Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
Violência sexual: as marcas na representação da imagem corporal da criança vitimizada
Sexual violence: the wounds on the representation of the body image of the victimized child
Hilda Rosa Capelão Avoglia*; Victória Pereira Garcia; Valeska Carioca Frizon
Universidade Metodista de São Paulo - SP - Brasil
RESUMO
A violência sexual contra a criança representa um dos maiores desafios da contemporaneidade, desencadeando dificuldades no desenvolvimento emocional, cognitivo e social, muitas vezes observadas a partir da representação mental que a criança faz de seu próprio corpo. Esta pesquisa teve como objetivo analisar a imagem corporal de crianças vítimas de violência sexual a partir do Desenho da Figura Humana. Trata-se de um estudo baseado na análise dos dados oriundos de entrevistas e testes psicológicos registrados nos prontuários de quatro crianças atendidas em um centro de referência (CRAMI). O material foi analisado qualitativamente sob uma perspectiva psicanalítica. Os resultados indicaram que essas crianças apresentaram descontentamento e ansiedade em relação ao desenvolvimento de seu corpo. Apresentaram incapacidade para compreender o excesso de excitação vivido como traumático. O processo psicoterápico mostrou-se necessário para facilitar a elaboração da experiência e contribuir para o ajustamento social de tais crianças.
Palavras-chave: Abuso sexual; violência doméstica; crianças vitimizadas; imagem corporal.
ABSTRACT
Child sexual abuse is one of the biggest challenges of contemporary society, triggering difficulties in emotional, cognitive and social development that are often observable in the mental representation that the child has of her own body. Therefore the research aimed to examine the body image of children, victims of sexual violence, using the Human Figure Drawing. This is a study based on data analysis observed in interviews and psychological tests that were part of reports of four children treated at the Regional Center of Attention to Maltreatment in Childhood (CRAMI). The material was analyzed qualitatively under a psychoanalytic perspective. The results indicated that these children are discontent and anxious about the development of their body. They manifested inability to understand the excess of excitement experienced as traumatic. The psychotherapeutic process proved to be necessary to facilitate the elaboration of the experience and contribute to the social adjustment of these children.
Key words: Sexual abuse; domestic violence; victim child; body image.
INTRODUÇÃO
Imagem corporal
Ao longo da história, diversos autores colaboraram e elaboraram estudos para definir o conceito que atualmente é chamado de imagem corporal. Trata-se de um conceito relevante em Psicologia, uma vez que seu entendimento permite ampliar a compreensão do corpo.
Para Dolto (2010), a imagem corporal é a junção de todas as nossas experiências emocionais inter-humanas e repetitivamente vividas por meio de sensações erógenas. Ela se dá pela articulação dinâmica de uma imagem que temos como base, de uma imagem funcional e de uma imagem das zonas erógenas onde a tensão das pulsões é expressa. Diante disso, é correto afirmar que a imagem corporal é sempre inconsciente.
Schilder (1980) afirma que imagem corporal é a representação do corpo como experiência psicológica e engloba as atitudes e sentimentos da pessoa em relação a seu próprio corpo, principalmente aqueles relacionados às experiências subjetivas com o corpo e a maneira como estas foram organizadas. Assim, a própria imagem corporal é formada a partir das vivências que são construídas por meio da interação social e das atitudes dos outros.
De acordo com Van Kolck (1984), essa imagem não é uma representação fiel do corpo, mas é uma imagem elaborada pela própria pessoa de acordo com os mecanismos de sua personalidade e de suas vivências passadas e presentes. Além disso, a imagem corporal é influenciada pelo corpo do outro e pela maneira e qualidade do relacionamento entre eles. A mesma autora afirma que a imagem corporal se desenvolve como produto da relação da pessoa com o outro e da concepção do próprio corpo. Pode-se dizer que há uma troca interminável entre a imagem do próprio corpo e a imagem do corpo do outro por meio de processos de projeção e introjeção.
A criança pode se expressar por intermédio de seu desenho e fazer associações de ideias e se comunicar consigo e com outrem. Qualquer desenho feito pela criança é uma representação que ela tem do mundo e das pessoas que estão a sua volta. Ela também pode representar seu pai, sua mãe, sua família, o meio onde vive e também a sua própria subjetividade, sendo essas simbolizações feitas a partir da experiência que teve ao longo de sua história e de todas as relações que teve com as mesmas (Dolto, 2010).
Violência contra a criança
Além de ser um problema frequente em nossa sociedade, a violência doméstica contra crianças tem sido um tema recorrente na sociedade. É importante que se trate este tema, pois, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, o número de crianças e adolescentes que sofrem maus-tratos todos os dias é muito grande e se constitui em uma das principais causas de morte em todo o mundo, atingindo proporções endêmicas (Dahlberg & Krug, 2002).
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002), a violência, em seu sentido mais amplo, pode ser definida como o uso proposital de força física ou poder, em forma de ameaça ou praticada contra si, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, podendo gerar machucados, morte, consequências psicológicas negativas, privações ou dificuldades no percurso do desenvolvimento. Ainda, segundo a OMS, pode ser classificada em quatro grandes categorias, sendo elas: violência contra si mesmo, ou seja, autoinfligida; violência interpessoal, que é classificada como violência intrafamiliar ou doméstica, isto é, entre membros da família ou parceiros íntimos; violência comunitária, que ocorre no ambiente social em geral, ou seja, entre conhecidos e desconhecidos; e violência coletiva, que abrange atos violentos em geral ocorridos nos âmbitos sociais, políticos e econômicos.
De acordo com Reichenheim, Hasselmann e Moraes (1999), muitos estudiosos da área apontam que as principais consequências dos maus-tratos na infância ocorrem no desenvolvimento infantil nas esferas física, emocional, social, comportamental e cognitiva. Conforme explicam esses autores, essas consequências podem ser classificadas em dois eixos: o primeiro se refere às consequências traumáticas, quer sejam físicas, afetivo-emocionais ou aquelas agravadas pelas implicações da saúde materno-infantil como no caso da desnutrição, do baixo peso ao nascer, entre outros. O segundo eixo associa-se à relação de tempo entre a exposição da vítima à violência e o aparecimento do agravo. Dessa forma, as consequências podem ser imediatas, de médio ou de longo prazo, como explicam os autores.
Embora as consequências da violência sexual sofrida pela criança não sejam apenas emocionais e comportamentais, estas são predominantes. Em curto prazo, as possíveis consequências apontadas por Azevedo e Guerra (2007) são relacionadas a problemas de ajustamento sexual, os quais, de modo mais específico, indicam a preocupação com assuntos sexuais, atividades masturbatórias, promiscuidade, além de comportamentos impulsivos e autodestrutivos. A longo prazo, as autoras registram a disfunção, insatisfação ou aversão à atividade sexual, masoquismo e incesto, entre outros.
Segundo Azevedo e Guerra (1995) a violência doméstica contra crianças e adolescentes ocorre a partir de atos e/ou omissões praticados por pais, parentes ou qualquer pessoa que seja responsável pela criança e/ou adolescente, os quais causam dor ou dano físico, psíquico e/ou sexual à vítima. As autoras especificam que os atos violentos que ocorrem dentro dos lares e especificam suas formas:
1) Violência física: qualquer ação, única ou repetida, não acidental ou intencional, copor um agressor mais velho que a criança e/ou adolescente, que lhe provoque qualquer consequência leve ou extrema (Claves, s.d, apud Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância, 2006);
2) Violência psicológica: conjunto de atitudes, palavras ou ações com o intuito de envergonhar, censurar ou pressionar a criança de forma permanente, seja mediante ameaças, humilhações, gritos, rejeição ou isolamento (Claves, s.d. apud CRAMI, 2006);
3) Violência sexual: todo ato ou jogo sexual entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos e que tenha por finalidade o prazer sexual do adulto, seja ele homem ou mulher (Azevedo & Guerra, 2007);
4) Violência fatal: atos ou omissões por parte de pais, parentes ou responsáveis pela criança ou pelo adolescente que lhes causam consequências físicas, emocionais e sexuais e que podem ser determinantes para a sua morte (Lino, Maio & Caravieri, 2008);
5) Negligência (ou abandono): ocorre quando os pais deixam de satisfazer as necessidades do filho, impedindo que este cresça e se desenvolva de maneira saudável (Lino, Maio & Caravieri, 2008).
Um estudo feito no Laboratório de Estudos da Criança do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (LACRI/IPUSP, 2007) mostra os casos de violência contra crianças no Brasil, notificados entre 1996 e 2007. Nesse período, 159.754 situações de violência doméstica foram notificadas, sendo que 65.669 (41,1% do total) eram casos de negligência, 49.481 (31%) de violência física, 26.590 (16,6%) de violência psicológica, 17.482 (10,9%) de violência sexual e 532 casos (0,3%) de violência fatal, ou seja, que resultaram na morte da vítima. Entretanto, é importante ressaltar que esses números referem-se apenas a uma parte do problema, pois, segundo Azevedo e Guerra (1995), há muitos casos não notificados de violência contra crianças, e isso é resultado do silêncio da própria família da vítima, parentes, vizinhos e profissionais que não fazem a denúncia.
No caso da violência sexual, objeto do presente estudo, a própria criança também contribui para o grande número de casos não notificados, pois, como consta no Relatório sobre o estudo das Nações Unidas sobre violência contra crianças (Pinheiro, 2006), a maioria delas não revela os abusos sexuais que sofreram por medo do que possa lhes acontecer e às suas famílias, por acharem que suas famílias ficarão envergonhadas ou acharem que as pessoas não irão acreditar nelas.
Pfeiffer e Salvagni (2005) apontam que na maioria dos casos de violência sexual o agressor e a criança têm algum parentesco, o que gera uma lesão psicológica na criança muito mais grave do que no abuso realizado por estranhos. Nesses casos, o agressor se aproveita da relação de confiança e poder que tem com a criança para praticar atos abusivos que, em um primeiro momento, são vistos por ela como demonstrações de afeto e interesse que a fazem se sentir privilegiada.
A violência sexual, diferentemente do que muitas pessoas pensam, não significa apenas que o indivíduo foi estuprado e também não atinge apenas as meninas, embora a maior parte das notificações feitas revele que o gênero feminino prevalece entre as vítimas, como argumentam Caravieri e Maio (2007). Esse tipo de violência já acontece, quando uma criança ou adolescente estiver envolvido em atividades sexuais com adultos, sejam estas "consentidas" ou não e independentemente de haver ameaças ou uso de força física, explicam as referidas autoras, afirmando que pode envolver ações com ou sem contato físico.
No caso, o exibicionismo é apontado como uma violência sexual caracterizada sem o contato físico, pois envolve a exibição dos órgãos genitais à criança/adolescente ou ainda fazer com que presenciem uma relação sexual ou masturbação. Da mesma forma, o voyeurismo, quando o adulto quer obter prazer sexual por intermédio da observação de atos ou órgãos sexuais da criança/adolescente, geralmente estando em algum local onde não seja percebido pelas outras pessoas. Ainda podem ser incluídas aqui as falas obscenas, quando abordam explicitamente situações sexuais ou dirigidas diretamente à criança/adolescente com palavras ou frases com conteúdo sexual. Outra forma característica da violência sem contato físico ocorre por meio de material pornográfico, mostrando à criança/ adolescente vídeos ou fotos com pornografias ou até mesmo utilizar as crianças para produzir esse tipo de material (Caravieri & Maio, 2007).
No que tange a violência sexual especificada pelo contato físico entre o agressor e a vítima é considerada a relação sexual, quando o adulto manipula o corpo da criança/adolescente e faz com que o corpo dele também seja manipulado para que se obtenha prazer seja vaginal, anal ou oral ou carícias, como explicam Caravieri e Maio (2007).
Diante da identificação da ocorrência da violência, se faz necessário pensar nas consequências danosas para o desenvolvimento, tornando necessário o tratamento dessas crianças/adolescentes, pois foi causado um sofrimento psíquico intenso. Nesse sentido, Almeida (2012) indica os benefícios da psicoterapia, apontada como indispensável para o tratamento de crianças vítimas de abuso sexual e, em alguns casos, como sendo mais eficaz que a farmacoterapia.
Ross e O'Carroll (2004 apud Almeida, 2012) apontam a necessidade de maior assertividade no trabalho do psicólogo junto à criança vítima de violência sexual. Os autores recomendam encorajá-la a expressar sentimentos relacionados ao abuso; esclarecer crenças incorretas que a levam a atribuir ideias negativas em relação a si e aos outros; auxiliar na prevenção de novas situações de abuso; e diminuir o senso de estigma e isolamento da criança por meio do contato com outras crianças em atendimentos em grupo.
Diante destas considerações, o presente estudo teve como objetivo identificar e analisar a imagem corporal de crianças vítimas de violência doméstica, especificamente de violência sexual.
MÉTODO
Participantes
Trata-se de um estudo do tipo documental baseado na análise de quatro prontuários de casos de crianças, dois meninos e duas meninas, atendidas no Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância (CRAMI), no período de maio de 2011 a outubro de 2013. O material estudado é referente a dois meninos e duas meninas, com idades entre sete e nove anos e que sofreram violência sexual por parte do pai, do padrasto e de uma pessoa próxima à criança, conforme dados obtidos em seus respectivos prontuários.
A seleção dos prontuários foi realizada por conveniência, sendo que compuseram a amostra apenas os documentos nos quais a criança atendida, além de estar inserida na faixa etária aqui definida, ou seja, entre sete e nove anos, contasse no mínimo com 40% de frequência aos atendimentos psicológicos e sociais durante o período estabelecido no estudo. Outro critério de inclusão se refere ao fato de a criança ter sofrido violência do tipo sexual e dispor em seu prontuário de registros de material gráfico advindo de testes ou de procedimentos psicológicos, especialmente quando se tratava de Desenhos de Figuras Humanas, considerando-se o objetivo deste trabalho. Dentre estes, quatro prontuários foram selecionados aleatoriamente para integrar o estudo.
A consulta aos documentos foi realizada a partir da autorização da instituição coparticipante, sendo a coleta feita exclusivamente nesse espaço, garantido o sigilo da consulta. Foi utilizado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, além do Termo de Assentimento, sendo asseguradas as exigências éticas previstas.
Instrumentos
Sobre o conteúdo dos prontuários, o estudo se voltou para a análise dos seguintes instrumentos:
a) Dados sobre os atendimentos psicológicos da criança: informações sobre os atendimentos individuais ou em grupo, ou seja, dados relativos ao que foi realizado na sessão, como técnicas projetivas, procedimentos lúdicos, gráficos, além de descrições de comportamentos, manifestações da criança diante das tarefas propostas pelos profissionais que a atendem.
b) Teste do Desenho da Figura Humana (DFH) presente nos prontuários das crianças: segundo Van Kolck (1984), o desenho possibilita a projeção da personalidade e o aparecimento de manifestações mais diretas, profundas e inconscientes que a criança desconhece, não quer ou não pode revelar. O Desenho da Figura Humana, especificamente, é um dos mais úteis e adequados para a exploração da personalidade, haja vista que a imagem corporal é projetada nele, ou seja, o conceito de si mesmo é projetado. Machover (1956 apud Van Kolck, 1984) complementa com a ideia de que a figura desenhada está intimamente ligada ao eu em todas as suas dimensões. Dessa forma, por meio da análise feita desse material, é possível verificar a representação que a criança tem de seu próprio corpo, bem como sobre o ambiente em que está inserida, e identificar se ela sofreu algum tipo de violência.
c) Outros dados arquivados nos prontuários: se referem às entrevistas, relatórios e cartas de encaminhamento do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), uma vez que a demanda do CRAMI é exclusivamente oriunda dos encaminhamentos do CREAS, conforme determina o fluxo da rede de atendimentos.
PROCEDIMENTO
Este estudo foi autorizado pelo Comitê de Ética da Universidade Metodista de São Paulo, sendo que as pesquisadoras selecionaram os prontuários e coletaram os dados no próprio espaço da instituição, ou seja, no CRAMI, atendendo aos critérios éticos estabelecidos.
Para se conhecer dados sobre a história de vida da criança foi considerada a totalidade das informações contidas no prontuário, como dados de entrevistas, cartas de encaminhamento do CREAS, documentos da escola onde estudavam, descrições de comportamentos, manifestações das crianças diante das tarefas propostas pelos profissionais que as atendiam, desenhos realizados nas sessões psicoterapêuticas, a fim assegurar uma análise mais aprofundada de cada caso. Foi considerada a necessidade de investigar minuciosamente qualquer registro visando a obtenção mais completa possível dos dados pertinentes à compreensão do ocorrido com a criança.
Primeiramente os dados foram organizados de modo a descrever a história de vida de cada criança e, posteriormente, foi analisado o material gráfico, disponível no prontuário, neste caso, o DFH, a partir dos indicadores estabelecidos por Van Kolck (1984). O estudo do material coletado e analisado seguiu o método clínico qualitativo embasado em uma perspectiva psicanalítica. Cada caso foi individualmente analisado a partir da articulação entre a história de vida e a interpretação do DFH. Posteriormente, foi elaborada uma síntese conclusiva integrando a análise de todos os prontuários.
RESULTADOS
A análise dos prontuários das quatro crianças permitiu identificar que as crianças são atendidas no CRAMI desde 2011, a duração mínima da psicoterapia foi de um ano e 6 meses, e duas dessas crianças estavam sendo atendidas até outubro de 2013, quando ocorreu a análise dos dados. Outro aspecto importante é que o agressor é uma pessoa que faz parte do convívio de cada criança. Esse dado já foi apontado na literatura científica da área por Pfeiffer e Salvagni (2005), mostrando que o agressor, em casos de violência sexual, tem algum nível de parentesco com a criança ou mesmo alguém que se vale da relação de proximidade e confiança, nos casos estudados são pai, padrasto e em um dos casos, pessoa que convivia com a família.
As informações coletadas nos prontuários das crianças participantes foram organizadas e serão apresentadas a seguir identificando-se inicialmente aspectos da história de vida da criança, seguidos da análise do material gráfico produzido, ou seja, neste estudo, o Desenho da Figura Humana. Assim, a seguir serão apresentamos cada um dos casos estudados, ressaltando-se que os nomes são fictícios a fim de assegurar o sigilo ético necessário para estudos dessa natureza.
Caso Mariana
Mariana é uma menina de oito anos, atendida no CRAMI entre dezembro de 2011 e junho de 2013. Quando a denúncia foi feita, a criança cursava o 1o ano do Ensino Fundamental em uma escola da rede pública. Anteriormente, morava com a mãe e com o padrasto, mas após contar sobre o abuso para uma irmã mais velha, Mariana passou a morar com essa irmã e o marido (cunhado da criança). Posteriormente, interrompeu o atendimento para morar com outra irmã mais velha, que residia no Estado do Mato Grosso. Contudo, meses depois, retornou a Santo André e retomou o atendimento no CRAMI até junho de 2013, quando se mudou novamente para o Mato Grosso.
A escola suspeitava de que a criança havia sido abusada pelo padrasto, de 39 anos. Segundo a irmã mais velha de Mariana, o padrasto assistia a filmes pornográficos na frente dela e, além disso, pedia para que ela acariciasse seus órgãos genitais.
Em sua produção gráfica, a Figura Humana é representada de punhos cerrados indicando repressão da agressividade; sem a presença do pescoço, do nariz e das pernas, que, conforme a interpretação de tais indicadores proposta por Van Kolck (1984), pode estar relacionada a uma sensação de desamparo perante aos impulsos, à falta de companhia afetiva real, à falta de autonomia e à dependência que, consequentemente, desencadeiam um comportamento marcado pela passividade, também notada em seu desenho.
No que refere à forma como a criança se relaciona com o meio e consigo mesma, identifica-se que, apesar de Mariana demonstrar controle e sensibilidade social, também aparenta sentimentos de inadequação, mostrando-se como alguém que se preocupa com seu corpo e, por isso, desloca para sua aparência a necessidade de ser aceita e inserida socialmente. Estes aspectos ligados ao controle dos impulsos e preocupações sociais podem ser relacionados, segundo Van Kolck (1984) à presença no desenho dos cabelos penteados e bem cuidados, como também da representação da linha da cintura como um traço. Por outro lado, observa-se a acentuação de traços fisionômicos cuja análise indica a presença de traços de timidez, que podem influenciar suas relações interpessoais, de modo a torná-la uma criança cautelosa e hostil e inseri-la em relações superficiais. Além disso, demonstra estar voltada para si mesma, com traços agressivos, às vezes reprimidos por meio do mecanismo de regressão, tendência à perda de controle e, por isso, inclinada a maior exclusão.
No que se refere aos aspectos relacionados aos sentimentos e emoções de Mariana, percebe-se que há uma grande influência dos seus desejos e uma preocupação com seus impulsos, o que provavelmente está associado a sua teimosia e obstinação. Em seu desenho aparece também conflito entre modéstia e exibicionismo, com predomínio de traços exibicionistas devido ao grande impulso para se expor.
Quanto à sexualidade, Mariana, no Desenho da Figura Humana apresentou linhas angulosas e o tronco em forma de trapézio duplo, indicando sentimentos de insegurança na adaptação sexual, culpa em relação à ação manual, real ou fantasiada da masturbação, vitalidade sexual, traços de sensualidade e domínio dos impulsos sexuais sobre os intelectuais (Van Kolck, 1984).
Caso Heloísa
Heloísa é uma menina de sete anos, atendida no CRAMI entre 2011 até os dias atuais (outubro de 2013). Quando a denúncia foi feita, ela cursava o 1o ano do Ensino Fundamental em uma escola da rede pública. Atualmente, mora com uma irmã de quatro anos em uma instituição de abrigamento. Ambas foram retiradas da guarda da mãe, porque ela saía à noite e as deixava sob os cuidados de outras pessoas.
Segundo a mãe, o pai tinha o costume de assistir a filmes pornográficos na frente das crianças. Além disso, o prontuário registra ainda a suspeita de negligência, já que a mãe deixava as crianças sob os cuidados de outras mães para sair todas as noites.
O tipo do traçado no Desenho da Figura Humana foi caracterizado como grosso e contínuo indicando, segundo Van Kolck (1984), que Heloísa demonstra ser uma criança com energia, com confiança em si, agressão e hostilidade para com o ambiente e capaz de autoafirmação. Apesar disso, mostra também sinais de insegurança, que podem estar relacionados a sentimentos de inferioridade, de inadequação diante do mundo e à falta de confiança em si, quando faz rabiscos, sem forma e sem significado, próximos à figura humana desenhada. Observaram-se também traços agressivos e rebeldes, às vezes reprimidos por meio do mecanismo de regressão, representados graficamente por meio do uso de linhas angulosas e dedos sem a palma da mão.
No que refere à forma como se relaciona com o meio e consigo mesma, nota-se que Heloísa apresenta uma tendência à participação social, certa comunicabilidade social, interpretado pela figura humana toda de frente além de ser capaz de manter um contato ativo com a realidade (Van Kolck, 1984). Entretanto, a participante mostra-se ainda como uma criança egocêntrica e indicando a presença de traços de ingenuidade e timidez que podem influenciar no seu contato, interferindo nas relações interpessoais, de modo a mantê-las superficiais e pouco afetivas elaborando na figura os pés borrados, contorno do rosto com ênfase no contorno e nos caracteres faciais, como explica a referida autora. Ao desenhar as orelhas de tamanho grandes demonstra também estar suscetível à ofensa e resistente à autoridade.
No que se refere ao desenho de fita nos cabelos, a autora sugere a presença de esforços no sentido de conter os impulsos. O material permitiu identificar características de inadequação e pouca coordenação no que se refere, de modo especial, ao uso das mãos, pois, como aponta Van Kolck (1984), foram representadas no desenho como exageradamente grandes. Essa mesma característica gráfica, ou seja, tamanho de mãos, pode ser associada ao mecanismo de compensação diante da insuficiência manipulatória, dificuldade de contato ou inadequação no uso da mão. É necessário destacar que outras características apresentadas por Van Kolck (1984) se dirigem a desenho de adultos e, portanto, não podem estar relacionadas à produção gráfica de uma criança, como neste caso.
A análise dos resultados acima descritos associados à presença de distúrbios na simetria da figura e a desproporcionalidade no desenho dos membros superiores e inferiores do DFH demonstram certa desarmonia na personalidade e nos comportamentos de Heloísa, com certo grau de desintegração. A criança apresenta ambivalência em relação ao controle dos impulsos, haja vista que, em alguns momentos, são observados o desamparo e o descontrole e em outros, a contenção dos impulsos. Essa ambivalência pode gerar a perda de controle e rebeldia, o que também pode ser verificado na análise do desenho, especialmente no que tange à localização do desenho na folha, ou seja, no canto superior direito, primeiro quadrante.
Caso Gabriel
Gabriel é um menino de sete anos, atendido no CRAMI entre maio de 2011 e agosto de 2013. Quando a denúncia foi feita, a criança cursava o 1o ano do Ensino Fundamental em uma escola da rede pública. Atualmente mora com a mãe e um irmão de 11 anos, porém Gabriel e seu irmão moraram em uma instituição de abrigamento durante seis meses, pois em uma visita à casa da criança, a assistente social que acompanhava o caso encontrou-se inesperadamente com o agressor, desencadeando, a partir desse episódio, a suspeita de que a mãe o estivesse acobertando.
A denúncia do abuso sexual foi feita pela própria mãe da criança, que registrou Boletim de Ocorrência contra o pai de Gabriel, de 33 anos. A mãe afirmou nunca ter suspeitado dele, pois sempre foi uma pessoa moralista e religiosa. Segundo ela, a criança contou a uma tia materna sobre o abuso sofrido e esta contou à mãe. O irmão de Gabriel afirmou que a história dele é verdadeira e que havia presenciado o ocorrido.
A análise do DFH apresenta indicadores de uma criança afetiva, observadora, decidida e fixada ao inconsciente e, por isso, fantasiosa e com certo dom de imaginação e contemplação, aspectos interpretados na produção gráfica a partir do desenho de uma paisagem como complementar à figura humana. Além disso, demonstra estar emocionalmente fragilizada, o que pode estar relacionado a uma sensação de desamparo, à falta de companhia afetiva real e a comportamentos emocionalmente dependentes identificados no desenho pelo fato de acrescentar outra figura humana ao lado da primeira. Tais características, consequentemente, desencadeiam um comportamento regredido, marcado pela presença de defesas, pela manifestação da passividade e preocupação com o estar no mundo, também identificadas na análise da linha de solo acentuada, localização do desenho na folha ocupando o quarto quadrante e com relação ao tamanho pequeno da figura em relação à página. Todavia, foi possível verificar o traçado do tipo contínuo como indicador da capacidade de autoafirmação (Van Kolck, 1984).
No que refere à forma como a criança se relaciona com o meio e consigo mesma, identifica-se que, apesar de apresentar ênfase excessiva e confiança exagerada nas funções social, ideacional e de controle observados no desenho pelo tamanho grande da cabeça da figura, Gabriel mostra dificuldade de manipular o meio devido a problemas de contato e sentimentos de inadequação, insegurança e ansiedade, interpretados, segundo Van Kolck (1984) a partir da representação gráfica de braços longos e finos, em uma linha apenas e estendidos para o ambiente. Essa dificuldade pode estar relacionada à forma como a criança interage com o meio, pois a análise indica a presença de traços de timidez identificada na qualidade do grafismo, que pode influenciar suas relações interpessoais, de modo a torná-lo uma criança demasiadamente cautelosa e hostil e inseri-lo em relações superficiais. Entretanto, Gabriel demonstra uma urgência de participação e capacidade de adaptação social, uma vez que apresenta certa comunicabilidade social e não tem problemas de contato, pela figura desenhada de frente com braços estendidos para o ambiente.
Gabriel desenha uma figura humana com tórax de tamanho grande, que Van Kolck (1984) interpreta como preocupação com a beleza corporal. Por outro lado, esse mesmo elemento, ou seja, o tórax apresenta-se sombreado, o que, conforme a autora, indica ansiedade em relação ao corpo no que se refere ao desenvolvimento da expressão de sua masculinidade. Observam-se igualmente traços de inferioridade, inibição e mecanismos de negação, sensação de desamparo e sentimento de castração interpretados a partir de indicadores como o tamanho do desenho em relação à folha, associado ao uso de linhas finas no traçado.
No que se refere à sexualidade, Gabriel, por meio de sua produção gráfica, apresentou sentimentos de culpa em relação à masturbação, desencadeando fantasias de automutilação devido à manipulação sexual pela ausência das mãos no desenho. Identificou-se ainda exibicionismo e ansiedade em relação ao desenvolvimento corporal e desordem sexual, inclusive no que diz respeito à negação da oralidade, que pode estar relacionada ao fato de tratar-se da produção gráfica de uma criança, reafirmando a notada infantilidade no plano sexual, além da condição de ter sofrido abuso sexual.
Caso Marcos
Marcos é um menino de nove anos, atendido no CRAMI no período de maio de 2011 até os dias atuais (outubro de 2013). Quando a denúncia foi feita, cursava o 2o ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública. Anteriormente morava com a mãe e três irmãos sem local adequado, perto de um ponto de tráfico e passava muito tempo na rua. Sua mãe contou que não queria usar o valor do aluguel social para ir morar em outro lugar, pois perderia a oportunidade de participar do projeto de urbanização previsto para ser realizado no local.
De acordo com o relatório do CREAS, a baixa frequência escolar, a prática do trabalho infantil, a resistência da mãe ao tratamento e uso de psicoativos levaram a criança e os três irmãos a serem acolhidos por uma instituição de abrigamento, onde estão até os dias atuais. Havia a suspeita de que a criança sofreu abuso no período em que permaneceu nas ruas, e durante o acolhimento na instituição sofreu abuso por parte de um adolescente também morador do abrigo.
A análise do Desenho da Figura Humana, considerando o traçado do tipo avanços e recuos, além da localização na metade superior da folha, aponta sinais de ansiedade, presença intensa de fantasias e insegurança. Mostra-se também emocionalmente imaturo e dependente, observando-se no desenho uma figura sem nariz e sem os braços, o que pode estar relacionado a uma sensação de extremo desamparo (Van Kolck, 1984).
Sobre a forma como se relaciona com o meio e consigo mesmo, observa-se que, apesar da criança manter o contato e o desejo de obter aprovação social, revela-se sem recursos internos para lidar com problemas representados pelas relações interpessoais e, por isso, parece hesitar ao encontrar situações novas, sendo estes aspectos analisados pela ausência dos braços no desenho. Além disso, a análise indica a presença de traços de timidez, que também podem influenciar a forma de contato social e suas relações, de modo a torná-la hostil ou agressivo, observados por Van Kolck (1984) como característicos de traços confusos na face e sombreamento em partes do corpo como as mãos.
No que se refere à sexualidade, apesar de haver uma sensibilidade primitiva associada a impulsos sexuais infantis, neste caso, está dentro do esperado, uma vez que se trata de uma criança de nove anos, como explica Van Kolck (1984) referindo-se ao desenho dos cabelos da figura como desordenados, como elaborado por Marcos. Foi possível notar no desenho os olhos de tamanho grande, sem pupila e apenas com o contorno em forma de círculo, indicando a presença de impulsos insatisfeitos, que podem estar relacionados à culpa em relação à masturbação e ao voyeurismo, como analisa a referida autora. Observou-se certa inadequação e desordem sexual quanto à exagerada consciência sexual relacionada à presença de pernas curtas e finas no desenho, possivelmente associada ao comportamento masturbatório, desencadeando sentimentos de culpa intensos e fantasias de automutilação representada pela ausência dos braços e mãos.
O desenho da criança revela ainda sentimento de impotência, de descontentamento com o próprio corpo e traços de ansiedade em relação ao desenvolvimento do mesmo, observados diante de distorções na forma do desenho do tronco. Além disso, nota-se a representação dos pés encompridados indicando, conforme Van Kolck (1984) sentimentos de insegurança no caminhar e no estar no mundo.
A articulação dos dados analisados mostra o comportamento desarmônico da criança, porém há um esforço para manter o equilíbrio da personalidade devido a uma grande mobilidade psíquica, mesmo que seja pelo uso defensivo da agressividade e da impulsividade verificados mediante a presença de ação e de movimento no DFH. De modo geral, a criança apresenta ambivalência no que se refere à adaptação, confiança e decisão, uma vez que em determinados momentos há o predomínio dessas características e em outros a falta delas, ou seja, inadaptação, desconfiança e insegurança, caracterizando um perfil desintegrado, dissociado e frágil, com tendências depressivas.
DISCUSSÃO
Após analisar os Desenhos da Figura Humana das participantes identifica-se no aspecto psicodinâmico, o predomínio de certa preocupação com o corpo, que se manifesta como descontentamento e ansiedade em relação ao desenvolvimento da sexualidade. A interpretação de tais características, segundo Van Kolck (1984), pode ser associada ao grafismo do tronco e do tórax com indicadores como tamanho grande em relação ao corpo da figura, sombreamento, contorno duplo, além da presença de linhas angulosas e de distorção na forma como foi elaborado. Todavia, a mesma autora argumenta que a imagem corporal não é uma representação fiel do corpo, mas uma imagem elaborada de acordo com as vivências passadas e a partir da relação da pessoa com o outro, da concepção do próprio corpo e da maneira e da qualidade do relacionamento entre eles, ou seja, há uma troca interminável entre a imagem do próprio corpo e a imagem do corpo do outro por intermédio de processos de projeção e introjeção. Dessa forma, ainda com base nas afirmações de Van Kolck (1984) de que a imagem corporal é projetada no DFH, pode-se dizer que, no caso dessas crianças, a violência sexual sofrida gerou marcas que são simbolizadas na construção de sua imagem corporal e esta, por sua vez, foi representada graficamente no em seus desenhos.
No caso do abuso sofrido pelas crianças do presente estudo, pode-se pensar que elas não contaram com recursos internos suficientes para compreender e dar conta da situação vivida, tornando-a traumática e angustiante. Tal reflexão, de acordo com Freud (1920/1996), se sustenta, pois o excesso de excitação aproxima o princípio do prazer da estabilidade completa, obrigando o aparelho mental a se reorganizar, uma vez que esse excesso de excitação é algo desagradável e traumático, que resulta na incapacidade de dar conta da situação e de compreendê-la.
O fato dos agressores terem algum grau de parentesco ou conviverem no mesmo ambiente que as crianças, como nos casos estudados nos quais o pai ou o padrasto figuram como os agressores sexuais, corrobora as afirmações de Pfeiffer e Salvagni (2005) de que o agressor se aproveita da relação de confiança e poder com a criança para praticar atos abusivos que, em um primeiro momento, são vistos por ela como demonstrações de afeto e interesse, que a fazem se sentir privilegiada.
No que se refere ao desenvolvimento sexual, a interpretação dos desenhos permitiu verificar que as crianças deste estudo apresentavam sentimentos de insegurança na adaptação sexual e dificuldades de se satisfazerem nas vivências cotidianas, mesmo considerando-se as idades. Foram identificadas também preocupações relativas à sexualidade, atividades masturbatórias e o esforço para contenção dos impulsos destrutivos, observado no desenho dos cabelos, da cintura dividindo o corpo em duas metades e no tipo de traço. Os resultados demonstram ainda a falta de confiança em si mesmo indicada pelos complementos nos desenhos. É importante ressaltar que esses aspectos se referem ao ajustamento sexual e foram apontados por Azevedo e Guerra (2007) como possíveis consequências, a curto prazo, da violência sexual infantil. As referidas autoras alegam que, também que ao longo do desenvolvimento, será possível notar comprometimentos na sexualidade, advertindo para o risco de violência sexual e negligência com os próprios filhos.
Embora não fosse parte do objetivo deste estudo, o fato de se contar com prontuários de meninas e meninos na amostra (dois meninos e duas meninas) e, mesmo reconhecendo sua limitação na perspectiva quantitativa, os resultados permitem indicar a presença de traços diferentes entre as meninas e os meninos. Estes apresentaram sentimentos inadequação e culpa em relação à masturbação, comportamento inibido e cauteloso evitando contatos sociais. Já no caso das meninas, elas mostram traços de sensualidade, que podem estar associados a uma conduta mais ativa, comunicabilidade e facilidade de participação e contato social.
De certo modo, nos casos estudados identificam-se dificuldades no desenvolvimento da sexualidade, considerando-se prioritariamente a condição de vitimizados. Contudo, salienta-se que tais ponderações carecem de um estudo mais amplo, com mais casos, para que sejam consideradas significativas, podendo futuramente integrar uma pesquisa do tipo longitudinal, que certamente enriqueceria a compreensão diagnóstica da criança, sendo ela menino ou menina, que sofreu abuso sexual.
Essas considerações possivelmente se relacionam ao acompanhamento psicológico pelo qual as crianças aqui estudadas vêm se submetendo, uma vez que, mesmo tendo sofrido com a violência perpetrada, mostram capacidade de expressão de sentimentos e pensamentos. Segundo Terra (2011), é essencial que o terapeuta auxilie a criança a lidar com os sentimentos que emergirão durante os atendimentos, a trabalhar as marcas que ficam na vida da criança e ressignificar a experiência dolorosa, que foi a situação do abuso, a fim de prevenir as consequências citadas acima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo inicial do estudo, voltado para a análise da imagem corporal de crianças vítimas de violência doméstica, especificamente de violência sexual, permitiu também identificar aspectos psicodinâmicos que permeiam a imagem de si mesmos. A representação da imagem corporal destas crianças se apresentou desequilibrada e, mesmo considerando-se suas idades, foi constatado certo descontentamento em relação ao próprio corpo com implicações na formação da identidade.
Os resultados parecem refletir a desordem emocional dessa população, uma vez que a violência sexual não é um problema exclusivo do nosso país, mas é frequente em várias outras culturas, portanto, é importante que se discuta mais profundamente o tema, levando-se em conta as implicações danosas, tanto na perspectiva do desenvolvimento da criança quanto no âmbito de sua interação social. Ressalta-se ainda a relevância de uma ação conjunta entre os serviços tanto de saúde quanto de educação, que atendem às vítimas de violência, em especial, os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e os Centros Regionais de Atenção aos Maus Tratos na Infância (CRAMI), importantes órgãos de políticas públicas, que colaboram com a redução da repetição de eventos violentos e asseguram a defesa e a proteção das crianças. Essa ação conjunta, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), possibilita que a criança vítima de violência seja encaminhada a um tratamento psicológico, como no caso das participantes, o que parece contribuir para o percurso de seu desenvolvimento, após a vivência traumatizante a qual foi submetida.
Da mesma forma, se faz necessário considerar a importância da escola atentar aos comportamentos inapropriados e também às condições físicas das crianças, pois tais aspectos podem revelar indícios de maus-tratos. Por isso, é imprescindível que, nesses casos, a escola faça a denúncia para que o caso seja encaminhado ao CREAS e as devidas providências sejam tomadas visando à proteção da criança.
Por fim, salienta-se que trabalhar e pesquisar sobre violência sexual infantil se constituiu em uma tarefa complexa. Neste sentido, cabe serem destacadas possíveis limitações do trabalho, tais como o número limitado de casos e a dificuldade em avaliar algumas das informações contidas nos prontuários, uma vez que as pesquisadoras não tiveram nenhum contato direto com as crianças, mas apenas com suas produções. Sendo assim, ao final deste estudo, sugere-se que novas pesquisas sejam feitas na tentativa de aprofundar os conhecimentos nessa área, propor e desenvolver práticas e políticas de prevenção à violência doméstica infantil, a fim de aumentar os fatores de proteção e reduzir os fatores de risco à saúde física e psíquica da criança vitimizada.
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Recebido em 14/07/14
Revisto em 3/07/15
Aceito em 5/07/15
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