Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
Características emocionais e traços de personalidade em crianças institucionalizadas e não institucionalizadas
Emotional characteristics and personality traits among institutionalized and non-institutionalized children
Benedito Carlos Alves dos Santos I *; Maria Cristina de Camargo Ribeiro I; Gilberto Mitsuo Ukita I, Maria da Paz Pereira I, Walquiria Fonseca Duarte I II, Eda Marconi Custódio II III
I Universidade de Santo Amaro – SP – Brasil
II Universidade de São Paulo - SP - Brasil
III Universidade Metodista de São Paulo – SP – Brasil
RESUMO
Este estudo teve como objetivo comparar características psicológicas de crianças institucionalizadas e não institucionalizadas. Foram pesquisadas 36 crianças institucionalizadas e 36 crianças que viviam com suas famílias, de ambos os sexos e com idades entre 5 e 10 anos. Utilizou-se a Escala de Traços de Personalidade para Crianças e o Desenho da Figura Humana, avaliado segundo a escala de indicadores emocionais de Koppitz. Os resultados do Desenho da Figura Humana mostraram diferenças significantes em relação ao total de indicadores emocionais, sendo que as crianças institucionalizadas apresentaram em média dois indicadores a mais do que as crianças que viviam com suas famílias. Verificou-se também que as crianças institucionalizadas apresentaram mais traços de psicoticismo e de neuroticismo do que as do outro grupo. Concluiu-se sobre a importância da família como fator de saúde mental no desenvolvimento infantil.
Palavras-Chave: Crianças institucionalizadas, Família, Desenho da Figura Humana, Traços de personalidade.
ABSTRACT
This study intends to compare the psychological traits of institutionalized and non-institutionalized children. Participated 36 children from foster homes and 36 children who lived with their families, of both sexes, whose age ranged from 5 to 10 years-old. It was applied the Personality Traits Scale for Children and the Human Figure Drawing that were analyzed by the Koppitz emotional indicators. The Human Figure Drawing results showed significant differences when the total number of emotional indicators between the groups was compared, whereas children who had receive foster care presented in average two more indicators than the children who lived with their families. It was also seen that institutionalized children showed more traits of psychoticism and neuroticism than the children from the other group. It can be therefore concluded about the importance of family as a mental health factor in the child's development.
Keywords: Institutionalized children, Family, Human Figure Drawing, Personality.
INTRODUÇÃO
A criança no contexto familiar
A família como é concebida nos tempos atuais constitui um grupo cuja diversidade de combinações e formas de relacionamento estão circunscritas histórica e socialmente. Ariès (1981) mostra o nascimento, na sociedade européia, da família nuclear, constituída de pai, mãe e filhos. Esse padrão de família influenciou o Ocidente e a sua relação com o avanço da percepção sobre a infância e a importância conferida às crianças no âmbito familiar. Na época medieval, predominava, entre a classe dominante, a chamada família patriarcal extensiva, na qual as relações de linhagem se sobrepunham em importância à família nuclear, composta somente pelo casal e filhos. Pela indivisibilidade do patrimônio, os filhos solteiros, os casados e suas famílias, assim como irmãos, primos e cunhados, reuniam-se na mesma propriedade, em redor do patriarca, que detinha as posses. As crianças, a partir dos seis ou sete anos, eram afastadas da família e encaminhadas a outras casas, onde realizavam toda sorte de serviços domésticos e/ou aprendiam um ofício. A família de origem, por sua vez, recebia os filhos de outrem, para o mesmo fim. Essas crianças permaneciam afastadas da família até atingirem idade entre 14 e 18 anos.
Segundo Ariès (1981), o "sentimento de família" como conhecemos hoje é novo na história da civilização. Se nas classes mais abastadas a ambição e a prosperidade do patrimônio organizavam as relações familiares, para os pobres restava pouco do que hoje se conhece como família. Foi a partir do século XV que o aprendizado doméstico foi aos poucos sendo substituído pela educação escolar. Os filhos passaram a ser mantidos mais próximos de casa, foram crescendo os deveres atribuídos aos pais e a família começou a se concentrar em torno de suas crianças. De forma lenta e gradual, a família foi se diferenciando e a vida privada dos pais e dos filhos adquiriu relevância social, chegando-se até à constituição da chamada família nuclear moderna.
Martins (2004) comenta que até meados do século XVII não havia, entre as famílias, um sentimento de infância semelhante ao contemporâneo, e as crianças eram rejeitadas ou abandonadas aos montes. O abandono acontecia das mais variadas maneiras. A criança representava para as famílias um grande sacrifício e existia, e ainda existe, uma gama de soluções para esse "problema", que vai do abandono físico ao abandono moral da criança.
No Brasil, durante o período compreendido entre o início da República e meados do século XX, os movimentos de "higienização" da sociedade e os processos de modernização, urbanização e industrialização aliaram-se à difusão do padrão da família nuclear burguesa como a "nova família", a família "moderna" que, obviamente, se contrapunha à maioria da população brasileira: miscigenada, pobre, descendente de escravos e de indígenas. Esse padrão foi reforçado pela influência religiosa, especialmente católica, que pregava como modelo a família conjugal, com base no atrelamento entre sexualidade, reprodução e casamento (Neder, 2004).
Segundo Silva (2004), a partir da década de 50 do século passado, novos valores em torno do conceito de família foram introduzidos com a aceleração da urbanização e o crescente processo de industrialização. Por sua vez, fatores como as mudanças no ideário feminino relativo ao casamento e a queda da fecundidade, observada desde a década de 1960, interferiram profundamente nas relações culturais de gênero. Acrescente-se ainda o fato de que a crise econômica, iniciada nos anos 80, provocou o desemprego em massa do homem adulto e conseqüentemente a intensificação da participação feminina no mundo do trabalho, causando forte impacto sobre a dinâmica intrafamiliar brasileira.
Tudo isso resultou na diminuição do tamanho das famílias e na diversificação dos arranjos familiares que se observam hoje no país. Destaca-se o aumento do número de famílias monoparentais, das famílias recompostas, isto é, formada pelos cônjuges e filhos de casamentos anteriores, de famílias compostas por membros de várias gerações, de domicílios multifamiliares e das unidades individuais (Silva, 2004).
A literatura especializada é clara ao mostrar a importância do apego, da formação do vínculo no início da vida da criança como elemento essencial no desenvolvimento psíquico. Convém ressaltar que, independentemente da forma como tem se organizado em diferentes épocas, a família tem como função básica a proteção e o cuidado dos filhos. Soifer (1986), a esse respeito, discute a proteção e o cuidado como preparo imprescindível para a vida, entendendo que o amor, a solidariedade e a justiça praticados na família são as pedras angulares da convivência humana.
Seixas (2002) assinala que a família desenvolve a capacidade de criar novos significados, novas formas de ação social, novas idéias. Esta capacidade de mudar, tanto quanto a de conservar, e a dialética entre esses elementos é que vai possibilitar a sua adaptabilidade às novas situações e fenômenos sociais.
Nesse contexto, outro aspecto a ser considerado é a importância da família no desenvolvimento da personalidade da criança. Sisto (2004) define a personalidade em termos de uma síntese da atividade biopsíquica humana, que inclui além de tendências individuais, aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e culturais, constituindo uma unidade. Dessa forma, além dos elementos orgânicos e herdados, envolveria também elementos socioculturais que seriam produtos de aprendizagem.
Já os teóricos psicanalíticos acreditam que a interação entre o ambiente e as características inatas da criança desempenha um papel central na formação das diferenças de personalidade (Bee, 2003). Para estes, o desenvolvimento da personalidade se dá fundamentalmente em estágios e, em cada estágio, a criança requer um tipo específico de ambiente apoiador para suas necessidades. Considerando esses aspectos, o ambiente no qual a criança se desenvolve poderá potencializar suas tendências individuais ou, ao contrário, poderá enfraquecê-las. Assim, uma criança que não encontre o ambiente necessário para seu desenvolvimento terá uma personalidade muito diferente daquela cujo ambiente foi parcial ou inteiramente adequado.
A institucionalização de crianças
A prática da institucionalização de crianças em nosso meio existe desde o século XVIII, através da chamada "Roda dos Expostos". A "Roda" consistia em um cilindro de madeira que parecia um armário giratório, no qual a criança era deixada na abertura voltada para a rua e recebida dentro da Casa de Saúde da Santa Casa, sem que a identidade de quem a estivesse abandonando fosse revelada.
Segundo Maricondi (1997), a "Roda dos Expostos" foi usada em São Paulo até 1948, período considerado como a "pré-história" da política social no Brasil. Em 1902, Cardoso de Almeida, chefe de polícia de São Paulo, apresentou o projeto de um Instituto Disciplinar que atendesse aos chamados "pequenos criminosos". Em 1922, foi fundada no Rio de Janeiro, então capital federal, o primeiro estabelecimento público de atendimento a menores. Cinco anos depois, foi outorgado o primeiro Código de Menores, de autoria de Mello de Mattos, juiz de Menores da Capital da República, possibilitando a criação de um sistema público de atendimento. Posteriormente surgiu o SAM (Serviço de Assistência ao Menor). Em 1964, a Lei nº 4.513 estabeleceu a PNBEM (Política Nacional do Bem- Estar do Menor), com linhas de ação determinadas pela FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), juntamente com a FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor).
Atualmente existe uma legislação específica para a infância e adolescência, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1990) que determina formas diferentes de institucionalização, de acordo com as condições físicas ou morais em que a criança e o adolescente se encontram. Assim, tem-se o abrigo que é destinado a pessoas que temporariamente precisam de alojamento até a superação de uma condição desfavorável. Os orfanatos (também confundidos como internatos) são estruturas mais permanentes, destinadas, na origem, a acolher crianças cujos pais tenham falecido, seja em virtude de epidemias, doenças, guerras ou durante o parto, razão pela qual os orfanatos sempre estiveram vinculados a hospitais ou forças armadas.
Silva (2002) comenta que, diferentemente do abrigo que não implica privação de liberdade, a internação constitui uma medida sócio-educativa de privação de liberdade, que é uma atividade desenvolvida atualmente pela chamada Fundação Casa que substituiu a FEBEM. O objetivo do abrigo é o de reintegrar crianças e adolescentes institucionalizados às suas famílias, além de atuar visando à transformação da realidade vivida pela maioria das famílias que recorrem aos seus serviços.
Em sua pesquisa, Zem-Mascarenhas e Dupas (2001) tiveram como objetivo conhecer a experiência de crianças institucionalizadas com idade entre 7 e 13 anos, atendidas por uma instituição filantrópica de cunho religioso. A coleta de dados foi realizada através de atividades em grupo e entrevistas individuais. Verificaram que a institucionalização ocorreu por abandono e rejeição dos pais ou por decisão jurídica como medida de proteção à criança, tendo como contexto a pobreza de sua família. Observaram que a experiência da criança é conflituosa com relação à institucionalização, percebendo-a como positiva por receber os recursos materiais necessários para sua sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, afastando-as daquilo que consideram mais valioso, ou seja, a vida em convívio familiar para onde desejavam voltar.
Em estudo de revisão bibliográfica, Pereira e Kiss (2007) verificaram que existem no Brasil cerca de 80 mil crianças e adolescentes abrigados. As causas do abrigamento são muitas. Conforme mostra Maricondi (1997), desestruturação familiar (problemas emocionais graves, alcoolismo, etc.), extrema pobreza (falta de moradia, desemprego), falta do responsável (morte, doença ou prisão) e violência doméstica (negligência, maus tratos, rejeição, abuso sexual) são causas freqüentes na prática do abrigamento em nossa sociedade.
Estudo mais recente, realizado em 2004 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), constatou a existência de milhares de crianças que estão privadas dos cuidados parentais. As razões que explicam esse fato estão relacionadas ao agravamento dos problemas estruturais da sociedade brasileira e aos desafios colocados às famílias na modernidade, incluindo-se nesse contexto a reprodução intergeracional de um estilo parental permissivo, indiferente ou autoritário, a ocorrência de acontecimentos estressantes, como o desemprego crônico ou a dissolução das relações conjugais, e a fragilidade da rede social de apoio no cumprimento das funções de sustento e educação dos filhos (Pereira e Kiss, 2007).
A literatura especializada mostra sob diferentes enfoques (Goffman, 1979; Winnicott, 2005a) que a institucionalização de crianças precisa ser pensada em suas diversas etapas e efeitos sobre o desenvolvimento e a personalidade do indivíduo, pois de acordo com o tempo de institucionalização, os efeitos poderão ser profundos e irreversíveis. Do mesmo modo, Silva (2002) afirma que a institucionalização total e prolongada cria na criança um quadro de referências que permeia toda a sua vida cognitiva, afetiva e emocional, que norteia todas as suas relações e que dita as suas respostas comportamentais.
Nesse âmbito, Almeida e Motta (2004) afirmam que, quando a pessoa é abandonada, há perdas e lutos a serem elaborados. O abandono propriamente dito deixará marcas que se concretizarão na vivência dolorosa de perda e na necessidade de pranteá-las. A criança perderá, ainda que temporariamente, a confiança nas pessoas, pois temerá ser ferida novamente. Temerá criar novos vínculos, pois poderão ser desfeitos independentemente de sua vontade ou necessidade. Terá sua auto-estima rebaixada, pois se perguntará o que ela fez de errado, ou o que lhe falta, ou onde errou para que não mais a amem. Poderá apresentar alterações do apetite e do sono e dificuldades de aprendizagem que antes não existiam.
Um estudo de Dell'Aglio e Hutz (2004) mostra aspectos da afetividade de crianças nesse contexto. Os autores pesquisaram depressão e desempenho escolar em crianças de escolas públicas da periferia de Porto Alegre e Viamão. Verificaram que as crianças institucionalizadas apresentavam um nível maior de depressão e menor desempenho acadêmico do que crianças que moravam com a família e freqüentavam as mesmas escolas.
Com base nesses aspectos, é de se esperar que as crianças institucionalizadas apresentem um maior comprometimento emocional do que as crianças que vivem no contexto familiar. Para verificar esta hipótese, o presente estudo teve como objetivo comparar as características emocionais de crianças institucionalizadas e crianças que vivem dentro do contexto familiar, por meio do teste do Desenho da Figura Humana (DFH), analisado segundo os indicadores emocionais de Koppitz (1973). Também se comparou as características de personalidade dessas crianças, segundo a Escala de Traços de Personalidade para Crianças (Sisto, 2004).
MÉTODO
Participantes
A amostra foi composta por 72 crianças, de ambos os sexos, divididas em dois grupos, sendo o grupo Instituição composto por 36 crianças, que viviam em instituições caracterizadas como Casa de Abrigo de permanência, e o grupo Família composto por 36 crianças, que viviam com suas famílias. Em ambos os grupos havia 14 meninas (38,9%) e 22 meninos (61,1%). As crianças dos dois grupos também foram equiparadas quanto à idade, que variou entre 5 e 10 anos, com uma idade média de 7,9 anos e desvio padrão de 1,5 anos para ambos os grupos. Todas as crianças estavam regularmente matriculadas na rede pública de ensino, em escolas localizadas na região Sul da cidade de São Paulo, e freqüentavam da 1ª à 6ª série do Ensino Fundamental.
Instrumentos
Foram utilizados os seguintes instrumentos:
1. Teste do Desenho da Figura Humana (DFH). As instruções padronizadas para a administração do teste constam em Koppitz (1973). Foram utilizados os seguintes materiais gráficos: folha de papel sulfite branca, tamanho A4, lápis preto nº 2 e borracha.
2. Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC). Desenvolvido e padronizado por Sisto (2004), possui precisão e validade para ser utilizado em crianças de 5 a 10 anos. O ETPC tem parecer favorável do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e é composto por 30 itens, respondidos em uma escala dicotômica (sim ou não), que avalia quatro fatores: extroversão (10 itens), sociabilidade (6 itens), psicoticismo (11 itens) e neuroticismo (7 itens).
Procedimento
Para a coleta dos dados, inicialmente foi solicitada a autorização dos pais ou responsáveis através de um termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado conforme as orientações da Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996), para contemplar os aspectos éticos da pesquisa. As crianças foram convidadas a participar voluntariamente da pesquisa e, após os devidos esclarecimentos e instruções, os instrumentos foram aplicados de forma individual pelos Pesquisadores. Para os sujeitos que apresentaram alguma dificuldade de leitura ou compreensão no ETPC, o referido instrumento foi aplicado em forma de entrevista.
O Desenho da Figura Humana (DFH) foi analisado com base nos 30 indicadores emocionais propostos por Koppitz (1973), divididos em três categorias: símbolos qualitativos (9 itens), detalhes especiais (13 itens) e omissões (8 itens). A Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC) foi corrigida seguindo as instruções contidas no manual do instrumento (Sisto, 2004).
O tratamento estatístico foi realizado pela aplicação do teste de qui-quadrado intergrupo para a comparação das freqüências dos indicadores emocionais entre os grupos. Também foi utilizado o teste t de Student para determinar as diferenças entre as médias de cada um dos fatores do ETPC e entre as médias do total de indicadores emocionais do DFH. O nível de significância adotado foi de 0,05 para diferenças significantes e 0,10 para diferenças marginalmente significantes (Siegel e Castellan Jr., 2006).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A seguir são apresentados os resultados obtidos pela análise do Teste do Desenho da Figura Humana (DFH). A Tabela 1 apresenta as freqüências absolutas (f) e percentuais (%) dos indicadores emocionais relacionados aos sinais qualitativos. Também apresenta a comparação dessas freqüências pelo teste de qui-quadrado (χ2) e o resultado do nível de significância (p) para 1 grau de liberdade. Como é possível observar, a grande maioria dos indicadores emocionais relacionados aos sinais qualitativos aparecem com maior freqüência no grupo das crianças institucionalizadas. Entretanto, somente o item "Figura pequena: de 5 cm ou menos de altura" apresenta diferença significante ao nível de 5% (p<0,05). Já os itens "Assimetria dos membros" e "Transparência" apresentam uma diferença marginalmente significante ao nível de 10% (p<0,10).
Tabela 1. Comparação das freqüências dos indicadores emocionais do DFH relacionados aos sínais qualitativos
De acordo com Koppitz (1973), o indicador "Figura pequena" significa extrema insegurança, timidez, retraimento e depressão, e aparece com uma freqüência quase três vezes maior no grupo de crianças institucionalizadas do que no grupo de crianças não institucionalizadas. A "Assimetria dos membros", desenhada em 13,9% das crianças institucionalizadas, está relacionada com a impulsividade, que pode refletir o sentimento da criança de inadequação ao meio. Já o item "Transparência" está associado com imaturidade, impulsividade e conduta atuadora. Indica também ansiedade e preocupação com o corpo na parte específica desenhada. Esse indicador não deve ser ignorado, pois representa um pedido de ajuda por parte das crianças, incapazes de expressar com palavras suas ansiedades e dúvidas.
A Tabela 2 apresenta os resultados relativos aos Detalhes Especiais. A análise estatística mostra que os itens "Três ou mais figuras desenhadas espontaneamente" e "Nuvens, chuva, neve" apresentam diferença significante ao nível de 5% e o item "Mãos omitidas" mostra diferença marginalmente significante ao nível de 10%. Também pode ser observado que esses três itens aparecem com maior freqüência nas crianças institucionalizadas.
Tabela 2. Comparação das freqüências dos indicadores emocionais do DFH relacionados aos detalhes especiais
Para Koppitz (1973), o indicador "Três ou mais figuras desenhadas espontaneamente" está relacionado com a falta de sentimento de identidade e carência de atenção individual. Sugere também dependência e necessidade de ajuda individualizada. O item "Nuvens, chuva, neve" indica crianças muito ansiosas e auto-agressivas. Pode refletir também a existência de uma autoridade adulta controladora que pressiona e sufoca. Já "Mãos omitidas" reflete sentimentos de inadequação, culpa e ansiedade.
A Tabela 3 apresenta os resultados dos itens relacionados às omissões, que não apresentaram diferenças significativas entre os grupos.
Tabela 3. Comparação das freqüências dos indicadores emocionais do DFH relacionados às omissões
A Tabela 4 apresenta as freqüências absolutas (f) e percentuais (%) para o total de indicadores emocionais presentes no DFH e os valores mínimo e máximo, a média e o desvio padrão para cada grupo. A comparação das médias entre os dois grupos (t=4,76, gl=70, p=0,000) apresenta uma diferença significante ao nível de 1%. Esse resultado mostra que, em média, as crianças institucionalizadas desenham dois indicadores emocionais a mais do que as crianças não institucionalizadas.
Tabela 4. Estatísticas descritivas para o total de indicadores emocionais (30 itens)
Nesta pesquisa observou-se que as crianças institucionalizadas, no Desenho da Figura Humana, apresentaram mais indicadores emocionais que revelam ansiedade, timidez, temor e tristeza. A literatura especializada discute também as conseqüências da institucionalização, mostrando que no abrigo, todos os rostos são desconhecidos e o inesperado acontece a todo o momento, gerando temor e insegurança (Almeida e Motta, 2004). Portanto, entende-se que os indicadores revelam esses aspectos emocionais presentes no grupo de crianças institucionalizadas e, possivelmente, são conseqüências da realidade vivida por essas crianças.
Goffman (1979), ao analisar as relações institucionais na instituição total, discute a pouca mobilidade social entre a equipe composta por vigilantes e os internos. Mostra que uma das funções dos vigilantes é manter o controle e a disciplina sobre os internos. Ao se considerar que as instituições pesquisadas têm muitas características de fechamento semelhantes ao modelo de instituição total, entende-se que os sinais indicativos da existência de autoridade controladora, que pressiona e sufoca, podem ter ressonância na realidade externa dos participantes.
Esse resultado vai ao encontro do que afirma Bradshaw (2002) a respeito das conseqüências do abrigamento, quando diz que as emoções são as principais forças motivadoras da vida. As emoções são o combustível com o qual as pessoas se defendem e com o qual procuram atender suas necessidades básicas. A emoção do passado, causada por maus tratos, não resolvida, geralmente é usada contra a própria pessoa. A energia emocional que é repetida contra a própria pessoa pode provocar graves problemas, assim como distúrbios emocionais.
Entretanto, cabe ressaltar que as crianças abrigadas vêm, em sua maioria, de experiências familiares de abandono e/ou vitimização familiares, que são aspectos que influenciam tanto no desenvolvimento psicológico da criança, como também nas condições de adaptação à situação de institucionalização. Bradshaw (2002) sinaliza que, uma vez marcada emocionalmente e, em seguida, sendo deslocada para uma instituição, a criança nem sempre consegue superar a "criança ferida". A "criança ferida", por negligência ou por maus-tratos, tem suas fronteiras violadas, o que a predispõe ao medo de ser abandonada ou absorvida por outros.
A seguir, são apresentados, na Tabela 5, os valores mínimo (Mín) e máximo (Máx), a média (M) e o desvio padrão (DP) para cada um dos traços de personalidade da ETPC, os valores do t de Student e do nível de significância (p) para 70 graus de liberdade. Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas em relação aos traços de extroversão e sociabilidade entre os dois grupos. Entretanto, observou-se que o traço de psicoticismo apresenta uma diferença significante ao nível de 1% e o traço de neuroticismo apresenta uma diferença significante ao nível de 5%. Esses resultados mostram que, em média, as crianças institucionalizadas apresentam mais traços de psicoticismo e neuroticismo do que as crianças não institucionalizadas.
Tabela 5. Estatísticas descritivas e comparação das médias para os fatores da Escala de Traços de Personalidade para Crianças
Bartholomeu (2005) caracteriza o psicoticismo como uma dimensão da personalidade normal. No entanto, altas pontuações indicam que a criança tem uma certa despreocupação em relação aos outros e é solitária, tem tendência a ser cruel e insensível, mostrando-se hostil, até mesmo com os mais íntimos, deprecia o perigo e sente prazer em perturbar os outros, deixando-os de mau humor. Ao lado disso, apresentam poucos indícios de socialização e de sentimentos de empatia. No geral, pode-se esperar que esse traço evidencie um aumento nos problemas emocionais das crianças já que aspectos de sua conduta, como ser solitária e tendência a ser cruel, hostil e insensível, podem engendrar uma maior intensidade nos problemas emocionais dessas crianças.
Em relação ao neuroticismo, pode-se mencionar a ansiedade, depressão, sentimento de culpa, baixa auto-estima, timidez, tristeza, temor, nervosismo e inquietação, como componentes desse traço. A principal característica de uma criança com alta pontuação em neuroticismo é uma constante preocupação, com forte instabilidade emocional. Nesse contexto, pode-se esperar que essas crianças apresentem maior intensidade de problemas emocionais, uma vez que a instabilidade emocional dessas crianças propicia maiores desajustes nessa área (Bartholomeu, 2005).
Os resultados obtidos na presente pesquisa levam a considerar a família como um fator de grande importância no desenvolvimento individual e, mais especificamente, do conceito de maturidade emocional como sinônimo de saúde mental. Ao longo da obra de Winnicott, é notória a importância que ele dedica à família, colocando-a como o centro formador da sociedade e da cultura, bem como do desenvolvimento individual, chegando a afirmar que não seria possível ao indivíduo atingir a maturidade emocional fora do contexto familiar (Winnicott, 2005b).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos pelo Desenho da Figura Humana apontaram que, em média, as crianças institucionalizadas desenharam dois indicadores emocionais a mais do que as crianças que viviam com suas famílias. Verificou-se uma diferença significativa (p<0,05) para os indicadores "Figura pequena: de 5 cm ou menos de altura", "Três ou mais figuras desenhadas espontaneamente" e "Nuvens, chuva, neve". Também se observou uma tendência a diferença significativa (p<0,10) para os indicadores "Assimetria dos membros", "Transparência" e "Mãos omitidas: braços sem mãos nem dedos". Todos esses itens apareceram com maior freqüência no grupo de crianças institucionalizadas. Quanto aos resultados obtidos pela análise da Escala de Traços de Personalidade para Crianças, constatou-se que, em média, as crianças institucionalizadas apresentavam mais traços de psicoticismo e de neuroticismo do que as que viviam no contexto familiar.
Em particular, os resultados aqui apresentados são muito semelhantes aos obtidos por Pasian e Jacquemin (1999), que aplicaram a escala de indicadores emocionais de Koppitz à produção gráfica de 37 crianças institucionalizadas e 32 crianças não institucionalizadas. As crianças eram todas do sexo masculino e com idade entre 7 e 13 anos, sendo que os dois grupos foram pareados em termos etários e de escolaridade. Segundo os autores, os dados apontaram uma diferença significativa, evidenciando que os meninos institucionalizados apresentaram maior número de indicadores emocionais em seus auto-retratos.
Ainda de acordo com a análise dos autores, os auto-retratos das crianças institucionalizadas apresentaram dois ou mais indicadores emocionais a mais do que os desenhos das crianças não institucionalizadas. Também observaram que a idade não era um fator decisivo nestas diferenças, mas o tempo de vida na instituição apareceu como fator relevante, sendo que os meninos institucionalizados há menos tempo apresentaram maior número de indicadores emocionais. Concluíram que a institucionalização causa impacto negativo na criança, porém é a qualidade das experiências vivenciadas neste processo que poderá ser significativa na cristalização ou não dos sentimentos de autodesvalorização (Pasian e Jacquemin, 1999).
Esses resultados sugerem que as crianças institucionalizadas podem apresentar maior agressividade, sentimento de hostilidade e de inadequação, falta de contato social, ansiedade, timidez, tristeza, impulsividade e instabilidade emocional. Diferenciam-se também através da imaturidade e da dependência e pela presença do pedido de ajuda com a evidência de sentirem-se incapazes de expressar com palavras suas ansiedades e dúvidas.
Entretanto, não se pode afirmar que tais características que diferenciam as crianças institucionalizadas são efeitos apenas da institucionalização. É importante destacar que essas crianças têm, em geral, um histórico de experiência familiar associada à rejeição, abandono, negligência e vitimização. Esta experiência anterior não pode ser dissociada do momento atual da criança. Ao contrário, determina uma forma de buscar afeto e contato social. Considerando que não se tem dados sobre a situação emocional das crianças ao serem institucionalizadas, não se pode concluir se as relações na instituição melhoraram ou dificultaram as condições de desenvolvimento psicológico das crianças pesquisadas.
Em relação aos instrumentos utilizados, observou-se que a escala de indicadores emocionais de Koppitz mostrou eficiência quanto aos aspectos investigados no Teste do Desenho da Figura Humana, sendo que outros itens analisados poderiam ter diferenças significantes, caso a pesquisa tivesse sido feita com maior número de participantes. Entretanto, a Escala de Traços de Personalidade para Crianças apresentou dificuldades de compreensão das questões por parte das crianças, mesmo após o esclarecimento dos pesquisadores. Este fato sugere a necessidade de maior investigação sobre a adequação da mesma para crianças dessa faixa etária que pertencem a classes socioeconômicas menos favorecidas.
Os dados obtidos mostram que a hipótese do presente estudo foi confirmada: crianças institucionalizadas apresentam mais problemas emocionais do que as crianças não institucionalizadas. No momento em que eclodem no Brasil e em várias partes do mundo conflitos quase que generalizados de violência urbana e, considerando que a cada momento são mais próximas as cenas de desrespeito à vida, como que em um retrocesso cadenciado e irreversível aos tempos da selvageria e da incivilidade, o presente trabalho, apesar de suas pequenas dimensões, indica um caminho para aprofundamento da discussão em torno do melhor ambiente para o crescimento e desenvolvimento pleno do ser humano. Estamos nos referindo à família, enquanto lugar de acolhimento e proteção, como a instituição privilegiada para um desenvolvimento saudável da criança.
É sabido que, em nosso meio, a rede social de apoio que asseguraria às famílias, e em especial às de baixa renda ou que estão abaixo da linha da pobreza, um suporte para melhor desenvolvimento das crianças ainda é muito frágil e de muito pouca visibilidade. Assim, ao olhar para o abandono das crianças por suas famílias, pode-se ver também implícito o abandono social dessas famílias. Portanto, o que foi verificado nas crianças institucionalizadas é uma problemática psicológica associada a problemas psicossociais multifacetados.
Entende-se que as políticas de segurança pública, saúde e educação deveriam ser desenvolvidas, fortalecendo o papel do núcleo familiar. Assim, estariam verdadeiramente contribuindo, em termos de prevenção primária, com o amplo desenvolvimento do ser humano. Por fim, vale registrar a necessidade da realização de mais estudos sobre o tema, considerando-se a sua importância no cenário social e na formulação de políticas públicas de segurança, saúde e educação.
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Recebido em 15/09/09
Revisto em 10/07/10
Aceito em 20/07/10
* Endereço para correspondência: Walquiria Fonseca Duarte Curso de Psicologia da Universidade de Santo Amaro, Rua da Matriz, 204, Santo Amaro, São Paulo-SP. CEP: 04746-000. Tel. 2141-8870. E-mail: wduarte@unisa.br.