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 ISSN 0101-3106

     

 

RESENHAS

 

Levisky e a angústia do homem pós-moderno

 

 

Sérgio Telles*

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Jornal O Estado de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Levisky, David Léo. Entre elos perdidos.
Rio de Janeiro: Imago, 2011. 377 p.

 

Respeitado psicanalista, David Levisky é conhecido autor de livros e artigos especializados. Em 2007, aparou as rebarbas acadêmicas de sua tese de doutorado Um monge no divã. O adolescer de Guibert de Nogent (1055-1125?), e a publicou com formato mais adequado ao grande público. Dois anos após, o texto foi adaptado para o teatro por Marilia Toledo e dirigido por Kleber Montanheiro, recebendo o título de De vita sua.

Essa experiência com a escrita criativa fez com que Levisky se encorajasse a fazer uma incursão no mundo da ficção literária com Entre elos perdidos.

Neste livro, Levisky nos mostra Eliazar Cação, um sociólogo professor universitário vivendo o que parece ser uma típica crise de meia-idade. Casado há muitos anos com a executiva Cláudia, seus filhos estão crescidos e fora de casa. O casamento esfriou e o distanciamento entre os dois se aprofunda. Ambos tentam tocar a vida mergulhando mais ainda em seus trabalhos. Cação se sente deprimido, confuso, angustiado, sofrendo de enxaquecas e gastrites, às vezes abusa do álcool. Numa de suas viagens profissionais, vai ao Uruguai discutir com uma colega professora daquele país sobre a tradução de um livro de sua autoria. Na conversa, divagam sobre a Colônia Valdense, grupamento de imigrantes italianos estabelecidos no Uruguai tempos atrás. Eles eram seguidores de Pedro Valdo, comerciante lionês do século XII excomungado pelo Papa, cujas ideias persistiram na Itália até o século XIX. Isso dá ensejo para Cação falar de seus novos interesses sobre a Idade Média, a persistência na cultura atual de antigos costumes e tradições de povos diversos, que se misturaram em função das guerras, migrações, perseguições religiosas etc. Entende que a Europa é o resultado da mistura de três grandes culturas e religiões – o catolicismo, o judaísmo e o islã – e se detém na invasão muçulmana ocorrida na península Ibérica. Parece-lhe paradigmática daquele momento histórico a figura de Maimônides, filósofo e médico judeu que viveu no século XII, perambulando pela Europa e Oriente Médio, ao sabor das perseguições sofridas pelos judeus movidas ora pelos católicos, ora pelos muçulmanos. A amiga de Cação conhece um professor que se dedica àquele filósofo e providencia um encontro entre os dois.

Cação passa a devotar grande interesse por Maimônides e o escolhe como tema de suas novas pesquisas. Com este objetivo faz uma viagem a Paris, onde, por acaso, encontra a bela Sofia, uma professora universitária turca muçulmana que está de passagem por aquela cidade, por quem se apaixona.

Se já se sentia angustiado e deprimido, o triângulo amoroso deixa Cação ainda mais perdido, aprisionado entre a culpa e o desejo. Aquilo que parecia ser uma crise de meia-idade – homem tentando driblar a velhice e a aproximação da morte tendo um caso com uma mulher mais nova – se transforma num emaranhado de especulações metafísicas e filosóficas, se amplia e aprofunda, pondo em risco a própria identidade de Cação. Tentando justificar seu grande desconforto existencial, sua neurose, sua insatisfação com a vida, Cação cria uma explicação transgeracional. Impressionado com a saga do povo judeu e sua luta pela sobrevivência frente às pressões extraordinárias exercidas por Portugal e Espanha com o objetivo de assimilá-lo, Cação começa a fantasiar uma ascendência judaica. O fato de ter-se casado com Cláudia, neta de uma judia aculturada ao catolicismo, a homofonia entre seu nome e o da cidade portuguesa de Carção, que abrigou judeus durante a Inquisição, e o amor por Sofia, originária de Éfeso, cidade importante na diáspora judaica, são os elementos frágeis que sustentam sua fantasia, nos quais o professor procura ver uma prova da veracidade de suas intuições.

Cláudia e Sofia não entendem a ideia fixa de Cação a respeito de suas origens, nem como isso poderia influenciar no relacionamento entre eles. Mas Cação se mostra inabalável em suas convicções e empreende uma longa jornada tentando seguir os passos de Maimônides, indo às cidades onde ele viveu séculos atrás.

E assim seguimos o difícil trajeto de Eliazar, no qual seu ego se esfacela em ruminações obsessivas. Daí talvez a incidência repetitiva do significante "elos" em seu relato, a busca de cadeias que o prendam a uma realidade que sente oscilar. Como uma forma de ter alguma sustentação, Cação estabelece uma identificação com Maimônides.

O filósofo o encanta e confunde, não lhe oferece um porto seguro. Maimônides defende ideias avançadas mesmo para nossa época, parece apoiar um relativismo ético ou moral. Para ele, o "homem perfeito" é aquele que reconhece em si o mal e o tolera como parte integrante de seu ser, embora não compactue com ele, combatendo-o para que o bem prevaleça. Para tanto, deve adotar o "caminho do meio", no qual não se deixa arrastar pelas paixões nem pela indiferença. Essa questão é de suma importância para Cação, pois o fato de estar com duas mulheres o faz sentir-se em erro, longe da perfeição que exige de si mesmo.

Em suas leituras, fica impressionado com um trecho em que Maimônides diz: "O propósito primeiro (do Criador) em relação ao homem era de que ele se assemelhasse aos demais animais, carentes de inteligência e reflexão, incapazes de distinguir entre o bem e o mal. Mas, ao rebelar-se, a desobediência granjeou ao homem esta grande prerrogativa que é o discernimento, condição a mais nobre de nosso ser e constitutiva de nossa substância. É admirável que o castigo proveniente da desobediência tenha se convertido em outorgar-lhe uma perfeição, uma qualidade que anteriormente o homem não possuía, isto é, o intelecto. É exatamente como ocorreu com certos indivíduos que, após terem prevaricado e cometido grandes excessos, se transformaram e se colocaram como um astro no céu. (...) A inteligência que o Criador despertou no homem constitui sua suprema perfeição. Ao desobedecer a Deus, Adão viveu experiências que o tornaram diferente, pois surgiu o discernimento capaz de fazê-lo discriminar entre o verdadeiro e o falso".

Cação fica perplexo ao entender que o que deu o maior galardão ao homem não foi a obediência, e sim a rebelião e a desobediência a Deus. Além do mais, era perturbadora a ideia de que foi o próprio homem quem roubou para si a dignidade, desde que Deus queria que ele fosse apenas mais um outro animal, desprovido de inteligência.

Ao contrário do que aprendera com Platão e Agostinho, que apregoavam que a perfeição decorria da eliminação do mal e a preservação exclusiva do bem, Maimônides dizia que a perfeição humana decorria do equilíbrio instável encontrado na coexistência do bem com o mal. O filósofo abala em Cação a própria crença familiar num Deus que criou a humanidade à sua imagem e semelhança, o que permitia uma reasseguradora identificação com o todo poderoso. Em seu "Guia dos perplexos" diz Maimônides: "Deus não é um corpo, e não existe absolutamente nenhuma semelhança sob qualquer aspecto entre ele e suas criaturas, a existência destas não guarda semelhança com a dele, nem sua vida com a dos seres viventes, como tampouco sua ciência com a daqueles que são inteligentes e aceitam o dogma de que a diferença entre ele e eles não se reduz a um mais ou menos, mas à natureza da existência".

Tais ideias lançam Cação num desamparo ainda maior, agravando sua indecisão frente aos dois amores, a estabilidade oferecida por Cláudia, o desconhecido vislumbrado com Sofia.

Em momentos de maior paz, pensa Cação: "Verdade e falsidade, felicidade e insatisfação oscilam, complementam-se e compõem a perfeição humana. O mal é complemento do bem e a perfeição está na existência da contraposição. A arte de viver depende da conquista de um estado de equilíbrio instável na medida em que a mesmice e a monotonia são morte em vida".

Em outras ocasiões, Cação parece abandonar os parâmetros rígidos que regiam suas concepções até então, adotando uma postura mais tolerante e compassiva frente à vida: "Agora vejo que os conceitos de perfeição podem ser distintos nas diferentes culturas, religiões e contextos de vida. Fui educado dentro da tradição de que só há uma verdade. O errado e o mal precisam ser eliminados. Só assim o homem alcançará a perfeição. E este seria o desejo de Deus em relação ao homem. Hoje percebo que o certo e o errado são elementos arbitrários, criados pela mente do homem. Eles variam no decorrer do tempo e diante das necessidades de organização social de cada grupamento e cultura. É verdade que existem leis que aparentam ser universais, como a interdição do incesto. Mas até isso penso que foi uma aquisição do homem ao longo de sua evolução rumo ao que chamamos de civilização".

Cação se sente "só, profundamente só, sem Deus, sem pai", sem ninguém para guiá-lo, tendo de assumir suas escolhas e o risco nelas implícitos. O impasse permanece e o leitor, preso ao suspense tecido pelo autor, segue o atribulado professor, curioso para saber como o desfecho vai-se dar.

Com seu Entre elos perdidos, Levisky faz um primoroso retrato do homem pós-moderno às voltas com o pesado fardo da liberdade, despido dos referenciais que antes o mantinham numa trilha estabelecida, lutando para reencontrar um norte, uma raiz, uma identidade. Um elo que o impeça de se desagregar.

 

 

Endereço para correspondência
Sérgio Telles
Rua Maestro Cardim, 560 – conj. 194
01323-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3283-5767
www.sergiotelles.com.br

Recebido em: 12/03/2012
Aceito em: 20/04/2012

 

 

* Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, escritor e colunista do jornal O Estado de São Paulo, autor de Visita às casas de Freud e outras viagens (Casa do Psicólogo), entre outros.