Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
Características afetivas de pacientes narcolépticos avaliados pelo Rorschach1
Affective characteristics of narcoleptics patients as assessed by the Rorschach Test
Antonio Carlos Pacheco e Silva NetoI, II, III ; Gabriela Rodrigues AlvesIV; Márcia Lurdes de Cácia Pradella-HallinanIV; Maria Rachel Motta JorgeI; Andréa Paschke DaccaI; Juliana Cilty Reis de Abreu PaivaI; Marcelo Paschoal PissutoI; Ângela Toledo PizaI; Sérgio TufikIV
I Universidade Paulista
II Univ. São Judas Tadeu
III Associação Brasileira de Rorschach
IV Instituto do Sono da UNIFESP
V Departamento de Psicobiologia da UNIFESP
RESUMO
A narcolepsia é caracterizada por sonolência excessiva diurna com ataques de sono irresistíveis e cataplexia. Oobjetivo deste estudo foi avaliar, por meio da técnica de Rorschach, características afetivas de um grupo de 16pacientes narcolépticos, comparados com um grupo de 20 indivíduos não-narcolépticos. A partir de revisão daliteratura, três hipóteses foram testadas: os narcolépticos, em comparação com os não-narcolépticos deveriamapresentar: 1) menor engajamento nas situações afetivas; 2) maior constrição afetiva; 3) maior controle dasexpressões afetivas. As hipóteses 1 e 2 foram confirmadas, mas não a hipótese 3, pois os narcolépticosapresentaram menor controle das reações afetivas do que os não-narcolépticos. Os resultados mostram oimpacto da doença na vida dos narcolépticos e indicam a importância de o tratamento incluir atenção aosaspectos psicossociais.
Palavras-Chave: Narcolepsia; personalidade; Teste de Rorschach.
ABSTRACT
Narcolepsy is characterized by excessive diurnal drowsiness with irresistible sleep attacks and cataplexy. Theobjective of this study was to assess, using the Rorschach test, affective characteristics of a sample of 16narcoleptics patients compared to 20 non-narcoleptics subjects. Based on a literature review, three hypotheseswere tested: narcoleptics, in comparison with non-narcoleptics, should demonstrate: 1) lower engagement inaffective situations; 2) greater affective constriction; 3) greater control in affective expression. Hypothesis 1and 2 were supported, but not hypothesis 3 because narcoleptics had shown lower control of affective reactionsthan non-narcoleptics. The results demonstrate the impact of the disease in the life of narcoleptics and indicatethe relevance of psychosocial care in treatment.
Keywords: Narcolepsy; personality; Rorschach Test.
Descrita inicialmente por Gelineau, em 1881, como doença com ataques de sono irresistíveis,a narcolepsia se caracteriza por sonolência excessiva diurna e cataplexia – o paciente perde o tônusmuscular, porém sua consciência fica preservada –, sintoma que é desencadeado por um componenteafetivo, seja ele riso, choro ou um susto. A narcolepsia pode ter alguns outros sintomas associados,como a paralisia do sono, alucinações hipnagógicas e fragmentação do sono (Yoss e Daly, 1957).
Esta doença pode limitar severamente o funcionamento diurno e seus sintomas podem causarseveros transtornos psicossociais ao seu portador, que passa a evitar o envolvimento em atividadessociais, por medo de adormecer. Como os ataques de cataplexia são desencadeados por componentesafetivos, o paciente também costuma empenhar-se em controlar os afetos. A sonolência diurna tambémpode ser interpretada por familiares, amigos, professores ou colegas de trabalho como falta deinteresse, preguiça, indiferença e até mesmo simulação de doença (Kales et al., 1982). Teixeira, Faccendae Douglas (2004) estudaram o status funcional de narcolépticos no Reino Unido, utilizando a formareduzida do Questionário de Qualidade de Vida (SF 36), encontrando prejuízo nos narcolépticos nosdomínios funcionamento físico, desempenho de papéis sociais, funcionamento social, saúde mental,energia e vitalidade, dor e percepção geral da saúde, em comparação com indivíduos normais.
A narcolepsia também pode contribuir para que seus portadores apresentem transtornosmentais, principalmente depressão. Mosko et al. (1989) avaliaram sintomas de depressão em pacientescom transtornos do sono utilizando um questionário. Encontraram que 67% reportaram um episódiode depressão no período de até 5 anos antes desta avaliação, 26% descreveram-se como estandodeprimidos no momento e a média das pontuações nos questionários foi alta, indicando a presençade sintomas depressivos nos pacientes com transtornos do sono. Também avaliaram se haveria melhorado humor com o tratamento, utilizando o questionário Profile of Mood States (escala que avalia oestado atual do humor), encontrando melhora em pacientes com apnéia obstrutiva do sono tratadoscirurgicamente, pacientes com síndrome das pernas inquietas tratados com clonazepam, mas não em narcolépticos tratados com estimulantes, nem em insones com histórico de uso prolongado dedrogas sedativo-hipnóticas e cuja medicação foi suspensa.
Alguns estudos investigaram características de personalidade de narcolépticos. Bleuter, Waren,Karacan e Thornby (1981) compararam 20 pacientes com apnéia obstrutiva do sono, 20 pacientes com narcolepsia e 10 indivíduos normais, utilizando como instrumentos o Minnesota Multiphasic Personality Inventory (MMPI) e o questionário Profile of Mood States (POMS). Os pacientes apresentaram perfis psicológicos diferentes dos perfis dos indivíduos normais, com os pacientes com apnéia apresentando características histéricas e hipocondríacas e os narcolépticos apresentando ansiedadee introversão social.
Sachs e Levander (1981) utilizaram inventários de personalidade, para avaliar pacientesnarcolépticos em comparação com um grupo de não-pacientes, um grupo de pacientes psiquiátricoscom ansiedade e um grupo de pacientes com sintomas psicossomáticos. Encontraram, nos narcolépticos,escores um pouco menores em extraversão do que nos outros grupos. Os narcolépticos tambémapresentaram escores elevados em ansiedade-neuroticismo (principalmente escores de ansiedadesomática) e escores baixos em socialização. Os autores concluíram que os escores elevados em ansiedade neuroticismo podem decorrer dos efeitos das drogas estimulantes e/ou de uma labilidade da regulaçãoautonômica associada com o transtorno. O estresse decorrente dos sintomas também pode ajudar aexplicar os escores mais altos em ansiedade-neuroticismo e mais baixos em socialização.
Kales et al. (1982) estudaram narcolépticos utilizando o Minnesota Multiphasic Personality Inventory(MMPI), a escala Symptom Checklist 90 (SCL-90) e técnicas projetivas (Rorschach, TAT e desenhos),encontrando como principal resultado a excessiva preocupação com controle afetivo, levando a umafalta de expressividade e à contenção dos afetos, resultando em tensão.
Oyarce, Guevara e Opazo (2004) avaliaram pacientes narcolépticos, utilizando o Minnesota Multiphasic Personality Inventory (MMPI), o teste das Cores de Luscher e o Teste de Rorschach (neste,avaliaram apenas os fenômenos especiais das áreas cognitivo-perceptual, do pensamento e afetiva).Os resultados indicaram identidade difusa, sensibilidade aos aspectos estéticos, sugestionabilidadee reações exageradas frente ao estresse; acentuada auto-exigência, perfeccionismo e utilização demecanismos defensivos preferentemente hipomaníacos.
O objetivo deste estudo foi avaliar características afetivas de um grupo de pacientes narcolépticos,comparados com um grupo de indivíduos não-narcolépticos, utilizando-se a técnica de Rorschach. Estapesquisa se justifica porque a afetividade desempenha importante papel na narcolepsia, principalmentepor sua associação com o sintoma da cataplexia. A literatura também descreve o prejuízo psicossocialdecorrente da evitação, busca de controle e constrição afetiva dos narcolépticos. Outra justificativapara este estudo foi não terem sido encontradas pesquisas brasileiras sobre a personalidade denarcolépticos, sendo relevante a comparação dos resultados de uma pesquisa brasileira com os depesquisas estrangeiras. A maioria das pesquisas sobre a personalidade de narcolépticos utilizouinventários de personalidade, sendo então interessante investigar a personalidade por meio de umatécnica como o Rorschach, que fornece informações diferentes das obtidas com questionários: enquantoestes informam sobre o modo como o indivíduo se percebe e a imagem que deseja passar aos outros,o Rorschach fornece informações sobre propensões subjacentes ao comportamento aberto (Meyer,1997). Uma pesquisa sobre a afetividade dos narcolépticos pode contribuir para uma maior compreensãodestes pacientes e para se desenvolver ou ampliar medidas que contribuam para o tratamento.
MÉTODO
Participantes
Foram comparados dois grupos de participantes: o grupo alvo, composto por 16 pacientesnarcolépticos, e o grupo de comparação, composto por 20 indivíduos não-narcolépticos. Osparticipantes são uma parte dos participantes da pesquisa de F. Coelho (2008). Assim sendo, a seguirsão apresentados os critérios de inclusão e exclusão, de acordo com a pesquisa de F. Coelho.
PACIENTES NARCOLÉPTICOS
Os pacientes narcolépticos foram recrutados dentre os atendidos no Ambulatório de SonolênciaExcessiva Diurna do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Critérios de inclusão:
1.Diagnóstico de narcolepsia com cataplexia típica há mais de seis meses, conforme critériosda Classificação Internacional dos Distúrbios do Sono - ICSD-2 (American Academy of SleepMedicine, 2005). Para receberem o diagnóstico de narcolepsia, foram considerados osdados de um questionário sobre distúrbios do sono (desenvolvido pelo ambulatório), aavaliação clínica realizada por um neurologista, os resultados de um exame depolissonografia noturna (PSG) e de um teste de múltiplas latências do sono (TMLS);
2.Idade entre 18 e 65 anos;
3.Uso de medicações empregadas rotineiramente para o controle sintomático da narcolepsia,como metilfenidato (Ritalina), nas dosagens entre 5mg a 50mg, atuando na sonolência excessiva e antidepressivos (Amitriptilina: dose de 25mg a 75mg ou Imipramina: dose de50mg a 125mg), agindo na inibição da cataplexia; 4.Concordância em participar da pesquisa, assinando termo de consentimento livre eesclarecido.
Critérios de exclusão:
1.Pacientes com doença conhecida do tipo auto-imune ou neoplásica, ou síndrome daimunodeficiência adquirida (AIDS), com ou sem uso de drogas imunossupressoras;
2.Presença de outros distúrbios do sono, além da narcolepsia;
3.História de abuso de álcool, hipnótico ou drogas ilícitas;
4.Utilização de outras medicações que não as utilizadas para controle da narcolepsia;
5.Presença de doenças clínicas, neurológicas ou psiquiátricas.
INDIVÍDUOS NÃO-NARCOLÉPTICOS
Como parte da pesquisa de F. Coelho (2008), foi composto um grupo de adultos sem queixasde problemas de sono nos últimos seis meses, com a finalidade de servir como grupo de comparação. Estes indivíduos foram recrutados pelos pacientes narcolépticos em seu ambiente de trabalho ou estudo. Os indivíduos deste grupo foram contatados e convidados a participar da presente pesquisa.
Critérios de inclusão:
1.Idade entre 18 e 65 anos.
2.Concordância em participar da pesquisa, assinando termo de consentimento livre eesclarecido.
Critérios de exclusão:
1.Presença de doenças relacionadas ao sono ou hipersonolência diurna evidenciadas na históriaou durante a realização da polissonografia (PSG) e teste de múltiplas latências do sono (TMLS);
2.Presença de doença conhecida do tipo auto-imune ou neoplásica, ou síndrome daimunodeficiência adquirida (AIDS);
3.História de abuso de álcool, hipnótico ou drogas ilícitas;
4.Uso de drogas imunossupressoras;
5.Presença de doenças clínicas, neurológicas ou psiquiátricas.
Características sócio-demográficas dos participantes
A média de idade (em anos) foi 36,25 ± 9,99 no grupo de pacientes narcolépticos e 33,70 ±6,72 no grupo de indivíduos não-narcolépticos. O grupo de narcolépticos foi composto por 7 mulherese 9 homens; o grupo de não-narcolépticos, por 10 mulheres e 10 homens. No grupo de narcolépticos,predominaram participantes com ensino superior (N = 9), seguidos por participantes com ensinomédio (N = 5); no grupo de não-narcolépticos, predominaram participantes com ensino médio (N =11), seguidos por participantes com ensino superior (N = 8). Os grupos foram consideradossemelhantes em termos de idade, gênero e instrução.
Instrumento
Para avaliação das características afetivas foi utilizada a técnica de Rorschach (Rorschach,1921/1967). Este instrumento de avaliação da personalidade é composto por 10 cartões com manchasde tinta, que são apresentados ao indivíduo avaliado, que deve dizer com o que as manchas separecem. As respostas são analisadas em termos de sua estrutura e temática, dados que expressamaspectos do funcionamento psicológico (personalidade) do indivíduo (Weiner, 1999). Existemdiferentes sistematizações da técnica de Rorschach, cada uma delas com determinado procedimentode aplicação, categorias para a classificação das respostas, índices e regras para a formulação dainterpretação dos resultados. Neste estudo foi utilizado o Sistema Anibal Silveira (Silveira, 1964; L.Coelho, 2007). A escolha deste sistema se deveu a este ser adotado pela Universidade Paulista (UNIP),na graduação em Psicologia, cursada pelos alunos que realizaram a pesquisa.
Procedimento
O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Paulista (UNIP).Todos os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, autorizando a utilizaçãodos resultados na pesquisa.
As aplicações da Prova de Rorschach foram realizadas no Instituto do Sono da UniversidadeFederal de São Paulo (UNIFESP), em sala bem iluminada e tranqüila, com hora marcada e aplicaçãoindividual. A técnica de Rorschach foi aplicada segundo o procedimento do Sistema Anibal Silveira,com uma modificação: não foi realizada repassagem dos cartões. O procedimento de repassagem –mostrar novamente os cartões e solicitar outras respostas – é indicado quando o testando fornecemenos do que 15 respostas ou deixa de fornecer resposta a um ou mais cartões. Apesar de esteprocedimento eventualmente ser útil numa utilização do Rorschach em situação clínica(psicodiagnóstico), não parece ser indicado numa situação de pesquisa, por produzir resultadosdecorrentes de duas situações diferentes de aplicação (protocolos sem repassagem e protocoloscom repassagem), o que poderia prejudicar a padronização.
As aplicações foram realizadas por dois autores desta pesquisa, na época alunos de Psicologiada Universidade Paulista (UNIP). Cada um dos aplicadores coletou oito protocolos do grupo denarcolépticos e 10 protocolos do grupo de não-narcolépticos.
As respostas do Rorschach foram classificadas por outros dois autores desta pesquisa, tambémalunos de Psicologia, e conferidas pelo aplicador. Posteriormente, as classificações foramsupervisionadas por um outro autor da pesquisa, especialista com mais de 10 anos de trabalho coma técnica de Rorschach. Este procedimento para a classificação das respostas, realizado pelospesquisadores em conjunto, visou garantir a acurácia das classificações.
Conforme comentado anteriormente, não foi utilizado o procedimento de repassagemdos cartões. Nesta pesquisa, não houve casos em que os testandos deixassem de fornecerrespostas a qualquer um dos cartões. No entanto, foram obtidos três protocolos com menosdo que 15 respostas em cada um dos grupos. Protocolos com poucas respostas podem serpouco fidedignos, muitas vezes sendo recomendada sua não-inclusão em pesquisas (Weiner,1995b). Nesta pesquisa, as variáveis foram investigadas incluindo-se e excluindo-se osprotocolos com menos de 15 respostas, encontrando-se resultados semelhantes. Serão entãoapresentados os resultados incluindo os protocolos com menos do que 15 respostas, destemodo considerando um número maior de participantes nos grupos, o que é interessante do ponto de vista das análises estatísticas.
Variáveis investigadas
Pesquisas com a técnica de Rorschach devem selecionar as variáveis relativas àscaracterísticas de personalidade a serem investigadas e preferencialmente testar hipóteses, emvez de explorar as diversas variáveis do instrumento e explicar a posteriori os resultadosencontrados (Weiner, 1995a).
·Índice de Afetividade [Af], que avalia o quanto o participante responde às pranchas coloridas,que representam as situações afetivas. Segundo Silveira (1964), o Índice de Afetividadeavalia a sensibilidade afetiva, ou seja o quanto o indivíduo responde ou engaja-se nassituações afetivas.
·Proporção FC : CF+C, que compara as reações afetivas com consideração para com osdemais, com afetos mais estáveis e de intensidade moderada (FC) versus as reações afetivasmais egocêntricas, com afetos mais intensos e instáveis (CF+C). A investigação da proporçãoFC : CF+C foi realizada considerando a diferença FC (CF+C), tomada como índice do graude modulação afetiva, com resultados maiores indicando maior moderação ou controlenas reações afetivas.
·Respostas de cor acromática [C']. Segundo Silveira (1964), estas respostas indicam prudência:o indivíduo aprendeu a conter suas reações afetivas, por ter passado por experiênciasconcretas de desapontamento, quando se expressou afetivamente. Em outros termos, estas respostas indicam constrição afetiva.
Foram formuladas as seguintes hipóteses, que foram testadas:
H1.O Índice de Afetividade [Af] deve apresentar valores menores nos pacientes narcolépticos,expressando sua menor responsividade ou menor engajamento nas situações afetivas.
H2. A diferença FC-(CF+C) deve apresentar valores maiores nos pacientes narcolépticos,expressando seu esforço de controle expressão afetiva.
H3. O número de respostas de cor acromática [C'] deve ser maior nos pacientes narcolépticos,expressando sua maior constrição afetiva.
No cálculo dos determinantes de cor cromática (FC, CF e C) e do número de respostas de coracromática [C'], os determinantes principais receberam peso 1,0 e os determinantes adicionaisreceberam peso 0,5, conforme indicado no Sistema Anibal Silveira.Para a comparação dos resultados obtidos em cada grupo e teste das hipóteses formuladas foiutilizado o teste U de Mann-Whitney, estatística não-paramétrica de escolha para situações em queos grupos contêm números diferentes de participantes, bem como para amostras pequenas.
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta estatísticas descritivas das variáveis investigadas, no grupo de pacientesnarcolépticos e no grupo de indivíduos não-narcolépticos.
Viglione (1997) sugere que o primeiro passo nas pesquisas com o Rorschach seja a visualizaçãodas distribuições de valores das variáveis. Na presente pesquisa, os grupos foram de tamanhosdiferentes (N = 16 no grupo de narcolépticos e N = 20 no grupo de não-narcolépticos). Assim sendo,com a finalidade de comparar visualmente as distribuições de valores em cada um dos grupos, osnúmeros de participantes foram transformados em porcentagem, nas Figuras de 1 a 3, a seguir.
A Figura 1 apresenta a distribuição de valores do Índice de Afetividade [Af] nos grupos,permitindo visualizar a amplitude menor e o predomínio de valores mais baixos no grupo denarcolépticos.
O Índice de Afetividade [Af] apresentou média = 1,29 ± 0,39 no grupo de pacientes narcolépticos emédia = 1,59 ±0,51 no grupo de indivíduos não-narcolépticos. A diferença entre as médias foi de magnitudemoderada (d = 0,67) e estatisticamente significante (U = 104,500, p = 0,04 unicaudal), confirmando ahipótese H1, de que os pacientes narcolépticos apresentariam menor engajamento nas situações afetivas.
A Figura 2 apresenta a distribuição de valores da diferença FC-(CF+C) nos grupos. Para facilitara visualização, valores não-inteiros foram agrupados com valores inteiros. Nota-se a maior porcentagemde pacientes narcolépticos com escores iguais a -0,5 e 0,0, e a maior porcentagem de indivíduos não-narcolépticos com escores maiores do que 0,0.
A diferença FC-(CF+C) apresentou média = 0,34 ± 1,50 nos pacientes narcolépticos e média= 1,08 ± 1,59 nos indivíduos não-narcolépticos. A diferença entre os grupos foi em sentido contrárioà hipótese H2 formulada, pois os narcolépticos apresentaram menor controle das reações afetivasdo que os não-narcolépticos.
A Figura 3 apresenta a distribuição de valores de cor acromática [C'] nos grupos. Para facilitara visualização, valores não-inteiros (decorrentes de determinantes C' adicionais) foram agrupadoscom valores inteiros de C'. Nota-se a maior porcentagem de casos com C' = 1, 5 e 2,0 nos pacientesnarcolépticos e a maior porcentagem de casos com C' = 0 no grupo de indivíduos não-narcolépticos.
O número de respostas de cor acromática [C'] apresentou média =1,25 ± 0,95 nospacientes narcolépticos e média = 0,88 ± 1,39 nos indivíduos não-narcolépticos. A diferençaentre os grupos foi de magnitude pequena (d = 0,32) e estatisticamente significante (U =108,500, p = 0,04 unicaudal), confirmando a hipótese H3, de que os pacientes narcolépticosapresentariam maior prudência (constrição afetiva) do que os indivíduos não-narcolépticos.
DISCUSSÃO
Este estudo comparou um grupo de pacientes narcolépticos com um grupo de indivíduosnão-narcolépticos em relação a características afetivas avaliadas pela técnica de Rorschach.Para o Índice de Afetividade [Af], foi encontrada uma diferença de magnitude moderada eestatisticamente significante entre os grupos, com o grupo de narcolépticos apresentandovalores menores, conforme a hipótese formulada de que os narcolépticos envolvem-se menoscom as situações afetivas do que indivíduos sem narcolepsia. Esta menor responsividade ou menor envolvimento em situações afetivas parece indicar que os narcolépticos evitam estas situações– o que é compreensível, pois, nestas, estão mais vulneráveis à ocorrência de cataplexia.
As respostas de cor acromática [C'] indicam prudência ou constrição da expressão afetiva. A diferença entre os grupos foi de magnitude pequena e estatisticamente significante, com os pacientesnarcolépticos apresentando mais respostas C', o que indica que tendem a conter os afetos mais doque os indivíduos não-narcolépticos, conforme a hipótese formulada.
A proporção FC : CF+C compara a afetividade socialmente adaptada, ou seja, afetos estáveise de intensidade moderada (FC) com a afetividade egocêntrica, ou seja, afetos mais instáveis e intensos(CF+C). Formulou-se a hipótese de que os narcolépticos deveriam apresentar maior moderação emsuas reações afetivas, de acordo com a descrição, encontrada na literatura, de busca de controlesobre os afetos. Nesta pesquisa, os resultados foram em sentido contrário à hipótese formulada,pois os pacientes narcolépticos apresentaram menor modulação da expressão afetiva do que osindivíduos não-narcolépticos. No caso de outras pesquisas encontrarem resultados semelhantes, adescrição do funcionamento psicológico dos narcolépticos deverá ser reformulada, no sentido decaracterizar suas reações afetivas como mais intensas do que controladas, o que talvez possa indicarum aspecto constitucional de sua vulnerabilidade afetiva, próximo à caracterização de labilidade daregulação autonômica, postulada por Sachs e Levander (1981).
Como conclusão, pode-se formular a compreensão de que os narcolépticos evitam se engajarnas situações afetivas, o que parece ser um modo de se defenderem da vulnerabilidade queexperimentam frente aos afetos. Deve-se lembrar que a maioria das situações afetivas envolve relaçõesinterpessoais, portanto os narcolépticos devem apresentar menor engajamento também nas situaçõessociais. Estes resultados são compatíveis com os achados das pesquisas de Bleuter et al. (1981),Sachs e Levander (1981) e Kales et al. (1982).
É importante destacar que o delineamento utilizado, uma comparação entre grupos comcaracterísticas sócio-demográficas semelhantes, é sempre mais indicado do que comparar os resultadosde um grupo alvo com os resultados de uma amostra normativa, porque se tem maior segurança deque as diferenças encontradas se devam às diferenças planejadas ao se compor os grupos – nestapesquisa, a diferença entre os grupos foi a presença ou ausência de narcolepsia – e não a diferençassócio-demográficas entre o grupo alvo e a amostra normativa. Também o número de participantes deuma amostra normativa costuma ser maior do que o de um grupo alvo, o que traz problemasestatísticos ao se comparar os resultados (Ritzler e Exner, 1995; Weiner, 1995b).
Sugere-se a continuação das pesquisas sobre a personalidade dos narcolépticos. No caso dautilização do Rorschach, seria importante investigar a capacidade conativa (controle voluntário), jáque a narcolepsia se caracteriza por ataques de sono irresistível e cataplexia, sintomas que, do pontode vista do funcionamento psicológico, talvez possam ser aproximados a dificuldades de controle.
Os pacientes narcolépticos estavam medicados. Os estimulantes, como o metilfenidatoaumentam a ativação nos gânglios basais, uma estrutura do cérebro envolvida na cognição e nocomportamento. A ação do estimulante provoca aceleração do funcionamento mental, aumentandoa liberação e o tempo de atuação dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina no cérebro Assim, há uma alteração nas funções de raciocínio, emoções, visão e audição, provocando sensaçãode satisfação e euforia. As pessoas sob o efeito desses remédios apresentam diminuição da fadiga esonolência, podendo melhorar a percepção, desempenho mental e cognitivo (Shafritz et al., 2004).
Os pacientes narcolépticos também estavam medicados com antidepressivos tricíclicos, utilizadospara controle da cataplexia. Esta medicação pode ter contribuído para diminuir sentimentosdepressivos e o sofrimento emocional dos narcolépticos.
O fato de os pacientes narcolépticos estarem medicados pode ter contribuído no sentido deuma normalização de sua afetividade, mas, mesmo assim, eles apresentaram diferenças em comparaçãocom os não-narcolépticos. Assim, o tratamento medicamentoso, mesmo contribuindo para umamelhora da qualidade de vida, não elimina totalmente o prejuízo psicossocial – uma vida afetiva esocial mais limitada, adotada pelos pacientes para se proteger de situações afetivas às quais estãomais vulneráveis. Portanto, os aspectos psicossociais merecem atendimento específico, para alémdo tratamento medicamentoso.
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Recebido em 13/04/09
Revisto em 05/10/09
Aceito em 10/10/09
* Endereço para correspondência: Antonio Carlos Pacheco e Silva Neto - Universidade Paulista (UNIP). Av. Torres de Oliveira,330, São Paulo – SP. CEP: 05347-020. Tel.: (11) 3767-5800; Fax: (11) 3767-5854; E-mail: acpacheco@osite.com.br
1 Este artigo é uma reformulação da pesquisa Aspectos afetivos de pacientes na prova de Rorschach, apresentada comotrabalho de conclusão de curso à Universidade Paulista em 2007. Agradecimentos ao Prof. Dr. Fernando MorgadinhoCoelho dos Santos da UNIFESP e à Profa. Maria Inês Falcão.