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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021
EDITORIAL
A revista Estudos de Psicanálise é uma publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) de extrema importância para nós, psicanalistas, e para pessoas de outras áreas que se interessam pelo tema, sejam profissionais que conosco atuam num enfoque multidisciplinar, sejam aqueles que usam a referência teórica em seu campo de trabalho no cotidiano.
Estamos, desde 2020, realizando uma travessia em águas revoltas e, nunca antes em nossas instituições, filiadas ao CBP, precisamos tanto escrever, estudar, conversar, buscar a proximidade dos colegas para entendermos como e para onde estamos direcionando este barco que nos pegou sem dia nem hora marcados, muito menos planejado por nosso desejo, desejo esse tão caro à nossa função de analista.
Com o isolamento causado pela pandemia do coronavírus, necessidade primordial para nos mantermos vivos, nos vimos desafiados aos atendimentos remotos e tivemos suspensos nossos encontros, nos quais estávamos em formação permanente, visto que o estudo da psicanálise se dá a partir de sua clínica no cotidiano e em nossos seminários de formação, nossas reuniões, nossas jornadas e congressos, entre tantos encontros presenciais.
Todos nós, sem exceção, sofremos perdas nesta pandemia. E não tem sido fácil exercer o desejo de analista e atender nossos clientes que vivem realidades muito próximas à de todos nós desde seu início. E esse desejo não nos fez recuar diante de um tempo inusitado, repleto de angústia, pois, como disse Lacan ([1953] 1998, p. 322) em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que "não conseguir alcançar [...] a subjetividade de sua época".
Gostaria de trazer aqui o acontecimento que tanto nos entristeceu nesse percurso, nos causando grande pesar: a perda de nossa querida colega Isabela Santoro Campanário, psiquiatra e psicanalista brilhante, que faleceu em maio de 2021, aos 53 anos, vítima da covid-19, e se contaminou uma semana antes da data da vacinação de seu grupo.
Esperamos juntas por essa vacina, perplexas com a demora para que nós, profissionais de saúde, pudéssemos ser protegidos para exercer nosso trabalho com pelo menos um pouco de segurança. Isabela manteve a quarentena na maior parte do tempo, mas com casos graves em seu consultório, precisou trabalhar de modo presencial em alguns momentos e, infelizmente, o vírus a alcançou.
Seu trabalho é de extrema importância para todos nós, possibilitando a intervenção junto a bebês e crianças a tempo de reverter algum quadro clínico grave que posteriormente possa definir a constituição psíquica de seus pequenos clientes. Isabela fez mestrado e doutorado na UFMG em pesquisa sobre o tema, em 2006 e 2013. E terminou recentemente seu pós-doutorado na USP, quando teve o curso de sua vida interrompido.
Escreveu o livro Espelho, espelho meu. A psicanálise e o tratamento precoce do autismo , lançado em 2008. Publicou vários artigos na área do autismo infantil e foi responsável pela implantação do projeto Intervenção a Tempo (atendimento psicanalítico mãe-bebê em risco de constituição psíquica) em 2003, na Rede Municipal de Saúde de Belo Horizonte, projeto considerado uma das diretrizes em Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de BH.
Isabela era graduada em medicina pela UFMG. Tornou-se médica psiquiatra da infância e adolescência, fez sua formação em psicanálise no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise, onde coordenava seminários nos últimos 20 anos. Atuava também na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte desde 1996, entre tantas outras funções que desempenhou com competência, como a preceptoria da residência multiprofissional em saúde mental e em pediatria do Hospital Municipal Odilon Behrens (PBH).
Perdemos uma colega muito competente e atuante. Seus dois filhos perderam uma mãe amorosa. Sua família perdeu uma pessoa extraordinária. Seus clientes perderam uma profissional incansável. E a ciência perdeu uma pesquisadora brilhante.
Triste é o país que não garante a saúde de seus cidadãos, de seus profissionais, de seus cientistas. Imensurável a dor dessa perda para todos nós, que tivemos o privilégio de conhecê-la. Perda inimaginável, principalmente por sua idade. Mais nova que muitos de nós.
Não está sendo fácil nos reerguermos para seguir em frente, ainda mais num cenário de absoluta descrença e abandono por parte dos que ocupam cargos políticos neste país. Mas se existe uma função que devemos sustentar, para além da função de analista, é honrar nossos pares e testemunhar o caminho que traçaram enquanto estiveram entre nós.
Para registrar o percurso de Isabela, estamos aqui, neste Editorial, reverenciando seu trabalho e seu legado. O que ela produziu com tanto afinco e rigor e nos deixou é de suma importância para o presente e o futuro de muitas gerações de crianças e de profissionais da área da psiquiatria e da psicanálise.
Gostaríamos de registrar aqui que Isabela foi uma das editoras da Estudos de Psicanálise entre 2010 e 2016, quando escolheu e convidou vários autores estrangeiros para publicar artigos em nossa revista.
Este número, além de trazer excelentes artigos de colegas e de nosso autor convidado, Juan Flores, Secretário Geral da IFPS, tem ainda a função de homenagear Isabela Santoro publicando um artigo sobre sua pesquisa. Na ausência de um artigo já elaborado antes de sua partida, coube a mim transcrever para esse formato a apresentação de seu trabalho no XXIII Congresso Brasileiro de Psicanálise - Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais (CBP/CPPA), realizado em 2019, em Belém do Pará. Espero ter cumprido nosso desejo para que fique aqui registrado o quanto sua ausência nos é cara.
Como nos lembrou Fernando Pessoa, "navegar é preciso, viver não é preciso". Não temos mesmo como seguir a vida com precisão. A psicanálise nos traz muito bem esse conhecimento. Se a vida é imprecisa, a morte, em algumas ocasiões, pode ser evitada. A medicina e a ciência evoluíram para diminuir essa imprecisão. Foram duas doses que faltaram e, por isso, perdemos Isabela. Mas continuaremos nosso navegar, ainda que em águas turvas e turbulentas, honrando o trabalho de cada colega que persiste em enfrentar o desconhecido e simbolizar a falta, deixando acesa entre nós a chama da vida, ainda que esta deixe de existir no real do corpo.
Isabela, sua vida pulsa entre nós!
Juliana Marques Caldeira Borges
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Vice-presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise