Estudos de Psicanálise
ISSN 0100-3437 ISSN 2175-3482
PSICANÁLISE E BEBÊS
Reflexões sobre o bebê em tempos de pandemia: contribuições de Ester Bick e Emmi Pikler1
Reflections on the baby in times of pandemic: contributions by Ester Bick and Emmi Pikler
Anna Lucia Leão LópezI, II; Eleonora Oliveira FilgueirasIII, IV
I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência
III Associação Brasileira de Psicomotricidade
IV Rede Pikler Brasil
RESUMO
Buscando pensar a constituição psíquica do bebê em tempos de pandemia, este artigo propõe o diálogo interdisciplinar entre psicanálise e psicomotricidade, usando como fio condutor as contribuições do método de observação psicanalítica da relação mãe-bebê (OPRMB), da psicanalista Esther Bick, e da abordagem proposta pela pediatra Emmi Pikler nos cuidados aos bebês em situação de acolhimento institucional.
Palavras-chave: Mãe-Bebê, Pandemia, Psicanálise, Psicomotricidade, Constituição do sujeito.
ABSTRACT
Seeking to think about the baby's psychic constitution in times of pandemic, this article proposes an interdisciplinary dialogue between psychoanalysis and psychomotricity, using, as guiding lines, the contributions of the Psychoanalytical Observation of the Mother-infant Relationship, method by psychoanalyst Esther Bick, and the approach proposed by pediatrician Emmi Pikler in the care of infants in institutional care.
Keywords: Mother-Baby, Pandemic, Psychoanalysis, Psychomotricity, Constitution of the subject.
Este trabalho é fruto de encontros virtuais, ocorridos entre novembro de 2020 até a conclusão deste artigo, com o propósito de intercambiar as experiências clínicas das autoras junto a bebês e crianças pequenas (0 a 3 anos) e suas famílias.
As autoras não têm a intenção de encerrar os encontros, pois mediante essas trocas virtuais um vínculo foi construído. Trata-se de uma tecitura entre as experiências de uma psicanalista e uma psicomotricista através de um diálogo e uma escuta mútua. Enfim, o encontro presencial ainda não aconteceu, mas muitas trocas aconteceram.
Durante as conversas, nos dedicamos a pensar sobre os bebês em tempos de pandemia da covid-19. Iniciamos nossa reflexão voltando nosso olhar sobre o bebê no contexto da sociedade contemporânea, ressaltando fenômenos observáveis ainda antes da pandemia, tais como a terceirização dos cuidados (MARTINS FILHO, 2012); o tempo dedicado pelas famílias aos bebês; e a virtualização das relações pais-bebê. Buscamos compreender como e em que medida tais fenômenos repercutem na constituição psíquica e no desenvolvimento global das crianças.
A partir dessa contextualização, passamos a nos debruçar sobre as possíveis consequências e desdobramentos do evento pandêmico sobre a qualidade das relações familiares. Para pensar o bebê em tempos de pandemia, é importante situá-lo como aquele que se transforma num pequeno ser para o mundo à medida que o mundo lhe é apresentado pela mediação da mãe.
Abre-se uma reflexão: Em tempos de pandemia, que mundo a mãe vai apresentar para o seu bebê? Essa questão é importante, uma vez que o próprio bebê só se torna um ser para si mesmo conforme se percebe como um ser para a mãe.
Winnicott (2020, p. 7) diz que o "bebê, entretanto, nunca foi mãe. O bebê nem mesmo já foi bebê antes". Portanto, tudo é uma primeira experiência para ele, o bebê. Não há referências. O bebê é um humano de primeira viagem.
Refletir sobre as primeiras relações do bebê, mais especificamente sobre essa díade inicial mãe-bebê, é pensar no nascimento psíquico do sujeito; na ação do bebê sobre a mãe e a ação do desejo parental sobre o bebê; num recém-nascido dotado de um aparelho sensorial, motor e afetivo capaz de interagir nessa díade.
É a partir dessa reflexão que conduzimos nosso artigo buscando entender esse bebê que está se constituindo enquanto sujeito, a partir dessa relação fundante mãe-bebê, em tempos de pandemia.
O artigo resgata as experiências das autoras num momento anterior à pandemia. Afinal, são essas experiências o ponto de encontro entre elas e, consequentemente, um campo fértil para a troca, uma oportunidade de apresentarem, uma para a outra as propostas de Esther Bick e Emmi Pikler.
Tais experiências, contextualizadas a partir da reflexão apresentada sobre o bebê se constituindo em tempos de pandemia, se referem à Observação Psicanalítica da Relação Mãe Bebê (OPRMB), de Esther Bick, e a abordagem proposta por Emmi Pikler nos cuidados junto aos bebês em situação de acolhimento institucional.
A OPRMB realizada foi baseada no modelo de Ester Bick, que caracterizou seu método de observação de bebês como um dispositivo pedagógico de transmissão da psicanálise. O método foi, originalmente, um apoio ao treinamento e à formação do atendimento psicanalítico de crianças oferecido pela Tavistock Clínica, em Londres, a partir de 1948.
Bick (1968) citada por Vidal (2017, p. 16) propõe a observação da estimulação da pele do bebê durante a interação com a mãe e diz que há dois estados mentais:
o estado de coesão, através de sentimentos de existência continuada que seriam vividos pelo bebê;
o estado de dissolução, aniquilamento, terror de cair em pedaços e se liquefazer.
Esses estados estão relacionados à existência de uma função primária da pele.
O material de observação serve como instrumento no auxílio do processo de reconstrução, diagnóstico e prognóstico ligados tanto ao desenvolvimento normal quanto ao desenvolvimento patológico.
Para isso, observamos as necessidades físicas e as funções ligadas aos modelos de sono, alimentação, indicações de prazer e desprazer a partir da interrelação entre o desenvolvimento sensório-motor e o funcionamento do aparato psíquico. A observação, portanto, é uma oportunidade de aprendizagem dos conceitos psicanalíticos usados na descrição da interação observada.
A experiência da OPRMB oferece um instrumento importante para a escuta do analista, pois oportuniza a observação da movimentação corporal do bebê como expressão, seu ritmo, a direção do seu olhar, sua sonorização e o contexto no qual o bebê está crescendo. Oferece essa delicadeza atenta ao olhar do analista.
A OPRMB proporciona observar o bebê advir enquanto sujeito a partir da relação mãe-bebê. É importante ressaltar que, no observador, as experiências infantis e as angústias arcaicas são despertadas. E para que o observador possa ser continência da mãe, para que ela seja continência do bebê, o papel do supervisor é fundamental, já que é a continência para o observador. Continência dos desamparos, dos medos, dos lutos. A observação oferece continência.
Pensando no momento pandêmico, como está sendo essa continência diante de tantas mortes, tantos lutos, tantos medos e a vivência de um mundo tão mortífero? A resposta para essa questão ainda está aberta.
O inconsciente do psicanalista de crianças parte de um aparato que contém o material de seu paciente na forma, por exemplo, de uma intensa dependência, de alternância de transferências positivas e negativas ou de fantasias primitivas.
Segundo Bick citada por Vidal (2020, p. 27),
[...] isso impõe sobre o analista de crianças uma grande dependência de seu inconsciente, no entendimento dos significados de jogos infantis e do comportamento pré-verbal.
O observador valoriza como o bebê se desenvolve, apoia a solidão da mãe e é alguém que apenas observa esse vir a ser mãe e pai. Não está ali para dizer o que é ser mãe e pai.
Bick propõe que a OPRMB seja feita durante a formação do analista, pois ela é a observação direta dos mecanismos psíquicos.
O efeito da observação direta, no observador, se dá em três tempos:
O primeiro tempo é a observação , o momento da observação direta da mãe e o bebê durante uma hora uma vez por semana. A observação é proposta para o primeiro ano de vida do bebê, porém pode ser prolongada para o segundo ano.
O segundo tempo é a tomada de notas , que é o registro do que foi observado de forma descritiva de cada observação. É o momento da memorização do que foi observado, ou seja, da inscrição. Destaca-se que, na OPRMB, tanto nos relatórios quanto nas supervisões, ninguém é referido por seu nome. Todos são citados pela primeira letra da relação que tem com o bebê observado.
O terceiro tempo, também semanal, é o momento do compartilhar o registro na supervisão . Momento da elaboração, do desacelerar o pensamento, ou seja, do tomar tempo para pensar.
A OPMRB é como assistir um teatro corporal entre mãe-bebê, e cada observação apresenta cenas emocionantes, surpreendentes, em que um sujeito vai surgindo a cada ato.
A experiência da OPRMB resgatada nesse artigo ocorreu durante o período de 1 ano e 2 meses e contém 28 observações realizadas. Vale ressaltar que essa observação aconteceu num momento anterior à pandemia e teve vários lutos sendo revividos.
M (como será referida a mãe do bebê observado) tinha perdido a mãe quando I (irmão do bebê observado, 4 anos mais velho) estava com 6 meses. M vinha de uma sucessão de lutos: a morte da mãe de forma súbita; a morte do avô materno um mês antes e o tio acometido de um grave acidente.
Alguns momentos importantes da observação são destacados:
B (bebê observado) com 20 dias. Na hora da mamada, B recebe carinho no rosto, olhar e canto. No relatório a observadora descreve a cena: "No meu silêncio, observando aquela cena tão intima".
B com 1 mês e 9 dias. M diz: "Impressionante como eles, minions [personagem de um desenho que não tem linguagem verbal], não falam, mas entendemos tudo como se eles falassem". M compara os minions com B que não fala, mas ela entende.
B com 1 mês e 18 dias. Ao chegar e ao se despedir, a observadora recebe o abraço de M com B no colo. Um abraço das duas juntas.
B com 5 meses e 21 dias. B oferece o rosto para a observadora beijar na despedida. M diz: "Querendo beijo!", aprovando a interação. Depois do beijo, a observadora se afasta e B oferece novamente a bochecha. M e B sorriem.
M situa a chegada da observadora para B no início das observações. M diz: "Olha quem chegou!".
A observadora, em um dos primeiros encontros, leva um bolo feito por ela. Ao longo das observações esse bolo era esperado por todos da família. Destacam-se duas falas sobre o bolo:
B com 1 mês e 18 dias. I (irmão da bebê) diz? "Esse prato não é nosso? É que está sempre aqui com bolo".
B com 3 meses e 27 dias. Quando a observadora chega com o bolo, M diz: "B vai comer o bolo pelo leite e vai ficar feliz também".
B com 6 meses e 14 dias. M comunica que vai mudar e diz: "Obrigada por estar conosco toda semana. Se não continuar indo nos encontrar na casa nova, vamos buscá-la".
A observação continua.
B com 7 meses e 17 dias. M diz para B toda orgulhosa: "Vamos engatinhar para ela [se referindo à observadora] ver". As duas (M e B) engatinham sorridentes e orgulhosas com a conquista.
B com 11 meses e 19 dias. M diz para sua irmã, que veio visitá-la na hora da observação: "Ela está aqui para observar o desenvolvimento de B".
B com 14 meses e 18 dias. O último dia da observação. M comunica a mudança para outro país. Na despedida M e B acompanham de mãos dadas o carro da observadora. Agora são duas e não mais uma só, acenando, se despedindo.
Os fragmentos dessa observação nos mostram a fluida trajetória que vai da dependência absoluta rumo à independência (WINNICOTT, 1999), nesse processo de singularização, que se desenrola no devir das interações mãe-bebê. Observar esse caminho ressalta a importância fundamental das primeiras relações para a constituição do psiquismo e, consequentemente, para o desenvolvimento saudável do bebê.
No entanto, tempos de ausências e rupturas nos levam a perguntar:
E quando a mãe não está presente?
O que se passa quando essa unidade mãe-bebê é interrompida ou atravessada de maneira abrupta e perturbadora em um momento tão sensível do desenvolvimento em que o bebê ainda não tem condições estruturadas para suportar?
E, especialmente, o que se pode fazer no sentido de fornecer as condições necessárias para a proteção do seu desenvolvimento?
Para refletir sobre esse tema, nos apoiamos no trabalho de Emmi Pikler, pediatra, que desenvolveu um modelo de cuidados dentro de uma instituição de acolhimento para crianças órfãs da Segunda Guerra, em Budapeste, na Hungria.
Podemos pensar que o momento atual tem, infelizmente, muito em comum com aquele, já que vivemos hoje uma grande crise mundial sanitária, ecológica, econômica, política e de relações.
Tempos de incertezas e rupturas na vida corrente, com desdobramentos que ainda não sabemos quais serão, mas seguramente sabemos que repercutirão e que já repercutem na vida dos bebês.
O trabalho de Emmi Pikler e sua equipe permitiu a quebra de um paradigma que imperava na Europa daquela época: o de que crianças que cresciam nessas condições tão adversas não teriam a possibilidade de se desenvolver e crescer bem, com uma boa saúde física e mental e com uma personalidade bem estruturada.
No entanto, os bebês que passaram por esse lugar, por essa casa que se chamava Instituto Lóczy (nome da rua onde era situado), mas que hoje tem o nome de sua criadora, Emmi Pikler, e não é mais um abrigo. Mas dá continuidade ao trabalho como creche e como lugar de formação.
A despeito de seu início de vida com tantos sofrimentos e perdas, esses bebês aos quais faltava tudo, às vezes, até mesmo a própria história conseguiam se desenvolver bem e crescer estabelecendo relações saudáveis (FALK, 2021).
Isso graças a uma abordagem desenvolvida sobre determinados fundamentos, como a valorização da atividade autônoma da criança, respeito ao ritmo e ao tempo das suas aquisições.
Essa abordagem implica permitir ao bebê, nos momentos de brincar, viver sua motricidade de forma livre, sem intervenções ou estimulações pelo adulto, cujo papel é proporcionar um ambiente seguro e adequado com brinquedos simples, mas que permitam e instiguem uma investigação por parte da criança. Sem atividades diretivas, sem jamais colocar a criança em posições que ela ainda não alcançou por conta própria.
Essa conduta não significa, de forma alguma, o abandono do bebê. A atitude do adulto é não interferir na atividade autônoma do bebê, mas permanecer por perto, ao alcance dos olhos, atender se for solicitado. Porém, jamais interferir na concentração do bebê em suas próprias pesquisas sobre o seu corpo, o espaço e os objetos.
Aqui, importa fazer uma viagem no tempo para pensar no nosso bebê contemporâneo e ocidental, nosso bebê de agora, filhote de uma sociedade acelerada, com valores competitivos. Uma sociedade hiperestimulada, em que pais e educadores vivem a grande preocupação de oferecer estímulos continuamente para favorecer o desenvolvimento dos bebês.
Vivemos atualmente o paradigma da estimulação, baseado nas descobertas mais ou menos recentes das neurociências sobre o boom da plasticidade neuronal nos primeiros três anos de idade e na compreensão sobre a importância do início da vida para o desenvolvimento da criança. Há todo um mercado que se aproveita da popularização desses conhecimentos de modo que tudo gira em torno de desenvolver a criança.
É difícil encontrar um brinquedo para bebês cuja embalagem não apresente a descrição das áreas do desenvolvimento que ele estimula, que não sirva simplesmente para brincar. O consumismo em torno do tema do desenvolvimento infantil envolve desde "a fralda que deixa o seu bebê sequinho e confortável para se desenvolver bem", até "o leite com ômega 3 para desenvolver o cérebro".
Trata-se de um sem-número de artefatos, às vezes muito bizarros, como um bebê-conforto que balança, vibra, toca música, emite sons, luzes. Enfim, cada marca com menos recursos ou mais recursos, um pouco mais caras ou um pouco menos caras, mas sempre caras. Curiosamente todas têm a palavra "mãe" no nome.
Paradoxalmente, a maior fonte de nutrição para o desenvolvimento dos bebês está justamente nas interações humanas, que esse artefato se propõe a substituir. Além do consumo de itens, é oferecida uma profusão de atividades e serviços voltados para bebês.
Na clínica psicomotora, com crianças que enfrentam desafios no desenvolvimento, a demanda que os pais trazem (que, muitas vezes, parte dos próprios profissionais de saúde) é geralmente: quanto mais estímulo melhor e não: vamos procurar o melhor estímulo para ele ou ela.
Tudo isso resulta em bebês com agendas lotadas, uma grande descontinuidade de relações e seguramente hiperestimulados. Bebê sem tempo para ser bebê. Sem tempo de descobrir as pausas, sem possibilidade de aprender sobre a introspecção e a reflexão.
Bebês que ingressam muito cedo na creche, porque os pais precisam voltar ao trabalho, seja para manter suas carreiras, seja para sobreviver. Esses bebês, muitas vezes, passam jornadas imensas de oito, dez, doze horas na creche, tendo contatos de apenas 2 horas ou menos por dia com os pais, ainda tendo, em muitos casos, que disputar esse tempo com os irmãos.
Neste ponto, cabe a ponderação sobre o que aconteceu a essas famílias quando seus filhos tiveram que ficar em casa, em tempo integral, no início da pandemia, quando as creches ficaram fechadas.
Durante o confinamento, nos atendimentos on-line de orientação aos pais dos bebês que já estavam em terapia psicomotora, surgiram falas revelando estranhamento de pais e mães sobre o brincar de seus filhos. Estranhamentos relacionados a aquisições naturais, entendendo-as como sintomas. Relatos de mães sobrecarregadas, que passaram quase todo o primeiro ano de vida sem conseguir olhar para o bebê em decorrência de mil demandas, inclusive dos filhos maiores.
Tais falas e relatos apontam para a grande dificuldade de famílias contemporâneas imersas em um contexto social em que é preponderante a terceirização dos cuidados com as crianças em acompanhar e compreender o desenvolvimento e as necessidades dos seus filhos.
Retornando aos bebês do instituto Pikler-Lókzy, o que lhes permitia ficar bem nos momentos de atividade espontânea ou de brincar livre, é o fato de estarem nutridos de uma relação de qualidade com um adulto de referência. Esse é outro fundamento da abordagem Pikler e de extrema importância. Talvez o mais importante.
Em sua obra Maternagem insólita, Geneviève Appel e Myriam David (2021, p. 53) descrevem tal fundamento ressaltando
[...] a absoluta necessidade de oferecer à criança a possibilidade de uma relação afetiva privilegiada e contínua com um adulto permanente [...].
Cada bebê tinha, no seu dia a dia, relações estáveis com um número reduzido de adultos, mas um adulto que se ocupava dele em todas as suas necessidades, proporcionando uma sensação de continuidade e segurança. O adulto de referência se ocupava dos cuidados corporais: o banho, as trocas de fraldas, a alimentação.
Estamos falando de um tipo de organização completamente diferente do que acontece na maioria das instituições (creches, abrigos, hospitais) em que há uma pessoa responsável pelo banho e pelas trocas de fraldas, outra pela alimentação, outra pelo trabalho pedagógico e, assim, a criança vai passando de mão em mão, ao longo do dia, lembrando a ideia de uma linha de produção industrial.
A abordagem Pikler preconiza que a cuidadora de referência se engaje por inteiro na interação com o bebê nos momentos dos cuidados cotidianos, através da voz, dos gestos, do olhar. A movimentação livre do bebê é sempre respeitada. O adulto não para os movimentos do bebê, não o segura nem o distrai para fazer seu trabalho. Adapta seus gestos à necessidade de movimento da criança, sem interrompê-la. Busca a atenção e o olhar do bebê, fala com ele com uma riqueza de linguagem sobre aquilo que está acontecendo ali, entre eles, naquele momento, sobre o que ela está fazendo, sobre o que o bebê está fazendo, e o envolve por inteiro nessa interação.
Tudo isso é possível graças a um entorno institucional que ampara a cuidadora e valoriza sua atividade em uma formação de equipe continuada. A organização dos móveis e materiais, a sequência (sempre a mesma) dos gestos na hora de banhar o bebê. Tudo isso a deixa segura, de modo que ela pode se voltar inteira para a interação e que seus gestos e seu toque são previsíveis, ou seja, o bebê não é surpreendido pelos movimentos dela.
Durante os cuidados, o adulto solicita a cooperação do bebê, que é diferente de obediência. Não é dizer ao bebê o que ele tem que fazer. Está mais para fazer um pedido e esperar uma resposta. Isso é feito mesmo com o recém-nascido. Claro que a expectativa da resposta está relacionada com o estágio de desenvolvimento dele. Assim, o bebê se sente participante do cuidado. Sente prazer nessa troca com o adulto, prazer na interação e em se sentir como sujeito ativo dos seus cuidados, algo que vai além do prazer de ter as necessidades satisfeitas.
Pouco a pouco, a cuidadora aprende a perceber os sinais emitidos pelo bebê e a responder a eles. O bebê também aprende, desde muito cedo, a emitir os sinais de suas necessidades e descobre que é correspondido. Essa dupla cuidadora-bebê vai se conhecendo e formando um vínculo de confiança mútua. O bebê desenvolve uma confiança no ambiente e confiança no outro, porque ele é ouvido e atendido, e desenvolve também um sentimento de que ele é importante. O adulto aprende a confiar na potência do bebê.
A forma de segurar também envolve uma técnica e é muito valorizada na abordagem. Judit Falk (2003, p. 10), que dirigiu o Instituto Pikler por vários anos, explica que segurar compreende todas as etapas dos cuidados. Quando o bebê nasce, ele não tem uma percepção integrada de si, o que pode provocar sensações de angústia.
Winnicott (1999, p. 14) ressalta a grande sensibilidade dos bebês à forma como são segurados e afirma que o ato de segurar é "[...] o protótipo de todos os cuidados com os bebês". Segurar bem promove uma sensação de unidade. É uma proteção ao desenvolvimento emocional do bebê.
A relação da cuidadora com o bebê não é como uma relação de amor materno, e nem poderia ser, já que a expectativa é que esse bebê seja adotado ou volte para a sua família.
Appel e David (2021, p. 53) explicam:
É tudo feito para que o profissional se engaje numa relação real, porém controlada, na qual o adulto não deposita na criança sua própria afetividade [...] todas as suas atitudes são ditadas pelo respeito à personalidade da criança.
Trata-se de manter viva a capacidade do bebê de formar vínculos afetivos e verdadeiros, e de se engajar nas relações que irá estabelecer ao longo da vida.
O cineasta Bernard Martino (2001, p. 15), em seu documentário Lóczy, une maison pour grandir, nos parece bastante atual quando diz:
[...] pois no final d esse estranho século vinte que nos terá ensinado tudo sobre as formas científicas de destruir o indivíduo, raros são os lugares, onde, como aqui, sabemos ajudá-lo cientificamente a se construir.2
Seguimos em diálogo.
Os olhares de Emmi Pikler e Ester Bick nos dão suporte para refletirmos sobre o lugar dos bebês na época em que vivemos. Em tempos acelerados, a pandemia nos obriga a parar. Em tempos de relações líquidas, nos leva a repensar no valor das interações humanas para a constituição do sujeito.
A virtualização das relações, fenomeno que causava grande preocupação no sentido de serem formas superficiais de interação, passaram a ser, de algma forma, ressignificadas, na medida em que se tornaram, em muitos casos, a única forma possivel para criar e manter vínculos, e estreitar laços afetivos.
Podemos pontuar as múltiplas formas como a pandemia afetou os bebês e as crianças pequenas: a sobrecarga dos pais que, tendo que lidar com o trabalho on-line e as tarefas domésticas, tiveram que se adaptar repentinamente a uma forma de vida para a qual não estavam preparados, preocupados, em muitos casos, com a diminuição da renda ou com o desemprego.
As angústias, os medos e os lutos percebidos pelo bebê no adulto. A ausência dos pais por adoecimento ou morte. Atritos e separações. Restrição de contato com a natureza, com outras crianças. Falta de espaço para brincar. Uso abusivo e precoce de aparelhos eletrônicos. Por fim, são diversas situações de entraves, atravessamentos e rupturas.
Por outro lado, para algumas familias, o convívio em tempos de pandemia pode ter repercutido positivamente como uma oportunidade para conhecer o seu bebê e para a valorização das interações familiares.
Enfim, se para se constituir como sujeito, o bebê demanda o olhar, o toque, o cuidado, a voz, um ambiente continente e uma relação fundante. Podemos dizer que ainda temos muito diálogo pela frente.
Referências
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ZORNIG, S. A. A criança e o infantil em psicanálise. 2. reimpr. São Paulo, SP: Escuta, 2008. [ Links ]
Endereço para correspondência
Anna Lucia Leão López
E-mail: annalucia2004@gmail.com
Eleonora Oliveira Filgueiras
E-mail: nora.psicomotricidade@gmail.com
Recebido em: 15/06/2021
Aprovado em: 30/06/2021
SOBRE AS AUTORAS
Anna Lucia Leão Lopez
Psicanalista.
Membro efetivo e professora do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva - Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Fundadora, coordenadora e supervisora clínica do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência (NEPsI).
Curso de Observação de Bebês (Modelo Esther Bick) - Ministrado e Supervisionado por Maria da Conceição Davidovich (2018-2019).
Presidente CBP-RJ (2004-2006; 2006-2008; 2018-2020; 2020-2022).
Musicista pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Musicoterapeuta pelo Conservatório Brasileiro de Música - Centro Universitário.
Especialista em psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Especialista em educação psicomotora pelo Centro Universitário do Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR).
Mestre em pesquisa e clínica em psicanálise pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Eleonora Oliveira Filgueiras
Especialista em Atenção Integral à Saúde Materno Infantil Maternidade Escola (UFRJ).
Psicomotricista graduada pelo Instituto Brasileiro de Reabilitação (IBMR).
Sócia titular da Associação Brasileira de Psicomotricidade.
Formação em Abordagem Pikler pela Association Pikler-Lókzy de France.
Membro da Rede Pikler Brasil.
1 Trabalho apresentado na VI Jornada do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência (NEPsI), CBP-RJ Efeitos do on-line na criança e no adolescente, Rio de Janeiro, 28-29 maio 2021.
2 Livre tradução. No original: "Parce qu'a l'issue de ce vingtième sciècle étrange qui nous aura tout enseigné des manières scientifiques de détruire l'individu, rares sont les endroits où, comme ici, l'on sache l'aider scientifiquement à se construire". (MARTINO, 2001, p. 15).