Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
DEPOIMENTO
O pensamento de Wilhelm Reich na academia1
Wilhelm Reich thinking in Academy in world
Paulo Albertini
Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Neste texto focalizarei, especificamente, as atividades a respeito do pensamento de Wilhelm Reich que, há cerca de três décadas, desenvolvo no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Tal intento talvez esteja vinculado ao fato de que, à medida que envelhecemos, cada vez mais tomamos gosto por trabalhos de memória. De outra parte, constato a presença de um acervo, sobretudo de dissertações e teses, ainda pouco conhecido e que, a meu ver, merece ser divulgado. Como forma de exposição, adotarei uma perspectiva histórica.
Ingressei no Instituto de Psicologia no final de 1978, há 32 anos, como Auxiliar de Ensino, portanto ainda sem o título de mestre, algo impensável para os padrões atuais, e em turno parcial, o que implicava em um contrato de doze horas semanais. No IP vinculei-me ao Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade (PSA), um espaço acadêmico marcado pela diversidade de enfoques teóricos e temáticos. Em termos de Pós-Graduação, o PSA é responsável pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano.
Nesse Departamento, mais especificamente em seu setor de Personalidade, então liderado pelo professor Norberto Abreu e Silva Neto, dentre outros conteúdos, passei a ministrar algumas aulas sobre o pensamento de Wilhelm Reich, atividade até então efetuada pelo professor Norberto Abreu. Logo de início, na trilha aprofundada imprimida por Norberto Abreu - um docente com formação e prática no campo reichiano e que teve um papel decisivo para o desenvolvimento das abordagens de Reich e Jung no IPUSP - assumi a postura de não usar manuais de personalidade para apresentar o enfoque reichiano. A tarefa que se impôs, então, consistiu em garimpar material (livros, artigos, fotos, entrevistas, etc.) de Reich e sobre Reich. No que diz respeito aos de Reich, dado o lamentável estado editorial presente - permeado, dentre outros fatores, pela dificuldade em identificar as datas das publicações originais, reedições e ampliações de textos e, também, pela freqüente má qualidade das traduções para o português - passei a adquirir livros importados e a me dedicar a um detalhado trabalho de procurar conferir as traduções utilizadas.
Em paralelo aos estudos voltados para a abordagem reichiana, sob a orientação do professor José Fernando Bitencourt Lomônaco, um dos pioneiros no Brasil sobre o tema Psicologia do Esporte, elaborei a dissertação de mestrado. A investigação versou sobre a influência da prática mental na aprendizagem de uma habilidade motora, o lance livre do basquetebol, e foi defendida em 1985 (Albertini, 1985). Tal dissertação abriu-me algumas portas na área da Psicologia do Esporte, mas o gosto em pesquisar e procurar entender o verdadeiro quebra-cabeça deixado por Reich falou mais alto.
No IP, em 1986, já mais adaptado à instituição depois de oito anos de trabalho, propus uma disciplina optativa, com a denominação de "A Psicanálise de Wilhelm Reich". O termo "psicanálise", presente no título, estava alicerçado na visão de que há uma efetiva produção de Reich vinculada ao referencial freudiano; contudo tal designação não foi aprovada e a disciplina acabou recebendo o nome de "A Psicologia de Wilhelm Reich".
Como se tratava da única disciplina inteiramente dedicada ao pensamento reichiano no curso de graduação em Psicologia do IP, procurei organizá-la de forma a propiciar, na medida do possível, uma visão de conjunto da obra de Reich. Com essa intenção, dada a variedade de temas presente, uma marca da orientação reichiana, para o deleite dos alunos e meu, em uma parte das aulas, contei sempre com a colaboração de professores convidados. Não tenho o número exato, apesar de tratar- -se de algo possível de ser verificado, pois anoto e arquivo o conteúdo de cada palestra, mas estimo que, desde 1989, ano em foi ministrada pela primeira vez, até 2010, cerca de 50 a 60 profissionais participaram dessa disciplina. Uma curiosidade histórica, a primeira palestra foi proferida por José Ângelo Gaiarsa, no dia 18 de agosto de 1989.
Nesse tempo, cursei uma formação sobre orgonoterapia, de cerca de dois anos, com o médico e analista Dimas Calegari, um autor que muito se dedicou à sistematização da abordagem terapêutica desenvolvida por Reich. Recordo, também, dentre outras atividades, ter vivenciado, no quintal de uma clínica situada no bairro de Perdizes, em São Paulo, um processo de experimentação de uma caixa de orgone. Lembro que, na época, participavam dessa clínica o Fábio Landa e o Homero Prado Lacreta Jr. Ainda nesse contexto de contato com tudo o que se relaciona a Reich, em 1983, por indicação de alguns alunos do IP, tive o prazer de visitar a casa de um ex-jogador de futebol profissional, Jérsio Passadore, que, de forma generosa, cedeu-me raríssimo material bibliográfico associado a Reich.
Contudo, a Universidade de São Paulo não é uma instituição limitada às atividades de ensino, a meu ver, o seu coração está vinculado à produção de conhecimento, em outras palavras, à pesquisa científica. Dessa forma, mais do que apresentar as idéias de Reich numa disciplina optativa, a tarefa que se impunha era a de estruturar um espaço de investigação dessas idéias.
Foi nesse contexto que, eu (na linguagem dos alunos, o "Paulo Reich"), assumi investigar a abordagem reichiana num projeto de doutorado. na época um autor raramente pesquisado no universo acadêmico. Isso ocorreu em 1986. Para isso, anos antes de terminar o mestrado, já havia iniciado uma busca que ultrapassou os limites da academia. Por exemplo, entrei em contato com a Associação Wilhelm Reich do Brasil, uma instituição com um grupo de pessoas profundamente dedicadas ao estudo e à pesquisa das idéias de Reich (como o Jovino Camargo Junior, o Ailton Bedani e o José Gustavo Sampaio Garcia). Nessa entidade, pude ter acesso a uma simples, mas valiosa biblioteca, dado o seu acervo de escritos de Reich.
Nessa empreitada, também sob a orientação do professor José Fernando Bitencourt Lomônaco, em 1992 defendi a tese denominada "Uma contribuição ao conhecimento das idéias de Reich: desenvolvimento histórico e formulações para a educação" (Albertini, 1992). Em síntese, esse estudo contém dados biográficos sobre as origens de Reich, uma exposição a respeito das formulações teóricas por ele desenvolvidas ainda no seio do movimento psicanalítico e uma proposta de organização das idéias reichianas voltadas para o campo da educação. Até onde sei, trata-se do primeiro doutorado no Brasil inteiramente dedicado ao estudo do pensamento de Reich.
Enquanto isso, no domínio do curso de graduação do IP, além da disciplina optativa "A Psicologia de Wilhelm Reich", eu dividia uma obrigatória, "Psicologia da Personalidade II", de duas horas semanais, com a professora Laura Villares de Freitas, uma docente especialista na Psicologia Analítica de Carl G. Jung. Essa disciplina obrigatória funcionava da seguinte forma: nos quatro meses que compõem um semestre letivo, eu apresentava Reich em dois meses e ela focalizava as idéias de Jung nos outros dois. Éramos, na verdade, e ainda somos, docentes responsáveis por um espaço institucional dedicado ao estudo de dois autores considerados dissidentes da psicanálise, Jung e Reich.
Já no ano de 1995, como resultado de uma iniciativa dos alunos, os responsáveis pela elaboração e o encaminhamento de um abaixo-assinado solicitando a ampliação do espaço dedicado a Jung e Reich nas disciplinas da graduação, o número de horas semanais em "Psicologia da Personalidade II" dobrou, indo de dois para quatro. Tal fato possibilitou que a professora Laura Villares e eu tivéssemos à disposição, cada um, duas horas semanais nos quatro meses de um semestre letivo. Um enorme avanço, sobretudo por se tratar de um curso obrigatório.
Por fim, em 2005, um longo processo de reestruturação curricular do curso de Psicologia do IP foi concluído. Nessa reestruturação, visando possibilitar uma maior autonomia de escolha aos alunos, o número de disciplinas obrigatórias foi bastante reduzido. No que diz respeito ao estudo da abordagem reichiana, no lugar de "Psicologia da Personalidade II", foi criada uma nova disciplina, uma optativa de duas horas semanais, "Psicologia da Personalidade: Reich e Freud". Sobre esta, cabe explicar que o título está vinculado ao fato de que uma parte das aulas é dedicada ao estudo das raízes reichianas presentes em escritos de Freud, um conteúdo, a meu ver, fundamental para quem está iniciando o contato com o pensamento de Reich.
Nessa trajetória de estruturação de um espaço de estudos sobre as idéias de Reich no Instituto de Psicologia da USP, o próximo degrau foi o de propor uma disciplina de Pós-Graduação para o Programa em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Se a disciplina proposta fosse aprovada e, depois, ministrada, eu então poderia pleitear o credenciamento para orientar trabalhos (de início apenas os de mestrado e, após a defesa da dissertação de um orientando, também os de doutorado), nesse programa de Pós-Graduação. Tendo percorrido os caminhos de avaliação necessários, em 1996 ofereci e ministrei pela primeira vez a disciplina Reich: raízes do pensamento em Freud e idéias para a educação. Com essa etapa cumprida, pude receber os primeiros orientandos, dentre eles alguns interessados em pesquisar o referencial reichiano. Passaremos a focalizar esses trabalhos, contudo, antes de apresentá-los, cabe inserir algumas pontuações.
No que diz respeito aos estudos sobre a abordagem reichiana, seguindo a linha iniciada na minha pesquisa de doutorado, o objetivo, em síntese, tem sido o de procurar contribuir para o esclarecimento e a problematização do sistema teórico construído por Reich. Busco alcançar esse objetivo fundado no entendimento de que Reich, a meu ver um autor extremamente fértil, deixou uma obra que merece ser devidamente olhada e submetida a crivo científico. Porém, não se trata de uma postura de adesão a um referencial teórico, o que, até por característica de personalidade, não conseguiria adotar; mas sim uma postura de pesquisador, alguém que, no campo do conhecimento científico, se dedica a investigar um objeto de estudo.
Ao procurar submeter a produção reichiana à avaliação científica, tirando-a dos guetos protetores, mas, ao mesmo tempo, isolacionistas, vale explicitar que, na montagem das bancas de defesa, tenho buscado compatibilizar o número de estudiosos vinculados ao campo reichiano, com o de pesquisadores pouco afeitos a esse referencial, mas com conhecimentos nos temas focalizados. Assim, cientistas como as mais diversas especialidades, dada a amplitude de assuntos estudados por Reich, têm participado das bancas.
Agora, entrando definitivamente no universo dos trabalhos de orientandos que focalizaram algum aspecto do pensamento reichiano, passarei a tecer um breve relato a respeito de cada dissertação ou tese defendida2. Alerto que não tenho a pretensão de elaborar rigorosos resumos científicos, estes já constam nos estudos, mas sim escrever recortes, alguns feitos de memória, a respeito de cada pesquisa. As defesas começaram no ano de 2001, inicialmente com a dissertação de João Rodrigo Oliveira e Silva, que realizou o estudo intitulado "O Desenvolvimento da noção de caráter no pensamento de Reich" (Silva, 2001). Depois, ainda em 2001, com a pesquisa de mestrado de Simone Aparecida Ramalho, denominada "Psicologia de massa do fascismo: Reich e o desenvolvimento do pensamento crítico" (Ramalho, 2001).
Em sua dissertação de mestrado João Rodrigo investigou um conceito central da teoria reichiana: o caráter. Nessa pesquisa, de início, ele efetuou um acurado levantamento a respeito dos primórdios da noção de caráter na chamada Caracterologia - uma tradição de escritos que remonta a uma produção filosófica iniciada entre os séculos VI e V a.C. Depois passou a focalizar os usos desse termo na obra freudiana e, por fim, mostrou o desenvolvimento histórico desse conceito em publicações reichianas. Dentre outros pontos, com o estudo do João Rodrigo aprendemos que na obra de Freud já está presente a visão de que o trabalho de análise tende a esbarrar em dificuldades devido a resistências vinculadas ao caráter. Qual seja, é possível observar aqui uma clara linha de continuidade entre Freud e Reich. Cabe lembrar, como se sabe, que Reich vai montar todo um arsenal terapêutico, a Análise do Caráter, para procurar lidar com esse tipo de resistência.
De outra parte, pensando na sedimentação de uma linha de pesquisa, os bons resultados alcançados na dissertação do João Rodrigo, marcada pelo rigor conceitual e por uma redação fluente, confirmaram a pertinência da estratégia de investigação empregada, qual seja: efetuar estudos teóricos, de um tema ou conceito, por meio de um método de análise estrutural e histórica. Algo que eu havia experimentado no doutorado, mas que agora via se solidificar na produção de um orientando.
Já a Simone Aparecida Ramalho (2001) centrou seus esforços nas idéias de Reich contidas no clássico da área de Psicologia Política, o livro "Psicologia de massa do fascismo", mais especificamente na edição original publicada em 1933, aquela marcada pela busca de uma articulação entre a psicanálise e o marxismo (Reich, 1974). A mestre, num estudo de fôlego, 280 páginas, com um estilo de escrita recheado por parágrafos longos, sempre na busca de uma visão aprofundada dos fenômenos, teve, dentre outros aspectos, que a pergunta disparadora do livro em tela - Por que, contra os seus próprios interesses de classe, boa parte do proletariado alemão apoiou o nazifascismo? – tem familiaridade temática com a discussão proposta pelo filósofo Étienne de La Boétie, um pensador que, ainda no século XVI, levantou e problematizou o que ele elegeu como um enigma a ser desvendado: a servidão voluntária. De posse dessa raiz histórica, Simone promoveu um fértil diálogo entre a visão reichiana e as formulações de Freud e de Adorno, de alguma forma, associadas ao assunto. Além disso, chama a atenção nessa dissertação o fato da autora ter explicitado e discutido a existência de uma pertinente aproximação entre a orientação assumida por Reich, de prisma preventivo e basicamente voltada para o campo da saúde pública, e a linha de cunho sanitarista presente na Medicina.
Em 2002, Jorge Paulo dos Santos Watrin defendeu a dissertação de mestrado "Contribuições de Reich à luta contra a servidão voluntária" (Watrin, 2002). Essa orientação, fruto de um convite da Universidade Metodista de Piracicaba para que eu efetuasse a orientação de um aluno interessado em pesquisar o pensamento reichiano, foi realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP e, tal como no trabalho da Simone Ramalho, o seu foco voltou-se para as idéias de Reich presentes no livro "Psicologia de massa do fascismo", também em sua edição de 1933. Por meio da dissertação de Jorge Paulo, um historiador de formação, foi possível adentrar no campo da ciência histórica, seus métodos e formas de investigação e perceber a importância dos estudos interdisciplinares, algo muito presente na produção reichiana. Além disso, Watrin mostrou que, no livro em tela, Reich, de forma perspicaz e possivelmente inovadora, procedeu como um verdadeiro historiador (não qualquer historiador, mas aquele que utiliza métodos de pesquisa atuais) ao recortar aspectos da vida cotidiana (como o vestido "de noite" da mulher do proletário) para fundamentar suas teses.
Três anos depois, em 2005, Ricardo Amaral Rego defendeu a tese de doutorado "Psicanálise e Biologia: uma discussão da pulsão de morte em Freud e Reich" (Rego, 2005). Com uma linguagem clara, repleta de exemplos práticos, Ricardo Amaral submeteu a noção de pulsão de morte, de Freud, e a de auto-regulação, de Reich, aos conhecimentos da Biologia atual. Dessa investigação vários frutos podem ser colhidos, dentre eles: a) a detalhada discussão voltada para o tema da agressão, inclusive o suicídio; b) o esclarecimento efetuado a respeito do sentido de auto-regulação, um processo mais condizente com a homeorese do que com a homeostase; c) a fértil aproximação efetuada entre a visão reichiana da unidade corpo-mente e as formulações de importantes autores da Neurobiologia atual, sobretudo as do português Antônio Damásio, que apontam para um entendimento muito distante da usual concepção de corpo como uma massa inerte comandada pelo cérebro. Em linhas gerais, trata-se de um trabalho que se propõe e consegue olhar para relevantes aspectos das abordagens de Freud e de Reich à luz de achados recentes do campo da Biologia.
Continuando a exposição dos trabalhos, em 2007, Ailton Bedani defendeu a dissertação "Energética e epistemologia no nascimento da obra de Wilhelm Reich" (Bedani, 2007), um estudo voltado para os primeiros escritos de Reich (1919 a 1923). Com o olhar de quem conhece, em profundidade, a orgonomia, Ailton Bedani mostrou que a hipótese de uma energia primária já está presente nos primórdios da produção reichiana. Na dissertação em foco, destaca-se também a detalhada análise efetuada a respeito do artigo de Reich "Sobre a energética das pulsões" (Reich, 1975). Um texto denso, escrito em 1921 e publicado em 1923, mas que, como uma espécie de indicador do futuro, já apresenta pontos que, definitivamente, irão compor a teorização reichiana. Por fim, cabe também citar o fato de o mestre ter chamado a atenção para alguns cientistas que usualmente são pouco mencionados como tendo influenciado o pensamento reichiano. Esses são os casos, por exemplo, do filósofo Friedrich Albert Lange e do biólogo Richard Semon.
Já em 2009, Liliane de Paula Toledo defendeu o trabalho de mestrado "Reich e o enfoque de Deleuze e Guattari: o pensamento crítico em busca do desenvolvimento humano" (Toledo, 2009). No Brasil, como é do conhecimento das pessoas envolvidas com a orientação reichiana, as formulações dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, da chamada Esquizoanálise, têm, há alguns anos, permeado o importante curso de especialização Formação em Clínica Reichiana, promovido pelo Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Ciente desse fato, Liliane de Paula, ex-aluna desse curso de especialização, em sua dissertação investigou as aproximações e os afastamentos que podem ser inferidos entre a abordagem de Reich e a desses filósofos franceses. Ou seja, a partir de um dado presente no meio social, especialmente no citado curso de especialização do Instituto Sedes Sapientiae, Liliane de Paula buscou fomentar um diálogo teórico entre as idéias de Reich e a dos criadores da Esquizoanálise. Certamente uma imensa tarefa, que exigia apreender produções científicas amplas, mas que estava centrada numa necessidade muito clara: estreitar os laços entre a academia e a realidade social.
Em termos de resultados, faz-se digna de nota a identificação de um elevado número de trabalhos voltados para discutir a relação entre o pensamento reichiano e o da Esquizoanálise, mais especificamente 24 textos, num diálogo iniciado há cerca de três décadas e incrementado a partir de 1994. De outra parte, há nessa investigação um justo cuidado em tornar explícits não só as concordâncias verificadas, como, também, os pontos de atrito existentes. Um trabalho que, pela sua fertilidade, tem potencial para catalisar novos estudos na área. Afinal, não basta, de forma engessada, repetir o Reich, mas sim, com os conhecimentos atuais, buscar dar continuidade à sua construção.
Com quatro trabalhos concluídos, dois doutorados e dois mestrados, a colheita realizada em 2010 foi especialmente boa. Os seguintes estudos foram defendidos: "Uma alegria subversiva: o que se aprende em uma escola de samba?" (doutorado de Simone Aparecida Ramalho); "A couraça como currículo oculto: um estudo da relação entre a rotina escolar e o funcionamento encouraçado" (doutorado de José Gustavo Sampaio Garcia, realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP, sob a orientação da professora Maria Cecília Cortez Christiano de Souza e co-orientação minha); "Grupo de movimento: conceituação, estado da arte e aplicação na área educacional" (mestrado de Tânia Alves Nogueira); "Reich, Espinosa e a educação" (mestrado de Daniel Camparo Avila). Vejamos, a seguir, cada uma dessas pesquisas.
Simone Aparecida Ramalho, no doutorado (Ramalho, 2010), registrou e analisou algo que viveu enquanto psicóloga de um Ambulatório da Saúde Mental, situado no bairro do Jacanã, da cidade de São Paulo. Num relato sobre um período de nove anos, de 2001 a 2009, ela descreveu as incríveis transformações que observou, tanto nos usuários daquele serviço de saúde mental, como, também, em seus profissionais. Tal metamorfose foi desencadeada por uma circunstância tanto rara quanto surpreendente: o convite de um carnavalesco para que os usuários do Ambulatório de Saúde Mental participassem do desfile de carnaval do Grêmio Cultural Escola de Samba X-9 Paulistana, sendo, para isso, criada uma ala, a Loucos pela X. Logo essas pessoas, dada a qualidade observada na confecção de fantasias, passaram a trabalhar na execução das fantasias de outros integrantes da escola de samba. Simone Ramalho, notando que algo de especial estava ocorrendo, buscou no pensamento reichiano, além de no de outros autores, como o francês Michel Maffesoli, ferramentas para estabelecer contato com a vida que, tendo encontrado o seu viço, se impunha. O resultado foi a construção de uma tese na qual texto e fotos se casam, gerando um belo efeito estético, e que vem nos lembrar o poder transformador da alegria.
Com um estilo de redação claro e fluente, José Gustavo Sampaio Garcia utilizou as idéias de Reich, mais particularmente a noção de couraça, para iluminar o conservadorismo presente nas entranhas da rotina escolar (Garcia, 2010). Ao olhar arguto de José Gustavo, ou Zeca, como ele prefere, não passam despercebidos aspectos da rotina escolar. Formas padronizadas de atuação que, pela repetição, tendem a se naturalizar, como o uso obrigatório de uniforme, a fila na entrada, a divisão por idade e por avaliação, a sala de carteiras alinhadas e a hora-aula padronizada. O autor, de posse de uma ampla e atualizada exposição a respeito do funcionamento encouraçado, na qual não falta uma pertinente análise dos chamados tipos limítrofes, gerados em larga escala em nossos caóticos dias, esquadrinha o currículo escolar oculto, um domínio permeado pelo comportamento automatizado e avesso ao questionamento reflexivo. Um trabalho que carrega uma saudável orientação voltada para a necessidade de pensarmos a respeito dos efeitos, manifestos e latentes, das nada inocentes rotinas escolares.
Em nosso meio social, uma estratégia de intervenção grupal, oriunda da área de psicoterapia corporal, denominada Grupo de Movimento, tem sido largamente utilizada. Tânia Alves Nogueira, psicóloga e bailarina de formação, aproximando a pesquisa acadêmica da dinâmica que ocorre no meio social, realizou um detalhado estudo, uma revisão da literatura, a respeito dessa prática corporal grupal (Nogueira, 2010). Dado o fato de que os resultados alcançados trouxeram à luz vários aspectos que merecem ser citados, pelo menos, alguns deles: a) o levantamento efetuado constatou a presença de 30 trabalhos publicados sobre o assunto - 16 resumos, sete dissertações, quatro monografias e três artigos -, um número expressivo, fator que sinaliza para o considerável interesse que essa técnica tem despertado; b) trata-se de uma tecnologia brasileira, algo que muito expressa a nossa cultura, pois acolhe e mistura diversas influências; c) de modo geral, contata-se a necessidade de que as pesquisa sobre Grupo de Movimento se dediquem, de forma mais acentuada, a aprimorar e a explicitar seus controles metodológicos. Com certeza, uma dissertação que semeia uma série de pontos que podem ser aproveitados para o desenho de futuros trabalhos na área.
No campo de trabalhos voltados para o estudo das relações existentes entre o pensamento reichiano e a do outros autores, Daniel Camparo Avila (2010) observou que a obra de Reich e a de Benedictus de Espinosa (1623-1677) estão conectadas a um mesmo propósito norteador: a luta por um ser humano livre e ativo. Com esse entendimento de base e focalizando o âmbito da educação, Daniel Camparo trouxe à tona as preocupações dos dois autores com que ele chamou de mais-medo, uma ampliação do afeto do medo com efeitos danosos à potência humana. De acordo com os achados dessa pesquisa, Espinosa e Reich, em suas respectivas épocas, desenvolveram obras marcadas pela denúncia de estratégias sociais/educacionais ligadas à formação de indivíduos expropriados de sua potência de vida e, por isso, desejosos de servir a quem se apresente como portador de uma força capaz de lhes garantir a própria existência. Um estudo rico em idéias e que, de maneira original, aproxima Reich, Espinosa e a educação.
Em conclusão, atualmente três disciplinas, duas de graduação ("A Psicologia de Wilhelm Reich" e "Psicologia da Personalidade: Reich e Freud") e uma de pós-graduação ("Reich: raízes do pensamento em Freud e idéias para a educação"), são dedicadas ao estudo das idéias de Wilhelm Reich no Instituto de Psicologia da USP. No que diz respeito à orientação de dissertações e teses, de alguma forma, voltadas para o pensamento reichiano, nove trabalhos foram concluídos: seis mestrados e dois doutorados no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do IP e um mestrado no Programa em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba. Além disso, uma co- -orientação de doutorado foi efetuada no Programa em Educação da Faculdade de Educação da USP.
Numa época marcada pelo signo da mudança, com seus vínculos superficiais e imediatistas, gosto de perceber a ocorrência de construções elaboradas a longo prazo. E tenho plena consciência de que nada foi construído sem a fundamental colaboração dos professores, alunos e pares do campo reichiano, a quem manifesto a minha gratidão.
REFERÊNCIAS
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Agradeço à Cristina Keiko Inafuku de Merletti, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, do Instituto de Psicologia da USP, que transcreveu a gravação e deu o primeiro tratamento formal ao material da palestra que originou este trabalho.
Recebido em 01/02/2011
Revisto em 25/06/2011
Aceito em 26/06/2011
* Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da USP. Av. Prof. Mello Moraes 1721, Bloco A. São Paulo – SP. CEP: 05508-030. Fone: 3091-4285. E-mail: palbertini@usp.br.
1 Baseado na palestra "O pensamento de Wilhelm Reich em pesquisa: mestrados e doutorados defendidos no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo", proferida em Seminário no II Congresso Core Energetics & I Congresso Internacional Wilhelm Reich, em 1º de novembro de 2010, Atibaia, São Paulo.