Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
Artigos
O fenômeno e a estrutura: do diagnóstico desorientado ao diagnóstico orientado pela psicanálise
The phenomenon and the structure: from disoriented diagnosis to the diagnosis oriented by psychoanalysis
Humberto Moacir de Oliveira*; Tiago Iwasawa Neves**
Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço
Resumo
O presente artigo visa apresentar a diferença entre o diagnóstico orientado pela estrutura e o diagnóstico orientado pelo fenômeno, que propomos aqui serem chamados de diagnósticos desorientados. Usando a psicanálise como modelo de diagnóstico orientado, já que pautada pela estrutura que revela a forma de cada um se haver com o sexo, o desejo, a lei, a angústia e a morte, abordamos o problema do diagnóstico questionando qual a orientação adotada pela maioria dos serviços de saúde, se é que existe algo que possamos chamar de orientação.
Palavras-chaves: Diagnóstico, estruturas clínicas, ética, sujeito.
Abstract
This article presents the difference between diagnosis oriented by structure and clinical phenomenon, which we propose as a disoriented diagnosis. Using psychoanalysis as a model of an oriented diagnostic regulated by the structure that reveals the structural position of each subject in relation of sex, desire, law, anguish and death, we question the orientation adopted by most healthy services – if there is anything that we can call orientation.
Key-words: Diagnosis, clinical structure, ethics, subject.
Introdução
O título desse trabalho nos lança a uma questão de importante valor para o campo da psicanálise e de tudo o que vem sendo chamado hoje de saúde mental, a saber, a orientação de um diagnóstico. Definimos através desse título dois tipos de diagnóstico, um diagnóstico desorientado e outro orientado pela ética da psicanálise. No entanto, é provável que existam diagnósticos que sigam outras orientações, ou seja, que apesar de não serem desorientados não são orientados pela psicanálise. Essa observação poderia nos levar a propor uma divisão mais branda, apenas distinguindo os diagnósticos desorientados de todos os outros que fossem orientados por uma abordagem teórica. No entanto, uma teoria, embora contribua, não garante uma orientação diagnóstica. Por isso, optamos por manter a divisão inicial e, sem desconsiderar a existência de orientações baseadas em teorias não psicanalíticas, destacamos a posição dos autores que adotam a ética da psicanálise como única orientação para suas práticas clínicas1.
Ainda que os transtornos mentais sejam repletos de obscuridades quanto sua etiologia orgânica, psíquica e/ou hereditária, o que gera inúmeras divergências clínicas e teóricas entre os profissionais, a prática em saúde mental, marcada pelo discurso médico da psiquiatria, toma o diagnóstico como ponto essencial ao seu trabalho. Oriunda da condensação das palavras gregas dia (que significa separar uma parte da outra) e gnosis (que significa conhecimento), a palavra diagnóstikós representa "...a forma de ver por meio dos elementos que compõem as unidades subjacentes, permitindo descrever constructos humanos e explicar as alterações observadas na natureza" (WANG; HUMES; ANDRADE, 2007, p. 32).
Na medicina, desde os tempos de Hipócrates, esse esforço em descrever (separar uma parte da outra) e explicar (conhecer) é empreendido com o objetivo de dar uma direção a um possível tratamento das doenças, sejam elas mentais ou não. Porém, no que diz respeito à mente, as controvérsias parecem ser mais graves devido à maior singularidade que essa apresenta em relação aos corpos. Isso poderia nos levar a abandonar esses esforços e a enxergar todo diagnóstico como ferramenta para aprisionar e rotular o sujeito negligenciando sua subjetividade. No entanto, o que encontramos, é que no tratamento mental, assim como no tratamento do corpo, faz-se necessário uma direção que só pode ser definida a partir de uma gnosis (conhecimento). Ainda assim, a necessidade de uma direção do tratamento não deve eliminar a reflexão crítica sobre o diagnóstico, principalmente quando se percebe a descrição (dia) ser tomada como um fim quando deveria ser um meio para se chegar a alguma explicação ou saber (gnosis).
Dito isso, é relevante apontar aqui o número crescente da demanda de diagnóstico nos mais variados serviços de saúde mental: da clínica particular às unidades básicas de saúde, passando pelos serviços prestados em escola e em empresas particulares e públicas, todos querendo saber em qual diagnóstico o filho, o estudante, o funcionário ou o paciente se encaixa. É evidente que essa ansiedade por uma definição diagnóstica não resulta apenas de imperícia ou má-fé dos profissionais envolvidos. As más condições de trabalho em que esses profissionais se encontram, o excessivo volume de pessoas que eles devem atender em sua jornada de trabalho, o atordoamento angustiado vivido pelas famílias dos sujeitos com algum sofrimento psíquico e as transformações pelas quais nossa sociedade está constantemente passando colaboram com essa busca ansiosa pelo diagnóstico. Ainda assim, toda essa realidade mais denuncia os desajustes desse modelo de tratamento do que justifica sua prática.
Em relação a essa prática, a primeira advertência a ser feita é quanto à precaução que devemos ter para não acreditarmos que o problema em torno do diagnóstico e de sua validade prática se coloca em função de um utilitarismo imaginário, onde classificar nos ajudaria por si só a sermos mais eficazes terapeuticamente. Pelo contrário, a classificação pode, mesmo que feita com critérios ditos científicos, servir mais para excluir o sujeito do que para fazê-lo emergir no decurso de um tratamento clínico. Parafraseando Lacan (1965/1998), podemos afirmar que a desorientação diagnóstica trazida pelos manuais estatísticos se deve ao seu caráter cientificista, o qual é determinado por um esforço incessante de suturar o sujeito, subordinando a clínica à técnica de classificação sintomática. De forma alguma podemos confundir o propósito cientificista com o discurso da ciência; o cientificismo contemporâneo se sustenta em função de um paradigma estranho à ciência, a saber, que o sujeito deve ser objetivado em sua verdade a partir de um saber do mestre, representado, por exemplo, pelo saber da psiquiatria.
Ora, uma das principais teses do ensino lacaniano é que um sujeito não pode ser objetivado dessa maneira. Ao promover o retorno à Freud a partir da linguística, principalmente de Saussure e Jakobson, Lacan chamou a atenção para o fato de o inconsciente ser estruturado como uma linguagem, o que o conduziu a conclusão de que o sujeito só pode ser aquilo que escapa à cadeia significante, e escapa, portanto, à sua representação. Pois, sendo o sujeito representado por um significante e tendo o significante seu valor na diferença que ele sustenta em relação a outros significantes da cadeia, o sujeito se encontrará sempre nesse intervalo, não sendo nem o significante que o representa (S1) nem o significante que a esse faz diferença (S2). Ou seja, para Lacan, o sujeito é sempre o que está entre um significante e outro, nunca podendo ser representado integralmente por nenhum deles: "o sujeito não é outra coisa – quer ele tenha ou não consciência de que significante ele é efeito – senão o que desliza numa cadeia de significantes" (LACAN, 1972-73/1985, p. 68). Por isso, o sujeito, por definição, escapa às identificações objetivas do laço social. Em outras palavras, o conceito lacaniano de sujeito é um obstáculo à identificação deste com as inúmeras classificações dos manuais que nos "ensinam" a diagnosticar na clínica.
Essa tentativa de objetivar2o sujeito se sustenta num propósito cientificista de afirmar a eficácia e o sucesso terapêutico em função de determinantes médios, o que faz com que o diagnóstico cumpra não a função de nortear uma clínica ou de promover uma direção do tratamento, mas sim uma função que Miller & Milner (2006), acertadamente, designam por batismo burocrático. Ou seja, supondo que aos sintomas mentais é mais útil dar um nome do que questionar a trama de seu funcionamento, o discurso dominante demanda que os especialistas da saúde mental ajustem o sujeito ao rol dos classificados para poder encaminhá-lo com mais segurança: não segurança clínica, mas burocrática. Diante desse quadro, algumas reflexões se fazem necessárias e urgentes. Por exemplo, sobre qual prisma é feito esse batismo? Qual é a orientação adotada? Existe orientação? O que é uma orientação? Eis as principais perguntas que nos dispomos a desenvolver.
O batismo burocrático
Para grande parte dos processos avaliativos na rede de saúde, nos planos médicos e nas clínicas psiquiátricas, a principal orientação que encontramos são os manuais, não de psiquiatria, como alerta Quinet (2009), mas de diagnóstico. Temos nessa pseudo-orientação o principal modelo do que chamaremos nesse artigo de diagnóstico desorientado. Se o manual não é de psiquiatria e, mais do que isso, se os próprios autores desses manuais dizem buscar uma orientação a-teórica, é porque não há orientação alguma. Quando muito, podemos dizer que a orientação se dá pela estatística, priorizando a descrição do fenômeno, o que não leva em conta o modo de funcionamento do sujeito. É o que faz Foucault (2004) nomear esses procedimentos classificatórios de jardim das espécies, ou seja, uma classificação muito adequada para a botânica ou para o zoológico, mas pouco útil para uma clínica que inclua a subjetividade. Esse tipo de metodologia classificatória, que gostaríamos de chamar aqui de diagnósticos desorientados, tem como melhores representantes a série de DSM's (Manual de diagnóstico e estatística da associação norte-americana de psiquiatria), atualmente em sua 4a Edição, e a CID (Classificação Internacional de Doenças), hoje em sua 10a Edição.
Ao lado dessas perspectivas diagnósticas francamente a-teóricas e, por isso, desorientadas, temos as avaliações que se utilizam, nas palavras de Miller & Milner (2006), de uma roupagem científica, mas que não são ciências. Nesses casos, são as estatísticas que agrupam os fenômenos em um ou outro diagnóstico e, novamente, estamos em um campo de exclusão do sujeito. O contexto destas práticas está mais alinhado a uma perspectiva utilitarista e menos a uma perspectiva propriamente científica. Nesse sentido, esses métodos tomam o conceito de ciência como equivalente de eficácia, e o de eficácia como sinônimo de utilidade. E mais, tomam o sujeito como algo a ser objetivado cientificamente, se esquecendo de que, por definição, um sujeito "se estabelece quanto ao direito e não quanto ao fato, por isso 'observar' o sujeito, buscá-lo na objetividade, é não querer encontrá-lo" (MILLER, 1998b, p. 234). Com efeito, a partir desta perspectiva, a direção do diagnóstico fica condicionada a uma simples questão de métodos que medem competências e que se adequariam pseudocientificamente à realidade ou, mais precisamente, a uma dada concepção de normatividade.
Como alerta a psiquiatra e psicanalista francesa Agnès Aflalo (2011), assistimos através desse batismo burocrático a um deslocamento da normalidade à normatividade, sem que a distinção entre elas fique clara. Ou seja, na impossibilidade de um conceito de normalidade que sirva à saúde mental, a nova psiquiatria constrói um padrão normativo a partir de cálculos estatísticos que servem mais para um modelo educacional moralista do que para representar uma dada realidade. Como alerta a autora, a matemática usada nas construções de entidades nosográficas e, por consequência, na construção de modelos normativos da atividade mental, não garante a existência dessas entidades, pois cálculos não bastam para fazer existir a realidade que calculam. Como destaca a psicanalista: "As estatísticas sobre os unicórnios não os fazem existir" (AFLALO, 2011, p. 91)3.
Assim, não são os métodos técnicos, o uso de números, a recorrência estatística e outros recursos matemáticos que irão garantir uma orientação diagnóstica. Por ser o sujeito consideravelmente distinto, tanto dos animais quanto das máquinas, será somente através de uma discussão sobre a estrutura do sujeito e sobre como ele exerce sua entrada na cultura, ou seja, como ele se inventa diante do mundo simbólico em que está inserido, é que poderemos pensar sobre a validade ou não de um diagnóstico. Como essa entrada na cultura se dá através da passagem do sujeito pelo que Freud chamou de Édipo, e não pelo recebimento de um nome científico do psiquiatra, podemos dizer que a psicanálise pretere o batismo burocrático em favor do que chamaremos aqui de batismo edípico, questão que justifica o diagnóstico em psicanálise. Mas o que será que, sustentado na posição edípica, coloca a psicanálise ao lado dos diagnósticos orientados e a torna contrária aos diagnósticos desorientados? Podemos dizer que é a passagem da descrição do fenômeno e de sua estatística à leitura da estrutura; a passagem da observação do comportamento à pesquisa do modo de funcionamento do sujeito.
O batismo edípico
Foi essa preocupação com a estrutura que levou a psicanálise, ainda hoje, a manter os mesmos diagnósticos propostos em sua construção, enquanto a medicina psiquiátrica amplia sua nosografia a cada nova edição de um manual. Para Quinet (2009), se as formas dos sintomas mudam de acordo com o discurso dominante da civilização, as estruturas que determinam esses sintomas permanecem sendo as mesmas, pois se baseiam na maneira como o sujeito lida com a falta inscrita em sua subjetividade, maneira essa que determina a posição do sujeito frente ao sexo, ao desejo, a lei, a angústia e a morte. Em outras palavras, "...o 'invólucro formal do sintoma' varia segundo a época: a histeria muda de cara, a psicose de vestes, a obsessão de ideias" (QUINET, 2009, p. 10).
Vimos assim, que é a entrada do sujeito na cultura ou, nos dizeres lacanianos, no Simbólico, que demandará do sujeito uma posição frente à falha sempre existente entre o que do sujeito desliza na cadeia significante e o próprio significante que o representa. Essa posição, não é uma manifestação passageira, mas sim estrutural, pois é o que funda o sujeito. Por isso, podemos dizer que se o invólucro formal do sintoma tende a variar, as estruturas tendem a permanecer as mesmas. É isso o que faz Freud não abdicar do diagnóstico ao mesmo tempo em que não se limita a fazer descrição e agrupamento de sintomas. O próprio Freud (1912/1969), ao tecer seus comentários a respeito das recomendações técnicas para a direção do tratamento psicanalítico, diz ser necessário a todo início de tratamento levar em consideração o problema do diagnóstico, usando as entrevistas preliminares como instrumento capaz de proporcionar a identificação da estrutura clínica do sujeito. Sem se preocupar em nomear os invólucros formais do sintoma que, como foi dito, tendem a variar segundo os avanços da civilização, Freud se preocupa em identificar as estruturas que determinam o funcionamento do sujeito e de seus sintomas, e que tendem a permanecer as mesmas. Vemos, assim, que a psicanálise não se esquiva do problema do diagnóstico, nem o despreza; pelo contrário, as recomendações de Freud sugerem que negligenciar a referência psicanalítica às estruturas clínicas é trocar a desorientação do diagnóstico por uma desorientação do tratamento.
Essa proposta psicanalítica, de diagnosticar a partir da estrutura, é coerente com a posição freudiana sobre a relação entre psicanálise e psiquiatria. Para Freud (1917/1969), não é preciso que a psicanálise rivalize com a psiquiatria ou a ela se oponha. Pelo contrário, o pai da psicanálise, inclusive, sugere que a relação entre essas duas disciplinas deveria ser comparável à relação existente entre a histologia e a anatomia; enfim, enquanto uma estuda os tecidos e sua trama, a outra pesquisa suas formas exteriores. O próprio Freud não despreza as entidades clínicas oriundas da medicina. Muito pelo contrário, ele constitui sua própria nosologia a partir da psiquiatria do final do século XIX e começo do século XX, psiquiatria que, seguindo sugestão de Quinet (2009), chamaremos aqui de clássica. Isso porque, embora a nomenclatura tenha sua força significante, e sabemos dos esforços de Freud para alterar os termos psiquiátricos propostos por Bleuler e Kraepelin à esquizofrenia, a nomenclatura importa menos do que a estrutura que subjaz por trás dos nomes propostos.
As categorias que utilizamos hoje provêm da psiquiatria clássica: neurose, perversão e psicose, esta última repartida em dois grandes tipos, esquizofrenia e paranóia. A cada uma dessas categorias podemos fazer corresponder um nome na história pré- -psicanalítica. Para a paranóia, Kraepelin, para a esquizofrenia, Bleuler, para a perversão, Krafft-Ebing e para a neurose, Charcot (SOLER, C. apud QUINET, 2009, p. 11).
O psicanalista francês Jacques Lacan, aluno do famoso psiquiatra Gatian de Clérambault, chega a propor a busca dessa relação almejada por Freud entre psiquiatria e psicanálise, mantendo em sua teoria a mesma divisão nosológica sugerida por Freud. Porém, seu ensino deixa transparecer que essa relação só é possível se nos sustentarmos em uma psiquiatria teórica, e não nos manuais de diagnósticos e estatísticas, a-teóricos por príncipio. Isso significa que a relação entre a psicanálise e a psiquiatria sugerida por Freud parece não ter se sustentado com os avanços da psiquiatria atual afetada principalmente pelo desenvolvimento farmacológico. Assim, os manuais atuais não apenas acrescentaram um número assustador de entidades nosográficas geradas a partir da descrição dos fenômenos que se guia pelos remédios que podem eliminá-los, como também suprimiram desses livros os tipos clínicos da neurose; além, é claro, de subscreverem todo o campo da psicose, no qual constava a paranóia e a melancolia, na alcunha de esquizofrenia.
Essas mudanças no campo da psiquiatria atual sugerem que os novos teóricos da chamada saúde mental estão demasiadamente preocupados com a forma exterior da doença, a ponto de tentarem foracluir da ciência qualquer teoria sobre os tecidos e tramas que dão forma a patologia. Para Agnès Aflalo, esse movimento faz da psiquiatria "(...)a única disciplina médica cujos diagnósticos se estabelecem não a partir da causa real da doença, mas a partir do efeito que os medicamentos exercem sobre ela"4 (Aflalo, 2011, p. 87). A autora, que designa o DSM-IV como um supermercado de diagnóstico, diz ser impensável acreditar que a medicina venha a nomear uma doença coronária, hepática ou renal pelo único motivo de que um medicamento tivesse o poder, não de tratar a causa, mas de disfarçar suas manifestações mais ruidosas.
Ora, à teoria psicanalítica interessa menos as formas exteriores passíveis de observação do que aquilo que estrutura essas formações. Ou, o que significa o mesmo, as formas exteriores interessa à psicanálise apenas na medida em que auxiliam o psicanalista a entender a trama metapsicológica. Isso não ocorre apenas no momento da classificação diagnóstica, mas está no cerne da própria epistemologia psicanalítica que inclui tanto a construção de diagnósticos como a construção da metodologia terapêutica.
Isso fica claro em uma das passagens do texto freudiano que mais revela sua epistemologia. Em A pulsão e seus destinos (1915/1969), Freud afirma que: "O verdadeiro início da atividade científica consiste na descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação"; trata-se, portanto, de suas formas exteriores. Mas ao psicanalista essa etapa, embora seja o verdadeiro início da atividade científica, é meramente um ponto de partida, uma vez que Freud continua sua exposição dizendo que "mesmo na fase de descrição não é possível evitar que se apliquem certas ideias abstratas ao material manipulado, ideias provenientes daqui e dali, mas por certo não apenas das novas observações"5. Como observa Freud, isso também ocorre em outras ciências, inclusive na física, e se faz ainda mais necessário nas ditas ciências humanas. Se nos ativermos apenas à descrição dos fenômenos observáveis, poderemos fazer um bom inventário, nas palavras de Foucault, um bom jardim das espécies, mas não uma ciência, pois como o próprio Freud conclui sua exposição metodológica: "...só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área" (FREUD, 1915/1969, p. 137). Foi assim que Freud chegou à hipótese do inconsciente. O inconsciente não é observável, e por sua própria definição nunca poderia ser. Porém, é uma hipótese sugerida a partir de fenômenos observáveis como o ato falho, o sintoma, o sonho manifesto, o chiste, entre outros. No entanto, de que nos valeria fazer uma classificação dos chistes, uma listagem imensa dos sonhos, uma separação de grupos de sintomas, a catalogação dos atos falhos, se não fosse para conhecer sua trama a partir de hipóteses que sem elas o conhecimento desses fenômenos estaria fadado ao fracasso?
Nada disso quer dizer que a psicanálise seja avessa à psiquiatria, mas que todo psicanalista, psiquiatra ou não, sente a necessidade, como Freud sentiu, de investigar algo para além das formas externas passíveis de observação. Não que o psicanalista despreze o comportamento e o corpo orgânico, que são os ícones maiores das formas externas observáveis a que nos referimos. A psicanálise não negligencia a existência de perturbações corporais como causa de sofrimento humano. O próprio Freud (1930/1969) localiza o corpo, juntamente com os impactos da natureza e as relações humanas, como uma fonte importante de sofrimento para o homem. O que a psicanálise resiste é apostar no corpo humano como única fonte de sofrimento ou de sintoma, como vêm fazendo alguns psiquiatras que, não encontrando uma causa orgânica identificável para as mazelas do homem, as atribui automaticamente à herança genética. Como se o homem não pudesse adoecer também pelas emoções, pelas relações humanas, pela culpa, pelo ciúme, pelo luto, pelo amor e pelos desejos ambíguos.
Ora, a principal descoberta de Freud foi justamente entender que os sintomas neuróticos são expressões dos conflitos internos do sujeito e que, dentre as fontes de sofrimentos já citadas, a relação com o outro, ou seja, o impacto da cultura e da vida em sociedade é de longe a principal delas. Nessa perspectiva, a já citada psicanalista Agnès Aflalo (2011) denuncia o fato de a tuberculose ter sido considerada, por falta de uma hipótese mais razoável, uma doença hereditária até o momento em que Pasteur isolou seu germe. A partir de então, aceitou-se o novo conceito, talvez por se encaixar nos moldes mais formais da ciência. No caso do sofrimento mental, as descobertas de Freud não parecem ter o mesmo efeito que a descoberta de Pasteur, uma vez que os conflitos psíquicos não podem ser isolados em um microscópio. A pergunta que permanece é: até quando vamos atribuir a fatores genéticos o que temos dificuldades de explicar com os instrumentos da medicina? Esse tipo de atribuição precipitada não estaria muito mais em desalinho com o rigor científico do que uma teoria que conte também com ideias não provenientes da observação direta? E, principalmente, até que ponto os manuais de psiquiatria ou de diagnóstico irão negligenciar a relação do sujeito com o outro e com a cultura – por sua vez impossível de se quantificar – como fonte de sofrimento?
O ensino de Lacan deixa claro que a psicanálise, buscando conhecer, a partir das formas exteriores apresentadas pela psiquiatria clássica, as estruturas interiores que tramam os fenômenos patológicos, acabou por constituir uma ética própria que a orienta e que a afasta cada vez mais da psiquiatria moderna. Isso porque quando a psicanálise fala de ética não se refere a uma universalidade dos costumes, tão menos a uma generalidade da ação e do comportamento. O que realmente importa é a dimensão da ética própria à psicanálise, ou seja, aquela que se coloca, segundo os dizeres de Lacan (1960/1997), sob o prisma do desejo do analista. Ora, não é exatamente esse o problema que ele coloca em seu seminário sobre a ética, que não se trata da ética dos filósofos, mas antes somente da ética da psicanálise? Como alerta Miller, a ética da psicanálise seria mesmo contrária à ilusão filosófica da ética para todos, pois "só há ética relativa, isto é, específica ao discurso" (MILLER, 1996, p. 109). Eis, portanto, a postura ética da psicanálise: não tomar o sujeito e o seu sofrimento como uma categoria técnica: "Na análise, contudo, as questões técnicas são éticas, por um motivo muito preciso: nela nos dirigimos ao sujeito. A categoria do sujeito é ética e não técnica" (MILLER, 1998a, p. 221).
A categoria ética do sujeito
Se a postura ética da psicanálise consiste em não tomar o sujeito e seu sofrimento como uma categoria técnica é porque a condução do seu tratamento, assim como o diagnóstico que orienta essa condução, não visa classificar o sujeito para inseri-lo no rol dos diagnosticados, mas sim pensar esse sujeito a partir de um funcionamento psíquico estruturado, para com isso intervir, não no sentido de normatizá-lo, mas pelo contrário, no sentido de usar as características de cada estrutura para fazer com que esse sujeito se torne singular. Por isso, o diagnóstico psicanalítico não tem importância fundamental para a medicalização, mesmo entre psicanalistas psiquiatras. Isso porque os remédios, assim como a reeducação sugerida pelos teóricos da TCC (Terapia Cognitivo- -Comportamental), não provocam uma mudança na posição subjetiva de seus pacientes. A medicalização não visa à cura nem altera as estruturas, e sim os sintomas. Nesse sentido, o antipsicótico não deve ser usado para tratar a psicose, da mesma maneira que um ansiolítico não deve ser usado para tratar uma histeria de angústia ou uma neurose obsessiva. Os remédios, no olhar da psicanálise, não são tentativas de cura, mas uma maneira de conter o fenômeno sintomático, maneira essa que, embora possa auxiliar um tratamento, muitas vezes pode vir a esconder e calar o sujeito, uma vez que é através do sintoma que ele faz sua aparição clínica. Nesse sentido, um antipsicótico é usado para tratar os ditos sintomas positivos da doença, como alucinação e delírio, e não para tratar as condições fundamentais da estrutura psicótica que diz respeito a sua dificuldade no laço social e seu investimento libidinal, assim como sua não inserção no Simbólico.
Para evitar fazer do diagnóstico apenas uma etiqueta do batismo burocrático guiado pelos discursos civilizatórios do Mestre e da Universidade, é preciso que pensemos em termos de estrutura e de funcionamento psíquico que é o mesmo que pensarmos em termos de constituição do sujeito. Essa é a orientação do diagnóstico em psicanálise e para isso é preciso que questionemos não apenas o método de se fazer um diagnóstico, mas também o uso que faremos dele. Independentemente do método utilizado, e aqui, como em toda a prática da psicanálise, não importa a técnica, mas sim a ética, é preponderante evitarmos usar o diagnóstico, estrutural ou fenomenológico, para tirar do sujeito seu traço único e colocá-lo numa condição de um entre outros. Pelo contrário, o objetivo deve ser sempre de subjetivá-lo, guiando nossa escuta mais na direção de aprender sobre a estrutura universal a partir da escuta clínica do caso único, do que de ensinar ao analisando singular qual é ou deveria ser sua condição na universalidade.
Nessa perspectiva, o que encontramos hoje é os diagnósticos tornando-se cada vez mais desorientados, uma vez que pretendem atender a qualquer custo a todas as demandas de mediagnosticalização, para empregar um neologismo que condensa os verbos diagnosticar e medicalizar. Na busca de inventar métodos de mediagnosticalização, várias abordagens psicológicas e psiquiátricas acabam se desorientando não apenas por carecer de uma teoria consistente sobre a estrutura do sujeito, mas também por não encontrarem um encaminhamento dos resultados que não seja o furor pela normatização do ser através de uma reeducação ou do uso de substâncias químicas. Muitas vezes, os diagnósticos, principalmente os construídos a partir dos manuais atuais já citados, o DSM e a CID, são usados apenas como uma tentativa de resgatar o momento mítico pré Babel onde todos falavam a mesma língua sem dar espaço para o mal entendido. O ganho nesse caso não é revertido para o tratamento, e sim, como aponta Quinet (2009), para a comunicação dos fenômenos entre colegas. Se ganha, supostamente, em comunicação e conhecimento, mas se perde em saber e tratamento.
Foi isso o que fez os promotores do DSM III dizerem, nos anos 80, que seu manual, por ultrapassar a falta de acordo entre os teóricos do sofrimento psíquico, representava uma revolução científica. Mas a pergunta feita pelo STOP DSM6, movimento político internacional que defende uma psicopatologia clínica que barre o futuro DSM V como único critério de diagnóstico, é como pode haver uma revolução científica sem teoria, o que é o mesmo que dizer, sem ciência. Como alerta Quinet (2009), preferir um instrumento avaliativo que almeje o máximo de descrição (um único paciente pode receber vários nomes e inúmeros diagnósticos) e um mínimo de margem de erro (no fim todos se enquadram em algum número) é optar por uma clínica em que toda e qualquer hipótese etiopatogênica é excluída, o que provoca o desaparecimento do próprio conceito de doença, uma vez que esta não deixa de estar vinculada a um processo cujo funcionamento, causa e função, se espera conhecer um dia.
Esse vínculo entre o conhecimento do funcionamento dito patológico e o próprio conceito de doença fica evidente na distinção que a medicina faz entre síndrome e entidade nosológica. Enquanto a síndrome é "puramente uma definição descritiva de um conjunto momentâneo e recorrente de sinais e sintomas", a entidade nosológica, como termo equivalente ao que conhecemos como transtorno ou doença, diz respeito a:
...fenômenos mórbidos nos quais podem se identificar (ou pelo menos presumir com certa consistência) certos fatores causais (etiologia), um curso relativamente homogêneo, estados terminais típicos, mecanismos psicológicos e psicopatológicos característicos, antecedentes genético-familiares algo específicos e respostas a tratamentos mais ou menos previsíveis (DALGALARRONDO, 2008, p. 26).
Assim, se a síndrome, enquanto conceito médico, se refere a um agrupamento de sintomas, ainda que minimamente constantes e estáveis, a definição de doença inclui um conhecimento mais rigoroso que viabiliza o desenvolvimento de procedimentos terapêuticos. Devida a já citada divergência teórica em relação às causas, ao curso e ao tratamento do que conhecemos como doenças mentais, autores como Paulo Dalgalarrondo preferem dizer que em psiquiatria e psicopatologia lidamos mais com síndromes do que com transtornos. A sugestão do autor se justifica principalmente se nos guiarmos pela orientação, ou falta de orientação, de alguns manuais de psiquiatria e psicopatologia que se baseiam na descrição sintomática mais do que no funcionamento da doença7.
Diante do que foi exposto nos parágrafos anteriores, depreende-se uma conclusão fundamental: a psicanálise se define como a clínica do sujeito. Pois, tal como afirmou Lacan (1966/1998): o sujeito é a matéria única do trabalho analítico. Isso significa que na formação de um analista o que está em jogo não é a aquisição de competências técnicas que impliquem um saber sobre o sujeito, uma vez que esta perspectiva é contrária ao que a psicanálise se propõe, a saber, tratar cada caso como sendo único, e ainda, como se fosse o primeiro.
Essa posição, que o psicanalista deve sustentar, de se orientar não por um guia de competências técnicas, mas sim por uma ética que inclua, principalmente, a subjetividade do caso único mais do que a categorização da universalidade, foi o que fez Freud (1926/1969) sugerir, em uma explícita defesa do uso de sua disciplina por profissionais não médicos, que a psicanálise exigia sempre uma formação rigorosa, mas não rígida. Uma formação que Freud diz ser mesmo oposta à formação médica, que ensina seus alunos a buscarem sempre os determinantes somáticos da perturbação, seja ela mental ou não. Pelo contrário, a psicanálise busca sempre o impacto subjetivo que o corpo orgânico, a natureza ou, mais frequentemente, a relação com o Outro e com o Simbólico provoca no ser. Novamente, convém relembrar que isso não faz dessas disciplinas categorias excludentes, da mesma maneira que, como diz Freud (1926/1969), a física não faz a química inexistir. Mas, por outro lado, é importante destacar que uma diferença radical se impõe nos dois métodos de abordagem, o que faz com que suas formações sejam, também, distintas. Por não tratar o sujeito como uma categoria técnica, a psicanálise exige uma formação que ultrapassa a aquisição dos conhecimentos práticos e teóricos adquiridos em cursos, livros e práticas supervisionadas e inclui, além desses artifícios, uma análise pessoal.
O avesso do discurso do mestre
O que vimos com isso é que é injustificável o estabelecimento de um critério técnico de como chegar a um diagnóstico fenomenológico, uma vez que o problema da saúde mental, em seus mais variados níveis, não se atém a um domínio orgânico, onde a doença só aparece a partir do momento em que se verifica um mau funcionamento dos órgãos. Ao contrário, a estrutura clínica não determina um valor para o sintoma do sujeito. Já dissemos que o sintoma, para a psicanálise, não é índice de déficit orgânico; este somente irá provocar desprazer a partir do momento em que um posicionamento subjetivo estiver em jogo. Assim, a psicanálise, ao considerar o problema do sujeito, exclui a ideia de uma clínica de cunho cientificista, cujo objetivo não é outra coisa senão a tentativa de padronizar técnicas diagnósticas – nomeadas por si mesmo de científicas – como ferramentas fundamentais na elaboração da direção do tratamento em detrimento do caso único. Consequentemente, a psicanálise reforça a impossibilidade da prática clínica se constituir sob a égide de um manual técnico a-teórico baseado em dados epidemiológicos como vemos acontecer nas diversas atualizações dos DSM's.
Lembremo-nos, no entanto, de que nossa atitude perante a vida não deve ser a do fanático por higiene e terapia. Devemos admitir que a prevenção ideal de enfermidades neuróticas, que temos em mente, não será vantajosa para todos os indivíduos (FREUD, 1910/1969, p. 135).
Vemos nesta passagem, Freud evocar a dimensão ética da psicanálise, admitindo que o problema de uma saúde psíquica para todos não deve ser o objetivo do psicanalista. Aqui, vale lembrar a advertência de Miller & Milner (2006) que salientam que quando falamos em saúde pública não estamos falando de um dispositivo estatal que deva funcionar à revelia da vida privada. Para os autores, estaríamos errados em dizer saúde pública, pois a saúde a que nos referimos é, ou deveria ser, a saúde privada de cada sujeito, o serviço é que deveria ser público. O campo da saúde mental nos ajuda a destacar essa diferença uma vez que saúde mental só pode ser a saúde de cada um: "Quer dizer, o que há de mais privado no privado" (MILLER; MILNER, 2006, p. 31). Entrevê-se, deste modo, que a prática do analista não deve se orientar pela aquisição ilusória de um conhecimento técnico sobre o sujeito, cuja apresentação não se faz a partir de um quadro generalista, público, e com pretensões universalizantes.
Eis um obstáculo epistemológico severo que a psicanálise impõe ao campo supostamente objetivo da avaliação psicológica: o próprio sujeito a ser avaliado. Podemos assim, identificar a avaliação psicológica e seu estado atual em nossa sociedade ao discurso do mestre, ou seja, à dimensão onde se supõe uma identificação do sujeito por meio de significantes mestres, que neste caso, não seriam outra coisa senão as múltiplas categorias clínicas. Segundo Miller,
o discurso do mestre produz um certo número de categorias clínicas. Quando se formula que a obesidade é o mal do século, depois de se ter formulado que a depressão é o mal do século, temos uma clínica do mestre à qual somos, evidentemente, levados a nos alinhar (MILLER, 2011, p. 20).
Com efeito, o axioma lacaniano que afirma que a psicanálise é o avesso do discurso do mestre adquire todo seu peso, uma vez que o discurso analítico não proclama ao mundo um conhecimento categórico sobre o obeso e o depressivo. Ao invés disso, o analista desempenha a função de pura condição desejante e interroga o sujeito em sua divisão. Dessa forma, o analista, esquivando- se do lugar do conhecer, do mestre que declara seu conhecimento universal sobre o mal do século, leva o paciente a trabalhar de forma que esse produza um novo e singular saber sobre seu sintoma. Quanto ao mal do século, podemos dizer, a partir da psicanálise, que ele não se trata de uma categoria, mas sim de uma tentativa de normatização do sujeito ferozmente propagandeada a todo vapor em nossa sociedade do happinness.
Considerações Finais
Toda essa reflexão a respeito da orientação dos diagnósticos nos conduz ao problema principal de nossa sociedade, científica ou não, fazer uso de um modelo de ciência que atende mais a uma crença do que a um método de produção de saber que possa orientar uma clínica. Assim, a ciência, embora se depare o tempo todo com a insuficiência e inadequação desse modelo descritivo de construir saberes sobre o funcionamento mental, apela para a crença científica de seus seguidores na ânsia de que, assim como os crentes de uma religião desprezam as evidências que limitariam sua fé, os universitários e a própria sociedade desprezem também os obstáculos inerentes à avaliação psicológica e a impossibilidade de se fazer diagnósticos através não da ciência, mas de "ferramentas" dela, como é o caso da estatística.
Essa mesma crítica a encontramos em uma significativa entrevista que Lacan concedeu à revista italiana Panorama, em 1974, e que foi publicada pela Magazine littéraire, em 2004. Além de acrescentar a ciência ao grupo das três posições impossíveis relatadas por Freud (1937/1969) – que inclui o governo, a educação e a psicanálise –, Lacan dá sua opinião sobre o homem médio tão procurado pelos testes de revistas, pelos manuais de diagnóstico e pelo já citado batismo burocrático em suas mais variadas dimensões. À pergunta do jornalista Emilio Granzotto sobre a existência do real que, segundo o entrevistador, o homem médio experimenta diariamente ao ver o mundo, Lacan responde:
Livremo-nos também desse homem médio que, em primeiro lugar, não existe. É apenas uma ficção estatística. Existem indivíduos, é tudo. Quando ouço falar do homem da rua, de pesquisas de opinião, de fenômenos de massa e de coisas desse gênero, penso em todos os pacientes que vi passar pelo divã em quarenta anos de escuta. Nenhum, em qualquer medida, é semelhante ao outro, nenhum tem as mesmas fobias, as mesmas angústias, o mesmo modo de contar, o mesmo medo de não compreender. O homem médio, quem é? Eu, o senhor, meu zelador, o presidente da República (LACAN, 2004, p. 25)?
A inexistência do homem médio e, por isso, a necessidade de nos livrarmos dele, nos revela que a avaliação psicológica só pode ser pensada em termos estruturais, e nunca fenomenológicos, descritivos ou estatísticos, pois não há justificativa de se avaliar e classificar um sujeito sem apresentar uma teoria pautada no funcionamento mental do ser, que se não é universal no sentido científico, pode ao menos nos oferecer uma orientação do tratamento.
Isso implica que, nos termos que propomos aqui, toda e qualquer avaliação que não apresentar uma visão do homem e dos efeitos de sua inserção na cultura deverá ser colocada ao lado dos manuais supracitados e receberem o nome de diagnóstico desorientado. Dentre os diagnósticos orientados, destacamos mais uma vez a nosologia psicanalítica que, embora se baseie na psiquiatria clássica, procura pensar o homem em sua estrutura, efeito de sua entrada na cultura e no Simbólico, através do que a teoria freudiana propõe como sendo a passagem pelo Édipo.
Referências
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Endereço para correspondência
Humberto Moacir de Oliveira
e-mail: beto7296@yahoo.com.br
Tiago Iwasawa Neves
e-mail: tiagoiwasawa@yahoo.com.br
Tramitação:
Recebido em 11/04/2012
Aprovado em 24/05/2012
* Psicanalista, coordenador do CEPP (Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço), prof. da Faculdade Pitágoras de Ipatinga (FAP)
** Psicanalista, membro correspondente do CEPP (Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço), prof. assistente da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
1 Essa apresentação fez com que dois pareceristas da presente revista entendessem que os autores do artigo enxergavam todos os diagnósticos que não fossem orientados pelo discurso da Psicanálise como desorientados, o que provavelmente seria um exagero. No entanto, não sabendo como deixar mais claro nossa posição, optamos por inserir essa nota ressaltando que o modelo psicanalítico de diagnóstico aqui usado serve a esse artigo como um recurso metodológico para o desenvolvimento de uma reflexão crítica em relação à forma com que vêm sendo feitos os diagnósticos atualmente, mesmo entre alguns psicanalistas.
2 Ver Canguilhem, G. O normal e o patológico. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009: "Não é, portanto, um método objetivo que qualifica como patológico um determinado fenômeno biológico. É sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de patológico. Embora admitindo a importância dos métodos objetivos de observação e de análise na patologia, não parece possível que se possa – com absoluta correção lógica – falar em 'patologia objetiva'. É claro que a patologia pode ser metódica, crítica, armada de meios experimentais. Essa patologia pode ser considerada objetiva, em relação ao médico que a pratica. Mas a intenção do patologista não faz com que seu objeto seja uma matéria desprovida de subjetividade. Pode-se praticar objetivamente, isto é, imparcialmente, uma pesquisa cujo objeto não pode ser concebido e construído sem referência a uma qualificação positiva e negativa; cujo objeto, portanto, não é tanto um fato mas, sobretudo, um valor" (CANGUILHEM, 2009, p. 177).
3 Tradução nossa.
4 Tradução nossa.
5 Essas ideias, provenientes daqui e dali, sugerem que para Freud a descrição dos fenômenos não basta à psicanálise, pois se faz necessária, também, a utilização de outros saberes que, mesmo não pertencendo à metapsicologia, quando relacionados à trama teórica da psicanálise ganham significados psicanalíticos que ajudam a explicar o fenômeno em questão. (Devemos esse acréscimo a um dos pareceristas da presente revista.)
6 Fonte: http://stopdsm.blogspot.com/.
7 Ver Foucault, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975: "Quer suas designações primeiras sejam psicológicas ou orgânicas, a doença concerniria de qualquer modo à situação global do indivíduo no mundo; em vez de ser uma essência fisiológica ou psicológica, é uma reação geral do indivíduo tomado na sua totalidade psicológica e fisiológica. Em todas estas formas recentes de análise médica, pode-se, então, ler uma significação única: quanto mais se encara como um todo a unidade do ser humano, mais se dissipa a realidade de uma doença que seria unidade específica; e também mais se impõe, para substituir a análise das formas naturais da doença, a descrição.