Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
Resenha
Psicanálise e psicoterapia
Denise Cabral de Oliveira
Círculo Psicanalóitico do Rio de Janeiro
Zygouris, Radmila. São Paulo: Via Lettera, 2011, 75 p.
... a clínica é sempre localizada numa cidade (polis) e se inscreve na história da fabricação das subjetividades.(...) E o novo consiste, também, se aceitarmos abrir mão de brincar de médico, em deixar de pensar que o caso é ‘o outro’. A consequência desta mudança é poder pensar numa neurose de contratransferência como correspondente à de transferência, a única permitida pela psicanálise. A neurose de contratransferência é um grande trabalho que resta ser explorado.(...) A psicanálise não pode ser nada além de uma longa viagem. A destinação (como destino) importa menos que as paisagens percorridas.
Radmila Zygouris pratica, com brilhantismo e argúcia, a proposta do psicanalista inglês Adam Phillips: "A psicanálise não precisa de mais abstrações obscuras ou sentimentais – de novos paradigmas ou revisões radicais –, precisa apenas de mais boas frases." E são tantas e tão densas suas "boas frases", que é tarefa difícil resenhá-las. Por outro lado, metade de seu texto é de relatos clínicos interessantíssimos e que demonstram sua longa experiência clínica; sua proposta teórica é sempre fundamentada, sendo também, ao mesmo tempo, criativa, livre e inovadora.
Psicanálise e psicoterapia é mais um de seus ensaios escritos, editado a partir das conferências que tem feito, periodicamente, em São Paulo, sempre traduzidas pela psicanalista Caterina Koltai, também sua intérprete nos encontros. Cidadã francesa de origem iugoslava, Radmila Zygouris foi membro da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução por Lacan, em 1978. Foi co- -fundadora da revista L’Ordinaire du psychanalyste, publicada em Paris entre 1973 e 78. Sua abertura para todas as boas ferramentas teóricas da psicanálise anglo-saxã, francesa e outras, assim como para as ciências humanas em geral e também a neurociência, e sua radical atitude crítica frente a qualquer dogmatismo e ortodoxia são marcas de sua atuação teórico-clínica e institucional. Essas características a fazem transitar com liberdade e criatividade admiráveis, entre teorias, práticas e desafios, nestas vivenciados.
O tema é já instigante por si só: na contemporaneidade, como reler a estrita distinção entre "psicoterapia" (o cobre freudiano) e "psicanálise" (o ouro)? A visão de Radmila é pragmática, no sentido filosófico do termo. Para ela, essa diferenciação tem que ser definida a cada época histórica e a cada história clínica. Ela retoma, com perspicácia, a classificação freudiana entre neuroses atuais e neuroses de transferência, em que estas seriam o objeto e a possibilidade do "ouro" psicanalítico. Define, em seguida, o que considera como os extremos da postura clínica do analista, a partir da radicalização de posturas teóricas: a da "assistência compassiva", que resulta na cronificação da posição de vítima do sujeito, também reiterada e oferecida pelo ethos sócio-cultural; e a da "psicanálise pura". A pureza é dada pela seleção de uma posição que apenas reconhece "A escola" (ou uma só escola) através do dinheiro e do poder, por um conhecimento teórico super-investido. Essa definição nos evoca aquela que o psicanalista Octavio Souza (2007) formulou entre a "ética do cuidado" e a "ética da responsabilização", estando o psicanalista numa posição intermediária entre estas, e também os conceitos de "presença reservada" e "presença implicada", de Luiz Claudio Figueiredo (2009). Diz Radmila:
Evoquei aqui duas posições extremas da psicanálise, sendo que ambas obedecem ao princípio da procura identitária, uma puxando para baixo e para o pathos, e a outra para cima e para a techné. Felizmente, hoje em dia, a maioria dos clínicos já deixou para trás essas posturas caricaturais, ainda que elas continuem existindo. A essa altura, é, certamente, possível perceber que estou à procura de uma outra via... tentando integrar os dois protagonistas da cena analítica. E, felizmente, não estou sozinha. A terceira via não é um mero compromisso, pelo menos assim espero, mas o respeito pela complexidade de nossa atividade e de nossas referências (p. 25).
Ela nomeia esta via como "pensamento clínico". Em sua visão, o que cura é, antes de tudo, a relação, o vínculo, sobre o qual se desenvolvem os múltiplos cenários de repetição, isto é, da transferência propriamente dita. Vínculo a partir do qual é possível pensar e dar início ao processo de separações psíquicas necessárias a uma vida autônoma, objetivo da análise. São dois os temas desenvolvidos, imbricados, que surgem como centrais e originais neste ensaio: os indícios diferenciadores entre uma "psicoterapia" e uma "psicanálise", e a questão do dinheiro na análise. Os indícios apontados por Radmila giram em torno da análise da transferência e da contratransferência (que ela analisa, a despeito do axioma de Lacan sobre uma única transferência...): "o desejo de saber do analisando no que diz respeito ao seu próprio funcionamento psíquico"; regressão e repetição, que se refere, inclusive, à repetição inconsciente, pelo analista, de algo da história do paciente. Para Radmila, o analista é pago justamente para fazer este trabalho, o mais específico de uma análise, que é a percepção permanente e a perlaboração desta repetição inconsciente. Finalmente, ela define o "caso" psicanalítico como o "entre": "Enquanto o caso for o outro, estamos na psicoterapia, na medicina ou na psicologia. Na psicanálise, o caso é pelo menos dois. E digo pelo menos..." Ela concebe a equação 1 + 1 = 3 (onde o sinal + vale por 1) para definir o espaço e o processo analítico, compreendendo o analisando, o analista e o espaço "entre dois corpos reais, entre dois eus imaginários, entre dois espaços subjetivos", que é "mais que a mera soma dos dois protagonistas, e também algo diferente de sua intricação. Há o ‘exterior’, os fluxos vindos de fora que o percorrem, os relatos tanto de um quanto de outro, seu entendimento, que infiltram a ‘atmosfera’ do lugar". Não podemos deixar de lembrar, aqui, o conceito do "terceiro analítico", de Thomas Ogden (1994), algo que está simultaneamente dentro e fora da intersubjetividade analista-analisando, que é uma "terceira subjetividade". Esta é produto de uma dialética singular gerada por/entre as subjetividades separadas de analista e analisando, dentro do setting analítico. Radmila segue, assim, a melhor tradição de pensadores da psicanálise, voltada para o aprofundamento da dinâmica e efeitos do dispositivo analítico. É neste contexto que ela explora, com radicalidade e sem rodeios ou temores, a questão do dinheiro e do pagamento na análise, aquilo que ela denomina a postulação de uma "relação abusiva" entre desejo e dinheiro, o próprio paradigma do liberalismo. Logo de início, diz Radmila:
Um certo discurso da psicanálise reproduz de maneira caricatural o próprio paradigma do liberalismo econômico mais selvagem, ao ligar de modo "orgânico e causal" desejo e dinheiro. Tal paradigma impede que o pensamento se torne criador de outras modalidades e outros dispositivos. Ou a psicanálise, isto é, os psicanalistas encontram uma outra forma de pensar o dinheiro na psicanálise, atribuindo um outro lugar a essas interrogações em seu discurso oficial, ou ela corre o risco de se tornar uma atividade de luxo para pessoas que não necessitam verdadeiramente dela (p. 33, grifo nosso).
Constatando que "muitos analistas levam em conta as possibilidades materiais dos analisandos e se comportam de modo extremamente correto em suas práticas privadas", ela constata também que isso é "algo que permanece marginal no discurso, uma prática quase clandestina que não abala a soberba do discurso oficial" (grifo nosso). A partir daí, a autora ,nos traz importantes reflexões sobre a psicanálise "barata" ou mesmo gratuita, argumentando ser preciso estabelecer a diferença entre dom, esmola e direito à saúde. Radmila relembra, denunciando um "esquecimento" sintomático pelo establishment analítico, que Freud atendeu, durante pelo menos 10 anos, um ou dois pacientes gratuitamente (durante 1 hora, 6 dias na semana!), para "testar" a resistência. Ele concluiu que o fato da análise ser gratuita não interferia muito no resultado e que a resistência não desaparecia graças à gratuidade. Radmila dá o testemunho de sua clínica de 35 anos, em que praticou análises gratuitas (e ela destaca que estas são possibilitadas e possíveis, em termos da vida real do analista, pela renda global de seu consultório), em grande parte da duração destas (pois houve pagamento a partir de um momento, sempre...). Segundo ela, estas análises não apresentaram diferenças notáveis em relação aos analisandos que pagavam. "Em todo caso", diz ela, "nenhum deles [analisandos] se tornou inapto para ganhar a vida, assim como nenhum deles se alienou na psicanálise." Radmila analisa teórica e politicamente a relação entre "preço" e "verdadeiro desejo", presente principalmente na teoria lacaniana. E surgem, mais uma vez, ótimas frases: "Pedir dinheiro a um pão duro é um verdadeiro prazer, concordo, mas cobrar muito caro sem um trabalho de reflexão é um acting out do analista que nunca terá o mesmo valor de uma verdadeira interpretação!"
A questão do pagamento é ilustrada pelo caso clínico de uma longa análise, cujo motor era o "desejo de análise", com o pagamento possível a cada período. Dois outros casos ilustram as questões do espaço "entre" e da "oscilação" entre psicoterapia e psicanálise, em momentos diferentes de uma análise. Neste segundo caso, Radmila tenta distinguir, a posteriori, os "momentos psicanalíticos" daqueles que foram mais "terapêuticos" ("os momentos em que éramos apenas dois, daqueles em que éramos plurais"). No entanto, na maioria das vezes a função de terceiro (não meramente espacial, mas também temporal) está presente, através do referencial teórico ou simplesmente do pensar, na tentativa de compreensão do analista. E, de fato, ela conclui que a distinção que provoca sua reflexão é necessária, de tempos em tempos, apenas para não se perder um certo rigor. Mas jamais para que o pensamento se torne estéril e "obediente", ou para que a ação criativa do par analítico seja paralisada por a prioris e definições rígidas e impensadas que, de fato, apenas defendem o analista de exercer com radicalidade seu desejo de sustentar a mudança psíquica. A forma, as idas e vindas, os percalços, os enganos e os sucessos de um processo analítico são criação e responsabilidade do analista, a partir do quê lhe coloca o analisando em termos de desejo e possibilidade, em relação ao trabalho conjunto. No entanto, o relato clínico é sempre unilateral, refletindo um único ponto de vista, o do narrador analista, sendo, para Radmila, por mais fiel aos acontecimentos e palavras proferidas, uma peça de ficção, montada no a posteriori. E, para ela,
O próprio narrador está configurado por um grande relato latente, a história que o envolve, dos quais, por sua vez, ele conhece apenas os determinantes. Ao relatar, aqui, esses fragmentos de cura, sou ao mesmo tempo uma narradora consciente de uma mensagem e uma passadora inconsciente da parte mítica da qual essa mensagem é uma variante. Como cada mito se manifesta a nós a partir de múltiplas versões, cada relato clínico que faz sentido coletivo faz parte de um pedaço do mito de sua época. Sou, pois, passadora, apesar de mim mesma, de uma versão obscura e desconhecida de um fragmento de mito do século XXI. Sei que dele possuo apenas uma versão truncada que se chama discurso psicanalítico. Isto porque as teorias e relatos de psicanálise, e de modo geral daquilo que chamamos de ciências humanas, obedecem às estruturas profundas de uma mitologia em grande parte imperceptível a seus próprios contemporâneos (p. 74, grifo nosso).
É com este pleito à humildade, ao reconhecimento do mistério e da incerteza relativos e à exploração do desconhecido, no que diz respeito ao humano, que Radmila Zygouris conclui sua conferência-livro. Ela nos deixa com pistas preciosas sobre questões que assombram nossa prática, cujas respostas prêt-àporter frequentemente nos engessam e, porque não dizer, frustram. A proposta desta autora é revigorante: pensar, elaborar, mas sempre ousar, não aceitando respostas prontas a velhas e a novas perguntas. E voltar a pensar, a elaborar, a ousar...
O empenho de Caterina Koltai (e do Centro de Estudos Psicanalíticos- CEP) em trazer Radmila Zygouris ao Brasil, para conferências e supervisões, e assessorá-la por meio de traduções sucessivas, orais e escritas, é tão valioso que a publicação deste e de outros livros da autora em português: só merece nosso aplauso. É valiosa, também, a consulta que se pode fazer a seu site, http://www. radmila-zygouris.com, com artigos, seminários, entrevistas e "textos provisórios".
Referências
FIGUEIREDO, Luiz Claudio. As diversas faces do cuidar: novos Ensaios de Psicanálise Contemporânea. São Paulo: Escuta, 2009. [ Links ]
OGDEN, Thomas. The Analytic Third: Working with Intersubjetive Clinical Facts, International Journal of Psychoanalysis. v. 75, p. 3-20, 1994. [ Links ]
SOUZA, Octavio. Defesa e criatividade em Klein, Lacan e Winnicott. In: BEZERRA JUNIOR, Benilton; ORTEGA, Francisco (Orgs.). Winnicott e seus interlocutores. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007.