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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.2 Rio de Janeiro jun. 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Palavra, violência, segregação

 

Word, violence, segregation

 

 

Roberto HarariI,*; Eduardo Hugo Frota NetoII,**

IPsicanalista em Buenos Aires desde 1965
IIDoutorando em Psicologia Clínica na PUC-Rio

 

 


RESUMO

O autor defende a tese de que o campo de concentração é o paradigma da atualidade, como quer Agamben, e que Lacan profetizou que a segregação, a concentração e o extermínio passariam a ser a tônica de nossos tempos, mantendo com a ciência laços estreitos. O caso da violenta ditadura em sua Argentina natal é tomado como ilustração das novas formas de segregação que tiveram sua origem no nazismo.

Palavras-chave: campos de concentração; segregação; fetichização.


ABSTRACT

The author defends the theory that the concentration camp is the paradigm of the present time, as Agamben proposes, and that Lacan prophesied that segregation, concentration and extermination would to be the mark of our times, maintaining close bonds with science. The case of the violent dictatorship in his native Argentina is taken as an illustration of the new forms of segregation that had its origin in Nazism.

Keywords: concentration camps, segregation; fetishization.


 

 

Parece-me muito pouco desportivo matar crianças.

(H. Goering, Julgamento de Nuremberg)

[o extermínio em massa dos judeus] é uma página gloriosa de nossa história, uma página que nunca foi escrita e que jamais poderá ser escrita.

(H. Himmler, Discurso de 1943 em Posen)

Para mim, o sucesso alcançado por Hitler era razão suficiente para lhe obedecer.

(A. Eichmann, Julgamento de Jerusalém)

Para começar a trabalhar o tema - sobredeterminado, desde já, pela conhecida dualidade pulsional freudiana - nós nos centraremos em um pequeno trecho incluído de modo diferencial, mas complementar, nas duas versões da "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola", de Lacan. Em particular, abordaremos sua referência ímpar e profética ao crescente e duro avanço dos campos de concentração e de extermínio no paradoxal seio - mais ou menos oculto - de nossa cotidianidade.

Assim, Lacan situa os mesmos de acordo com a consideração das denominadas "facticidades" da psicanálise em extensão, as quais se verificam, segundo os registros da experiência, seguindo uma consequente perspectiva triádica. A saber: a facticidade no Simbólico, que é o mito edípico; a facticidade no Imaginário, denotada pela sociedade de psicanálise - circunstância que o conduz à consideração do texto freudiano "Psicologia das massas e análise do eu" - e, finalmente - onde avança sua contribuição talvez mais específica e significativa -, a facticidade no Real. É neste parágrafo que inclui os campos acima mencionados, dos quais os nazistas, em seu entender, teriam sido "precursores".

Vale dizer: a história e a incidência dos campos continuam na atualidade, para além de sua efetivação levada a cabo por tais precursores? Porque, se a resposta for afirmativa, isso implica, pelo menos, a sustentação de uma tese forte referente à repetição de um efeito derivado da determinação exercida pelas características recorrentes da atual conjuntura social, econômica e histórica (ao menos no Ocidente). Esta tese, é claro, acaba se contrapondo à presunção de que a "metodologia" perpetrada pelos nazistas constituiu um acontecimento único, sem sequelas, singular1. De qualquer maneira, cabe lembrar que, já em 1963, Lacan chamava a atenção para que se tendia a mascarar completamente a função dos campos "[...] nesta época de nossa história [...]" para, segundo diziam, fechar de uma vez por todas essa áspera questão do passado. Pois bem, tal postura lhe parecia típica da "[...] era de moralização cretinizante que se seguiu imediatamente ao término da [segunda] guerra" (Lacan, 1962-1963: aula de 27/2/1963). E digo isso para não falar em sua caracterização - ou sua advertência sutil? - localizável no precoce e canônico escrito sobre o estádio do espelho (1949), onde se lê: "No limite do empreendimento histórico de uma sociedade que não se reconhece em outra função que não utilitária, e na angústia do indivíduo diante da forma concentracionária do laço social, cujo surgimento parece recompensar esse esforço [...]" (Lacan, 1966: 109). Ou seja: encobrimento pseudomoralista dos campos, por um lado, e detecção do concentracionarismo como velado laço reagente quanto ao pragmatismo flagrante e instrumentalista, por outro.

Pois bem, para melhor precisar o que pretendemos conotar por meio da referência aos campos de concentração e de extermínio, é conveniente a transcrição da seguinte citação de L. Poliakov sobre seu consensual paradigma: Auschwitz. Como veremos, ela é algo extensa, mas sua riqueza e precisão compensam com folga esta circunstância; em particular, porque dá conta dos recursos operatórios gerais em jogo no campo - ou Lager - para além da aglutinação dos concentrados, que só preside seu início efetivo. Diz assim:

Nunca se repetirá o bastante: todo o sistema dos campos de concentração repousava no aviltamento sistemático, pode-se dizer científico, do ser humano. O princípio cardeal consistia em encarregar a realização deste aviltamento a detentos privilegiados, enquanto outros detentos selecionados levaram a cabo o extermínio propriamente dito. Podemos tomar a noção de "seleção" em um sentido lato: elegiam-se criminosos profissionais para mandar nos presos políticos; os SS2, para melhor afirmar sua dominação, exploravam os antagonismos entre os poderosos e os deserdados, assim como os rancores nacionais, as incompreensões linguísticas e os chamados ódios raciais; na base, os judeus eram encarregados do roubo e do assassinato de seus irmãos de sangue. Homo homini lupus ["o homem é o lobo do homem"] (Poliavok, 1965: 109).

É uma máxima que, em Auschwitz, parecia se cumprir a cada passo.

Vejamos então, mais detalhadamente, a temática assim apresentada. Antes de mais nada, digamos que, na minha opinião, Lacan dá uma "piscadela" intelectual ao incluir a noção de facticidade; de fato, este é um termo trabalhado pelo primeiro Heidegger e delimitável - entre outros textos - em sua obra princeps, O ser e o tempo. Assim, ele a diferencia da contingente factualidade inerente aos objetos da experiência. De que modo? Digamos que a factualidade nos confronta com o fato bruto, diante dos olhos, recortado no espaço e no tempo, enquanto a facticidade oferece, de um modo primordial, dois caráteres do "ser-aí" (ou Dasein): em primeiro plano, trata-se do não-natural, de uma não-originariedade constitutiva, cuja raiz reside no "estado de abandono" e na abertura do mencionado Dasein, que, a este respeito, não pode senão erigir sua maneira própria, seu "jeito". Além disso, o termo afim "factício", segundo G. Agamben, é um vocábulo muito próximo, por etimologia, de fetiche. E este, como se sabe, está bem distante de se inscrever em qualquer naturalismo (Agamben, 2003a: 18 e 31-34).

Em segundo lugar o termo facticidade alude àquilo que, depois de ser "[...] acolhido na existência [...]" é - diz Heidegger - "[...] imediatamente repelido", não sendo acessível, consequentemente, à intuição pura e simples (Heidegger, 1974: 152). Se quisermos, nesta segunda característica da facticidade podemos detectar também - o que vale apenas como mera analogia formal e nunca como equivalência - os traços tipificadores do recalcamento freudiano, a saber: ocultamento na ordem do latente e retorno desviado e opaco na ordem do manifesto (é tal circunstância re-veladora, em minha opinião, o que é pontuado com relevância por Lacan sobre a problemática dos campos). Coloquemos sua postura nos seguintes termos: "não creiam que os campos aludem unicamente àquilo que aparece na ordem da factualidade, onde fizeram sua 'erupção', porque nos resta elucidar nada menos que sua facticidade". Pois bem, esta pontuação crucial constitui um dos pilares sustentadores do presente artigo.

Mas não seria justo abandonar este segmento, dedicado à elucidação e à explicitação de algumas das premissas fundamentais do empreendimento, sem realçar outra das detecções reorganizadoras da concepção das variáveis relacionais em jogo na cena social, também devida à inteligência de Lacan. Esta, em particular, aponta para uma nova e fecunda inflexão de determinada tese que surgiu de sua escrita: trata-se da referência - fartamente presente em seus sucessores - à decadência da presença do pai na contemporaneidade e dos efeitos negativos que podem ser depreendidos dessa circunstância. Em geral, insiste-se no caráter etiopatogênico de sua incidência, quer dizer, em sua influência como fator determinante da patologia psíquica. Pois bem, a seguinte citação de Lacan, como sempre, destaca latências que não deixam de surpreender o senso comum:

Creio que em nossa época o traço, a cicatriz da evaporação do pai é o que poderíamos colocar sob o cabeçalho e o título geral da segregação. Acreditamos que o universalismo, a comunicação de nossa civilização, homogeneíza as relações entre os homens. Penso, pelo contrário, que o que caracteriza nosso século, e não podemos deixar de nos aperceber disto, é uma segregação ramificada, reforçada, recortada em todos os níveis, que não faz mais que multiplicar as barreiras [...] (Lacan, 1969: 84).

Mais ainda, para Lacan sua tese sobre o crescente primado da facticidade segregatória devido aos "[...] progressos da civilização universal [...]" (Lacan, 1967) vem dar um transcendente passo adicional no que se refere à noção, mais limitada, mais desatualizada, de "mal-estar na cultura", conforme o que identificou e desenvolveu Freud. Vê-se, então, como essa tese inverte a cômoda e autocentrista perspectiva segundo a qual a - inviável? - generalização dos valores do Ocidente haveria de ser capaz de gerar tanto equidade quanto democracia, paz e justiça em nível planetário. Na contramão disso, Lacan assinala como a mencionada universalização - na ausência "evaporada" do pai introdutor de legítimas diferenças - não determina uma supostamente bem-vinda fraternidade. Porque seríamos todos irmãos igualitários não fosse a exigência, como requisito para isso, de que um grande conjunto - o dos "não-irmãos" - fique marginalizado, pois essa é a lei dos conjuntos. Em suas palavras:

Não se conhece mais que uma única origem da fraternidade [...] é a segregação. [...] constato que tudo o que existe está fundado na segregação e, em primeiro lugar, a fraternidade. Não se concebe qualquer fraternidade, ela não tem o menor fundamento, o me-nor fundamento científico, senão porque estamos isolados juntos, isolados do resto por algo do qual se trata de saber a função e o porquê (Lacan, 1969-1970: aula de 11/3/1970).

Consequentemente, a inviável fraternidade configura uma exaltação, reivindicativa e violenta, levada a cabo pelos portadores e/ou defensores do traço distintivo, que buscam a supressão das diferenças por meio da aniquilação pura e simples do diferente. Por outro lado, onde há de se encontrar o pai dos irmãos? Além disso, como retornará tal instância, de que registro, apesar de - ou devido precisamente a - sua condição "vaporosa"?

De maneira confluente com o que vimos expondo, cabe também assinalar a particular ligação vigente entre os campos de concentração e de extermínio metódico, administrativamente planejado e serializado, por um lado, e a ciência, por outro, tal como é afirmada por Lacan em ambas as versões da Proposição. Para falar a verdade, isso constitui um dos pontos mais enigmáticos, mais revulsivos e, claro, mais notáveis de sua ousada tese e de seu correlativo - e acertado - prognóstico. Ingressemos, então, na intenção de desmembrar a pertinência dessa temerária caracterização, com cujo objetivo retomarei, em linhas gerais, algumas das pontuações assentadas em meu livro Palabra, violencia, segregación y otros impromptus psicoanalíticos (Harari, 2007).

Em primeiro lugar, recordemos que a ciência experimental - a ciência, se quisermos, mais clássica, por ser pré-caótica - realiza experimentos e comunica seus resultados com a condição de colocar entre parênteses seus praticantes. Nesse sentido, a universalização enfocada por Lacan - sempre segundo esses textos - diz respeito ao conjunto de ações que realiza. E isto vale: 1) quanto à aplicação, 2) quanto aos produtores e 3) no referente aos objetos produzidos. Outro ponto decisivo da ciência reside em sua metodologia questionadora e na sustentação legítima da dúvida incessante sobre seus resultados - necessariamente precários -, motivo pelo qual nela sempre vigora a noção de avanço, de progresso.

Além disso, a ciência - e isto configura um dos pontos decisivos de sua incidência operatória - instiga e consegue uma recolocação, uma circulação e uma administração dos corpos dos falantes em função dos preditos resultados. Nisso consiste a reclassificação e a realocação dos agrupamentos sociais - esta última mencionada por Lacan -, que juntas levam à reterritorialização, à mobilidade referente ao comando - explícito ou não - da aludida circulação constritiva dos corpos dos falantes. É que, sempre segundo Lacan, nossa época, devido à destruição de uma antiga ordem social simbolizada pelo "Império" é "[...] a primeira que sente o questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência". Isto se verifica, também, no que vem a substituir o Império, mas que não transporta, nem um pouco, o mesmo sentido. Aponta deste modo para "[...] os imperialismos, cuja questão é a seguinte: como fazer para que massas humanas, destinadas ao mesmo espaço, não só geográfico mas ocasionalmente familiar, permaneçam separadas?" (Lacan, 1980: 204-205)3.

Por outro lado, cabe formular a seguinte pergunta: implicará a ciência um pouco de perversão na cena do social? Pode parecer abrupta, preconceituosa e reacionária, senão atávica, a introdução desta pergunta. Entretanto, cabe afirmar que a ciência constitui nossa religião secular, na qual - bastaria interrogar qualquer falante - todo mundo crê com fervor e júbilo acríticos. Tal como acontece no caso da religião, acredita-se nela.

É que, se alguém se atrevesse a não acreditar nela, caberia colocar em séria dúvida sua sanidade. De fato, como poderia um sujeito de nossos tempos pós-modernos não crer na ciência?

O fato é que nossa atualidade acusa a marcada prevalência de uma linha de pensamento que a sociologia da ciência chama "cientificismo", que sustenta que as ciências - sobretudo as exatas e naturais - representam uma forma de saber superior a todas as outras, posição que encobre uma paranoica idealização da ciência, segundo o pesquisador L. Davidson. Porém, desde que se trata de uma crença, isto já indica a vigência de um desmentido a seu respeito. E o desmentido, como sabemos, constitui o operador que define a perversão, entendida, a propósito, para além de qualquer apreensão visual das condutas e/ou das atividades sexuais em jogo. Além disso, a força com a qual se resguarda a convicção, e por meio da qual ela se erige em um baluarte, em um bastião inabalável da posição sub-jetiva, reside em sua contestação, quando não em sua parcial recusa da castração.

Como dissemos, a ciência, no tocante a seus resultados, nos confronta, de modo incessante, com a relativa e frágil validade dos mesmos. Podemos tomar um exemplo simples de nosso cotidiano: a computação - que é, de fato, um produto da tecnociência, uma aplicação da ciência -, onde constantemente se aponta tanto para a volatilidade de seus resultados quanto para a rapidez do envelhecimento e do conseguinte descarte lapidador tanto do valor de uso como do valor de troca dos elementos constitutivos e instrumentais.

Nesse sentido, a ciência, paradoxalmente, é uma perversão religiosa, que comporta ao mesmo tempo tanto a père-version de um pai humilhado - aquele que, de modo constante, põe em ato sua caduquice, sua limitação, sua inépcia e - por que não? - até sua radical impotência ou "evaporação" -, tanto a do pai humilhado, dizia, como outra père-version sinérgica: a do Um onipotente, que poderia - de maneira hipotética - chegar ao mais pleno domínio do Real.

O tempo próprio da colocação em ato destas père-versions da ciência não condiz, a meu ver, com nenhuma das já clássicas pontuações temporais lacanianas, mas com um contratempo em turbilhão, enfim, onde primam os dejetos e os resíduos. Nesse sentido, C. Amery, que subintitula coerentemente - lacanianamente? - um livro de sua autoria com a frase de Hitler como precursor, afirma que, no fim das contas, o Terceiro Reich fazia parte de "uma tendência evolutiva que surge com a secularização, a industrialização e o auge da ciência como meio de produção" (Amery, 2002: 14).

Então qual haverá de ser a incidência coletiva na posição subjetiva motivada por esta escalada da ciência e do seu discurso correspondente?

A esse respeito, anos atrás eu havia tomado, para desenvolvêla e aprofundá-la, uma menção feita de passagem por Freud em seu clássico artigo "Fetichismo", de 1927. De que se trata? De sua reflexão referente ao que acontece quando o trono e o altar correm perigo. Perigam, ele diz, simplesmente. Vale dizer: não enfoca o que acontece diante de sua eventual queda, ou sua possível desaparição. Mas em que sentido perigam? Perigam quando se escuta, a seu respeito, o Schrei, quer dizer, o grito. Não é que corram perigo objetiva e necessariamente, já que basta que se diga aos berros que perigam e então os falantes adultos, ilustra Freud, caem vítimas do "pânico (Panik)". Este pânico, acrescenta Freud, é similar ao que sobrevém quando a criança verifica a ausência do Falo materno, e é isto que a ereção do fetiche procura defensivamente encobrir enquanto faz as vezes do mencionado Falo faltante.

Tal pânico, que se combina com a possível desagregação da massa, sustentada até esse momento por seus - implicitamente - mencionados líderes, me lembrou um conceito através do qual procuro tornar inteligível a passagem da cena subjetiva para a cena social. Desde já, não me baseio para isso no encargo de analogias grosseiras e sim na realização de uma nova volta conceitual no oito interior, de acordo com o que ensinou Lacan na mencionada "Proposição..." ao colocar em correlação a psicanálise em intensão com a psicanálise em extensão.

Trata-se, então, do que se denomina fetiches sociais; o contexto explicativo desfiado por Freud autoriza sua cunhagem precisa nesses termos. Pois bem: paradoxalmente, tais fetiches sociais configuram o contrário do que é consagrado pelo discurso da ciência. Vejamos por quê. O trono e o altar não se referem apenas - como se deduz - ao Rei e ao Papa, mas sim depuram instituições onde aqueles que ostentam esses cargos os desempenham pelo fato de terem sido eleitos seja por um cenáculo fechado e exclusivo, como no caso do Papa, seja por filiação ou tradição, como no caso do Rei. Ainda assim, ambos ocupam seus postos e desenvolvem suas respectivas funções de modo vitalício. Sua estabilidade era perene, a menos que chegassem a renunciar ao cargo, ou que fossem destituídos por alegada má conduta ou derrubados por meio da violência. Portanto, é essa constância, é esse pretendido reencontro sistemático com "a mesmice", a arma de que Freud se utiliza com lucidez para correlacionar o trono e o altar - como antídotos perfeitos contra a castração - com o papel assumido pelo fetiche na vida sexual: não há perda, não há sobras, não há finitude, pois a mãe "tem" Falo. Falo corporificado metonimicamente, como vimos, pelo fetiche.

Resumindo: são fetiches sociais e, portanto, instituições que o falante desejaria que perdurassem sempre idênticas a si mesmas indefinidamente para, de tal forma, neutralizar a eventualidade do surgimento de Panik. Acaba chamando a atenção a coincidência enviesada dessa tese com a defendida pelo renomado cientista político Gray, que alega, a esse respeito, que "hoje, como no passado, o medo é mais potente em política que a esperança de lucro. A massa da humanidade se preocupa mais com a segurança que com a prosperidade. Os Estados que oferecem segurança são mais legítimos que os que prometem riqueza" (Gray, 2004: 116). Coincidindo com essa caracterização, D. Morley - escrevendo a partir de Grã Bretanha - estima que "a busca da segurança nas 'sociedades de risco' identificáveis no Ocidente desenvolvido está conduzindo ao incremento gradual de retiradas para formas regressivas de isolamento, tanto em nível nacional como local. Existe uma tendência de segregação residencial nas sociedades ricas do Ocidente" (Morley, 2005: 142-143) motivada - em termos manifestos, isto é, sem que seja discernida a facticidade em jogo - pela presença recente e crescente de população multiétnica nas principais cidades desses países.

Como podemos ver, a pontuação freudiana considerada vai muito além do trono e do altar, já que assinala uma tendência marcante da coexistência social entre os falantes, independentemente de ela ser empiricamente realizável ou não. Mas isso vai de mãos dadas com o apoio - via crença - na atual religião secular conhecida como discurso da ciência. A esse respeito, cabe assinalar como, uma vez mais, a hábil intuição do literato antecipa a primeira demão do saber que nós, psicanalistas, só alcançamos ulteriormente. De fato, J. Conrad, em O agente secreto, de 1907, põe na boca de um dos personagens de seu conto esta afirmação: "O fetiche sacrossanto de hoje é a ciência" (Gray, 2004: 33-34).

Retornando, então, cabe advertir que a religião stricto sensu, cifrada, na ocasião, em uma forma não exclusiva, mas tampouco minoritária, de conceber sua incidência na cotidianidade convivencial, também gera - de maneira coincidente para o avanço de nossa reflexão - posturas como a verbalizada por Abu Musab al-Zarqawi, destacado líder jordaniano da organização terrorista Al-Qaeda: "Nós declaramos uma guerra feroz contra o princípio maligno da democracia e contra aqueles que seguem essa ideologia equivocada". Criticou a democracia por substituir o governo de Deus pelo governo do homem e da maioria, já que ela se baseia em crenças e comportamentos não-islâmicos, como liberdade de religião, liberdade de expressão, separação entre religião e Estado e formação de partidos políticos4.

Ora, poder-se-ia conceber que esta busca demandante e imperiosa do chefe fetichizado não-rotativo, não elegível por maioria, e a respeito do qual não é viável expressar eventuais dissidências, levaria a que tal chefe terminasse necessariamente implicado na père-version perversa. No entanto, cabe ressaltar que esta caracterização é logicamente prévia a qualquer inquérito sobre a eventual perversão clínica detectável neste chefe fetichizado.

A esse mesmo respeito, cabe localizar outra notável observação de Freud, incluída em "Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade". Ali, Freud assinala que pode se esclarecer o porquê dos desastres cometidos pelos césares romanos como governantes - matanças gratuitas, carnificinas sanguinárias, violações em toda parte, incêndios deliberados em massa etc. Tais ocorrências se devem, em sua opinião, ao poder ilimitado que detinham. Ou seja: o motivo não deve ser ancorado nas características patológicas que pudessem vir a possuir tais governantes, mas sim na delegação indiscriminada e ilimitada das atribuições próprias do exercício de suas funções realizada neles por seus governados. E essa condição absolutista e certamente arbitrária e imprescindível do exercício do poder foi a responsável, Freud ensina, pelo levantamento das travas que, até então, tinham podido coagular a colocação em prática das fantasias dos futuros césares. Por isso, então, os mesmos chegaram à sua realização, que acabou permeada pelo viés do gozo sádico veiculado por tais fantasias.

Pensemos então a que se referem as alusões ao denominado "sensualismo do poder": trata-se da articulação privilegiada deste último com a ordem da fantasia e com a possibilidade, portanto, de chegar a se constituir mediante o desencadeamento da realização da fantasia em um completo chefe fetichizado. Vale dizer: falicizado imaginariamente, encarnando, de comum acordo, em consequência, uma das faces - o Real - do Ideal.

Por consequência, como retorna este protopai ansiado, este chefe fetichizado para cuja procura contribui a regência planetariamente inocultável da ciência e de seu discurso? Em meu entender, através do Führer. Para ser preciso: não me refiro assim tão somente a Hitler, mas àquilo que intervém através do lugar do Führer; em particular, ao modo por meio do qual este se relaciona com a lei.

De fato, basta que o Führer diga sua palavra e esta palavra já é lei. Mas o interessante é que isso acontece não pelo fato de se tratar de um ditador feroz ou de um recém-chegado que se houvesse apoderado ilegitimamente do poder contra a vontade do povo, visto que o Führer - exemplifiquemo-lo, agora sim, com Hitler - "era" o intérprete genuíno do povo alemão. Por quê? Porque, como líder, era portador de um mandato imanente, isto é, "natural", já que o mesmo provinha do "subsolo" da identidade desse povo. Esta concepção völkisch, portanto, definia a superioridade do ariano de acordo com uma essência inerente, imutável e eterna (sempre ameaçada em sua integridade e pureza, desde já, por outros). Em suma: através do discurso do Führer - girando em torno de suas ideias-chave: Sangue e Terra (Blut und Boden), ao que cabe articular: Língua. Através desse discurso, então, expressavam-se os germanos, sendo obtida - de um modo atravessado pela crença, claro - uma comunhão pouco menos que perfeita e consolidada entre os atores sociais assim convocados. Em compensação, tal como assinalava M. Buber por volta de 1920, no judeu só predomina a "comunidade de sangue", sem o conseguinte enraizamento no território e na língua. F. Rosenzweig sustentava, no ano seguinte ao mencionado: "Nós só confiamos no sangue e deixamos a terra" (Losurdo, 2003: 154-155). Segundo Buber, esta caracterização situa o judeu como carente do espírito de domínio - o que tende a se desdobrar na luta pela posse da terra -, assim como acusa seu conseguinte afastamento do naturalismo. Surpreendente, sem dúvida. Sim, porque acaba sendo inevitável se perguntar de que sangue "comum" se fala ao tentar unificar os judeus em função de um fator altamente discutível, cruamente metafórico. Além disso, mencionar precisamente o sangue, como ensina muito bem M. Foucault, constitui outra das arestas do biopoder, dado que "[...] o poder fala através do sangue [...]" (Foucault, 1976: 194).

A leitura de muitos trechos da obra pelo filósofo italiano G. Agamben se torna imprescindível para procurar compreender e esclarecer de forma fidedigna a questão dos campos. Pois bem, Agamben insiste em que aquilo que distingue o Führer reside na condição revelada pela característica própria do que é emitido por ele: trata-se dos bandos, segundo a pontuação realizada inicialmente por J.-L. Nancy, em seu livro L'impératif catégorique (1983).

O bando é, em tal caso, o referido veículo que transporta a emanação "ontológica", se isto é possível, da verdade do povo alemão. Uma categoria bastante distinta do amargo, ressentido e resignado "não tenho outra opção senão aceitá-lo". Não se trata de sujeição nem de um cálculo de conveniências e/ou de consequências, porque o trazido à luz por meio do bando do Führer é o advento de uma bem-vinda iluminação beatífica, epifânica, esclarecedora e obviamente indubitável e certeira. Não se considera, sequer, a possibilidade de se opor, o que é ilustrado por sintagmas deste tipo: "bom, sou um soldado, cumpro ordens, independente de concordar, ou não, com elas". A propósito, é o que veio a ser chamado na Argentina, como tipificação quase justificativa e absolutória da atuação dos "quadros inferiores e médios" da genocida última ditadura militar, de "obediência devida". Pois bem, o bando soberano é outra coisa: não se trata de segui-lo sem discussão devido à ausência de alternativas, ou ao desenho de uma estratégia para sobreviver, porque os receptores do mesmo mantêm um jubilante acordo basal e indiscutível com o Führer enquanto emissor único, privilegiado e inquestionável. Assim, até os bandos instigadores do cometimento de crimes se sustentam na marcada desimplicação subjetiva de seus destinatários, o que estimula sua colocação acrítica em ato, isto é, carente dos escrúpulos que eventualmente poderiam chegar a inibir a ação instigada e comandada pelo bando. Certamente me refiro à tão citada "banalidade do mal", detectada por H. Arendt.

O bando difere da lei, embora o faça no sentido de desnudar o caráter essencialmente arbitrário portado por esta última, na medida em que, em sua radicalidade, ela carece de um fundamento válido, universal e permanente. Assinala que, no que diz respeito ao bando, não há intermediação, não há deliberação, não há poderes distintos que pudessem chegar a pôr limites, mutuamente, à pressuposta ilimitação de seus respectivos gozos mediante o diálogo, as negociações e as concessões recíprocas, já que não há debate nem controvérsia possíveis. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma correlação antinômica entre o bando e a noção lacaniana de lei simbólica. Em suma: o bando, então, não é uma lei simbólica, porque a "[...] lei do abandono quer que a lei se aplique retirando-se. A lei do abandono - prossegue Nancy - é o outro da lei, que faz a lei" (Nancy, 1983: 150).

Agamben se distancia da clássica ideia de Rousseau segundo a qual o Estado se funda em virtude da assinatura - obviamente implícita - de um contrato social. Na verdade, o Estado não consolida uma identidade nem confere um pertencimento. Tampouco se trata da conhecida lei simbólica que com tanta frequência discutimos como veículo de uma ordem libertadora, apaziguante e sedativa, na medida em que, na economia distributiva dos gozos, antes se evidencia que a relação com o bando não é de aplicação senão de a-bando-no.

O bando, portanto, é um mandato, é a insígnia do soberano, é um édito solene, é - segundo Nancy - "[...] a ordem, a prescrição, o decreto, a licença e o poder de quem detém a livre disposição" (Nancy, 1983: 149). Por consequência lógica, é indutor de band-eamentos diferenciais, em função dos quais são categorizados como band-idos os excluídos pelo bando. Ao gerar bandeamentos, o bando mostra claramente sua condição facciosa, sua notória vocação exclusionista e concentracionária. Vale dizer: ao induzir facções, proscreve, segrega e instiga a violência "legítima" contra os segregados.

A relação política originária, portanto, não é a lei, mas o bando. Por sinal, de tal forma me refiro a um mecanismo oculto, a uma facticidade no sentido lacaniano, que traça a presença de uma indesejável solidariedade - é difícil dizê-lo, sem dúvida - entre a democracia e o totalitarismo.

Aonde leva o bando? Agamben entende que o campo, o Lager, veio a reatualizar, delimitando-a, uma estranha figura localizável no antigo direito romano: a designada como homo sacer, o "[...] homem cuja vida consagrada a Júpiter, separada do resto das vidas da pólis, não pode ser sacrificada no sentido religioso ou ritual [...]" (Agamben, 1998: 109). Como se vê, o sacrifício, concebido rigorosamente nestes termos, implica a atenção a certa regulação normativa, que exige a oferta com a qual, muitas vezes, os falantes assim implicados - isto é, os sacrificáveis - inclusive concordam. Ou seja: entregam-se mansamente, aceitando - quando não exaltando - sua condição. Daí o termo "Holocausto" - usado para o que deve ser chamado Shoah, quer dizer, aniquilação, ou extermínio - ser completamente inútil para caracterizar a barbárie assassina nazista instrumentada em especial contra os judeus. De fato, na matéria em apreço não há nenhum sacrifício voluntário em jogo; por isso, a utilização do vocábulo "Holocausto" implica, simplesmente, a instrumentação de um termo renegatório do crime organizado, planejado e executado de maneira massiva, contínua e sistemática.

Mas eis que este termo, Holocausto, repleto de inúmeras conotações indesejáveis no sentido apontado, não tem sido despejado na arena mundial apenas por aqueles que apoiam a postura chamada de "negacionista" ou "revisionista", ou seja, a manifestada e defendida pelos forcluidores da Shoah. Não, porque um pensador judeu do calibre do Prêmio Nobel da Paz, E. Wiesel, sobrevivente de Auschwitz e autor de um respectivo testemunho ineludível, incluído em seu livro La noche, acaba sendo um dos paradoxais defensores do cunho e da implantação do rótulo "Holocausto". Termo, inclusive, que não deixa de considerar, de acordo com parâmetros derivados de uma complexa conceituação religiosa, de teor bíblico (Baer, 2004: 84-85). Assim, o referido vocábulo - cujo alcance assinala, na verdade, a promulgação de todo um programa, de uma concepção inteira a ser efetivada - em nada ajuda a necessária Vergangenheitsbewältigung, a confrontação superadora do passado, encarada primordialmente pela população alemã.

Reiteremos: no sacrifício - cujo paradigma, segundo Wiesel, é o de Isaac quando estava prestes a ser morto por seu pai Abraão em virtude da correspondente demanda divina, que pretendia assim pôr à prova a magnitude da fé do patriarca -, no sacrifício, eu dizia, o lugar do Outro acaba sendo definidor. Em contraste, na Shoah se procurou apagar toda presença de testemunhas, de indícios e/ou de vestígios. Era, por isso, a "solução final", o "tratamento particular ou especial (Sonderbehandlung)" cujo desígnio radicava em não deixar rastro algum de seu proceder metodicamente exterminador. Sim: é o que é publicamente reconhecido por Himmler em seu discurso de 1943, conforme pode-se ler na segunda das epígrafes deste artigo. Porque o descomedimento demonstrado em ato pelos nazistas não admite comparação com experiências similares, e é por isso que o cuidado semântico acaba sendo crucial para poder sustentar tal singularidade, cujo reverdecer foi antecipado por Lacan.

A esse respeito, Reyes Mate cita a caracterização do historiador R. Hilberg - entrevistado por C. Lanzmann no referido filme Shoah -, que afirmara: "[...] nos séculos IV, V e VI os missionários cristãos diziam aos judeus não podeis viver entre nós como judeus; na Idade Média, o braço secular que lhes sucedeu mandava-lhes o seguinte recado: não podeis viver conosco. E os nazistas decretaram: não podeis viver" (Mate, 2003a: 63-64). De fato - para concluir esta digressão -, cabe assinalar que o termo "genocídio" foi proposto, por volta dos anos 40 do século passado, por R. Lemkin, para ser aplicado a dois acontecimentos desse século; com efeito, como lembra J. F. Reixach, Lemkin abarcava dessa forma a deportação e massacre dos armênios pelos turcos e a aniquilação dos judeus europeus pelos alemães (Reixach, 2003: 94). E a que opunha esse vocábulo? Precisamente a "holocausto armênio", utilizado por diversos escritores nos anos 30.

Voltemos à pontuação mencionada: "[...] eles estão separados, não são sacrificáveis, mas o que pode, sim, o homo sacer, porque está fora da lei, é ser assassinado sem que esse assassinato constitua delito, portanto fica reduzido, pela perda de todos os seus direitos, como acontece com aquele que entra no campo [...]", o que chama então Agambem de "vida nua", que seria a tradução moderna do homo sacer. Ou seja: não a vida regida de acordo com o contrato social, mas a vida abandonada, a cujo respeito o resto dos falantes se encontra habilitado para atuar como soberano. Seu corpo é aquele sobre o qual tudo pode ser executado, mas que ninguém dirá que foi sacrificado (Agamben, 1998: 129). Assim, explicitamente, não se reconhece o sacrifício ritual.

Cabe considerar, nesse sentido, o slogan-bando emitido pela mencionada ditadura militar argentina que visa encobrir a aniquilação - radical e escrupulosamente organizada - que, como se sabe, "desapareceu" com a grande maioria dos corpos dos trinta mil "subversivos" assassinados. Trata-se do seguinte dictum: "tão somente se cometeram certos excessos e erros involuntários na guerra antissubversiva, tal como acontece em qualquer guerra. Além disso, trata-se de uma guerra suja, porque o inimigo se esconde e se mistura com a população". Então, obviamente, acrescentavam que não havia desaparecidos. Estes, como diria - não sem um irônico e mordaz gozo sarcástico - o ex-ditador J. R. Videla, "diretamente não existem". A apreciação do militar que o sucederia de fato no cargo em 1981, ou seja, R. E. Viola, era que os desaparecidos estavam "ausentes para sempre". Por carecerem de corpo apesar de sua presença, por encontrarem-se implicados em uma tenebrosa e funesta "viagem" sem volta?

Pois bem, este "tudo é possível", este "vale tudo" - sem qualquer sacrifício em jogo, repito - caracteriza de forma cabal uma biopolítica - segundo a cunhagem devida a Foucault (Foucault, 1976: 183-191) - totalitária, na qual o falante perde todos os seus direitos como cidadão. Ou seja: o ciclo em questão, isto é, o relevante para a efetivação de tal biopolítica, a realização do respectivo biopoder, se inicia mediante a declaração de um estado de exceção, na medida em que é assim postulado. Seu advento, "necessário e imprescindível por motivos de força maior", como se prega com monótona insistência ao ser instaurado, é - diz-se - apenas transitório. Mas o ponto central reside - eis aqui o notável - em que tal estado perdura sem uma definição restritiva de seus alcances, o que põe em questão o estatuto mesmo da referida exceção. Citemos novamente os militares argentinos do sangrento período de fato - 1976/1983: "Nós temos objetivos, e não prazos". Claro, mas eram somente eles que podiam vir a dirimir e resolver sobre se tais objetivos haviam sido alcançados, enquanto se "convidava" a população a ocupar o lugar de espectador, dado que - como ansiava e proclamava outro de seus beligerantes líderes - "as urnas [de votação] estão bem guardadas". Assim, o estado de exceção - ou estado de sítio, ou plenos poderes, ou superpoderes, ou faculdades extraordinárias, ou decretos de necessidade e urgência, ou decretos-lei, ou incontáveis sintagmas com similares e mal veladas significações coincidentes - é violento e segregador por definição. Mas, por comum acordo, entroniza e consagra o supracitado lugar do protopai fetichizado como emissor de inquestionáveis e indiscutíveis bandos epifânicos.

Reitero: por ocasião de se promulgar o estado de exceção se consigna sua paradoxal condição de limitado em seu alcance temporal, fundando-se sua razão de ser na melhor atenção a uma urgência cuja inevitabilidade se torna imperativa para a sobrevivência e o futuro do Estado e a paz e o bem-estar da população (Agamben, 2003b: 11). No entanto, justamente esse avatar - o da oximórica "situação de exceção regular" - serve para agrupar os segregados no âmbito dos campos. Daí surge a ousada hipótese, a demonstração de Agamben: "O campo de concentração, e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do Ocidente" (Agamben, 1998: 230). Na cidade, a civitas, vigoram, é claro, os direitos dos cidadãos. É que a cidade é uma encruzilhada em "que se produz algo que se torna um centro de significação, que se torna uma cidade, uma aglomeração humana, com tudo o que lhe impõe" - termina Lacan - "essa dominância do significante" (Lacan, 1955-1956: aula de 20/6/1956). Daí que, dada essa aglomeração, a lógica que a rege seja a do encontro, a da mistura, a da mobilidade, a dos consensos - que não são igualdades - e a das concessões - que não são retrocessos -, a da utilização aberta, enfim, do espaço público.

Com efeito, esta concepção da cidade, comentada por Lacan, é a que surge de Roma e de seu direito, diferenciando-se da tessitura da pólis grega. Como ensina com brilhantismo M. Cacciari, a pólis de raiz grega se fincava na origem, no étnico-religioso, no que implica sede e lugar, no arraigamento, o que, naturalmente, também inclui a existência e o cultivo de um acervo de tradições e de costumes peculiares. Disso deriva, por outro lado, a incapacidade da pólis para "absorver e integrar em si o diferente". Inclusive, a fim de manter esta condição, a pólis tendia a ser autossuficiente, sem buscar a expansão de seus limites comunitários. A civitas, em contrapartida, se desenvolve com base no acordo sustentado pelos cives, ou seja, por aqueles que priorizavam a reunião pactuada pela atenção às leis geradas especificamente a fim de dar nascimento, forma e movimento à cidade. Os cives, então, "acordam coletivamente as leis para viver em um mesmo lugar", privilegiando a meta antes que a origem étnica e/ou religiosa. Por outro lado, o que visa a civitas é o crescimento, a expansão, a priori indeterminada, de seus limites e, devido à referida expansão espacial, inclui necessariamente usuários de diferentes línguas. Resumindo, de acordo com a caracterização, que devemos a Cacciari, da "grande ideia Romana" referente à cidade-civitas: "gente diferente que vem de toda parte, que fala todas as línguas, que pratica todas as religiões" (Cacciari, 2005: 40-44).

Como funciona, por sua vez, a lógica do universo concentracionário? Ela defende o não-encontro, o desatar do nó do centro de significação - substituído por um mero sinal, de aparente remissão inequívoca -, o fechamento, o tabu do contato, a suposta pureza - como caso exemplar: a da chamada "raça ariana" -, o antipluralismo como consequência de um sistema de crenças fixista e messiânico, decorado com tons neopagãos.

Em suma: se agora o Lager é o novo paradigma; cabe afirmar, em consequência, que ele faz as vezes de "Mais-Um" para os três componentes organizadores da modernidade, que são o território, o estado e a nação.

Aprofundemos, pois, a questão do novo paradigma recém-mencionado. Nesse âmbito, cabe assinalar que a palavra que o nomeia não deixa de estar prenhe de implicações. A palavra "campo", em função de sua ligação com os de concentração e extermínio, precisa ser redefinida, uma vez que caducou seu significado primordial quanto a denotar uma ordem situável por fora ou em continuidade com o que nomeava o paradigma anterior, isto é, a cidade. Sim, porque o campo iniciava sua vigência ao final do traçado desta última, segundo a clássica contraposição - sem dúvida: bastante aproximativa, mas operatória - "cidade/campo". Na verdade, não é que a cidade termine e logo após comece o campo, porque, como bem sabemos nós, os argentinos, tem-se dado a respeito uma espécie de reviramento tórico que pôs em crise a questão dos limites estritos entre o dentro e o fora. Também vale, a esse respeito, a noção da "exterioridade íntima" denominada extimidade por Lacan (Lacan, 1959-1960: aula de 10/2/1960).

Vê-se a confluência entre esta noção e a de "genocídio moderno" - para distinguir do "colonialista" - tal como é caracterizado por D. Feierstein (2005), na medida em que o primeiro dirige sua prática simbólica e material para o que se considera o "interior" da sociedade. É um modelo de eliminação do outro, mas não mais de um outro pensado como um outro externo, esse outro das colônias, esse outro claramente tornado alheio e que se construía como exótico e inferior, senão que aparece um modelo distinto, baseado em uma lógica degenerativa, um modelo de construção de um outro interno, um outro doméstico, um outro que é o vizinho e que atenta contra a própria vida biológica da espécie - e está baseado em uma visão conspiratória e não mais inferiorizante de seus objetos de estigmatização (Feierstein, 2005: 60).

Com efeito, e em conformidade com o acima exposto, o desdobramento espacial êxtimo do genocídio "moderno" argentino a cargo dos militares dispôs campos de concentração e de extermínio situados dentro da cidade; havia, portanto, um fora dentro. Isto talvez constitua outro "invento" que faz parte das atrocidades cometidas por alguns de nossos compatriotas (?), através do terrorismo de Estado, contra uma cidadania carente de leis às quais pudesse apelar para refrear o arbitrário gozo assassino dos violentos genocidas emissores de bandos irrestritos situados por cima de qualquer legalidade constitucional e republicana pré-existente.

Cabe asseverar, para ser mais preciso, que não só se montaram na Argentina campos de concentração e de extermínio em bases militares especialmente equipadas para isto, mas os mesmos foram aninhados também em locais da cidade aparentemente anódinos e inocentes. Assim, os 270 campos - detectados, em 11 províncias do país, após a queda da ditadura, que eufemisticamente os denominava "lugares de reunião de detentos" - funcionaram também em oficinas, escolas rurais, hospitais, garagens, galpões de bondes, pequenas fábricas, repartições públicas abandonadas, velhas estações provinciais de rádio, motéis em construção, faróis e até mesmo em uma propriedade eclesiástica localizada numa ilha do delta do rio Paraná; todos esses lugares, então, convenientemente "reciclados", constituíram sedes ocultas e dissimuladas onde se desdobraram, de modo centralizado e ordenado, crimes e torturas aberrantes (Calveiro, 2005: 187). Vale dizer: no seio da cotidianidade se imbricou o Real da morte, constituindo assim outra variação definidora do sinistro, da inquietante familiaridade. Tratou-se, portanto, de uma localização diversa dos campos tal como haviam sido desenhados pelos nazistas, quer dizer, como construções especiais destinadas a tais fins, embora estes fins fossem sordidamente mascarados por apelos manifestos às virtudes do "trabalho" a ser realizado neles: "Arbeit Macht Frei" ("O trabalho os libertará"), como rezava a inscrição colocada na entrada de Auschwitz supostamente por indicação do comandante R. Hoess. Mas, como toda máscara, a mesma não só oculta como também mostra, sugerindo: assim, o "trabalho" em questão sancionava o primado de uma máquina industrial, enquanto fábrica cabal da morte serializada, pronta e numerosa. De tal forma, Auschwitz, como paradigma, marcou - no entender de J.-C. Mèlich (2004: 84-86) - a operação, em seu seio, de duas das "grandes contribuições" da modernidade: a organização burocrática e a racionalidade instrumental.

Nos campos da Argentina, por sua vez, era prioritária a circunstância de substituir o nome do prisioneiro - por meio da atribuição exclusiva de um número -, bem como a de realizar a mudança do nome dos agentes envolvidos nas práticas genocidas. Nos primeiros, começava assim a tarefa de demolição, de geração de um "solipsismo somático", de uma crescente "zoologização" mediante o intento melancolígeno de apagamento do traço decisório do Ideal constituído pelo nome próprio. A partir daí, o detento passava a ser um qualquer, um ente sem qualidades (Sucasas, 2002: 58-59). Nos aludidos agentes, ao invés disso, o velho e conhecido procedimento apontava tanto à diluição da assunção da responsabilidade - no que se refere ao cometimento de crimes e assassinatos múltiplos - como ao ensaio de implantação de uma megalomania corporativa vicariante ornada com vernizes religiosos. Assim, por exemplo, o sanguinário ex-almirante E. E. Massera - integrante da Junta Militar inicial do chamado "Processo de Reorganização Nacional" - se rebatizou "Almirante Zero" - Zero, o que está no centro dos números positivos e negativos; Zero: o centro que ninguém pode ver. Renomeou os oficiais que o acompanhavam, já desde sua condição de "Zero", com apelidos tais como "Tigre", "Menino", "Pedro" etc. Logo depois de autorizar o livre roubo e a partilha arbitrária dos bens móveis e imóveis daqueles que seriam "desaparecidos", esclareceu que "[...] atacar-se-ia com a pior fúria os corpos e as almas dos presos: porque esse, disse ele, é nosso verdadeiro campo de batalha. O olhar de alguém que desconfiava o obrigou a ampliar a ideia. Cada um deveria se sentir Jesus, e a ele, o Almirante Zero, como Deus Pai. Para demonstrá-lo, o próprio Massera foi participar das primeiras operações" (Massera, s/d: 71-72).

Mas seria injusto - por ser parcial - deter a análise do ocorrido na Argentina durante a última ditadura remetendo-o somente às Forças Armadas. Então, para tentar ponderar o papel cumprido por uma parte nada desprezível da população governada, façamos um breve rodeio.

A universalização do vale tudo/não vale nada acaba sendo confirmada através de seu corolário impensado: a segregação de todos os não-portadores do mencionado traço fetichista diferencial. Assim, em defesa de um insondável e melífluo "ser nacional", quem era atacado na Argentina? Como mencionava Feierstein (2005): o inesperado vizinho e não um exército localizado, definível e cujos limites acabavam sendo demarcáveis. Vizinho no qual, além de ser decorado com o conhecido e reiterado "deve haver um motivo" ou "alguma coisa deve ter feito" quando era detido para ser "desaparecido", jogavam na cara, com um gozo mal dissimulado, outro rótulo despejado em forma de comentário inocente a um terceiro: "Quem diria! Ninguém teria pensado! Ele parecia tão normal!". Pode-se ler, nestas expressões prototípicas, algo não dito nem articulado como pensamento, mas que busca se refugiar em uma suposta e indiscutível "normalidade"; por isso, o gozo sádico irrompe, sem que eu perceba, mediante a expulsão do i-mundo vizinho, que, por definição, é um subversivo, porque sua mera presença põe em questão meu ser. É um terrorista porque não chego a ponderar até onde sua proximidade me confirma, ou a partir de quando a mesma se torna notoriamente ameaçadora para a integridade de meu Eu. Sim: é um band-ido, é um bando-leiro. Tal é a "lógica" de tanta irracionalidade, de tanta crueldade cúmplice, de tanto desmentido facilitador, de tanta certeza defensiva.

A esse respeito, poder-se-ia dizer: "isto aconteceu apenas na Argentina"; não obstante, se passa também, e atualmente, em outros lugares "supercivilizados", como, por exemplo, nas salas de espera dos aeroportos dos países altamente desenvolvidos quando chegam estrangeiros com documentação duvidosa e são mantidos isolados, sem quaisquer direitos a requerer nem a protestar. Nem a serem protegidos por nada nem por ninguém, já que se acham numa no man's land: a-bando-nados, às vezes durante dias e dias, e sob condições de alojamento e manutenção em geral calamitosas. Nesse sentido, pode-se dizer que ali se encarna a facticidade de um campo de concentração.

O mesmo acontece com os imigrantes ilegais que sofrem penúrias e enfrentam sérios riscos para encarar suas precárias viagens clandestinas até o país procurado. Muitos, como sabemos, são roubados, seviciados e até assassinados por aqueles que os "guiam" até os paraísos terrestres da salvação. Ou, em sendo capturados pela polícia local, também se os segrega, até serem "devolvidos", sem consideração alguma, a seu país de origem, ao qual retornam sem o menor recurso, porque haviam dado tudo ao "guia". Este último configura outra colocação em ato do chefe fetichizado.

Cabe pensar, por outro lado, em subúrbios de muitas cidades pós-industriais, onde as residências e as "regulações" referentes aos laços sociais ali vigentes conformam, de modo praticamente geral, um mundo alheio aos direitos dos cidadãos. É o caso, como se tornou publicamente notório por volta do final de 2005, das chocantes "cidades-dormitório", situadas nas periferias dos principais aglomerados urbanos da França. Ali, e durante várias noites consecutivas do mencionado período, os jovens habitantes dessas cités - imigrantes ou filhos de imigrantes, provenientes especialmente do Magrebe - queimaram grande quantidade de carros nas ruas como enigmática modalidade pública de protesto por sua situação. Reflitamos: o veículo não é apenas uma manifestação de riqueza - moderada, de qualquer forma -, mas também um meio de transporte, de locomoção. E, bom, as cités mencionadas consistem em meros imóveis para se dormir. Assim, sugerem e apresentam a facticidade de sempre, na medida em que, nas palavras de E. Wizman,

foram concebidas sem conexões de transportes, sem centros nem espaços públicos, unicamente como uma maneira de concentrar e poder controlar essa população que não se queria ter por perto.

Nesse sentido, os arquitetos são corresponsáveis, através da forma, da situação política atual" (Wizman, 2005: 32).

E o "incompreensível" do alvo buscado - a eliminação de veículos -, em meu entender, buscava uma espécie de "nivelamento" vingativo quanto à dificuldade de movimento, gerando nos outros uma clausura homóloga à sofrida por estes jovens acampados, isolados, segregados em tais cités.

É bem verdade, então, que o depoimento em pauta - entre tantos outros - parece nos indicar que é hora de revalorizar e, portanto, de reincluir em nossa doutrina uma noção decisiva que foi abandonada há tempos por causa de sua suposta condição de velharia caduca: trata-se da ideologia. Acontece que, em virtude da adscrição fundamentalmente marxista da noção e dado o fracassado destino do sovietismo como asseverada colocação em ato desta concepção, a menção não depreciativa da ideologia passou a ser "politicamente incorreta". De fato, acredita-se que lhe dar valor equivale a tentar dar vida a um cadáver em estado avançado de decomposição. Não obstante, reitero que o enfoque centrado na ideologia não pode nem deve ser omitido se nos propusermos a dar conta do que acontece nas complexas sobredeterminações que dirigem o suceder dos falantes. Sim, porque para isso não nos basta repetir, até a exaustão, a mera redundância ecolálica centrada na referência policausal derivada dos três - quatro, para ser mais preciso - registros lacanianos, pois estes requerem, a cada vez, a "carnalidade" capaz de torná-los heuristicamente frutíferos.

Por isso cabe, na minha opinião, a manutenção do que é conotado por esta noção, desde que lhe demos um novo giro. Sim: é o Ideal que compele, mas que também seda, estimula e inunda o sujeito com o indubitável "gozo do dever cumprido" toda vez que o falante se enquadra na ideologia que rege sua vida, assim como toda vez que a hasteia e/ou prega declamatoriamente como "verdade" generalizável a fim de lhe agregar novos adeptos, ou, pelo menos, incorporar-lhe tépidos simpatizantes. Pode-se compreender, assim, com a maior congruência, o laço pouco menos que óbvio vigente entre a ideologia e as identificações geradas e mantidas entre os falantes implicados de tal forma e por tal laço. Nos termos de Lacan, trata-se de uma identificação com o Simbólico do Outro Real - em função do traço unário necessário para a efetivação da operatória em questão -, assim como de uma identificação com o Imaginário do Outro Real, já que fica contemplado, desse modo, o caráter unificador próprio à ideologia (Lacan, 1974-1975: aula de 18/3/1975) e (Harari, 2004: 82-84).

Muito bem: especificamente a esse respeito, e numa linha bastante próxima da que estabeleceu anos atrás (Harari, 1976: 76) - linha que, como dizia, é fundamental reconsiderar e revalorizar -, S. Karsz - como este que vos escreve, também em dívida com os lúcidos ensinamentos de L. Althusser - argumenta, com propriedade e eloquência, o seguinte:

as ideologias têm a consistência material dos gestos, das práticas, dos rituais, dos dispositivos, das instituições, das situações vividas. De modo algum espirituais ou etéreas [...] [as ideologias] se exercem dinamicamente nas funções e papéis públicos e privados, em sua distribuição, na maneira de assumi-los, de impugná-los, de escapar-lhes. Operam nos corpos, na forma dos corpos, em seus odores, nas seduções e nas repulsas que os corpos inspiram, em sua fome, seus estigmas, no gozo e sofrimento a que os corpos dão lugar. Organizam as relações que unem e separam as mulheres e os homens: relações possíveis, relações prováveis, relações inconcebíveis. As ideologias têm a ver com a esperança, expectativa, o projeto, a resignação, a revolta [...].

E a partir disso, é claro, surge não só uma convicção de cunho teórico, mas também a necessidade de se conceber um concomitante curso de ação efetiva, distante tanto de qualquer "imaginário utópico" - como o chamaria N. García Canclini (Canclini, 2004: 126) - quanto da violência segregacionista.

Last but not least: sem sombra de dúvida, a crescente ascensão e a tolerante entronização social - inclusive a realizada por alguns inverossimilmente autoproclamados "psicanalistas lacanianos" (?) - do sadismo e do masoquismo como práticas sexuais - nas quais se busca a redução do parceiro à vida nua, enquanto objeto de gozo instrumental entregue ao Outro postulado como consistente, como onipotente -, pois bem, o sadismo e o masoquismo, então, constituem outra das destacadas facetas ideológicas onde é possível detectar a mesma facticidade de sempre5.

Voltemos agora a um de nossos pontos de partida: por que os nazistas são precursores - ou constituem um reagente precursor - dos campos de concentração e de extermínio ao modo fabril, isto é - para dizê-lo tanto com Heidegger como com Arendt -, de fabricação de cadáveres em série, e o que tem a ver tudo isso com a ciência e seu discurso?

Diz Agamben: "A vida nua lhes permitiu" - aos nazistas - "realizar experiências com cobaias humanas, para ampliar o progresso da ciência". Porque quem, senão as vidas nuas, pode prover os nobres e enaltecedores ditames da ciência experimental, a fim de experimentar com meros corpos humanos, cujo valor é nulo na medida em que foram zoologizados de antemão? Assim começamos a marcar com nitidez empírica o laço vigente entre a ciência e o campo ao qual havia feito menção no início do artigo. Avancemos o seguinte: "Estudouse o nível de tolerância à escassez de ar [...]" - em particular, para avaliar o que poderia acontecer com as reações dos pilotos aéreos e dos paraquedistas -; "[...] como se pode sobreviver em águas geladas, a potabilidade da água do mar, a inoculação de bactérias da febre petequial e do vírus da hepatite endêmica" (nestes dois últimos casos, a fim de poder se encontrar em condições de fabricar as respectivas vacinas). Também se tentou obter "[...] a esterilização não cirúrgica por meio de substâncias químicas ou de radiação"; inclusive, "[...] e de forma mais ocasional, projetou-se também experimentos sobre o transplante de rins, as inflamações celulares etc" (Agamben, 1998: 196-197). A isso somamos, em conformidade com a respectiva contribuição de E. Klee, o seguinte:

[...] testes balísticos (arremessar balas explosivas no crânio dos prisioneiros); administrar sulfas, ou, de forma mais geral, "gases de combate" às mulheres do campo de Ravensbrück; injetar petróleo no corpo dos detentos; experimentos com queimaduras; simular doenças, como a icterícia, através da injeção de ácido pírico; praticar a vivissecção em vida; encarcerar os meninos do campo em câmaras de baixa pressão etc (Virilio, 2003: 119-120)6.

Tudo o que, aliás, encontra-se fidedignamente documentado. Conceitualizemo-lo, então, nestes termos: trata-se de poder fazer à vida nua o que bem entender o protopai, o chefe fetichizado por cujo intermédio se combate a castração a partir de seus bandos, e tudo isso em nome do progresso da humanidade, de acordo com os cânones consagrados pela ciência e seu discurso.

A esse respeito, Arendt menciona, em As origens do totalitarismo (1996), a existência de um projeto de Hitler concebido nos últimos anos da segunda guerra mundial, mas cuja consumação não foi viável devido à necessidade de atender a outras prioridades determinadas pelos acontecimentos nas frentes de batalha. Dizia assim:

após um exame radiológico nacional, o Führer receberá uma lista de todas as pessoas doentes, particularmente daquelas afetadas por disfunções renais e cardíacas. Em virtude de uma nova lei sobre a saúde do Reich, as famílias dessas pessoas não poderão desenvolver uma vida pública, e sua reprodução poderá ser proibida. O que será feito delas será objeto de decisões ulteriores do Führer (Arendt, 1996: 220).

O propósito deste bando - onde se reconhece a mesma ideologia que dirigiu e definiu todos os "experimentos" mencionados - é o cultivo da eugenia, ou seja, a melhoria da raça ("superior") e a obtenção de uma suposta garantia no sentido de uma descendência sã, forte e resistente diante da adversidade. Para tal, quem não se enquadrasse em tais premissas haveria de ser logicamente segregado e aniquilado, graças a impecáveis "argumentos" de corte científico. Com efeito, no dizer de Virilio, "[...] os nazistas tiveram uma inteligência extraordinária. E sim, o mal é isso" (Virillo, 2003: 126). Assim, desde sua origem mesma, os campos de concentração e de extermínio se encontram prenhes da ciência e do discurso que a rege.

Em consequência, o exposto nos leva a acompanhar Agamben nestas novas observações incluídas em Homo sacer: "Há algo que já não é mais capaz de funcionar nos mecanismos tradicionais que regulavam esta inscrição" [da vida, enquanto "nua"], "e o campo é o novo regulador oculto da inscrição da vida na ordem jurídica, ou melhor" - leia-se com atenção o que se segue - "[...] o sinal da impossibilidade de que o sistema funcione sem se transformar em uma máquina letal" (Agamben, 1998: 223).

Vamos dar mais uma volta para mostrar a pregnância desta problemática. Podemos reencontrá-la quando recordamos que, diante da tentativa desesperada das centenas de imigrantes frustrados que tencionaram - no segundo semestre de 2005 - romper os alambrados e os muros segregatórios instalados nos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, situados no norte do chamado "continente negro", o ministro do Interior do estado federado da Baviera, G. Beckstein, "[...] exigiu a criação de campos de refugiados na África [...]" a fim de evitar crises como as ocorridas nestes locais, impedindo assim o ingresso de tal população na União Europeia. E acrescentou de imediato: "Os refugiados de regiões em guerra civil ou de fome" (?) "devem ser alojados em campos o mais próximo possível de seus lares". Por outro lado, a polícia marroquina, segundo a ONG Médicos Sem Fronteiras, abandonou - na mesma época - à sua sorte aproximadamente 800 imigrantes ilegais subsaarianos assim que os deslocou à força através da fronteira deste país - contígua aos limites dos enclaves citados - até o deserto do Saara, numa situação "[...] em que carecem de alimentos e água e entre os quais há feridos, grávidas e crianças"7.

Muito bem, sabemos que atualmente nossa disciplina psicanalítica é combatida, quando não é diretamente insultada, em nome da ciência pré-caótica, sobretudo pela tendência "científica" voltada para a medicalização, para a psiquiatrização laboratorial cognitiva-comportamental do transtorno psíquico, na qual a palavra e o singular são depreciados sem maior consideração como dados irrelevantes, isto é, avaliados como tendo incidência supostamente nula tanto no que se refere à etiologia quanto no consequente enfoque terapêutico.

A esse respeito, Lacan se perguntava - em "Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista" (Lacan, 1966: 854) - o seguinte: "Pode o analista buscar abrigo nesta antiga investidura [...]" - referente, em primeiro lugar, ao sacerdote e, em seguida, ao médico, como aqueles que tradicionalmente se viam às voltas com os transtornos psíquicos - "[...] pode [...] buscar abrigo nesta antiga investidura, quando, laicizada, ela ruma para uma socialização que não poderá evitar nem o eugenismo nem a segregação política da anomalia?". Aí localizamos como Lacan ilustrava e prognosticava - há mais de quarenta anos atrás - o nó existente entre a ciência - cuja lógica discursiva desemboca na eugenia - e a consequente segregação dos anômalos concretizada "pelo bem da humanidade". Sim: é o também conhecido mais tarde como "limpeza étnica". Veja-se, a este respeito, o seguinte depoimento chocante de P. Virilio:

[Auschwitz-Birkenau] foram o prenúncio do que está acontecendo hoje em dia com a transgênese8. Os campos de extermínio [...] foram os mais importantes laboratórios genéticos da época. Esse empreendimento enriqueceu os grandes laboratórios farmacêuticos e enriqueceu a própria ciência. [...] Creio que [o filósofo criminoso nazista e médico chefe de Auschwitz, Dr. Josef] Mengele é um personagem que os grandes laboratórios farmacêuticos quiseram esconder porque o haviam patrocinado" (Virilio, 2003: 115-117).

Voltemos agora, em função do que foi apontado, ao texto de Lacan. Avança, então, a seguinte questão: "Haverá a psicanálise de substituir-se não a uma escatologia [...]". Escatologia: quer dizer, a disciplina que se incumbe da suposta elucidação dos fins últimos. Pois bem, se a psicanálise poderia se substituir a uma escatologia é porque deve ter estado sempre na garupa de outra tessitura, conduzida, então, por um finalismo, por uma teleologia de uma forma ou de outra baseada em um imaginário e um sistema de crenças transcendente, como fiadores de uma moral adaptativa e "benfeitora". Daí a continuação da questão citada: "[...] substituir-se não a uma escatologia, mas aos direitos de um fim primeiro?". Em meu entender, esta pergunta formulada por Lacan em 1964, e republicada dois anos depois nos Écrits, finca seus propósitos no seguinte: na substituição, no resgate dos direitos de um fim primeiro (e não dos bandos) por parte de uma psicanálise imanente, laica, autônoma e defensora insubornável da aceitação das diferenças e das singularidades. Mas nem por isso há de se tratar de uma psicanálise defensora da segregação científica teleológica e reativamente "humanitária", porque, no respeito às diferenças, são não só desejáveis, como também factíveis, as convergências.

Pois bem, esse ideário pode continuar encontrando sua efetivação, sua colocação em ato para além do voluntarismo principista, mediante o que hoje nós, como movimento psicanalítico, encontramo-nos moldando gradualmente através da rede internacional pluri-institucional e multilíngue - fundada em 1998 - denominada Convergência, Movimento Lacaniano pela Psicanálise Freudiana. A ela se dirige, uma vez mais, nossa aposta, vale dizer, pela invenção consolidada de outro tipo de laço social entre psicanalistas. Laço "palavreiro", quer dizer: nem violento - posto que a violência destrói o laço social (Serres, 1981: 145) - nem segregativo - porque não acredita na existência de falantes-cloacas (Lacan, 2005: 85). Aberto, ao contrário, ao crescente pacto simbólico com os psicanalistas cives. Claro: sem autonomismos e sem nostalgias pelo trono e/ou pelo altar.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 As provas verificatórias da tese referente à célebre repetição são contundentes. Basta pensarmos - e a lista não é exaustiva - no Camboja, em Ruanda e na Bósnia-Herzegovina.

2 SS: é a sigla correspondente a Schutzstaffel, ou seja, "corpo de proteção". Na verdade, foi uma unidade paramilitar do partido Nazista alemão. A Gestapo tomou seu controle a partir de 1936, e seu chefe e organizador foi H. Himmler.

3 O referido, convém notar, nada tem a ver com a suposta "mobilidade social" postulada como categoria ideal - tributária inconfessa do liberalismo - por parte da sociologia funcionalista de cunho predominantemente norte-americano.

4 As agências de notícias internacionais AP, Reuters, ANSA e AFP divulgaram a notícia "Al-Qaeda declarou guerra às eleições no Iraque" no jornal La Nación, Buenos Aires, em 22/01/2005, p. 1.         [ Links ]

5 O texto de P. Virilio "Un arte despiadado" (2000) dá conta, com veemente e lúcida informação, da regência da vida nua - embora esta não seja utilizada explicitamente como categoria - na equivocadamente chamada "arte contemporânea", cujo andamento, aliás, não deixa de evocar a "arte" do eugenismo dos campos. De fato, tal como afirma, no museu de Auschwitz temos a súbita impressão de nos encontrarmos em um museu de arte contemporânea, dada a estética do desaparecimento que impera em ambas as circunstâncias. Mostração, brutalidade, exposição de cadáveres: tudo parece plausível a esta arte. O que o leva a se colocar a comovente pergunta a seguir, bastante vinculada a nosso questionamento: "[...] se o terror nazista perdeu a guerra, por acaso não ganhou, afinal, a paz?" (em El procedimiento silencio, Paidós, Buenos Aires, 2005, pp. 47-83).         [ Links ]

6 O livro de John Cornwell - de publicação mais ou menos recente - ilustra com fundamento abundante e séria documentação a variedade, certamente horripilante, dos "experimentos" em questão. (Os cientistas de Hitler. Ciência, guerra e o pacto com o demônio, Imago, Rio de Janeiro, 2003, passim).         [ Links ]

7 As agências de notícias internacionais DPA, EFE e ANSA divulgaram a notícia "Alerta sobre um 'caos' na Europa pela chegada maciça de ilegais", publicada no jornal La Nación, Buenos Aires, em 9/10/2005, p. 3.         [ Links ]

8 A transgênese consiste na integração, em um organismo vivo, de um gene exógeno que lhe confere uma nova característica, capaz de ser transmitida aos descendentes desse organismo.

 

 

Recebido em 30 de novembro de 2009
Aceito para publicação em 15 de maio de 2010

 

 

Roberto Harari
Psicanalista em Buenos Aires desde 1965. Desde 1986, dirigiu a coleção de Freud, Lacan em Ediciones Nueva Vision. Foi membro fundador e presidente da Mayéutica Instituición Psicoanalítica. Publicou mais de 200 artigos em revistas internacionais e é autor de dezesseis livros, vários traduzidos para o francês, o inglês e o português.

 

 

* Desde 1986, dirigiu a coleção de Freud, Lacan em Ediciones Nueva Vision. Foi membro fundador e presidente da Mayéutica Instituición Psicoanalítica. Publicou mais de 200 artigos em revistas internacionais e é autor de dezesseis livros, vários traduzidos para o francês, o inglês e o português. O presente texto foi enviado pelo autor, pouco antes de seu falecimento em 30 de junho de 2009, a Cynthia De Paoli, na época editora responsável de Tempo Psicanalítico, e é um extrato de um capítulo do livro Palabra, violencia, segregación y otros impromptus psicoanalíticos, Catálogos, Buenos Aires, 2007
** Tradução de Eduardo Hugo Frota Neto

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