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Boletim de Psicologia

 ISSN 0006-5943

     

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Jogar videogame como uma experiência simbólica: entrevistas com jogadores1

 

Playing videogame as a symbolical experience: interviews with players

 

 

Omar Calazans Nogueira PereiraI,*; Luana De Oliveira NecaI,*; Arthur Hoverther FacchiniI,*; Tânia Pessoa LimaII,*; Laura Villares De FreitasIII,*

IInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) - SP - Brasil
IIInstituto de Psicologia da USP e Pontifícia Universidade Católica - SP - Brasil
IIIInstituto de Psicologia da USP e Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SP - Brasil

 

 


RESUMO

Esta pesquisa tem, como objetivo, utilizando o referencial da psicologia analítica de C. G. Jung, investigar a relação jogador-jogo existente no universo dos jogos digitais, tendo como principais questões a influência desses jogos na vida dos jogadores e a identificação de símbolos constelados nessa relação. Para tal, foram realizadas entrevistas semi-dirigidas com quatro jogadores. Após a análise das entrevistas, constatou-se a existência de uma diversificada influência na vida psíquica do jogador, que pode ser resumida em: escape do cotidiano, busca de aprendizado e novas experiências e, finalmente, vivência de polaridades opostas. Como questionamentos levantados, sugeridos para posteriores pesquisas, indica-se uma investigação mais detalhada da sombra e da persona na relação jogador-jogo. Outra questão emergente é a relevância da investigação dessa relação como material para uso clínico, baseando-se na importância do trabalho de elaboração dos símbolos que nascem da mesma.

Palavras-chave: Videogame; jogos digitais; relação jogador-jogo; vivência simbólica.


ABSTRACT

This research aims to investigate, from the perspective of C. G. Jung Analytical Psychology, the relationship player-game in the universe of digital games, holding as main questions the influence of such games on the players lives and the formation of symbols and images resulting from that relationship. Semi-directed interviews with four players were conducted, and their analysis showed a diversified influence on the player´s psychic life, which may be resumed in the following aspects: escape from everyday life, search for new apprenticeship and experiences, experiencing opposed polarities. As an emergent question, which may inspire further researches, the paper suggests a more precise investigation of the shadow and the persona in the relationship player-game. Another evolving question concerns the relevance of investigating this relationship for providing clinical material, based on the significance of the task implied in symbol elaboration.

Key words: Videogame; digital games; player-game relationship; symbolical experience.


 

 

Os jogos eletrônicos originaram-se durante a Guerra Fria (1945-1991), quando se deu grande desenvolvimento tecnológico, inclusive dos simuladores de batalha. Nesse contexto nasceu o primeiro videogame, um osciloscópio modificado, criado para divertir os responsáveis pela tecnologia bélica. Enquanto o primeiro jogo se assemelhava a uma partida de tênis, os seguintes traziam naves, tiros e explosões. Atualmente, os jogos digitais se diversificaram em vários estilos, para servir a uma maior gama de jogadores. Alguns trazem aventuras já pré-estabelecidas com personagens previamente criados, outros promovem a criação ou modificação de personagens/avatares em um ambiente em constante mutação, possibilitando uma grande interação entre jogadores que se apresentam como são ou como gostariam de ser, em um mundo quase tão imprevisível quanto o que é encontrado no cotidiano. Dentre alguns desses estilos, existem: a) Role-Playing-Game (RPG), baseado em jogos de aventura de criação e interpretação de personagens, como, por exemplo, Final Fantasy; b) Survival horror, sobrevivência em ambientes de terror, como Resident Evil; c) Esportes, simulação de torneios de luta, corridas com veículos e esportes coletivos; d) Plataforma, transpasse de obstáculos e inimigos com pulos, como Mario eSonic; e) Life simulation, simuladores de vivências diárias de formas de vida artificiais, como The Sims e Tamagotchi; f) Puzzles, resolução de desafios no estilo quebra-cabeças; g) Dança, em tapetes que reagem ao movimento dos pés, como Dance Dance Revolution.

Por mais que os avanços nos jogos em direção a um maior realismo visem à promoção de uma relação o mais sensorial possível entre jogo e jogadores, mesmo em momentos de incipiente desenvolvimento gráfico e sonoro, os jogadores sempre mantiveram relações afetivas com determinados jogos e personagens, contando com a imaginação para preencher aquilo que era sugerido em poucas linhas de texto, sons e imagens:

Zelda, segundo muita gente, foi o primeiro videogame que fez as pessoas chorarem enquanto jogavam. Era muito centrado na história. A possibilidade de sentir o que o personagem sentia e passar por tudo o que ele tinha que passar para se tornar uma pessoa melhor foi uma coisa que comoveu muita gente(Heather Chaplin, coautora do livro Smartbomb, citado no documentário de Curram, Bailey e Barbato, 2007).

Videogames tratam de aventuras com protagonistas que exploram ambientes desconhecidos, desvelam tramas, estabelecem relações e crescem à medida que o jogo progride. Retratar tais aspectos permeando-os de emoções humanas é nos dias de hoje uma preocupação de criadores de jogos tão relevante quanto a do desenvolvimento tecnológico:

Para que os games pudessem passar de uma mera atividade recreativa para um verdadeiro entretenimento comparável ao cinema e à literatura, por exemplo, era preciso que cruzassem uma fronteira e passassem a comover pessoas como as histórias dos filmes comovem, provocando uma reação emocional. Era preciso criar personagens que envolvessem o jogador (Stuart Moulder, consultor de videogames, citado em Curram et al., 2007).

Dessa forma, atualmente, os jogos digitais ocupam uma grande parte do mercado de entretenimento e estão presentes nas mais variadas classes sociais, idades e locais. De acordo com a companhia de pesquisa de mercado Strategy Analytics (Wu, 2011), o mercado de videogames gerou uma receita acumulada de US$ 51,7 bilhões em 2010. Até o final de 2016, acredita-se que arrecadação global chegue a US$ 81,1 bilhões. Apesar da expansão da indústria de jogos digitais, ainda são escassas as pesquisas a respeito da relação entre jogadores e os videogames e, nelas, os resultados obtidos são controversos e por muitas vezes contraditórios.

A psicóloga Ivelise Fortim2 afirma que grande parte dos psicólogos ainda apresenta falta de interesse em relação ao assunto dos jogos digitais e sua relação com o indivíduo e a sociedade. Borges, Freitas, Oliveira, Pereira e Lima (2008), por meio de um levantamento bibliográfico de artigos que investigam a relação jogador-jogo no universo dos videogames, constataram que há tanto artigos que destacam o papel benéfico dos videogames no desenvolvimento motor, cognitivo, social e emocional, quanto artigos que os julgam como prejudiciais, incitando a atos agressivos ou discriminatórios. Além disso, a maioria das pesquisas não leva em consideração a totalidade psíquica do jogador na relação jogador-jogo, que inclui, principalmente, além do campo consciente, o inconsciente. Da mesma forma, tampouco destacam os papéis de sonhos, fantasias ou da imaginação, nem consideram o contato com as imagens arquetípicas e a emergência de símbolos.

Os arquétipos foram definidos por Jung (2000) como fatores e motivos que coordenam elementos psíquicos no sentido de formar determinadas imagens e isso sempre ocorre de maneira que só podem ser reconhecidos por seus efeitos. Eles existem pré-conscientemente e formam as dominantes estruturais da psique. Seus conteúdos são dados à estrutura psíquica do indivíduo na forma de possibilidades latentes. O arquétipo em si é um fator psicóide3 e é inobservável. Só depois de ter recebido um conteúdo, manifestado pelo material psíquico individual, é que se torna psíquico, configurando-se então como símbolo ou sintoma, e pode penetrar na consciência. Ao impactar a consciência como imagem arquetípica carrega uma numinosidade4 e força de fascinação.

Cada símbolo é enraizado em um arquétipo, na medida em que precisa de um esboço arquetípico para ser formado. O arquétipo em si é sempre um símbolo em potencial, pois pode se atualizar e aparecer como símbolo. Desse modo, o arquétipo nunca pode ser encontrado de maneira direta, mas sim apenas indiretamente, quando manifestado no símbolo, sintoma ou complexo.

O símbolo, cuja denominação deriva do verbo grego symballo, designa algo que, além de um sentido objetivo, tem um sentido mais completo. Invoca uma intuição e atrai a consciência que com ele se envolve. Um símbolo, mesmo depois de esgotado seu significado, permanece à disposição para ser, a partir de experiências vividas, ativado por uma nova constelação arquetípica, que o fará manifestar-se novamente, restabelecendo contato com a consciência. Nesse sentido, o símbolo funciona como instância mediadora entre a consciência e o inconsciente, entre o desconhecido e o que já foi revelado. O símbolo, então, teria a função de trazer conteúdos do inconsciente à consciência, sendo fundamental para o equilíbrio e bem-estar psicológicos. É possível que qualquer elemento (como, por exemplo, um sonho, ato falho, um sintoma, uma sensação, ideia, emoção, uma história narrada em um filme, livro ou por outra pessoa) seja um símbolo, dependendo da relação que há entre esse elemento e o consciente que o contempla. Segundo Freitas (2009), os símbolos apresentam uma possibilidade de síntese entre pares de opostos, resultado de tensões e interações entre esses. Assim, os símbolos promovem ampliação da consciência.

De acordo com Byington (1988), qualquer coisa que ocorra na dimensão humana pode tornar-se um símbolo estruturante, na medida em que exerce um papel na formação da consciência do indivíduo, permitindo sua ampliação. Segundo o autor, aqueles que não percebem como e onde seu ego é transformado por determinados símbolos, não examinando seus sonhos, hábitos e fantasias estarão sujeitos a terem sua consciência invadida pelos símbolos que irrompem. Dessa forma, tais símbolos viriam a atuar na sombra, não sofrendo uma elaboração consciente.

Dentre os arquétipos mais fundamentais estão a sombra, a persona e o si-mesmo. De acordo com Kast (1990/1997), a sombra caracteriza aspectos em nós que não conseguimos aceitar. Por isso permanece reprimida e é comum que a vejamos em outros indivíduos, pela projeção. Ainda para a autora, deparamos com a sombra em nossos sonhos: por exemplo, pode aparecer como ladrões, vagabundos ou assassinos, pessoas das quais temos medo, nojo ou repulsa. Isso, no entanto, não quer dizer que sejamos como qualquer um desses, é apenas uma indicação de que podemos experienciar em nós mesmos características que vinculamos a tais pessoas. Apesar de parecer que a sombra contém apenas aspectos moralmente ruins, ela também oculta aspectos de extrema vivacidade. Além disso, a sombra abarca também conteúdos que correspondem a percepções subliminares, ou seja, situações vividas que não atingiram um patamar mínimo para serem assimiladas pela consciência.

Com relação à persona, para Freitas (2009), esta seria a instância psíquica responsável pela interação com os outros e com o meio, manifestando-se nos papéis que desempenhamos durante a vida. Expressa parte de nossa individualidade na sociedade, um contexto marcado por códigos sociais. Uma boa ilustração do que seriam aspectos da persona são nossos papéis sociais. Por exemplo, cada profissão tem a sua persona, havendo uma definição por parte da cultura sobre como se espera que cada profissional deva ser e interagir. E cada profissional imprime características pessoais a essa persona. Uma persona adequada tem por função possibilitar a interação do indivíduo com seu meio, atendendo às expectativas da sociedade e, simultaneamente, permitindo-lhe uma expressão pessoal e criativa.

Para Kast (1990/1997), o si-mesmo, ou Self, é um princípio orientador. Compreende tanto a consciência quanto o inconsciente. Simbolicamente, o si-mesmo aparece com freqüência no símbolo da união dos opostos. É visto como o responsável por desencadear a autorregulação da psique pois, para Jung, assim como o corpo, o sistema psíquico também se autorregula. A autorregulação se baseia no fato de que há reações inconscientes contra unilateralidades da consciência, conservando dessa forma a integridade da totalidade psíquica. O si-mesmo é o responsável por tentar corrigir distorções, estagnações ou desvios da consciência (Freitas, 2009).

No âmbito da Psicologia Analítica, encontramos relatos de pesquisas recentes específicas sobre a realidade virtual, algumas focalizando os jogos virtuais. Segundo Farah (2009), a internet propicia ampliação da consciência e integração de aspectos criativos da personalidade dos internautas. Entretanto, há riscos nas vivências e nos contatos humanos realizados na virtualidade, pois há também manifestações da sombra, através de atividades ilícitas ou ilegais. Para a autora, ainda, cabe ao psicólogo construir um saber no qual a experiência na virtualidade não seja vista como exceção, mas como uma dentre as condições da vida humana na atualidade.

Oliveira (2005) afirma que atividades como a utilização da internet e o jogar videogame, assim como praticar exercícios físicos e assistir televisão, podem se tornar excessivas e comprometer a qualidade de vida dos indivíduos de maneira semelhante ao uso indevido de drogas. São atividades prazerosas que provocam alterações no sistema nervoso central. Ao exercer essas atividades em excesso, pode-se encontrar meios de escapar de vivências difíceis. Além disso, na dependência, o arquétipo se impõe. Se os conteúdos arquetípicos não forem humanizados, elaborados e integrados, inundam o ego e a necessidade de viver a totalidade, o contato com o Self, fica na sombra, assombrando o indivíduo com os sintomas da dependência.

Com relação à influência das novas tecnologias de comunicação nas sessões analíticas, Hauke (2009) enfatiza que filmes ou histórias de filmes são tão prováveis de serem mencionados por pacientes quanto uma pintura, um livro ou poema. Pacientes trazem referências a uma imagem ou cena de um filme, histórias, personagens e relacionamentos que os impactaram emocionalmente. Para o autor, cenas de filmes são tão capazes de revelar conteúdos inconscientes e mover afetos quanto os sonhos e a transferência. Com base nas idéias de Hauke podemos pensar: não poderiam os videogames trazer conteúdos inconscientes, assim como os filmes?

 

OBJETIVO

O objetivo desta pesquisa é investigar, utilizando o referencial da Psicologia Analítica de Jung, a relação jogador-jogo existente no universo dos jogos digitais. As principais questões são: qual a influência dos jogos digitais na vida dos jogadores? Quais as imagens e símbolos formados a partir dessa relação? Que reações são desencadeadas no jogador a partir dessa relação?

Considerando a controvérsia encontrada (Borges et al., 2008), em levantamento dos artigos já publicados sobre o tema, decidiu-se não classificar os jogos digitais de acordo com um tipo de relação que seja benéfico ou prejudicial sobre o jogador, mas apenas esboçar como simbolicamente essa relação se apresenta.

 

MÉTODO

Para Penna (2005), os métodos qualitativos de pesquisa trazem uma abordagem compreensiva e interpretativa dos fenômenos. No paradigma junguiano, confere-se estatuto empírico ao psiquismo, dando-se substância à experiência interior. A psique é constituída por uma totalidade que inclui os âmbitos inconsciente e consciente. Devido à impossibilidade de se observar diretamente o inconsciente, deve-se fazê-lo por meio de suas manifestações simbólicas. Os instrumentos de coleta utilizados devem ser recursos projetivos ou expressivos. Questionários e entrevistas abertas ou semiabertas podem ser formulados desde que consigam captar tanto conteúdos conscientes quanto inconscientes.

Seguindo esse paradigma junguiano de pesquisa, foram realizadas quatro entrevistas semiestruturadas com usuários de jogos digitais. Havia um roteiro de entrevista, para que não se perdesse de vista os objetivos da pesquisa, mas era permitido que cada participante falasse o mais aberta e fluentemente possível. A primeira parte da entrevista buscava traçar um perfil do entrevistado em relação à idade, profissão, rotina, hobbies e quantidade de horas semanais dedicadas ao jogo. A segunda parte tinha como objetivo investigar a relação simbólica entre o jogador e o videogame, baseando-se em perguntas sobre o que gosta e não gosta no jogar, quais os jogos e personagens mais marcantes, e os sonhos relacionados ao tema. Foi realizada uma entrevista-piloto para averiguar a abrangência das questões e a consistência do roteiro e procedimentos da pesquisa.

O conjunto dos entrevistados foi composto por três homens e uma mulher, de idades entre 21 e 27 anos, da cidade de São Paulo. Por se tratar de um estudo de natureza exploratória e qualitativa, não houve preocupação em buscar um grande número de sujeitos. Os entrevistados foram contatados inicialmente pela internet e depois por telefone. O critério central para sua seleção foi a possibilidade de acesso e a disponibilidade em participar. Cuidados éticos foram tomados: antes das entrevistas, os participantes tiveram acesso ao termo de consentimento livre e esclarecido e permitiram, por escrito, a publicação dos dados coletados. Além disso, para manter o anonimato dos participantes, os nomes usados neste artigo são fictícios.

As entrevistas tiveram duração média de 24 minutos, tendo sido gravadas por meio digital e depois transcritas integralmente. Cada entrevista foi realizada por dois pesquisadores, sendo que cada pesquisador participou de duas delas.

Para análise dos dados, buscou-se extrair os principais temas emergentes, adotando uma postura compreensiva das vivências na relação jogador-jogo. Foram realizadas textualizações5 das entrevistas, eliminando-se vícios da linguagem oral, para facilitar a sua compreensão. O texto assim obtido a partir de cada entrevista foi lido em um encontro do grupo de pesquisadores, quando, simultaneamente, registravam-se as principais imagens, símbolos e ideias que ocorriam a cada um. Isso feito com as quatro entrevistas, passou-se à etapa seguinte da análise, que consistiu em identificar categorias que abrangessem os resultados encontrados.

 

CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

Foram quatro os entrevistados. Cada um deles assinou um termo de consentimento livre e esclarecido em que concordava em participar da pesquisa e autorizava a publicação dos resultados, desde que não fosse identificado. A seguir, apresentamos os entrevistados, com nomes fictícios.

Waldir tem 27 anos e é analista de sistemas. Seus principais hobbies são mangás6, animês7 e videogames, que joga desde criança. Vai ao trabalho de manhã e reserva o final do dia para seus principais hobbies. Nos finais de semana se dedica aos jogos e também aos animês e séries. Joga cerca de 20 horas de videogame por semana.

Bernardo tem 22 anos, é estudante do quinto ano de Psicologia e joga vídeogames desde os cinco anos de idade. Seus hobbies são dança de salão, jogos de computador e artes marciais. Sua rotina se divide basicamente entre a faculdade e seus hobbies, a que se dedica à noite e nos finais de semana, jogando atualmente em média 12 horas por semana.

Antônio é analista de sistemas e tem 26 anos. Inicialmente diz que joga há 26 anos; depois se corrige, afirmando que joga desde os três ou quatro anos de idade. Trabalha de seis a nove horas por dia e distribui o tempo livre entre os hobbies: videogame, kung fu e livros. Nos finais de semana, à tarde dedica-se aos hobbies e sai à noite para bares e pubs, para beber e conversar. Joga videogame de 15 a 20 horas por semana, ou mais.

Thaís tem 21 e é estudante do terceiro ano do curso de Letras. Tem como hobbies jogar RPG, ver seriados, ouvir música e ler. Joga videogame desde os 14 anos. Em um dia típico acorda bem tarde, checa seus e-mails, faz o que tem que fazer em casa e depois joga com os seus amigos online. Geralmente dorme às seis horas da manhã. Aos finais de semana diz fazer as mesmas coisas e ir ao shopping quando tem algum dinheiro. Diz que tenta não ficar em casa para não se enclausurar. Costuma jogar mais de 30 horas por semana.

 

RESULTADOS

Após análise individual das entrevistas, foram estabelecidos como principais aspectos emergentes da relação jogador-jogo: a fuga do cotidiano; a busca por um aprendizado ou por experiências impossíveis no cotidiano; a vivência de polaridades opostas, como o bem e o mal. Tais aspectos foram escolhidos por estarem presentes em todas as entrevistas, apresentando-se de forma mesclada no discurso dos entrevistados, sendo alguns mais predominantes que outros. Segue uma análise sucinta de cada entrevista:

O aspecto predominante na entrevista de Waldir foi o da busca, ligada à vivência de imagens arquetípicas pelas histórias contadas nos jogos, dos desenvolvimentos e finalizações das tramas. Há uma realização pessoal pela história, relacionada com a experiência pessoal e pelo que considera o final ideal. Ele enfatiza que um bom jogo precisa de um bom final, "um final emocionante que encerra de forma bem feita, bem fechada as histórias" e que seja coerente com o desenvolvimento da trama, com "os dramas muito humanos e isso que é legal, porque você se identifica com o problema dos personagens porque são problemas humanos".

A fuga aparece de forma secundária. O jogar videogame seria uma forma de relaxamento e alívio de um cotidiano cansativo, permitindo "a imersão em outro tipo de mundo". Quanto àvivência de polaridades bem/mal, o entrevistado destaca que no videogame essa dualidade é mais clara, concebendo a coexistência do bem e do mal dentro de uma mesma situação ou pessoa, observando ambos os aspectos, positivos e negativos. O entrevistado destaca que os personagens podem não ser "necessariamente maus, serem caras que lutam pelo que acreditam de forma extremada", reconhecendo que há um contínuo entre essas polaridades, mas assinalando que existem os extremos.

Quanto a Antonio, o aspecto mais destacado foi o da vivência das polaridades bem/mal. Afirma que algo que o marcou em relação aos videogames foi a percepção, a partir deles, "que não existe mais uma divisão clara entre o que é bom e o que é mau". Mesmo destacando o importante papel do videogame no seu amadurecimento enquanto pessoa e na passagem da percepção de um mundo menos "preto no branco, aprender a ver os cinzas é importante", insiste em uma relativização onde a categorização bem/mal depende exclusivamente de diferentes pontos de vista, não trazendo uma visão integrada dessas duas polaridades coexistindo dentro de uma mesma situação: "sempre não existe uma definição clara entre quem está certo e quem está errado, é sempre uma questão de pontos de vista".

O entrevistado apresentou uma busca consciente pelo aprendizado de novas culturas e línguas e uma procura velada por um objetivo, por meio dos jogos. Tal procura se evidencia no relato sobre o que mais o marcou em seu personagem escolhido, alguém que "não tem um objetivo. O objetivo dele é encontrar um objetivo. Isso bate um pouco com o que acabou sendo a minha vida profissional do meio dela para frente". Destaca-se que essa visão sobre o personagem é extremamente pessoal, já que no mundo dos videogames o personagem é conhecido por ter uma meta clara.

Em relação à fuga destaca-se que o videogame o leva para um momento de alteração, num cotidiano dedicado a um trabalho maçante e sem significado afetivo, permitindo "voltar para o foco de alguma coisa e acalmar a minha mente e de certo modo até meu corpo para eu conseguir chegar no estado em que eu consiga relaxar para dormir".

No caso de Thais, o aspecto mais destacado foi o de fuga, que demonstra ser compulsiva e que vai além do cotidiano, podendo ser considerada também como uma fuga de seus próprios conteúdos, possivelmente inconscientes e conflitivos. Este aspecto pode ser observado no trecho:

O que eu gosto é do escape que você tem geralmente jogando, você consegue parar em outro lugar; você está tendo outros problemas, é muito mais fácil lidar com isso, quando você tem um outro mundo completamente diferente do seu.

Procura não só o videogame, mas outros recursos como jogos de RPGs textuais para não entrar em contato com um cotidiano que nem ao menos aparece de forma destacada em sua entrevista (amigos, família, faculdade). Quando encontra nesses recursos de fuga algo que a coloca em contato com aspectos difíceis de serem trabalhados, também o abandona. Isso também pode ser observadona relação que estabelece com personagens que possuem características que ela percebe como próprias: "Mas é uma parte que eu não gosto de mim, então não consigo ter, não consigo respeitar ele (a personagem)".

Thais alude desta maneira à sombra e, por outro lado, comenta como jogar sozinha dificulta sua elaboração:

Tem alguns jogos que eu simplesmente estou jogando e eu não consigo manter um relacionamento, assim tão... duradouro... Se tivesse uma outra pessoa jogando comigo eu pediria para a pessoa jogar e deixar eu assistir a história, mas comigo jogando eu não estava gostando.

O aspecto da busca não aparece de forma clara, mostrando-se mesclada e indistinta à fuga. Também, em seu relato sobre personagens marcantes, é possível entender que há uma percepção sobre uma articulação das polaridades bem/mal, mas de forma racionalizada, não direcionada para sua experiência pessoal.

Na entrevista com Bernardo, a busca é o aspecto de destaque. Tem um sentido de tornar possível a vivência de experiências vicárias, de sensações que não poderiam ser vividas por ele em sua realidade:

Que é uma coisa assim, é como se fosse uma experiência vicária, mas uma coisa que eu não faria na vida real... Mas eu prefiro bem mais quando dá pra entrar no personagem, dá pra sentir alguma coisa jogando... Então o que me pegou bastante é que eu sentia muita emoção jogando, pela história do personagem, pelo que ele estava passando, porque ele entra bastante na psique daquele personagem. Que está lutando para ir atrás, então eu peguei e senti isso bastante... Uma coisa desses personagens é que eles são muito solitários. Ele trabalha praticamente sozinho; ele não tem uma vida social, então é uma vivência muito solitária. E aí nisso eu também me identifico, sabe.

Fica clara a identificação e a busca por uma imagem arquetípica específica, a que ele mesmo denomina como "arquétipo do ladino". Com relação à vivência das polaridades bem/mal, o entrevistado aparenta ter uma visão que as articula, o que é evidenciado na sua identificação com personagens "ladinos" que vivem constantes dilemas morais.No referente à fuga, não foi possível identificar claramente esse aspecto no conteúdo da entrevista.

 

DISCUSSÃO

O símbolo pode ou não desempenhar sua função estruturante. Isto pode ser exemplificadode maneira mais clara no relato de Thaís, em que não há uma elaboração dos símbolos que surgem na relação jogador-jogo, dando-se uma fuga da experiência dos mesmos. Entretanto, se devidamente trabalhados, tais símbolos podem vir a contribuir para o desenvolvimento psíquico. O relato de Thaís também evidencia o quanto a atividade de jogar videogame pode vir a comprometer a qualidade de vida de um indivíduo, uma vez que esse jogar se revela como uma forma de fechar-se e escapar de vivências difíceis. De acordo com o mostrado por Oliveira (2005), se os conteúdos arquetípicos que emergem na dependência não são elaborados e integrados, o contato com o Self fica na sombra, e o indivíduo é assombrado pelos sintomas da dependência.

Para Jacobi (1957/1990), o símbolo designa algo que, por trás de um sentido objetivo, oculta um sentido invisível e mais profundo, invocando uma intuição e atraindo o homem que o admira. Waldir é atraído pelas histórias dos jogos e suas finalizações, e traz lembranças de suas próprias vivências. Bernardo se identifica com a imagem arquetípica do ladino e nos jogos tem a oportunidade de viver e elaborar a sensação de ser o mesmo, aludindo talvez também ao símbolo do herói solitário.

Em todos os entrevistados emerge um significado simbólico da relação jogador-jogo, trazendo conteúdos inconscientes que possibilitam a ampliação da consciência. A fala dos participantes é permeada de afeto e identificações com personagens e narrativas. Os significados objetivos de personagens e narrativas são transformados por meio dessa relação de acordo com a realidade psíquica de cada jogador. Para Antônio, o personagem escolhido como o mais marcante foi descrito como oposto à forma com que usualmente é tomado, preenchido por aspectos da relação pessoal do participante com o mundo no momento da escolha da personagem.

Além disso, há o exercício da alteridade, promovendo a experimentação de situações que diferem daquelas vivenciadas cotidianamente como, por exemplo, o relaxamento proporcionado pelo jogar e a possibilidade de vivenciar diferentes personas. Assim como a utilização da internet, conforme descrita por Farah (2009), o jogar videogame pode propiciar a ampliação da consciência e a integração de aspectos criativos da personalidade. Essas experiências podem ser estendidas para além do próprio jogo, estando relacionadas ao processo de individuação. Podem contribuir para o tornar-se o próprio si-mesmo, a realização das potencialidades individuais e uma relação mais completa do indivíduo com si próprio e com o mundo que o cerca (Jung, 1971/1998).

Como questionamentos levantados e que sugerem posteriores pesquisas, indica-se um aprofundamento da investigação da sombra e da persona na relação jogador-jogo. Outra questão emergente é a validade da investigação dessa relação como material para uso clínico, baseando-se na importância do trabalho de elaboração dos símbolos que nela se apresentam. Assim como sonhos, pinturas, poemas, livros e cenas de filmes podem servir para revelar conteúdos inconscientes (Hauke, 2009), a relação jogador-jogo tem grande potencial para impulsionar a formação de símbolos.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 7/10/11
Revisto em 11/06/12
Aceito em 15/06/12

 

 

* Endereço para correspondência: Laboratório de Estudos da Personalidade (LEP). Av. Prof. Mello Moraes, 1721. São Paulo - SP. CEP: 05580-900; Telefone: (11) 3091-4172; e-mail: lep@usp.br
1 Parte de pesquisa realizada no Laboratório de Estudos da Personalidade (LEP) do Instituto de Psicologia da USP e parcialmente apresentado no V Congresso Latino-americano de Psicologia Junguiana, em Santiago del Chile, em 2009. Nossos agradecimentos a Ketty Keila Neto da Silva Borges pela sua contribuição.
2 Em comunicado em entrevista pessoal, 13 de março, 2009, no Núcleo de Pesquisas de Psicologia e Informática (NPPI) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
3 Jung (2000) utiliza o termo psicóide para se referir à natureza da matriz inconsciente básica, evitando assim reduzir tudo ao psíquico. Trata-se da forma básica irrepresentável do arquétipo, que ainda não diferencia âmbitos como o psicológico e o fisiológico, mas lhes fornece embasamento.
4 A experiência do numinoso é a experiência de uma força tremenda e compulsiva, que confronta o ego com um significado ainda não revelado, portanto atrativo, causando alteração na consciência (Jung, 1937/1978, Vol. XI, parágrafo 6). Inspirando-se no termo proposto por Rudolf Otto para designar o âmbito irracional da experiência do sagrado, ou seja, aquele no qual os elementos da experiência não podem ser nomeados e nem conceituados pela linguagem, Jung usou o termo "numinoso" para expressar o dinamismo do arquétipo,que se sobrepõe à vontade consciente e atrai com seu fascínio.
5 Textualização é um dos procedimentos adotados por pesquisadores que trabalham com História Oral e implica a passagem do registro oral para o escrito, de maneira mais claramente definida; suprimem-se as perguntas do entrevistador e certos vícios de linguagem, buscando manter a fluidez do texto (Bom Mehy, 1996).
6 Histórias em quadrinhos feitas no estilo japonês.
7 Desenhos animados produzidos no Japão.