (2000). Ser e tempo. Parte 2. (M. S. Cavalcante, trad.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Heidegger, M. (2002). Ensaios e conferências. (E. C. Leão, trad.; 2ª ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Morato, H.T.P. (Org.). (1999). Aconselhamento psicológico centrado na pessoa: Novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Kubler-Ross, E. (1998). Sobre a morte e o morrer. (P. Menezes, trad.; 8ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Szymanski, H. (2004). Plantão psicoeducativo: Novas perspectivas para a prática e pesquisa em Psicologia da Educação. Revista da Psicologia da Educação, 19, 169 – 182.

 

 

Recebido em 20/10/08
Revisto em 2/03/09
Aceito em 5/03/09

 

 

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1 Derivado da Dissertação de Mestrado do primeiro autor.
2 Metafísica é, segundo o pensamento Heideggeriano, o modo de pensar ocidental que nega o nada, ou melhor, deixa tudo o que aparece como presença constanteada.
3 Pré quer dizer o pré da pré-sença que ele cita na linha anterior. Como o Dasein é pré-sença, ele é pré, antecipado, anterior. Ou seja, antes de qualquer coisa, há essa antecipação que tudo abre para que o mundo apareça. Pré-sença: antes da presença está a ausência, que é a própria abertura e o modo de ser do Dasein. Por isso, o pré é isso que abre para que algo posso vir a ser.

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