Psicologia Clínica
ISSN 0103-5665 ISSN 1980-5438
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03A05
SEÇÃO TEMÁTICA QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: GÊNERO, FEMINISMO, MIGRAÇÃO
A segregação em Lacan cinquenta anos depois
The segregation in Lacan fifty years later
La segregación en Lacan cincuenta años después
Thalita Castello Branco FonteneleI; Leonardo Barros de SouzaII; Maria Celina Peixoto LimaIII
IMestra em Psicologia pelo Departamento de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, Brasil. thalitafontenele@gmail.com
IIDoutorando pelo Departamento de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, Brasil
IIIProfessora Titular do Departamento de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, Brasil
RESUMO
Em 2017 completaram-se cinquenta anos desde que Lacan mencionou a noção de segregação pela primeira vez em seu ensino. Trata-se de um tema importante, que nos permite pensar acerca dos modos de operação e das consequências das práticas e discursos sociais. Partindo de uma revisão apurada da própria obra lacaniana e de alguns de seus comentadores, pretendemos apresentar a definição de segregação para Lacan, demarcando suas diferenças das ideias de discriminação e exclusão, pondo também em pauta os efeitos dessubjetivantes disparados sobre as ditas "figuras da segregação" a partir do discurso totalitário da ciência, que as situa sempre à margem de sua prática. Concluímos que a segregação pode ser interpretada como uma questão central da crise da civilização moderna, científica, a qual revela e acentua o mal-estar inerente a si mesma; daí a importância de discuti-la a partir do que a psicanálise propõe, pois esta, ainda que nascida em tal civilização, nunca pretendeu suprimir o mal-estar, mas tenciona subverter seus efeitos.
Palavras-chave: segregação; psicanálise; Lacan.
ABSTRACT
In 2017 it has been fifty years since Lacan mentioned the notion of segregation for the first time in his teaching. It is an important theme that allows us to think about the modes of operation and consequences of social practices and discourses. Based on an accurate review of Lacanian works and of some of his commentators, we aim to arrive at a definition of segregation for Lacan, demarcating its differences from the ideas of discrimination and exclusion, and putting into focus the desubjectivant effects aimed at the "figures of segregation" from the totalitarian discourse of science, which always lies at the margins of its practice. We conclude that segregation can be interpreted as a central question in the crisis of modern, scientific civilization, which reveals and stresses the malaise inherent in itself; hence the importance of discussing it from what psychoanalysis proposes, since, although born from such a civilization, psychoanalysis never intended to suppress the malaise, but to subvert its effects.
Keywords: segregation; psychoanalysis; Lacan.
RESUMEN
En 2017 hace cincuenta años desde que Lacan mencionó la noción de segregación por primera vez en su enseñanza. Se trata de un tema importante que nos permite pensar acerca de los modos de operación y consecuencias de las prácticas y discursos sociales. A partir de una revisión apurada de la propia obra lacaniana y de algunos de sus comentadores, intentamos presentar la definición de segregación para Lacan, demarcando sus diferencias con las ideas de discriminación y exclusión, y poniendo en pauta los efectos desubordinantes disparados sobre las "figuras de la segregación" a partir del discurso totalitario de la ciencia, que les sitúa siempre al margen de su práctica. Concluimos que la segregación puede ser interpretada como una cuestión central de la crisis de la civilización moderna, científica, la cual revela y acentúa el malestar inherente a ella misma; de ahí la importancia de discutirla a partir de lo que el psicoanálisis propone, ya que esta, aunque nació en tal civilización, nunca pretendió suprimir el malestar, sino que pretende subvertir sus efectos.
Palabras clave: segregación; psicoanálisis; Lacan.
Introdução
Falar de segregação, no campo da psicanálise, implica falar em uma noção. Não se trata de um conceito do vocabulário psicanalítico, de um tema no qual Freud tenha tocado diretamente, ou mesmo de um assunto que tenha sido muito discutido por Lacan. Segundo Askofaré (2009), segregação não é nem um conceito fundamental em psicanálise nem um termo tão utilizado em nosso vocabulário corrente. Não bastasse isso, as confusões entre segregação e exclusão, segregação e discriminação, e mesmo a utilização de cunho político-social que é feita do termo contribuem para alimentar as controvérsias sobre a aplicabilidade da segregação como uma noção bem fundamentada, que permita pensar os modos de operação das práticas e discursos sociais.
A palavra segregação vem do latim grex, gregário - ou seja, a vida em rebanho para membros da mesma espécie - e corresponde ao fato da separação no que é dado como gregário. Fethi Benslama (2016) faz duas observações interessantes sobre isso. A primeira é que a noção de gregário contém um significado pastoral, equiparando o agrupamento humano e seu governo ao dos animais. Na estrutura pastoral, segundo o autor, há uma gestão integral da vida dos animais por parte do pastor, que lhes possibilita viver individual e coletivamente, o que quer dizer que há uma relação entre um pastor-sujeito e animais-assujeitados. Assim, a noção de gregário supõe a passividade dos agregados. Por outro lado, os segregados seriam aqueles que não se beneficiam dos cuidados prestados ao rebanho e são excluídos, abandonados da proteção do pastor. Como resultado, essa exclusão os coloca fora da dívida e, na medida em que não estão mais em dívida com ele por suas vidas, representam uma ameaça à sua soberania.
A segunda observação é que "a segregação, enquanto ato de separação, não é apenas o resultado de uma exclusão interna, senão condição fundamental à própria origem gregária e à formação de comunidades diferentes umas das outras", daí que "toda afirmação individual ou coletiva de identidade, qualquer que seja sua natureza ou forma, é segregativa" (Benslama, 2016, p. 11, tradução nossa). Ou seja, conclui o autor: a segregação pertence à constituição totêmica. O totem segrega por ocupar, no grupo, o lugar de Outro.
Podemos nos servir da noção de segregação utilizada por Lacan, ao longo do seu ensino, para tratar dos efeitos que o discurso produz no laço. Quer seja no que diz respeito à situação de insularidade da comunidade psicanalítica, quer seja como processo resultante da política de mercado, o fato é que o tema da segregação está vinculado à tese lacaniana acerca dos ideais universalizantes introduzidos pelo discurso da ciência. Como comenta Soler (1998, p. 43): "É uma tese simples, forte: segregação, efeito de, consequência de universalização".
No entanto, é preciso cuidado para demarcar o intuito de Lacan com a utilização dessa palavra, que hoje é tão presente nas ciências ditas sociais. Soler (1998) nos adverte para o fato que, quando ele falou sobre isso pela primeira vez, tal noção ainda não estava na moda. Segundo a autora, na década de sessenta se acreditava muito na ideia de subversão do capitalismo; por isso, talvez, a perspectiva lacaniana da segregação não foi tão difundida. De fato, tal noção surge em seu ensino em 1967, e, de acordo com Askofaré (2009), tem uma carreira bastante breve, que vai aproximadamente até 1970. Mesmo assim, como veremos ao longo deste artigo Lacan foi, ainda que breve, absolutamente fatídico no que disse.
Em 2017 fazem cinquenta anos desde que Lacan falou em segregação pela primeira vez. Ele a mencionou essencialmente em três momentos: na primeira versão da Proposição de 09 de outubro sobre o psicanalista da Escola (1967/2001b), no Pequeno discurso aos psiquiatras de Sainte-Anne (1967) e no capítulo sete do Seminário XVII - O avesso da psicanálise (1970/1992). Se tomarmos esses textos como indicações, seguindo Askofaré (2009, p. 346), "o tema da segregação surge no entrecruzamento de três problemáticas: o laço social e político, a instituição analítica e o passe e, enfim, o discurso da ciência e a foraclusão do sexo e do amor". Aqui, não pretendemos nos aprofundar especificamente nessas problemáticas, mas - recorrendo àqueles e a outros textos lacanianos - tocar em questões cruciais para o seu debate, quais sejam: a noção de criança generalizada, a noção de figuras da segregação, a ideia de segregação enquanto causa, efeito e prática, e as diferenças entre segregação, discriminação e exclusão.
A criança generalizada
Gostaríamos de destacar o uso que Lacan fez da noção de segregação por ocasião de uma jornada, organizada por Maud Mannoni em 1967, sobre a infância alienada. Nesse evento, que reunia representantes do movimento da antipsiquiatria e psicanalistas anglo-saxões, a conferência de Lacan tinha como objetivo sublinhar o destino comum da prática institucional (especialmente dirigida ao tratamento do sujeito psicótico) e do futuro da prática analítica. Em reação às exposições dos analistas pós-freudianos, Lacan abordou uma série de temas, tais como o inconsciente, o corpo, o gozo, o real enquanto impossível, em um verdadeiro esforço de situar o discurso do analista em oposição ao discurso da ciência. Ele iniciou falando da liberdade, relacionando-a à criança, à psicose e à instituição, e logo disse que: "No que, não somente em nosso próprio domínio, o dos psiquiatras, mas até onde se estende o nosso universo, teremos que lidar, e sempre de maneira mais premente, com a segregação" (p. 360), argumentando, com um tom incrivelmente premonitório, que os homens estavam entrando em uma era planetária,
[…] na qual se informarão por algo que surge da destruição de uma antiga ordem social que eu simbolizaria pelo império, tal como uma sombra perfilou-se por muito tempo numa grande civilização para ser substituída por algo bem diverso e que de modo algum tem o mesmo sentido - os imperialismos […] O problema, no nível em que há pouco o articulou Oury, dando-lhe o nome apropriado de segregação é, portanto, apenas um ponto local, um pequeno modelo daquilo a que se trata de saber como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes. (Lacan, 1967/2001b, p. 360)
No final da conferência, ele anuncia que vai deixar de lado as discussões teóricas para abordar o que chama de "o impasse dos problemas levantados na época" (Lacan, 1967/2001a, p. 367). Nesse mesmo movimento, introduz uma expressão um tanto enigmática, mas fecunda: a "criança generalizada", fazendo referência ao que André Malraux (citado por Lacan, 1967/2001a, p. 367) afirma nas suas Antimemórias: "Acabei acreditando, veja só, neste declínio da minha vida… que não existe gente grande". Além das consequências clínicas que disso decorrem sobre a necessidade de tomar posição frente à mudança radical do estatuto do pai, cada vez menos capaz de assegurar a distribuição e ordenação do gozo, podemos reconhecer nessa expressão uma evidente conotação política.
Na verdade, a generalização da criança implica a abolição daquilo que constitui a diferença com relação ao adulto, a saber: aquilo que diz respeito à responsabilidade subjetiva. A desresponsabilização com relação às modalidades de gozo resulta da ação universalizante do discurso da ciência, produzindo, como consequência, a criança generalizada. E eis que Lacan, sempre de forma enigmática, associa a entrada no reino da criança generalizada "à entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação" (Lacan, 1967/2001a, p. 367). Ora, nós sabemos a importância que Lacan atribui aos efeitos do discurso da ciência sobre o laço social, mas o que nos interroga é a relação que ele propõe entre a criança generalizada e a segregação.
Sobre o primeiro termo, pode-se compreender, como já foi dito, o fato da desresponsabilização do gozo de cada um, o que, mais do que a cronologia, distingue a criança do adulto. Enquanto correlato dos impasses levantados na época - todos iguais, direitos comuns - a criança generalizada tem, como contrapartida, um efeito crescente de segregação. Lacan afirma que não se trata somente da segregação ligada ao domínio da psiquiatria, a segregação dos loucos, mas ele anuncia, de forma um tanto profética, que iremos rumo a uma segregação tão extensa quanto o universo. Encontramos, na ocasião, uma alusão aos fenômenos de racismo e, mais particularmente, aos campos de concentração nazistas. No Seminário XVII, em uma referência a Totem e Tabu, Lacan retoma a palavra segregação como princípio da fraternidade: "Só conheço uma origem da fraternidade… é a segregação. Não há mais segregação em parte alguma, é o tédio quando lemos os jornais. Simplesmente […] na sociedade tudo o que existe é fundado na segregação, e, antes de tudo, a fraternidade" (Lacan, 1970/1992, p. 107).
Podemos constatar que não é sem um certo paradoxo que Lacan situa a segregação justamente como efeito do ato mítico que institui o laço fraterno, a saber: o assassinato do pai da horda. A contradição dessa afirmação vai ainda mais longe, quando, um ano depois, em 1970, ele anuncia, em uma breve nota de rodapé: "A recusa da segregação está naturalmente no princípio do campo de concentração" (Lacan, 1970/1992, p. 392). Assim, a segregação aparece como princípio tanto da fraternidade quanto sua recusa implicaria o fundamento do campo de concentração.
Podemos já concluir que a forma como Lacan trata esse significante não coincide com o sentido mais corrente da palavra. O termo segregação é frequentemente empregado com uma conotação política ligada à ação de isolar um grupo, por exemplo, pelas suas características raciais. Esse termo, sociológico por excelência, adquire em Lacan uma complexidade em princípio contraditória com relação a seu sentido primeiro, que diz respeito ao fato de isolar, de separar. No entanto, ele o compreende como efeito de um ideal uniformizante. Efeito não somente de um discurso particular, mas também efeito de discurso, em sua conotação de estrutura ou de princípio.
É a partir dessa vertente estrutural que Lacan nos fala da segregação, sublinhando que tanto mais nos movemos em direção ao universal, mais segregamos o singular. Daí seu alerta sobre os impasses do nosso tempo na referência ao mundo da criança generalizada, essa figura da criança da ciência, da criança-objeto de um saber sem sujeito, onde predominam as paixões preventiva e educativa, acompanhantes da promoção das grandes classificações internacionais, como é o caso, por exemplo, do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Psiquiátrica Americana) e do CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, da Organização Mundial da Saúde).
As figuras da segregação
No final da década de 1990 - principalmente em trabalhos sobre a toxicomania - a segregação retomou um lugar no campo psicanalítico, resgatada a fim de movimentar outras discussões contemporâneas que colocam em xeque o estatuto do sujeito diante de reverberações de discursos e práticas sociais. Nesse sentido, Pestre (2016) propõe uma extensão da discussão da segregação por meio da categoria de figura, articulada sob a forma das "figuras da segregação". Essa categoria diz respeito a "uma pluralidade de aspectos, aparências e manifestações mediante as quais se pode reconhecer uma mesma forma" (Benslama, 2016, p. 10, tradução nossa).
Que forma seria essa? Uma espécie de forma identitária, engendrada no/pelo discurso, que produz categorias como formas de organização das manifestações problemáticas da subjetividade na atualidade. Cada forma de resistência, cada modalidade de subjetividade que se apresenta como uma nova dificuldade ao funcionamento da lógica civilizatória corresponde à produção de uma figura da segregação, uma categoria que coloca cada um no seu lugar. O lugar, nesse caso, é um lugar fora do espaço comum a todos.
Assim, o toxicômano, o autista, o imigrante, o homossexual, e, ainda, o louco, são algumas dessas figuras de nosso tempo, personagens tomados como problemáticos, seja por não se adequarem à lógica das normas do sistema, seja por se recusarem a tomar parte do jogo social implicado pela pertença à sociedade enquanto indivíduo. Daí a ideia de se pensar a segregação como uma problemática social e clínica, contribuindo, como propõe Assoun (citado por Ferreyra, 2016, p. 98), para uma "clínica social da segregação".
Segregação enquanto causa, efeito… e suas práticas
Remetendo-se ao mito da horda primitiva, Lacan aponta para a segregação não apenas como efeito político e social do discurso, como algo presente nas práticas e estratégias políticas. A segregação possui um viés estrutural, fundamental, princípio mesmo de todo discurso, uma articulação que opera uma espécie de desnegativização do termo: em psicanálise, a segregação está também no princípio, já que todo discurso produz segregação.
Temos por um lado, portanto, a segregação fundamental, estrutural, por outro, as práticas de segregação. Para entender melhor suas práticas e efeitos, recorremos agora ao final do Petit discours aux psychiatres de Sainte-Anne, em que Lacan (1967) começa a falar do sujeito puro da ciência, indicando que sua expansão e dominância é o que leva a esses efeitos dos quais os psiquiatras também são participantes e que, sobremaneira, "há um preço a se pagar pela universalização do sujeito, na medida em que ele é o sujeito falante, o homem" (p. 15, tradução nossa). Ele continua:
[…] é que, provavelmente em razão dessa estrutura profunda, os progressos da civilização universal vão se traduzir não somente por um certo mal-estar como o senhor Freud já tinha percebido, mas por uma prática, a qual vocês verão se tornar cada vez mais extensa, que não mostrará sua verdadeira face imediatamente, mas que tem um nome, o qual, seja mudado ou não, vai sempre dizer a mesma coisa, e vai acontecer: a segregação. Os senhores nazistas, vocês poderiam ter por eles um reconhecimento considerável, foram precursores e tiveram, aliás, imediatamente, um pouco mais ao leste, imitadores, em matéria de concentrar as pessoas - é o resgate que se paga por essa universalização, na medida em que ela não resulta senão do progresso do sujeito da ciência. (Lacan, 1967, p. 15, tradução nossa)
Lacan (1967) alerta que eles, os psiquiatras para quem falava, poderiam ter algo a dizer com relação aos efeitos de segregação - "isso de que se tratará nos movimentos que vão se produzir e em níveis sobre os quais vocês podem contar que serão planetários" (p. 15, tradução nossa) - pois sabem como as coisas se produzem. Isso lhes permitiria dar uma forma diferente, menos brutal, àquilo que veriam acontecer dali a uns trinta ou cinquenta anos, ou seja, hoje! Por fim, ele brinca, diz que talvez os psiquiatras durmam no ponto, fiquem cegos, achando que a psicanálise é algo difícil demais, usando-a como um modo de ascensão social, preocupados com sua técnica etc., e nada façam. Portanto,
temos uma tese: a tese de Lacan de 1967, que faz da segregação, de seu desenvolvimento recente, um efeito, ou melhor, uma consequência inevitável daquilo que caracterizamos como sendo a universalização introduzida na civilização pela ciência. É uma tese simples, forte: segregação, efeito de, consequência da universalização. (Soler, 1998, p. 43)
Diferenças importantes entre segregação, discriminação e exclusão
Insistimos que é preciso atentar para o fato que segregação, discriminação e exclusão não são a mesma coisa, mesmo se na prática elas parecem próximas, afinal: "a gente pode estar incluída em um grupo e, mesmo assim, submeter-se a tratamentos diferenciados e injustos" (Benslama, 2016, p. 12, tradução nossa). Isso porque a segregação apenas acontece no contexto da nossa civilização científica - ou tecnocientífica - na qual a universalização não passa pelo significante mestre, senão pelas leis do mercado, "por um dever que não o da proliferação dos valores dos ideais, mas um dever real do manejo dos meios econômicos" (Soler, 1998, p. 45).
Assim, nesse arranjo social em que todos obedecem a um só modelo, vestem-se com as mesmas roupas, possuem os mesmos objetos etc., quando se apresentam diferenças resistentes, irredutíveis, o que resta é uma saída que Soler (1998, p. 45) chama de "espacial: cada um em seu devido lugar, ou seja, uma solução que poderíamos caracterizar como sendo pela via da repartição territorial", já que "as concretas manifestações da segregação se inscrevem sobretudo naquilo que ele chama de espaço real e no laço com a comunidade, de modo que essa inscrição não é causa, mas efeito da segregação" (Benslama, 2016, tradução nossa).
Ainda de acordo com Soler (1998), a distinção entre segregação e discriminação se relaciona precisamente à universalização (como fundamento) e à repartição espacial. Existiram, ao longo dos séculos, diversas sociedades discriminatórias que não eram segregativas. Se pensamos, por exemplo, nas sociedades escravagistas da Antiguidade, essa distinção fica um pouco mais clara. Ali, senhor e escravo tinham funções diferentes, classes diferentes, que eram bem delimitadas socialmente, mas eles viviam na mesma cidade e até na mesma casa. A discriminação implica uma distinção que põe em relevo a diferença entre um e outro pela via dos benefícios (ou falta deles) e das classes; no entanto, há a manutenção da convivência no mesmo espaço, a lógica do viver com.
Já na lógica da segregação, o que está em jogo é um viver como o outro, mas não com o outro. A repartição espacial é a estratégia das práticas de segregação, que visam retirar do espaço comum de convivência as chamadas figuras da segregação, as quais, agrupadas como formas específicas, convertem-se em grupos de segregados, que são todos uns como os outros. A abolição das diferenças se faz por duas vias: primeiramente as diferenças são retiradas da convivência com o núcleo social dito comum; e, em seguida, a criação de espaços de segregação implica que todos os que são forçosamente constituídos como figuras da segregação são iguais entre si, excluindo também as suas diferenças.
Isso não quer dizer, obviamente, que aquele tipo de organização social escravagista da Antiguidade era interessante ou melhor do que as organizações sociais atuais. Não se trata disso. Sabemos que tanto a discriminação quanto a segregação levam ao pior, pois podem gerar efeitos devastadores para os sujeitos. O que queremos apontar aqui é como a cartografia da coabitação social, digamos assim, foi modificada, ao longo do tempo, pelos diferentes discursos.
Em psicanálise, a segregação é o princípio mesmo dos discursos que estruturam os laços humanos e todas as organizações sociais se sustentam nessa segregação fundamental e estrutural mediante a qual são constituídas, "separando-se e se concentrando em si mesmas. A concentração está, para Lacan, sob a modalidade do campo - campos de concentração e não de extermínio - a marca da ultrauniversalização produzida pelas tecnociências na época moderna" (Benslama, 2016, p. 16, tradução nossa). Nesse sentido, apesar da segregação como causa de discurso, é possível haver discriminação ou exclusão sem efeito segregativo (exemplo: estar em um grupo, mas não pertencer a ele, não compartilhar de suas regras etc.). Por outro lado, em um contexto de segregação, a intolerância aumenta: há sempre uma repartição de espaços, de grupos; a prática segregativa se efetiva como produto de uma lógica discriminatória, uma discriminação operada pelo discurso da ciência:
[…] o discurso da ciência determina um processo paradoxal que, de um lado, efetua um "puro sujeito da ciência" que não existe em parte alguma e, por outro, faz ex-sistir, fora de seu domínio de definição e fora do universo de seu discurso, diferentes fenômenos que presentificam e suportam a protestação lógica do sujeito falante que devia foracluir por se constituir. É entre outros em torno desses fenômenos que objetam ao processo de Um-iversalização e ao Um-perialismo da ciência que vão se constituir os isolados, as concentrações, as novas repartições inter-humanas que propõe denominar efeito de segregação. (Askofaré, 2009, p. 352, grifos do autor)
Esse ideal uniformizante de homogeneização suprime diferenças, universaliza ou, ainda, provoca a constituição de modos de gozar comuns a todos. Ela sempre existiu, já que a civilização sempre tentou gerenciar o gozo por meio de diversas estratégias, mas nunca foi tão alarmante quanto hoje, em nosso mundo tecnocientífico, marcado pela crise, ou, como elabora Colette Soler (1998, p. 44), pela "esquizofrenização do significante mestre". Assim, "o discurso da ciência e o sujeito moderno que lhe é correlato iniciam uma prática - quer dizer, um tratamento do real pelo simbólico - da segregação" (Askofaré, 2009, p. 351). Nessa lógica, não há lugar para a coabitação, é cada um em seu devido espaço.
Considerações finais
Se Freud nos ensinou que a civilização tem o recalque como efeito, Lacan ensina que o resultado dela é a segregação. Além disso, no tempo de Freud, tínhamos a esperança como o nome daquilo que nós acreditávamos e que faria sintoma; Lacan teria interpretado isso nomeando um novo sintoma na teoria analítica, o qual reenvia a um real bem mais terrível e que se chama segregação. Ela, explica Leguil (1998, p. 7), "não se inscreve em relação à esperança do Outro, mas se inscreve em relação, precisamente, à inconsistência do Outro".
Ainda que fosse possível recolocarmos o Outro em posição de oferecer sustentação, a segregação não é um efeito inverso ou oposto à discriminação, ela é, antes, seu desdobramento. No mesmo sentido, não foi nossa intenção neste trabalho propor uma resolução do regime pautado na segregação pelo retorno a uma lógica anterior. Nosso delineamento quis, em verdade, sinalizar o lugar da segregação na organização social e sua influência no laço com o outro.
Vivemos num momento em que, exatamente como previu Lacan, os efeitos de segregação - no bojo da globalização - estão no ápice. É possível vê-los da medicina à psiquiatria, da psiquiatria ao direito, do direito à psicologia, da psicologia à educação. Esses efeitos, explica Askofaré (2012, p. 166, tradução nossa) são, por outro lado, "sua versão epistêmica […] com as especializações de saberes e de formações profissionais", e não somente sua versão espacial clássica, caracterizada pelos lugares físicos onde se costuma isolar e concentrar os ditos loucos, débeis, criminosos, delinquentes, superdotados, velhos, refugiados etc.
É interessante notar também que Lacan deixou de mencionar diretamente a questão da segregação em 1970, mesmo ano em que começou a discutir o discurso capitalista - o qual tem por função desfazer o laço social em vez de constituí-lo. Se, por um lado, Freud falou de civilização, Lacan falou de discurso; com esta noção, ele "tentou introduzir, a partir da experiência analítica, algo que concerne ao conjunto do coletivo" (Soler, 2011), o que nos mostra que a psicanálise alcança não apenas o um por um da clínica, mas também o social. Na verdade, sua ética aponta para isso. Daí concordarmos com Pacheco, Berta e Oliveira (2013), quando afirmam que pensar a política da psicanálise hoje "implica, antes de mais nada, adotar uma posição ética contrária à segregação" (p. 20). Ou melhor, aos seus efeitos - já que à segregação enquanto causa ninguém pode se opor.
Temos, então, a psicanálise como uma possibilidade subversiva. Mas é importante lembrar que "O discurso analítico pretende escapar à segregação pela via do um por um, o que é astuto. Ou seja, é um discurso que aparentemente não segrega ninguém, salvo o fato de que todos não entram, que todos não podem entrar" (Soler, 1998, p. 49). Além disso, se o que se espera do trabalho do psicanalista é um resultado, então, pontua Soler (1998, p. 53), "a civilização não pode esperar muito do discurso analítico". Na verdade, não se trata de se opor a um discurso que segue seu caminho, mas sim tentar tratar seus efeitos; afinal, "não devemos chorar sobre o que faz a ciência, devemos estar à disposição de todos aqueles que choram a devastação da ciência" (Leguil, 1998, p. 44).
Entendemos a segregação como um efeito de discurso e, sobretudo, uma forma de organização do social, uma "… via de tratar o insuportável, o impossível de suportar" (Soler, 1998, p. 46). Vimos que Lacan trata esse significante, termo sociológico por excelência, tanto como princípio quanto como efeito de um ideal uniformizante. Daí seu alerta sobre a criança generalizada, essa figura da criança da ciência, da criança-objeto de um saber sem sujeito, predominante nos impasses do nosso tempo, em que as paixões educativas e reabilitadoras acompanham as grandes classificações internacionais, como é o caso dos manuais psiquiátricos.
Como foi dito, é possível pensar em diversas figuras da segregação (Pestre, 2016) em nosso tempo. A segregação pode ser interpretada como uma questão central da crise da civilização moderna, científica, a qual revela e acentua o mal-estar inerente a si mesma. A psicanálise, ainda que nascida nessa civilização, nunca pretendeu suprimir tal mal-estar, nem "entretê-lo", como disse Koltai (1998, p. 106), mas sempre buscou tomar "o sintoma a sério". A partir dos estudos de Lacan, que pôde levar a genialidade de Freud adiante, pudemos colocar em pauta os efeitos dessubjetivantes disparados sobre as figuras da segregação a partir do discurso totalitário da ciência, que lhes situa sempre ao escanteio de sua prática.
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Recebido em 21 de março de 2018
Aceito para publicação em 25 de junho de 2018