Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
A mobilidade da família: Pesquisa em uma abordagem da Psicossociologia clínica
The family's mobility: Research in a psychosocial-clinic approach
Thiago Fernandes de Moraes I *; Henriette Tognetti Penha Morato II
I Facoltà di Psicologia - Università degli Studi di Firenze
II Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
RESUMO
Este trabalho pretende, por meio de uma abordagem psicossociológico-clínica, buscar um outro olhar clínico para estudar, conhecer e encontrar a família na pós-modernidade. Partiu-se de uma intervenção acadêmica dentro de uma comunidade (Le Piagge) nos subúrbios da cidade de Florença (Itália). Nesse território, de casas populares para cidadãos de baixa renda e com problemas sociais graves, foram realizadas entrevistas com moradores para conhecer e compreender seu modo de ser família. A fenomenologia existencial permite uma compreensão suplementar das relações entre as pessoas pelos diários de bordo e partindo de estudos histórico-sociológicos. Dando sentido a ser, diminui-se o sofrimento e a crise originados exatamente na falta de sentido. Dar sentido a ser então se torna o núcleo de uma clínica baseada na solicitude, ou seja, no acolhimento da experiência do outro.
Palavras-Chave: Família, Fenomenologia existencial, Psicossociologia clínica, Sentido, Narrativa, Itália.
ABSTRACT
This study intends to find an alternative clinical way, through a psychosocial-clinic approach, that allows knowing and understanding the family in the post modernity. An academic intervention took place in a community (Le Piagge) at the boundaries of the city of Florence (Italy). In such territory, constituted by popular houses for low income citizens, with serious social problems, interviews were realized with the tenants to know and comprehend their way to be a family. The existential phenomenology allows a supplemental comprehension of relationships between people, using board diaries, and beginning from historical-social studies. To give sense to be would soothe the suffering and the crisis originated exactly in the missing of meaning. So to give meaning to be become the center of a clinic based on the solicit attitude; accepting other's experiences.
Keywords: Family, Existential phenomenology, Psychosocial clinic, Sense, Narrative, Italy.
SER
Basta olhar ao nosso redor para perceber a pluralidade atual dos tipos de família, dentro de nossas casas, nas casas dos nossos vizinhos. De acordo com Zanatta (2002), o que estaria acontecendo seria um declínio do matrimônio, o fim da sua "época de ouro" e a difusão de uma multiplicidade de tipos de família.
Se, por volta de 50 anos atrás, o matrimônio, com as suas funções econômicas e procriativas, era o centro do conceito de ser família - representado pela família nuclear íntima - hoje se observaria um enfraquecimento desse ideal, do núcleo conjugal íntimo, e, ser família, significaria tantas outras coisas, nem sempre diretamente ligadas ao patrimônio ou à reprodução. A mesma autora enumera as famílias não formalizadas: hetero e homossexuais; as famílias com um só genitor; as recompostas e as unipessoais. Além destas, se podem observar outras modalidades de ser família, mais ou menos numerosas que, de qualquer maneira, não se baseiam na tradição matrimonial como, por exemplo, as comunidades (Olivares, 2003). Seria ingênuo tentar explicar o porquê de escolhas desse tipo, tentando generalizar as motivações que levam a diferentes constituições da família. Como evidenciam Cabral e Morato (2003), pela fenomenologia existencial, há uma interdependência entre o homem e o mundo. Sendo condição ontológica do homem a coexistência no mundo com outros, tal compreensão permite a ele ser construtor do sentido mesmo de ser. Embora, ao nascer, o ser humano já se encontre lançado no mundo, enredando-se numa trama configurada em um cenário específico, é sua tarefa dar uma destinação à sua existência. Apesar de constituir-se por heranças, elas não tornam o homem prisioneiro de uma fatalidade. Seu modo de ser é ir-sendo pelo poder ser, ou seja, pleno de possibilidades, assumidas ou não, ao longo desse existir. Desse modo, os nexos dados à existência são de responsabilidade do próprio homem, por também estar inserido em uma teia de relações no mundo-com-outros.
Se tais circunstâncias representassem uma mudança funcional e estrutural da família, poder- -se-ia falar em crise do seu modelo ou em uma revolução da presente organização social humana. Ao invés disso, as atuais condições nos induzem a preferir, para definir o fenômeno, o termo mobilidade, e não, mudança. Isso permite dar espaço a diferentes articulações, já que a crise, que é necessária à mudança, não é legitimada devido à ausência de uma caracterização espaço-temporal.
Nanetti (1995) usa diferentes metáforas para estudar a mudança em si. Associando a mudança a uma viagem, o autor declama que "não se pode prosseguir deixando tudo para trás" (Nanetti, 1995, p. 7). Aqui cabe o questionamento: mudar corresponde ao que se entende por crise?
Se as atuais mudanças da família fossem inéditas, ou seja, se nunca na história tal recaracterização da organização família fosse dada, o termo crise, representando o esfacelamento completo da estrutura e a falência dos seus "instrumentos", seria adequado para descrever este panorama. Mas se evidencia na parte histórico-sociológica desta pesquisa que tais mudanças sempre foram típicas da família e são, na verdade, um dos seus principais "instrumentos". Seria, então, mais adequado falar de mobilidade da organização (termo que, ao contrário de mudança, não se refere à crise), uma vez que não existiriam "quebras" definitivas nesta, mas ajustamentos, tentativas e experiências de reconfiguração mais coerentes com a realidade intra e extra-familiar.
Em uma entrevista a Giancarlo Borsetti (2005) em revista on-line de cultura e atualidade, o sociólogo alemão Ulrich Beck explica o que existiria em comum entre a família da primeira modernidade, nuclear, e a contemporânea, plural na sua composição: todas as duas seriam ou teriam sido expressões da "unidade fundamental do social". Beck sugere e define assim o núcleo do "ser família", a funcionalidade, dizendo que um casal se torna tal "unidade", quando compra junto uma máquina de lavar roupas, ou seja, quando a organização começa a funcionar junta e a dar respostas às situações circundantes.
De fato, nenhum outro exemplo como a família representa bem ambos os conceitos de transformação e tradição que, mesmo opostos, não podem se separar para não deixar de existirem. "Transformação" porque a família é viva, histórica, atenta e influenciada pelo mundo circundante, e "tradição" porque, mesmo mudando, é sempre família, ou seja, mantém sempre a sua característica de "unidade fundamental do social". "A mudança não é uma viagem sem retorno, uma saída sem retorno, mas um proceder entre estável e aleatório, continuidade e descontinuidade, para reconquistar, através de novos conhecimentos, a si mesmo" (Nanetti, 1995, p. 15).
Barus-Michel (2004) afirma que as mudanças não constituiriam um bem em si, já que existiriam desafios em todo o percurso da suposta mudança e alguém pagaria o preço. Usando, ao invés, o termo mobilidade, se daria crédito ao potencial social da organização – a família, neste caso – que questiona a própria posição, rearticulando as próprias necessidades e objetivos, ajustando-se, assim, na maneira mais adequada ao contexto (que cria e do qual faz parte).
Barus-Michel identifica nas perguntas "O que tenho?", "O que está acontecendo comigo?" e "O que isso significa?" (2004, p. 68) a expressão do sofrimento humano devido à falta de sentido. Tal falta de sentido e tais perguntas poderiam ser facilmente identificáveis com momentos assim chamados de "crise". Usando a possibilidade da família de se ajustar, o termo "crise" perderia o seu valor, a carga demonizante. Assim a nova terminologia abriria caminho a um diálogo com as possibilidades da família como organização viva, não estagnada na crise, ou seja, a família como organização/organismo possivelmente flexível e com mobilidade para se acomodar de acordo com as exigências do momento, suas e do contexto no qual está inserida.
Enfim, pergunta-se: pode-se afirmar que a notável "mudança" da estrutura familiar, da família conjugal-íntima, nuclear, para outras formas mais ou menos numerosas, representa um indício de crise da família? As transformações sofridas ou atuadas de cada família seriam, neste ponto de vista, ajustamentos a realidades menos estruturadas ou menos baseadas nas tradições e mais nas escolhas individuais. Não se pode, então, dizer que a família está em crise; o que se da é a mobilidade da família centrada no matrimônio, casal e filhos, para outros modos de apresentação do ser família, funcional ao contexto social contemporâneo.
Fazendo referência à ótica da Psicologia Social Clínica, segundo a qual o objeto de estudo é o "sujeito social" e não cada pessoa separadamente, torna-se essencial a compreensão daquilo que existe ao redor da família; a compreensão do "social" do ponto de vista do sujeito, para poder estudar a família. A "crise da família" não seria considerada como urgência a resolver, mas como a "ponta de um iceberg", ou seja, uma emergência; não um sintoma a ser eliminado, mas com o qual se comunicar. Assim sendo, o estudo do que poderia ser essa/s crise/s, este demandar ajustamentos, usufruindo das possibilidades de mobilidade da família, se tornaria central na compreensão da própria organização.
O psicólogo moderno confia no progresso cientifico, e considera-se parte de um grande time que luta pela conquista da verdade. O psicólogo pós-moderno não acredita mais nos "milagres" da sua ciência: não só contextualiza a pesquisa psicológica, mas se contextualiza como pesquisador e indivíduo, reconhece os limites e a contingência do seu operar, aqui e agora (Mecacci, 1999, p. 62).
A Psicologia Social Clínica, livrando a clínica da impostação moderna médico-científica, descobre novamente o significado etimológico da própria palavra: "clínica" que viria do francês "clinique", deriva do latim "clinice", que, por sua vez, deriva do grego "kliniké", referente a "kline", ou seja "cama". Nessa concepção, o clínico não é aquele que "cura", mas aquele que "se aproxima da cama", que acompanha e "acolhe". Então, não existira mais um detentor de conhecimentos que cura o outro, necessitado, com as suas técnicas, mas seriam duas pessoas, uma das quais está na experiência "cama", e a outra que estaria ao seu lado.
Com um tal enquadramento da psicossociologia clínica, e da clínica em si, delineia-se uma interessante abordagem à família e a sua crise: "a análise é uma espécie de acompanhamento em um esforço de acolher o sentido existente o que deveria existir na prática, que se dá 'na situação'" (Barus-Michel, 2004, p. 195).
Tal tentativa de "(a)colher o sentido" leva a uma integração de diferentes níveis: interpessoais, sócio-relacionais, funcionais-organizativos, políticos, históricos, todos facilmente encontrados também na instituição família. A própria autora em colaboração com outros pesquisadores, em um outro trabalho, analisa a crise através da psicossociologia clínica:
A crise nos parece um objeto pertinente à Psicologia Social Clínica. Percebida a nível coletivo, ela afeta os indivíduos e seus destinos e são, esses indivíduos, que se esforçam para compreender e encontrar modos de resolução. Em um primeiro contato é difícil dizer se a crise que se desenvolve em um âmbito social dentro dos grupos, das organizações ou das instituições é conseqüência de uma dinâmica coletiva ou se o coletivo não é nada senão um teatro onde se atua o individual e o relacional (Barus-Michel, Giust-Desprairies e Ridel, 1996, p.21).
Parece, então, que uma outra compreensão da atual situação da organização família é possível com um trabalho social-clínico através das demandas de ajustamento da instituição família, ou seja, da expressão da crise da família nuclear matrimonial. A atual configuração do "social", na qual é inserida a família, é marcada principalmente pela individualização. Um estudo psicossociológico clínico não poderia se dar ignorando o social, composto pelos sujeitos sociais e onde estes interagem. É evidente que tal tendência à individualização sempre esteve presente em outros momentos históricos, mas com outra importância e características. Enquanto antes somente a uma elite burguesa este direito era "concedido", hoje, com a extensão dos direitos educativos, todos os outros níveis sociais aspiram a essa condição. O fenômeno tem dimensões muito mais amplas e compreende praticamente todos os indivíduos: todos buscam a própria individualidade mas, para isso, são necessárias independência e "liberdade" econômica e, assim, a individualização alimenta uma contemporaneidade baseada na produção, eficácia e consumo.
Se as instituições se baseavam na rigidez das tradições, cultura e religião até a primeira modernidade, por volta do período inicial da industrialização até os dias atuais as pessoas são mais induzidas a se afirmar como indivíduos, únicos e independentes. O indivíduo não mais seria enquadrado rigidamente nas instituições com certezas e regras próprias, nem seria inserido em um esquema predeterminado, com bases seguras; pelo contrário, se "pede" ao indivíduo para viver a própria vida singularmente, fora da norma.
A falta de solidez das tradições institucionais pode levar, por conseqüência, à falta de sentido da realidade. A organização família, na qualidade de instituição, tinha ao que se referir, seja com regras de comportamento, individuais e coletivos, seja fornecendo sentido e papéis a cada ator social. O "espetáculo" era muito rígido, o cenário predeterminado pela cultura, pela tradição e pela economia e, aos atores sociais cabia somente a interpretação de papéis muito bem definidos.
Na contemporaneidade o "espetáculo" é praticamente privado de estrutura, como uma improvisação teatral, e os atores têm que interpretar papéis pouco definidos dentro de cenários também pouco definidos. O sentido de tal interpretação deve ser quase completamente construído e, assim, a interpretação dos papéis ficaria praticamente inconsistente, inconstante e sujeita à crise.
Se o contexto social, ou seja, o "espaço", no qual se colocam as instituições, é fundamental para uma compreensão de seu existir, de igual importância seria a característica temporal. Hoje, para melhor compreender a família nuclear e outros modelos de família, seria útil um exame atento das características da sociedade contemporânea e do seu momento histórico. O aspecto mais saliente, em tal sentido, é representado pela tendência ao individualismo. Para Beck e Beck-Gernsheim (1996), os processos de individualização têm sempre uma dupla face. Por um lado, há possibilidade da maior liberdade, ou seja, um alargamento do âmbito de vida, através de aquisição de espaços de ação e possibilidade de escolha. Por outro, novos riscos, conflitos e fraturas vão surgindo no caminhar do existir. Desse modo, com tal duplicidade dos processos de emancipação, uma dialética se apresenta entre as promessas e o inverso da liberdade, particularmente no campo da relação entre os sexos. Como observado no matrimônio, quando privado das restrições, dos controles, das constrições da sociedade pré-moderna, a convivência do casal se torna uma comunidade, escolhida livremente, de dois indivíduos. Isso, no entanto, não garante que, no espaço interno da relação a dois, não surjam contemporaneamente irritações, lutas, conflitos novos.
Nessa ótica espaço-temporal, a crise surgiria do sofrimento causado, da insustentável falta de sentido, de estrutura e de referência a qual cada sujeito social tem que responder em uma realidade não baseada na tradição, como poderia ter sido aquela pré-moderna, mas baseada nas escolhas individuais. Ao invés de um mundo pré-estabelecido, se pede aos sujeitos sociais para escolher e construir o mundo, e tal liberdade de escolha é acompanhada de riscos e medo. A percepção destes riscos e medo pode gerar desconforto, mal estar, sofrimento e, enfim, crise. "Uma crise é um questionar profundo que põe em discussão a solidez inerente à coesão e à continuação da unidade considerada, que pode ser reestabelecida somente através uma dinâmica de escolha decisivas" (Barus-Michel et al., 1996, p.25).
Ainda, Barus-Michel et al. (1996, p. 37) evidenciam que as características de uma crise são opostas àquelas de um equilíbrio contínuo. Alternam-se
sentimento de calma e segurança, plenitude de sentimentos de identidade, confiança no amanhã junto à perenidade do equilíbrio presente, a elaboração e a assimilação simbólica dos elementos novos dentro das situações, a capacidade de fazer projetos com uma visão clara dos elementos em jogo, a capacidade de diferenciação, de negociação dos conflitos em um espírito de abertura que não prejudica os sentimentos de segurança e identidade, nem do grupo, nem do indivíduo.
A análise psicossociológica tentaria acompanhar esse período definido "de crise", no qual todas essas características são ausentes ou vacilantes, e acolhe que, sem a estabilidade fornecida por este conjunto de qualidades, a família nuclear está em crise. É licito indagar o porquê da crise em si, ou seja, por que aspectos tão importantes como identidade e papéis são postos em discussão pelos próprios sujeitos sociais.
Beck e Beck-Gernsheim (1996) consideram fundamental um aprofundamento do problema que surge, quando uma instituição extremamente estruturada, como a família moderna, tradicionalmente fundada em um ideal romântico de amor eterno e edificada sobre regras religiosas, se confronta com uma cultura de consumo. No contexto moderno inicial, as famílias se organizavam, porque nisso havia um sentido: o "modelo" ao qual cada pessoa se deveria adequar para viver. Os papéis bem estabelecidos (ao homem, o trabalho produtivo e a manutenção da família, e à mulher, a maternidade e o trabalho doméstico) eram coerentes com a realidade social da época.
Com a industrialização e, em seguida, a pós-modernidade, estas certezas começam a vacilar: As normas dominantes se tornam pálidas, perdem sua força de delinear os comportamentos. O que no passado se dava silenciosamente, agora deve ser falado, fundamentado, tratado, concordado e, exatamente por essa razão, deve ser negado. Tudo se torna "discursivo" (Beck e Beck-Gernsheim, 1996, p. 17).
No contexto atual, falta a estabilidade, que existia no passado, e a individualização confere a cada sujeito a liberdade de organizar o mundo conforme as próprias exigências. Essa liberdade teve origens no mercado de trabalho como fruto da interiorização das novas regras sociais, não mais baseadas nas tradições, mas no consumo.
Se antes a família girava em torno do homem, núcleo do sustento da família, inserido no mercado de produção, hoje as mulheres também querem produzir e ser parte ativa da família. A tensão entre dois núcleos, homem e mulher, com exigências análogas, começa a ser evidenciado: os dois querem trabalhar, os dois querem o direito de opinar sobre o destino da família, os dois sonham e projetam como indivíduos únicos, com aspirações individuais diferentes que tentam colocar como objetivos - quase sempre não coincidentes - de vida comum.
Além da "guerra dos sexos", outra dificuldade é a conciliação das exigências de uma vida familiar com aquelas do mercado de trabalho:
A imagem ideal da conduta de vida, conforme o mercado de trabalho, é ele ou ela totalmente móvel, que sem nenhuma atenção aos laços e relações sociais da sua existência e identidade, faz de si mesmo uma força-trabalho fundível, flexível, consciente da prestação e da concorrência, veste roupas de grife, voa de lá pra cá e muda de casa, como exigem a demanda e quem a gera no mercado de trabalho (Beck e Beck-Gernsheim, 1996, p. 16).
Seria exigida, então, mobilidade dos sujeitos sociais, e este paradoxo é um possível núcleo de uma crise da instituição família. Esta, que nasce como instituição rígida em um contexto rígido, agora deve se confrontar com a evolução do contexto originário, extremamente flexível. Assim, a instituição família, compreendida como a "unidade fundamental do social", deve responder a tal mobilidade histórica da organização. Não respondendo às exigências da organização, experimenta perda de sentido, do "porque existir", que nos sujeitos sociais hoje se exprime como sofrimento, mal estar e abandono.
É nessa perspectiva que a compreensão da crise da família pode conferir um caráter clínico à análise psicossociológica. Segundo Andrade e Morato (2004), a prática psicológica inclina-se para acolher o sofrimento humano como perda de sentido, quando comprometida com atenção e cuidado, deve conduzir o sujeito na direção do resgate de sentido e ao bem-estar.
Considerando a crise como falta de sentido na contemporaneidade, levando angústia às instituições através dos sujeitos sociais que a constituem, a mobilidade de cada sujeito poderia ser compreendida como uma nova busca desse sentido, parcialmente ou completamente perdido, na tentativa de conter a angústia da falta de sentido originária. De fato, no processo de (re)significação, a mobilidade, dos sujeitos sociais e do social, é fundamental. As escolhas individuais não levam a seguranças totais, mas a outras possibilidades de escolha. Como discute Beck (2000), a liberdade de escolha leva a uma fragilização do tecido social, que seria (re)construído em continuação. Seria exatamente por isso, ou seja, pela contínua busca de conter a angústia gerada pela falta de sentido da contemporaneidade, que hoje instituições estáveis e estáticas dão lugar a novas formas de instituir- -se (como família) capazes de se ajustar continuamente.
Nesta ótica, então, um estudo histórico e sociológico da família permite reconhecer os ajustamentos precedentes feitos ou sofridos por tal organização, para melhor compreender os seus potenciais de mobilidade (Barbagli 1996; Beck 2000; Rosenberg, 1979). Assim, enxergar-se-ia a família não como um modelo de organização rígido e perene, quase "petrificado", mas como uma realidade dinâmica inserida em um contexto que passa por evoluções e transformações pelo simples fato de "ser", "existir". Isso permitiria, inclusive, um pensamento dialético sobre a "organização família" através de uma abordagem fenomenológica existencial, fornecendo uma ulterior possibilidade de compreensão da família pós-moderna. "Da mesma maneira que o indivíduo é um produto do próprio tempo, a família também é influenciada pelo seu pertencer histórico e pelas condições sociais e econômicas do período em que se insere" (Foner, 1986, p.219).
Pelas modalidades históricas e sociológicas de ajustamento da família pode-se compreender, utilizando-se narrativas familiares atuais, as modalidades contemporâneas através das quais atua essa mobilidade nata e característica.
NO-MUNDO-COM-OUTROS
A fim de conhecer o modo com o qual cada sujeito social vive o seu ser família, ou como uma realidade interage com o ser família das pessoas que a compõem, ou, ainda, os modos do ajustar-se da família se utiliza, como instrumento metodológico, os Diários de Bordo. Tal instrumento é inspirado na Filosofia fenomenológica existencial, que considera a experiência de casa sujeito social como a modalidade através da qual o sentido do seu existir se articula e se constrói.
Partindo da proposta de Aun (2005, p. 20), diários são depoimentos rememorados, ou seja, marcas da memória, já que escrever é comunicar e/ou narrar. Escrito pelo próprio punho de protagonista disposto a compartilhar uma experiência, um Diário de Bordo é relato e testemunho. Comunicando algo vivido e sentido, um diário é como um tecer de muitas estórias interligadas, que também são tecidas por entre outras narrativas. Assim, Diários de Bordo não são apenas restituições da historicidade de uma pesquisa e/ou trabalho, são narrações de biografias da experiência de profissionais: trata-se da perspectiva de quem comunica como ocorreu o revelar-se do outro a um profissional/ pesquisador. Embora singular, tal biografia contempla as diversas outras que a ela se entrelaçaram. É desse modo que tal forma de registro transpassa um simples relatório descritivo, pois relata a experiência vivida pelo narrador, desvelando o modo de ser humano numa temporalidade não cronológica. Desse modo, escrever diários são momentos de criação de sentido, testemunhando-se como registro plural e único. É nessa direção que a prática psicológica clínica pode remeter-se à narrativa de sujeitos sociais como registro dessa experiência, plural, única, extemporânea a posterior.
Recorrendo a Benjamin (1985), Morato e Schmidt (1999, p. 127) acentuam a força da narrativa como fonte da experiência vivida. Tal legitimidade garante a cada narrador, e aos demais, a autoridade de, como portador do vivido, autorizar-se a falar. Desse modo, a palavra circula "concebendo a cada um e a todos o direito de ouvir, de falar e protagonizar o vivido e sua reflexão sobre ele."
Se a tradição científica moderna (Mecacci, 1999) confina o mundo em uma única interpretação, restringindo os sentidos, limitando as possibilidades do pensar, do indagar, indicando uma verdade única e absoluta (Aun, 2005), a fenomenologia, segundo Figueiredo (1995), desvela o olhar plural, que toca e é tocado, simultaneamente vê e é visto por todos iguais/diferentes: reflexividade plural-única, expondo toda singularidade como sujeito e captando-se pela diversidade da alteridade. Nesse sentido, partindo do pensamento de Heiddeger e de acordo com a diferenciação feita por Mecacci, se poderia afirmar que a fenomenologia existencial faz parte do modo pós-moderno de pensar/ pesquisar em Psicologia. Isto porque ao
recorrer a Diários de Bordo como vestígios pelos quais se percorre uma investigação, recuperam-se modos constituintes de subjetivação singularizada ... Denunciador de angústias e momentos de desamparo na e da prática, o diário relata sentimentos e dúvidas provocados pela arriscada experiência do encontro (Aun, 2005, p. 23).
Seguir-se-á a orientação metodológica da analítica do sentido, método elaborado por Critelli (1996), partindo da fenomenologia existencial de Heidegger e com referências ao pensamento de Hannah Arendt. Trata-se de uma articulação metodológica possível, quando se opta por uma abordagem fenomenológica.
A narrativa, que contém a pluralidade dos possíveis modos de ser, não pode não conter aquele modo primordial que abre caminho a todos os outros, ser-no-mundo-com-outros, ou seja, ser em coexistência contextualizada; a "família", então, a primeira e, talvez, a mais importante referência de no-mundo-com-outros, está presente em todas as narrativas, se não através dos significados, através do sentido daquilo que está sendo narrado. Para Cabral e Morato (2003), como ação, forma e sentido, a narrativa pode ser acessada em diferentes atos, bem como por meio de diversos conteúdos: depoimentos, relatos e/ou histórias de vida. São nada mais que atos de uma narrativa que não se deixam aprisionar por estes conteúdos, mas sim, podem ser revelados por eles.
É possível, então, recolher/acolher fragmentos de sentido de algumas experiências de ser família, ou seja, declinações de suas realidades. Segundo Cabral e Morato (2003, p. 6),
A compreensão de que o sentido inexiste enquanto totalidade ideal, sendo necessário produzi-lo continuamente, remete a uma angústia existencial, aguçada por se saber o único capaz de dar algum sentido ao ser. Dar destinação ao ser, tornando-se propriamente o que se é, constitui tarefa intransferível. Se ao homem cabe essa construção do sentido da existência, claro está que também o mundo é fruto dessa construção. O mundo não pode ser compreendido como uma realidade objetiva, separada do homem, ou seja, como mero objeto, lançado diante do sujeito para ser conhecido por este.
Tal posicionamento abre possibilidades para a compreensão da dinâmica da vida neste mundo e da existência, que na particularidade do homem se refere a um cuidar de ser: existe cuidando de existir. Dessa forma, diante da diversidade e da mutabilidade do mundo e da vida, não há como prender-se a concepções deterministas ou redutoras para poder explicar os fenômenos. É por meio dessa compreensão fenomenológica existencial que Critelli (1996) propõe a metodologia analítica do sentido e não dos conteúdos ou significados:
Implica em inclinar-se ao fenômeno, permitindo-se marcar pelo estranhamento (interrogação) que ele pro-voca, para que desse momento/situação entre fenômeno e pesquisador brote uma possibilidade de revelação como questão. Revelado "o que merece ser interrogado", pro-move-se outra aproximação à situação na qual o fenômeno desvelou- -se como franja, a fim de pro-vocar um testemunho e uma vericização por um modo de pensar a partir da compreensão que esse testemunho demanda (Cabral e Morato, 2003, p. 17).
A pesquisa assume uma veste clínica, enquanto consente acolher a elaboração/resgate de sentido dos sujeitos sociais a fim de um maior e mais abrangente bem-estar (benessere). "Sujeito"que "pesquisador" ou "você" e "eu" cessam de existir, tornando-se o "nós" da psicossociologia clínica (Barus-Michel, 2004): "com-os-outros". Será por este "nós" que novas possibilidades de sentido de ser poderão surgir, possibilidades de redescobrir, recuperar e inventar sentido, tanto da parte do pesquisador, em si e no outro, como vice-versa.
Nessa abordagem, foi feita uma pesquisa para a Università degli Studi di Firenze, como tese de laurea. Com a colaboração da professora Henriette Tognetti Penha Morato, do Instituto de Psicologia da USP, o trabalho foi desenvolvido no Setor 5 da cidade de Florença, conhecido como Le Piagge. O contato inicial foi com Dom Alessandro Santori, figura de destaque e fundador da comunidade de base muito importante e conhecida na região. Foi por meio dele que se começou a conhecer a realidade de Le Piagge e as pessoas que ali vivem.
No Le Piagge, existiriam infinitos problemas não só de tipo urbanístico, mas principalmente de tipo sócio-econômico. Segundo Manuelli (2002-2003), não existindo uma praça, nessa comunidade falta o espaço de encontro dos cidadãos por excelência, o lugar simbólico para o próprio pertencer no ambiente físico como entre moradores. Não há um lugar construído para poder ver e encontrar outras pessoas e onde se possa compartilhar os próprios recursos. Assim, um elemento muito problemático no nível urbanístico-social do território do Le Piagge é a concentração nas casas populares. Inicialmente, a habitação nessa comunidade foi operada pela administração pública, porque existia elevada quantidade de famílias com problemas muito graves. Não havendo nesse território infra- -estruturas aptas a sustentar tal situação de dificuldade social, criou-se uma espécie de gueto urbano, no qual foi sendo permitida a inserção de somente algumas faixas sociais, de famílias com específicas faixas de renda, mas não de outras.
De fato, na região de Le Piagge, encontram-se várias casas populares destinadas a famílias problemáticas, com os mais variados tipos de marginalidade. O fato de ser uma zona periférica da cidade amplifica as problemáticas ligadas à família e aos seus papéis, internos e externos. As figuras tradicionais da "mulher dona-de-casa" e do "homem pai-trabalhador-ausente" seriam aquelas mais difusas. Por outro lado, aos idosos a região não oferece nenhum conforto à solidão e à falta de recursos, muito pelo contrário, e às crianças e aos adolescentes pesaria a "marginalidade" do lugar, a marginalização que surge no conflito com a realidade urbana e rica de Florença.
Adotando os Diários de Bordo em tal realidade, podem ser desveladas várias manifestações de ser família, pelo contato com as mais diferentes pessoas e realidades. Um exemplo seria o de Sandra1, ex-tóxico-dependente, ex-alcoólatra, mãe solteira de três filhos, com cerca de 40 anos. Segue um fragmento do diário de bordo relativo ao compreendido de seu depoimento:
No nascimento da filha ela teria recomeçado com a heroína ... Sandra me contou que tinha encontrado o homem que foi a sua "destruição total e definitiva", e pai do seu terceiro filho ... Sandra contou também que o seu companheiro lhe batia muito, batia na sua sogra também e maltratava a sua filha e a própria avó na cadeira de rodas: "Que família do caralho era aquela!!!" ... Sandra girou sem rumo pela cidade com a filha, dormindo onde dava. O importante era não ficar mais na casa daquele homem .. através de uma amiga, Sandra conheceu o Alessandro Santoro do centro social do Le Piagge ... Todos os três, Sandra, companheiro e filha, foram viver dentro do centro social, onde Sandra ficou grávida de novo ... Sandra diz que conhece muito bem o centro social e as pessoas que o freqüentam hoje são a sua família, juntas a Alessandro (Diário de Bordo do pesquisador sobre o depoimento de Sandra).
Pode-se afirmar que a família para Sandra não são os vínculos de sangue, mas os vínculos de responsabilidade afetiva, de mútua ajuda atenciosa, presente. Para Sandra ser mãe não foi sempre possível, mas hoje é mãe, à medida que poder ser para quem "é-no-mundo-com-ela". Ser mãe, para essa mulher, que tem cerca de 40 anos, é cuidar, não importa de quem, mesmo que fazendo mal a si mesma, arriscando sua estabilidade. É efetivamente um modo de ser em coexistência.
Com ela não se pode falar de família de maneira numérica. Sandra é mãe solteira de três filhos, mas mora dividindo a casa, pois faz parte de uma comunidade. Gostaria de ter vivido numa comunidade hippie, entre outras coisas. Porém, todas as noções de estudiosos não transmitem o sentido de família que Sandra contempla na contemporaneidade. Para Sandra, a família é a instituição clínica primordial: a mãe que se inclina à cama do filho. A família é amizade em coexistência, na qual defeitos e qualidades são acolhidos como constituintes de cada membro desta família, personagens de uma narrativa viva. A respeito deste modo de ser Heidegger (s/d, p. 25) diz:
A serenidade em relação às coisas e a abertura ao segredo são inseparáveis. Consentem a possibilidade de ser no mundo de um modo completamente diferente. Prometem um novo solo sobre o qual no podemos manter e subsistir (stehen und bestehen), e sem perigo, no seio do mundo técnico. ... A serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério nos dão a perspectiva de um novo enraizamento. Que um dia poderá conseguir a relembrar, de uma nova maneira, o antigo enraizamento, que agora desaparece rapidamente.
Articulando ainda o pensamento de Heidegger sobre este modo de ser humano em serenidade, Almeida (1999, p. 98) evidencia a atitude de solicitude. Diz: "Entre os homens não existe uma relação de uso, mas solicitude, ou seja, "buscar os outros" ... implica que o eu não se ocupe do outro, mas busque pelo outro."
Outro exemplo significativo dos diários de bordo "tecidos" no Le Piagge poderiam ser alguns trechos do depoimento de Elena, sem-teto e namorada de um presidiário, 38 anos.
Como será que era essa família pra fazer uma menina de dez anos fugir de casa e ir morar na rua? ... Eu pensava que ela tivesse uns 50 anos...aparentando mais ... 'Eu tava completamente fora de mim. Eu queria matar ela, e teria matado... eu ia jogar ela no ácido, mas não deixaram' ... Transferiram ele para outra cadeia, no norte da Itália. Sem avisos, sem perguntas, sem esperanças. Elena chora ... difícil escrever sobre Elena em terceira pessoa... Como assim? ... 'Não suporto não saber como ele esta!' ... Ela me contou que fizeram uma vaquinha, e que sábado que vem vai encontrar o seu namorado ... Estou preocupado com ela ... Parece que ela tirou a idéia de ir embora da cabeça. Um bem? Um mal? E tem diferença? (Diário de Bordo do pesquisador sobre o depoimento de Elena).
O namorado era tudo para Elena, tudo o que tem, a sua referência. Não é apenas um amigo seu, como algumas outras pessoas do Le Piagge. E' muito mais: é o "no-mundo-com-outros" através do qual o ser de Elena pode se apresentar. Sem ele, Elena entrava em crise, ficando perdida, parada, sem idéias sobre o que fazer, para onde ir, sem poder olhar para trás e reconhecer alternativas para viver só. Mas, olhando mais atentamente à situação real, Elena estava inserida na comunidade do Le Piagge: a comunidade era por ela compreendida como co-família, ou seja, "no-mundo-com-outros", por cuidar de Elena, sabendo e reconhecendo que Elena precisa do seu amado para dar sentido ao ser. Assim, é a comunidade que, clinicamente, cuida do modo de cuidar de ser de Elena: cuida de ser, enquanto busca um sentido ao ser; é a comunidade que cuida desse cuidado.
Quando Elena decidiu não ir embora para literalmente acampar fora da cadeia, deixando a mínima, mas vital, estabilidade, que havia adquirido no Le Piagge (morava em um trailer que lhe deram de presente, tinha amigos, o que comer), ela se deu conta das suas novas raízes na comunidade: cuidando do seu modo de cuidar de si, ou seja, assumindo a responsabilidade própria de sentido a ser. Elena, indo e voltando, entrevê um outro ser família, a ponto de, durante essa experiência de mobilidade, participar de discussões comunitárias, modo pelo qual Elena se apropria de um espaço pessoal em relação a si mesma no espaço público. Por causa da solicitude que Elena encontrou nos membros da comunidade do Le Piagge, ela (re)descobriu um lugar de enraizamento, que lhe permitiu a mobilidade necessária para iniciar uma apropriação do sentido de si. Assim sendo, pode-se dizer que Elena resgatou uma família em si e para si mesma.
SER-NO-MUNDO-COM-OUTROS
Pela abordagem baseada na Psicologia Social Clínica, foi possível acompanhar as mobilidades da família com reflexões sobre o sentido da própria mobilidade e da família em si, buscando-se compreender tal mobilidade como condição de existência, ou seja, pela escuta psicológica, o sofrimento derivado da falta de sentido foi acolhido, permitindo abertura de possibilidades outras de compreensão desse modo outro de ser família. Afinal, no mundo contemporâneo, sujeitos que vivem um estilo de vida e de relações "não tradicionais" apresentam modos de referência não estáticos, mas sim experienciais e dinâmicos, possibilitando que o conceito de "crise" passe a significar algo totalmente diferente de modelos clássicos.
Nessa experiência de pesquisa-ação, observou-se como o importante é não tanto possuir uma família com papéis tradicionais, mas participar de relações "significativas" e profundas: é isso, na realidade, que facilita a atribuição de sentido às experiências familiares e de vida. Das narrativas recolhidas emerge que o elemento caracterizante das relações significativas não é o vínculo de sangue intrafamiliar ou a solidariedade no contexto alargado comunitário, mas a solicitude.
Por solicitude compreende-se "acolhimento", "atenção", "zelo", "preocupação", "cuidado", derivada do verbo latino "sollicitare" que significa "mover-se por inteiro", "incitar ao movimento", "preocupar- se em fazer mover". Desse modo, o modo de ser como solicitude refere-se a uma disposição humana dirigida ao outro, ou seja, ao "tender com atenção", próprios do ser clínico. A solicitude apresenta-se como atitude originária e fundante que possibilita ações paraa elaboração e busca ao sentido de ser.
Com a metodologia da analítica do sentido, foi possível aproximar-se de um modo psicossociológico- clínico de compreender as relações entre os sujeitos sociais. A intervenção clínica, ocorrida durante a narrativa oferecida como depoimento de história oral, possibilitou articulação e reapropriação de sentido de ser família, compreendido como um fenômeno próprio à condição humana e não como mera representação de ser. A ação acontecida entre narrador e ouvinte, própria do modo humano de "ser-com", como solicitude, (re)articula e abre possibilidades à busca de sentido: pesquisador e sujeitos compartilham a experiência do narrar(-se), reelaborando no compartilhar in tenere2.
Neste breve estudo, duas situações sobressaíram-se como possíveis para as articulações acima apresentadas: a primeira, com Sandra, que, enquanto narrava sua história, começou a fazer referências à comunidade do Le Piagge como sua nova família, pois todos a faziam sentir-se em casa e estar bem; e a segunda com Elena, que no decorrer dos encontros mudou de atitude para com a comunidade do Le Piagge, uma vez que tal comunidade, para ela, começava a adquirir características que lhe permitiam articular sentido de ser, ou seja, ela começou a perceber-se como ser família.
Assim sendo, e considerando a parte inicial deste estudo, se pode entrever que a crise da instituição família não põe em discussão o ser família mesmo, mas resulta do conflito entre a sociedade pós-moderna, dinâmica e móbil, e a instituição matrimonial romântica, rígida e estática. Por outro lado, foi então possível encontrar sentidos e leituras novas a experiências que talvez uma metodologia clínica tradicional não teria consentido.
Inspirando-se em uma abordagem clínica diferente da tradicional, foi possível recuperar o sentido etimológico da "clínica", conduzindo a uma metodologia também consonante a esse sentido. Assim, revelou-se a solicitude própria entre pesquisador-sujeito pela consideração às narrativas como registro de experiência, possibilitando sua elaboração e busca de sentido de ser família.
Ao corrente destas considerações, pergunta-se, se não seria oportuno investigar, em outros estudos, a possibilidade de estender a adoção desta abordagem clínica, baseada na solicitude junto ao outro, às várias práticas psicológicas, e não somente à família, como outra possibilidade aos métodos tradicionais de pesquisas.
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Recebido em 7/11/09
Revisto em 21/03/11
Aceito em 25/03/11
* Endereço para correspondência: Via Aretina, 259. Firenze, FI, Italia. CAP: 50136. E-mail: thiagobr@email.it; E-mail: hmorato@usp.br.
1 Os nomes das depoentes são todos fictícios para garantir sua privacidade.
2 te.ne.re: vt 1 segurar. la madre teneva il bambino per la mano / a mãe segurava o menino pela mão. 2 pegar. 3 manter, conservar. 4 ter, possuir. 5 administrar, governar. 6 fig considerar. 7 segurar-se. 8 manter-se. 9 conter-se. 10 considerar-se. 11. tenersi insieme ficar junto. 12. tieni! aqui está!