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Revista Brasileira de Psicanálise

 ISSN 0486-641X

     

 

RESENHAS

 

Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso

 

 

Regina Weinfeld Reiss

Socióloga. Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / reginawreiss@gmail.com

 

 

 

Organizadoras: Luciana Saddi e Maria de Lurdes S. Zemel
Editora: Blucher, 2021, 182 p.
Resenhado por: Regina Weinfeld Reiss

 

 

As organizadoras deste livro, tão oportuno em nossa atual conjuntura, dedicam a publicação ao professor Elisaldo Carlini, que desde 1954 até a sua morte, em 2020, empenhou-se na universidade à pesquisa da maconha e de outras substâncias psicoativas, abrindo caminho para o conhecimento dessa área, despojado de preconceitos, sob a lupa rigorosa da ciência.

Um campo vasto foi aberto, mas que vem exigindo cultivo e cuidado ético por parte dos profissionais das mais variadas trajetórias e especialidades que compõem esta publicação, reunidos em torno desses princípios, em seus diferentes laboratórios e instrumentos de observação.

Além da justa homenagem e reconhecimento aos pioneiros, o livro se insere no cada vez mais precioso caminho da transmissão de conhecimento científico confiável numa linguagem compreensível para o grande público.

As organizadoras, Luciana Saddi e Maria de Lurdes S. Zemel, psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), têm desenvolvido inúmeros atendimentos, cursos e projetos na Diretoria de Atendimento à Comunidade da SBPSP.

Desde 1977, Maria de Lurdes realiza trabalhos na área de prevenção em instituições de ensino e de formação de profissionais e participantes de organizações não governamentais, além de atendimentos clínicos individuais e familiares.

A perspectiva psicanalítica atravessa a proposta do livro. Há o propósito de apresentar ao público leigo parte do conhecimento científico, como um fazer constante e inacabado, com uma atitude de abertura e curiosidade para a investigação, mostrando o que se sabe até o momento, livre de preconceitos, moralismos ou religiosidades. O alerta para que cada situação seja examinada em sua singularidade fica claro nas palavras das organizadoras na apresentação do livro:

Lembramos ainda que o problema jamais é a droga em si. A maconha - aqui examinada em múltiplas dimensões - não existe sozinha. Existe para quem a usa, para quem a condena, existe numa grande rede simbólica atravessada por inúmeros interesses e pela história humana. (p. 15)

Alguns eixos norteiam este acervo de textos, que podem ser lidos na sequência ou escolhidos pela pulsação do interesse do leitor. O eixo da vulnerabilidade perpassa vários deles, atravessando a perspectiva do sujeito, da família e da sociedade como um todo.

Silvia Brasiliano nos fala da família e do adolescente e alerta para certos equívocos na abordagem das famílias diante da questão das drogas, sem minimizar o risco do consumo da substância na adolescência, período crucial na formação identitária do sujeito.

Esse aspecto é também desenvolvido por Maria Fátima Olivier Sudbrack, que aponta para os riscos do abuso da maconha entre os adolescentes, individual e socialmente. O envolvimento com o tráfico é uma realidade nas camadas mais pobres da sociedade, na população carcerária e nas comunidades.

Maria de Lurdes S. Zemel explicita quais seriam, em sua experiência, os princípios orientadores de políticas e práticas preventivas: o despojamento de ideias preconcebidas, as ações contínuas, o entendimento de que, como as vulnerabilidades são flexíveis, é recomendável que as ações também o sejam.

Marcelo Sodelli descreve o que entende por vulnerabilidade, alertando para o fato de que "ninguém é vulnerável, mas está vulnerável, resultante da dinâmica relação entre os componentes individuais, sociais e programáticos" (p. 55). O autor alerta para o risco da vasta disponibilidade de informações, confiáveis e falsas, através da ampliação dos meios eletrônicos: "Somos cada vez mais in-formados e cada vez menos formados" (p. 52).

Ficamos sabendo que a maconha é a droga ilícita mais consumida no mundo, e que o consumo da Cannabis sativa no Ocidente data de 4 mil anos atrás, no texto de Eroy Aparecida da Silva e Yone Gonçalves de Moura, que também focalizam a questão das vulnerabilidades.

As questões legais que envolvem o uso da maconha são extremamente complexas e se desdobram em muitos campos de atuação profissional.

Vera Da Ros, ao tratar das práticas de redução de danos, tão necessárias e tão atacadas por aqueles que as confundem com estímulo ao uso, alerta, entre outras coisas, para o fato de que a ilegalidade representa um risco adicional ao usuário - por exemplo, com a compra de droga adulterada.

O advogado Luís Francisco Carvalho Filho expõe dados impressionantes, decorrentes das políticas equivocadas de repressão ao tráfico, que só vêm fortalecendo o crime organizado e aumentando assustadoramente a população carcerária, composta majoritariamente de jovens negros, bem como de um crescente número de mulheres. As consequências psicossociais para os indivíduos e o país são incomensuráveis.

Ao nos apresentar ao uso terapêutico dos canabinoides, em que se têm observado respostas muito positivas em inúmeros quadros neurológicos e psiquiátricos, no combate aos efeitos colaterais da quimioterapia, entre outros, Dartiu Xavier da Silveira Filho e Rodrigo Nikobin nos atualizam sobre os novos achados e comentam que o proibicionismo dificulta as pesquisas científicas no campo da medicina. Ressaltam ainda que nos países onde houve legalização não se observou aumento do consumo, e sim diminuição dos crimes.

Renato Filev também aborda os usos terapêuticos da maconha e os inúmeros entraves burocráticos enfrentados no âmbito do reconhecimento, aprovação e regulamentação da maconha e seus componentes pelos órgãos responsáveis no Brasil, seja para importação, seja para produção local, encarecendo muito o acesso do usuário ao produto.

Valéria Lacks, médica psiquiatra, discorre sobre a precária realidade das instituições que recebem para internação pacientes em situações que envolvem o uso da maconha. De modo geral, segundo a autora, há um quadro psiquiátrico associado à situação.

Marta Ana Jezierski desmistifica a polêmica psicose canábica. Em seu entendimento, geralmente envolve a presença de outros quadros psiquiátricos.

A história das origens, dos usos, do trajeto e da chegada da Cannabis ao Brasil é bem narrada pela historiadora Lilian da Rosa.

O antropólogo Edward MacRae discorre sobre os usos religiosos e espirituais da Cannabis, e sobre a peculiaridade de sua entrada no Brasil por meio dos negros escravizados, o que contemporaneamente tem servido de pretexto para concepções e abordagens discriminatórias e racistas.

Finalmente, a economista Taciana Santos de Souza fala do mercado da Cannabis, sua lógica, seu crescimento e os entraves nesse campo. Devido à legalização do consumo em muitos países, os interesses econômicos vêm se mobilizando e crescendo.

Em tempos de prevalência e disseminação de fake news, de posturas e práticas anticiência, de aumento da penetração de visões ideológicas e religiosas na vida cotidiana, nas instituições públicas responsáveis por saúde, educação e cultura e até no judiciário, esta reunião de pesquisadores e estudiosos comprometidos com a busca de conhecimento científico ganha ainda mais valor. O livro nos oferece a oportunidade de um conhecimento fundamentado escrito em linguagem acessível.

A leitura deste acervo de textos interessa aos psicanalistas, especialmente àqueles que se dedicam ao atendimento de adolescentes e jovens adultos.

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