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Boletim de Psicologia

 ISSN 0006-5943

     

 

RESENHA

 

Difusão do conhecimento científico sobre aprendizagem da linguagem escrita no Brasil

 

Diffusion of scientific knowledge about the writen language learning in Brazil

 

 

Fraulein Vidigal de Paula *

Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo

 

 

Guimarães, S.R.K. & Maluf, M.R. (Orgs.). (2010). Aprendizagem da linguagem escrita: Contribuições da pesquisa. (1ª. ed.; Coleção Psicologia da Linguagem, vol. 3). São Paulo: Vetor.

 

Educadores, pais, professores, gestores educacionais, pesquisadores, todos nos encontramos em torno do mesmo desafio, promover a aprendizagem da leitura e da escrita da nossa língua, com proficiência, para pessoas de todas as idades. Não se pode ignorar a contribuição dessa aprendizagem para o desenvolvimento psicológico mais amplo, em função do que nos permitem conhecer em outros domínios do saber e do que nos permitem ser enquanto indivíduos autônomos e cidadãos plenos em nossa cultura ou comunidade lingüística. Parte dessa responsabilidade cabe ao pesquisador, no sentido de construir conhecimentos embasados em pesquisas científicas que possam ajudar a esclarecer quais os fatores e processos envolvidos no ato de ler e escrever, quais os critérios para avaliar e orientar o delineamento das práticas que promovem essas habilidades com sucesso. No entanto, para que este conhecimento exerça seu potencial transformador, para aqueles que ensinam e para o aprendiz da língua escrita, é necessário que ele seja compartilhado e divulgado em linguagem acessível ao diálogo com os demais atores envolvidos no mesmo intento.

Neste sentido, este livro disponibiliza para o grande público avanços bem recentes no âmbito dos resultados de pesquisas e teorizações sobre a aquisição do português do Brasil, língua escrita, em suas relações com diferentes dimensões do desenvolvimento lingüístico e metalingüístico, na perspectiva da Psicologia Cognitiva da leitura. Esses avanços representam o trabalho de investigação e refinamento teórico que vem se construindo ao longo das últimas décadas. Igualmente, apresenta a reflexão dos autores - experientes pesquisadores a respeito dos assuntos abordados - quanto a implicações de suas descobertas para o campo da prática educacional, principalmente relacionado ao processo de alfabetização.

O livro é composto por 12 capítulos, sendo os três primeiros dedicados a questões relativas à aquisição inicial da escrita. Os seis capítulos seguintes exploram diferentes fatores lingüísticos e cognitivos necessários ao aperfeiçoamento da concepção alfabética da escrita (de que a escrita representa os sons da fala) e a produção de textos. Finalizando, os três últimos capítulos abordam a compreensão da leitura em professores e estudantes, bem como das estratégias que podem ser adotadas para a promoção desta competência.

No primeiro capítulo, "Do conhecimento implícito à consciência metalingüística indispensável na alfabetização", Maria Regina Maluf apresenta um modelo compreensivo acerca das aprendizagens que ocorrem sem esforço para o aprendiz de uma língua, a partir do simples contato com a mesma, ao participar de uma comunidade lingüística - as aprendizagens implícitas - e das aprendizagens que exigem práticas de ensino estruturado que orientem a atenção, a reflexão e a manipulação consciente e deliberada sobre os diferentes aspectos de uma língua. Esclarece que, por meio da primeira, o aprendiz extrai regularidades do funcionamento da língua e torna-se sensível ao que é saliente na mesma. Essas ocorrem naturalmente, sobretudo no plano da aquisição da linguagem oral. Porém, ressalta que uma língua escrita é um produto cultural que, para ser adquirido com proficiência, requer também aprendizagens explícitas sobre as suas convenções. Esse processo resulta no desenvolvimento da consciência metalingüística, ou seja, na capacidade de pensar e manipular, com atenção consciente a intenção, tomar os diferentes aspectos da língua, como objeto de pensamento, refletir e manipular o conhecimento da mesma de modo consciente e intencional. Ressalta que para isso é necessário o ensino deliberado.

No segundo capítulo, "Dificuldades de leitura e escrita: revisão sobre os critérios de avaliação e identificação", de Jerusa F. Salles, Renata S. Zamo, Jaqueline C. Rodrigues e Graciela I. Jou, são apresentados resultados de pesquisa e reflexões teóricas sobre os processos envolvidos nas habilidades de leitura e da escrita, suas relações com a inteligência e a compreensão da linguagem oral, à luz da Neuropsicologia cognitiva, além de apontar critérios para identificação diferencial das dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita.

A maior parte das pesquisas sobre o processo de aprendizagem da escrita retrata como esse ocorre, ou não, no público infantil. Neste sentido, no capítulo seguinte, intitulado: "Processamento fonológico e habilidades de leitura e escrita: evidência de adultos em programas de alfabetização", as autoras Cláudia Cardoso-Martins e Marcela F. Corrêa, apresentam importante contribuição para a compreensão das peculiaridades desse processo em pessoas que ingressam tardiamente no processo de alfabetização.

No quarto capítulo, de Jane Correa, "As convenções da escrita e a ocorrência de segmentações não convencionais - no texto escrito por crianças", a autora apresenta e discute resultados de suas pesquisas sobre esse tema, o qual é revelador das crenças intuitivas das crianças sobre as convenções da escrita e sobre como essas evoluem para a aquisição da escrita ortográfica. Extremamente curiosa é a demonstração do quanto o uso do ‘espaço em branco’ para separação gráfica das palavras "não é obvio, nem natural" para o aprendiz iniciante da escrita, ou mesmo pela sua invenção e emprego corrente relativamente recente na história da escrita.

No capítulo de Sandra R. K. Guimarães sobre as "Relações entre a consciência morfossintática e o desempenho na segmentação do texto em palavras gráficas" são retomados os avanços recentes no estudo das relações entre as habilidades metalingüísticas e a aprendizagem da leitura e da escrita. Com o objetivo de avançar neste âmbito da produção de conhecimento, a autora relata um estudo com alunos do segundo ciclo do ensino fundamental sobre as relações entre a capacidade de segmentação convencional na escrita e o desenvolvimento da consciência morfossintática. Conclui que a progressão do conhecimento explícito e o controle deliberado das convenções do sistema de escrita e das unidades lingüísticas - o fonema, a palavra, a frase e o texto - são essenciais para o uso proficiente da escrita.

No capítulo seguinte, "Refletindo sobre o papel da consciência morfológica nas dificuldades de leitura e escrita", Márcia M. P. E. Mota faz uma revisão de literatura nacional e internacional sobre essa temática e apresenta suas reflexões referentes às implicações desses aspectos para o processo educativo.

No sétimo capítulo, com o título "Consciência morfossintática: novas explorações", os autores Antonio Roazzi, Rafaella Asfora e Bianca Queiroga, caracterizam a morfosintaxe e a morfologia do português, do ponto de vista lingüístico. Em seguida abordam as habilidades lingüísticas envolvidas em sua aprendizagem, ilustrando esta exposição com a apresentação de vários estudos no português e em outras línguas. Finalizam o capítulo enfatizando que mesmo diante do muito que temos a pesquisar sobre este assunto, já dispomos de conhecimento suficiente para dar a devida importância para seu ensino, que deve estar previsto no currículo, para que se promova o desenvolvimento da consciência morfossintática e os benefícios que esta pode trazer para o desenvolvimento lexical, da leitura e escrita.

Sylvia D. Barrera e Gislaine G. Nobile, no oitavo capítulo, "Conhecimento ortográfico, compreensão em leitura e competências de produção textual em alunos com dificuldades no processo de escolarização", apresentam uma pesquisa na qual oferecem um importante guia para o educador sobre como avaliar e interpretar diferentes conhecimentos e habilidades lingüísticos, fatores do sujeito e do processo de escolarização relativos a dificuldades no ato de escrever, ler e compreender palavras e textos. Iniciam o texto pela diferenciação dos papéis complementares das práticas de letramento, que favorecem sobretudo a compreensão dos usos e motivações sociais da escrita, e das práticas de alfabetização que têm como principal propósito permitir o conhecimento do código lingüístico e o desenvolvimento das habilidades metalingüísticas, tais como a consciência fonológica e morfosintática. Finalizam com o questionamento sobre até que ponto a escola tem falhado em engajar o aluno e despertar sua motivação para o desafio de aprender e de reconhecer as diferentes vantagens pessoais e sociais que podem representar o domínio da leitura e da escrita.

Seqüencialmente o capítulo, "A escrita na escola: o caso da revisão de textos", de Alina G. Spinillo, revela a extensa trajetória e experiência da autora no estudo e produção de saberes sobre desenvolvimento das habilidades metatextuais e de leitura e escrita de diferentes gêneros de texto. Ao mesmo tempo, a autora instrumentaliza o educador para ensinar e aperfeiçoar a produção de textos de seus alunos, a partir de estratégias de revisão de textos, cuja eficácia é didaticamente demonstrada a partir de seus estudos comparativos com intervenção em sala de aula.

No décimo capítulo, "Experiências de professores dos anos iniciais como leitores e suas práticas pedagógicas de leitura em sala de aula", Sandra P. A. Ferreira, em seu estudo, por professores de escolas públicas, descreve e analisa com sensibilidade as experiências e significados construídos sobre a leitura e sobre sua identidade como leitoras e alfabetizadoras. Estes significados e crenças norteadoras da identidade leitora e profissional das entrevistas é recuperado a partir da história pessoal rememorada desde a infância com a leitura, as pessoas e situações marcantes dessa formação. Em parte respondendo a indagação posta no oitavo capítulo, seus resultados evidenciam que a experiência familiar com a leitura, mais do que a escolar é formadora do desenvolvimento de uma relação prazerosa com o ato de ler e sua aprendizagem. A autora também identificou que o aspecto crítico é a relação afetiva que se construiu com esse ato, junto aos mediadores dessa formação. Como nos lembra Penac1, em seu romance "Comme un roman", ler não é um verbo que funciona no imperativo, assim como o verbo amar.

No penúltimo capítulo, "Compreensão de textos em estudantes: características e promoção de competências", as autoras Adriana B. Soares e Thamires A. Emmerick, revisam estudos sobre os fatores cognitivos, lingüísticos e sociodemográficos relacionados à capacidade de ler textos com compreensão e propõem um modelo teórico organizador desses fatores. Em seguida caracterizam diferencialmente o significado da leitura compreensiva de textos no ensino fundamental e médio. Neste contexto é apresentada uma série de estratégias cognitivas e metacognitivas que podem ser utilizadas pelo professor no sentido de auxiliar o aluno a construir sua autonomia para monitorar e adequar o uso de recursos que levem à compreensão na leitura.

Com o mesmo propósito do capítulo anterior, Maria da Graça B. B. Dias, Sandra A. P. Ferreira e Antonio Roazzi, autores de "Exercícios e estratégias aplicativos em sala de aula para uma melhor compreensão de texto", afirmam que a compreensão de texto não é uma habilidade que se aprende apenas nas séries iniciais de escolarização e que sua responsabilidade é dos professores de todas as disciplinas. Elencam várias estratégias e, dentre elas, destacam duas para promover a compreensão da leitura em sala de aula. Estas têm como importantes vantagens sua fácil aplicação, necessidade mínima de recursos e o fato de provocarem o posicionamento ativo do leitor diante do texto. São elas a estratégia do uso de imagem mental e a de tomar notas. São considerados os limites, vantagens e variáveis que podem interferir na eficácia do uso dessas estratégias, tais como tempo de instrução do aprendiz, relação com seu tutor e tipo de escola.

Os estudos apresentados contemplam diferentes faixas etárias e referem-se, principalmente, a alunos de instituições educacionais públicas. Sem a pretensão de esgotar a abordagem de toda a diversidade e complexidade de aspectos envolvidos no tema em questão, o livro também evidencia domínios que necessitam de mais investigação e investimento, em termos das práticas educacionais, que tenham a finalidade de esclarecer e promover a aprendizagem da leitura e da escrita do português brasileiro.

Em síntese, o livro cobre uma amplitude considerável de assuntos, no contexto da produção científica sobre aquisição da linguagem escrita no Brasil, o que faz justiça a seu título. Outra relevância está presente ao identificar-se uma preocupação em auxiliar o educador a fazer pontes entre os avanços teóricos recentes, que descrevem o processo de aquisição da língua, e o aperfeiçoamento da prática de ensino da leitura e da escrita. Em função dessa amplitude, do encontro entre representantes de diferentes disciplinas (Psicologia, Fonoaudiologia e Pedagogia) e por retratar estudos de diferentes regiões do país, esta obra tem potencial para se tornar uma referência fundamental para estudiosos e profissionais que trabalham com o processo de ensino e de aprendizagem da escrita do português brasileiro.

Para uma leitura complementar deste livro, vale a pena conhecer também os outros dois volumes da mesma coleção Psicologia da Linguagem: "Contextos de Desenvolvimento da Linguagem" e "Psicologia da Linguagem: Da construção da fala às primeiras narrativas". No conjunto, a coleção promove uma compreensão mais ampla e atualizada de todo o processo de desenvolvimento do português brasileiro em sua versão oral e escrita, da interação entre ambas, dos contextos facilitadores dessas aquisições e do quanto essas se relacionam às outras dimensões do desenvolvimento cognitivo e social da criança. Desse modo, os autores cumprem a importante função de socializar a produção de conhecimento científico em linguagem acessível a todos os que estão engajados em promover o ensino e aprendizagem da escrita para todos, com qualidade e eficiência.

 

 

 

 

 

Recebido em 25/06/10
Aceito em 27/06/10

 

 

* Endereço para correspondência: Av. Prof. Mello Moraes, 1721. São Paulo - SP. CEP: 05508-030. Fone: 3091-4355. E-mail: frauleindepaula@gmail.com.
1 Penac, D. (1992). Comme un roman. Paris: Gallimard.

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