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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

Artigos

Da realidade psíquica ao laço social: a função de mediação do conceito de fantasia

 

Psychic reality to the social bond: the mediation function of the concept of fantasy

 

 

Mardem Leandro*; Daniela Paula do Couto**; Maria dos Anjos Lara e Lanna***

Universidade Federal de São João del-Rei

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Este artigo investiga a forma pela qual a fantasia faz a mediação entre a realidade psíquica e o laço social. O conhecimento de como a fantasia se constitui mediadora entre a realidade interna do neurótico e a realidade factual do mundo exterior é de fundamental importância, tal como Freud assinala em A interpretação dos sonhos. Nesta obra, o radical da realidade se confirma como resultado de uma distorção capaz de abordar o desejo; o que, por sua vez, situa o conceito de fantasia como um conceito basilar para a Psicanálise, ao revelar a dinâmica da formação da realidade mediante uma composição simbólico-imaginária em contraposição ao Real.

Palavras-chaves: Realidade psíquica, Real, fantasia, sonho, laço social.


Abstract

This paper investigates how the fantasy exerts a mediatory function between psychic reality and the social bonding. The knowledge of how fantasy works as a mediator between the internal reality of the neurotic and the factual reality of the outside world is of considerable importance, as referred by Freud in The interpretation of dreams. In this work, the radicalness of reality validates itself as a result of a distortion that can approach desire; which, in turn, establishes the concept of fantasy as a basic concept for psychoanalysis, by displaying the dynamics of reality formation through a symbolic-imaginary construction as opposed to the Real.

Key-words: Psychic reality, Real, fantasy, dream, social bond.


 

 

O conceito de realidade psíquica: contribuições freudianas

A primeira vez em que Freud (1950a [1895]/1996) aborda a questão da existência de diferentes tipos de realidade, denominadas por ele como "realidade do pensamento" e "realidade externa", é em 1895, no Projeto para uma psicologia científica.

Cinco anos mais tarde, a noção de realidade psíquica aparece no fim do Capítulo 7 de A interpretação dos sonhos: "O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo" (FREUD, 1900/1996, p. 637, grifo do autor). Um pouco mais adiante no mesmo texto, o autor continua a relacionar a realidade psíquica ao inconsciente, fazendo uma distinção clara entre ela e outro tipo de realidade: "Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos a sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de lembrar-nos, sem dúvida, que também a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material" (FREUD, 1900/1996, p. 644, grifo do autor).

Entretanto, é em 1913, no último ensaio de Totem e tabu, que o termo realidade psíquica é demarcado para designar uma realidade contraposta à realidade concreta: "O que caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta, reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades" (FREUD, 1913 [1912-13]/1996, p.160-161). Nesse momento, o autor destaca a importância da realidade psíquica e a sua preponderância, no que diz respeito aos neuróticos, em relação à realidade externa. Em Totem e tabu, Freud (1913 [1912-13]/1996) mantém o termo realidade psíquica como a realidade característica do inconsciente. No entanto, como informa James Strachey, tradutor das obras freudianas da língua alemã para a inglesa, as edições de A interpretação dos sonhos apresentam expressões diferentes para designar a realidade oposta à realidade psíquica. A expressão "realidade material" aparece na edição de 1919, substituindo "realidade factual", presente na edição de 19141 (FREUD, 1900/1996).

A distinção entre os dois tipos de realidade é superada pela relação dialética que ambas mantêm. Assim, a realidade psíquica corresponde a uma realidade interna ao sujeito que é mediada por uma realidade externa, o que proporciona uma assimilação entre as representações do mundo exterior e interior.

Freud parte de estabelecer as diferenças entre uma realidade e outra para assim poder tornar mais evidente o alcance da realidade psíquica. Nesse sentido, ele "[...] instituiu o conceito de realidade psíquica [como] núcleo irredutível do psiquismo, registro dos desejos inconscientes dos quais a fantasia é a expressão máxima e mais verdadeira" (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 224). A fantasia, complementam estes autores, diz respeito à vida imaginária do sujeito, bem como a forma pela qual ele representa sua história para si mesmo. Isto significa que a realidade precisa ser investida pelo sujeito para ser significada e é a fantasia que o permite.

Nas primeiras proposições de Freud (1940-41 [1892]/1996), a causa da neurose estava relacionada a uma hipótese traumática, partidária da realidade efetiva, enquanto condição suficiente para o sofrimento psíquico. No entanto, tais proposições são refutadas pelo autor na Carta 69 dirigida a Fliess, em 21 de setembro de 1897: "Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]" (FREUD, 1950b [1892-99]/1996, p. 309, grifo do autor). Este ponto de virada na investigação da etiologia da neurose abre espaço para a formulação da fantasia como condição suficiente do sofrimento psíquico. O autor prossegue a carta confessando que a partir dessa desilusão assumiu a convicção "[...] de que, no inconsciente, não há indicações da realidade" (FREUD, 1950b [1892-99]/1996, p. 310), o que equivale a tentar distinguir realidade externa de realidade psíquica.

Desta forma, fica patente, por assim dizer, a entrada em cena da noção psicanalítica de fantasia:

Quando, contudo, fui finalmente obrigado a reconhecer que essas cenas de sedução jamais tinham ocorrido e que eram apenas fantasias que minhas pacientes haviam inventado ou que eu próprio talvez houvesse forçado nelas, fiquei por algum tempo inteiramente perplexo [...]. Quando me havia refeito, fui capaz de tirar as conclusões certas da minha descoberta: a saber, que os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material (FREUD, 1925b [1924]/1996, p. 39-40).

Considerando a centralidade do conceito de realidade psíquica na Psicanálise e a grande expressão dessa teoria na atualidade, pode-se afirmar que tal conceito se constitui como uma das grandes revoluções epistemológicas do século XX, pois quando Freud (1950b [1892-99]/1996) assume que não pode mais confiar em sua teoria das neuroses, presume que outra realidade deva ser levada em consideração, pois se trata de uma realidade que, mesmo não sendo material, também produz efeitos. Desta conjunção surge a suspeita, constantemente confirmada em análise, da existência de uma realidade do psiquismo. Neste sentido, cabe o seguinte questionamento: qual problema se esconde por trás da formulação do conceito de realidade psíquica? Para tentar responder a tal pergunta, é preciso resgatar o contexto em que surgiu o conceito de realidade psíquica.

A "realidade psíquica" não nasce como conceito. O fato de não haver uma definição conceitual, dada de antemão, significava, para Freud (1915/1996), que o trabalho inicial de qualquer ciência era muito menos o de propor ideias rígidas do que o de descrever os fenômenos da experiência em questão. Desse modo, o conceito de realidade psíquica se figura enquanto uma noção que permite articular o que poderia levar a Psicanálise a se perder em aporias biologizantes. É nesse sentido que Freud busca apoio nas noções de fantasia e de desejo para caracterizar a realidade psíquica, como pode ser observado com relação ao abandono de sua teoria da sedução.

A teoria da sedução havia levado Freud (1940-41 [1892]/1996) a um impasse em que pesava sua concepção de sujeito: ou todos os pais seriam perversos ou todas as histéricas seriam mentirosas. Nessa condição, o sujeito poderia ser definido como assujeitado a um ato perverso da parte de seus cuidadores e das consequências advindas deste, ou então, tal como o sujeito transcendental kantiano, alguém que contribuiria de alguma maneira com a construção da realidade em que vive. Não bastasse esse imbróglio epistemológico, o abandono da teoria da sedução implicava ainda em se pensar na consequência do trauma para o aparelho psíquico.

O trauma era visto como causa desencadeadora da maioria dos sintomas histéricos, ou seja, "Qualquer experiência que [pudesse] evocar afetos aflitivos – tais como os de susto, angústia, vergonha ou dor física [...]" (BREUER; FREUD, 1893/1996, p. 41). Com o impasse imposto pela teoria da sedução, Freud e Breuer (1893/1996) percebem que, apesar de o plano dos fatos ser irredutível ao plano do significado, a cena traumática impunha-se na vida do sujeito e os sintomas histéricos não poderiam ser tomados como veleidades médicas somente. Nesse momento, o salto teórico de Freud se refere à passagem da semiologia médica, incapaz de compreender a sintomatologia histérica, para a hermenêutica enquanto um instrumental metodológico.

Se no registro semiológico, o critério de verdade se referia à adequação dos sintomas e signos aos fatos e objetos, no regime hermenêutico o critério de verdade remetia a uma construção de sentido entre as palavras e as próprias palavras, apontando para uma relação interminável. A consequência imediata dessa passagem é a possibilidade de se pensar uma noção outra de realidade, em que os fatos só fariam sentido em seu modo singular de serem encadeados por uma função que os atravessaria e os alinhavaria conferindo a eles significado. Essa função nasce como correlata da noção de realidade psíquica e recebe o nome de fantasia.

A fantasia seria menos uma produção aleatória do desejo e da ociosidade imaginária do que uma função que conferiria intenção ao ato de significar, denunciando assim que os processos cognitivos não seriam neutros. A fantasia seria uma manifestação do desejo no que esse teria de mais radical, seu caráter de mediação na relação possível entre sujeito e objeto. Nessa perspectiva, Safatle (2009, p. 31) afirma que o desejo seria condição de percepção do mundo "[...] revelando sua função intencional determinante na interação do sujeito com o meio". O desejo (Wunsch), segundo Quinet (2003), seria a realização de um anseio e, se este anseio é motivo de transformação/construção da realidade, é porque ele é intermitente e não se realiza somente na cena objetiva, mas, sobretudo, na cena subjetiva, onde ganha força pela possibilidade de um mundo que pode gerar.

Dessa forma, a passagem do plano semiológico para o hermenêutico revela o desejo como uma função negativa, na mesma medida em que postula a fantasia como uma função positiva, ou seja, o que falta ao desejo, a fantasia providencia. Ao desejo falta o objeto, pois o desejo é pura negatividade, no sentido de ser um ato psíquico que busca realização por meio dos recursos fornecidos pela fantasia. A positivação do objeto, então, é uma função exclusiva da fantasia.

Não é sem razão que a noção de realidade psíquica ganhe condição de "futuro conceito" em A interpretação dos sonhos. Uma vez que os sonhos foram elevados à condição de fenômeno psíquico digno de investigação, a cena psíquica na qual se vê desenrolar o evento onírico se configura como uma realidade, tanto por sua natureza espontânea, quanto pelos efeitos produzidos por ela.

A realidade onírica é a realidade do inconsciente, mas submetida à censura. O modo como as representações (Vorstellungen) se associam, permite a Freud (1900/1996) deduzir a dinâmica dos processos que regem esta outra cena, o que corrobora ainda mais a noção de realidade psíquica e o que permite tratá-la como um conceito. Nessa obra freudiana, o radical da realidade é o que se confirma como o resultado de uma distorção capaz de abordar o desejo. Em outras palavras, a realidade psíquica é uma construção capaz de abrigar o desejo na mesma medida em que o toma como causa das associações das representações possíveis à sua realização e toda esta atividade é mediada pela fantasia. É a fantasia que alinhava as representações pelo recurso do sentido, permitindo que toda esta associação seja traduzida pelo regime da história do próprio sujeito.

Em A Interpretação dos sonhos está implícito tanto o método – o interpretativo – quanto o objeto desse método – as produções oníricas submetidas às associações. Sem a noção de realidade psíquica, o método interpretativo não faria sentido, pois a produção onírica teria de ser interpretada com referência aos acontecimentos ou mesmo a uma malha de símbolos com resultados próximos aos da exatidão, lembrando muito o método semiológico abandonado por Freud.

Nesse sentido, a realidade psíquica não seria um dado ao qual se poderia ter acesso por qualquer forma de manifestação sensível. Com isso, a pergunta que orientaria a possível compreensão da necessidade de se formular tal constructo teórico é: quais as exigências teóricas que levaram Freud a propor o conceito de realidade psíquica? É algo dessas exigências e também das estratégias encontradas por Freud que animará a investigação da noção de realidade psíquica até que ela se desdobre num conceito por meio do qual se deduza a própria noção de mundo ou o modo como este mundo é significado e dotado de sentido.

 

Da realidade psíquica ao Real: contribuições lacanianas

Se com Freud a fantasia diz respeito a um modo de se teorizar a realidade por um viés psicanalítico, no sentido de que a fantasia forneceria elementos para se conjugar realidade interna e externa, com Lacan a fantasia é a própria realidade em oposição ao Real.

Lacan retoma a realidade psíquica proposta por Freud para distingui-la do que ele denominará de Real. Essa distinção entre realidade e Real

[...] relativiza a distinção entre dentro e fora, privilegiando a oposição entre o mundo da cultura e o mundo em si, tal como o veríamos se pudéssemos olhá-lo. Como isto não é possível, ficamos com este mundo simbólico e alguma noção do mundo real, inacessível de maneira direta, quer com nossos órgãos de percepção, quer com os instrumentos mais aperfeiçoados que possamos construir, pois o jogo de representações e de traços da cultura estarão (sic) sempre lá atuando como prismas, como elementos difratores da visão nítida do real (VIEIRA, 2003, p. 6).

Nessa distinção, percebe-se o eco da proposta kantiana sobre o estatuto da realidade como efeito da transformação do Noumenon (a coisa-em-si) em fenômeno (a coisa-em-mim). Kant (2003) já acenava para a questão de que a realidade é em si incognoscível. Freud (1915/1996) considera tal proposta como índice do véu que separa a percepção do mundo e o mundo enquanto experiência imediata, afirmando ser necessário levar em consideração as contingências da percepção no ato de descrever a realidade. Assim, é possível afirmar que se a realidade não é questionada ao nível de sua "concretude" ela passa muito facilmente como sendo o Real impossível de ser simbolizado do qual ela é efeito.

É pelo viés de compreender o modo pelo qual o desejo se traduz como sendo uma ação que redefine constantemente a realidade externa pelo critério da realidade interna, que Freud (1911/1996) utiliza-se do conceito de fantasia, pois é por meio desse expediente que um amplo aspecto da realidade vai se constituir. Dessa forma, a fantasia opera como recurso que fornece sentidos para os acontecimentos da realidade externa, como no caso do trauma, em que para se tomar um acontecimento como traumático, é necessário que ele faça sentido primeiro para o sujeito que o vivenciou. Assim, a fantasia faz mediação, inicialmente, entre os fatos e os sentidos dos fatos, ou seja, os acontecimentos e a interpretação dos mesmos por parte do sujeito.

A partir do momento em que Lacan (1967a/2003) substitui a oposição freudiana entre realidade interna e realidade externa pela proposta de oposição entre Real e fantasia, esta se torna mais que o artifício por meio do qual a realidade passa a ser teorizada. A fantasia se torna a própria realidade em oposição ao Real, que continua sendo impossível de ser inscrito, de ser simbolizado nas tramas do psiquismo e por isso gera um vazio em torno do qual algumas representações privilegiadas vão gravitar.

Estas representações formam uma matriz psíquica a partir da qual a relação com a realidade começa a se estabelecer. Tal matriz psíquica é efeito do recalque originário e corresponde à fantasia primordial, aquela que forja as primeiras relações do sujeito com o mundo, funcionando como o primeiro anteparo contra as invasões atrozes do Real, que permite ao sujeito certa segurança. Nesse sentido, a fantasia, diz Lacan (1967a/2003, p. 259) vai se constituir como uma "janela para o real". Jorge (2010) acrescenta que essa "janela" vai enquadrar o Real e transformar as exigências de um gozo absoluto em um gozo moderado, pontuado pela significação fálica, ou seja, limitado pela ameaça da castração. Dessa forma, ao responder o que vem a ser a fantasia, este último autor diz que ela pode ser tomada como sendo a própria realidade, ao menos para o sujeito falante, uma vez que "[...] só existe realidade psíquica para o sujeito falante, já que a realidade dita objetiva ficou perdida para sempre" (JORGE, 2010, p. 147).

Como afirma Lacan (1967b/2003, p. 352), essa realidade dita objetiva "[...] não pode ser questionada em si mesma: é Anankê, como nos diz Freud – ditame cego". Tal realidade objetiva seria o Real, caso fosse possível termos acesso à sua manifestação. No entanto, o Real não é possível de ser apreendido. O acesso do sujeito a ele se dá em função do caráter de mediação da fantasia, que assim passa a compor não somente as relações do sujeito com o Real, mas também com a realidade, como efeito simbólico e imaginário para dar conta de outro registro que os causa. Disso decorre que a realidade é efeito de uma operação simbólica e imaginária para dar conta do impossível do Real.

Retornando à questão da fantasia, para Vieira (2003), o que singulariza o sujeito é a trama de suas histórias e fantasias que, mesmo já dispostas na cultura, são amarradas de forma particular pela pulsão, enquanto o que se distingue do instinto animal, aparecendo como "[...] dedução necessária, porque o universo de representações e de ideias, a satisfação obtida pela obtenção dos objetos/sentidos do mundo da realidade, nunca é bastante" (VIEIRA, 2003, p. 8). Assim, prossegue o autor, a pulsão explica porque o sujeito está sempre buscando uma satisfação com os objetos, passando a outros objetos e assim, indefinidamente. Isto porque o objeto que se busca não tem significação, não tem nome, é o objeto a.

A questão a ser posta é se seria possível haver um objeto que não fosse um objeto capturado pela fantasia. Pois se a fantasia tem por função oferecer ao desejo seus objetos, então ela está diretamente associada ao princípio do prazer no sentido de possibilitar certa constância da economia psíquica e assim suscitar algo como uma homeostase psíquica.

A atividade fantasística está ligada, primeiramente, a um modo de defesa contra o desprazer decorrente da impossibilidade do aparelho psíquico de lidar com o Real do gozo, de representá-lo de alguma forma e, posteriormente, com as exigências e divergências impostas pelo mundo exterior.

As exigências do mundo exterior, ou como Freud (1930 [1929]/1996) eloquentemente afirma, a rudeza da realidade externa só é possível de ser suportada com o recurso da fantasia. Tal realidade, para o autor, preexistia ao sujeito, de modo que a possibilidade de sua existência enquanto realidade psíquica era relativa, em primeiro plano, a uma disposição do aparelho psíquico em representar e fantasiar o que o atravessava. Em segundo plano, uma disposição de subjetivar estes atravessamentos, o que está ligado à introjeção e à projeção. A introjeção se refere ao modo por meio do qual o sujeito toma para si aquilo que considera inicialmente como prazeroso e a projeção se relaciona à forma com que o sujeito expulsa aquilo que não aceita como sendo "seu" por ser desprazeroso (FREUD, 1925a/1996).

Este momento na vida do sujeito funda as noções de interior: o prazeroso, o que é tomado como próprio, pelo recurso do narcisismo. E o exterior: o desprazeroso, o que é alheio e estranho. Este é o protótipo das noções de realidade para a criança (1915/1996). O que Freud percebe na clínica é a maneira como esta dinâmica interior/exterior passa a ser enviesada pelo recurso da fantasia, de forma que a noção de interior próprio e prazeroso, regida pela lógica do princípio do prazer, possa ter sua continuidade a partir do recurso do princípio de realidade.

Nesta perspectiva, cabe à fantasia o agenciamento dos princípios do prazer e da realidade para que ambos funcionem de modo a gerar a noção de uma realidade contínua, no sentido de que suas descontinuidades são resultado da investigação clínica e teórica. Também compete à fantasia uma forma de atividade constante no sentido de tornar menos hostil a realidade exterior gerando um mínimo de satisfação às exigências contínuas da pulsão. Assim, a fantasia é condição necessária, ao menos para a perspectiva neurótica, para que algo como uma realidade possa ser inferida da relação do sujeito com o Real, ou paradoxalmente, para que o Real possa ser inferido da relação entre o sujeito e a realidade.

No livro que trata dos fundamentos da Psicanálise a partir da clínica da fantasia, Jorge (2010) levanta as possibilidades de a fantasia ser tomada como conceito fundamental da Psicanálise, na medida em que ela é definida como articulação possível entre o inconsciente, a pulsão, a transferência e a repetição. Assim, é somente a partir da transferência no plano clínico que o inconsciente pode ser proposto como uma hipótese teórica. Na mesma medida, foi por meio da repetição que a pulsão pôde ser mais bem teorizada por Freud (1920/1996) com base nas evidências referentes às brincadeiras das crianças, aos sonhos traumáticos e ao sofrimento psíquico.

A fantasia é uma história imaginada a partir do que se pode apreender do Real, mas não no sentido de este poder se inscrever, pois aqui ele permanece como uma falta absoluta (VIEIRA, 2003). Isto possibilita justificar tanto a ação psíquica do desejo, no sentido de esta ser constante e acenar que algo falta quanto à ação psíquica da fantasia, visto que ela corresponde ao ato de demonstrar o que falta.

Sendo assim, a fantasia é, de certa maneira, o que justifica a importância dada pela Psicanálise à forma como o sujeito vivenciou um acontecimento e não este em si, como um fato absoluto, desprovido da possibilidade das construções de sentido (VIEIRA, 2003). É no desencontro com o Real, complementa o autor, que o sujeito tece uma rede de fantasias a partir das quais amarra, de forma particular, por meio da pulsão, aquilo que é disposto pela cultura. Ou seja, a fantasia encerra um destino subjetivo na neurose, assim como a alucinação e o delírio encerram outro destino subjetivo na psicose, de forma que a fantasia é o recurso que enreda o sujeito nas tramas da cultura por gerar uma noção de continuidade pelo expediente da satisfação.

Nesse aspecto, as histórias do sujeito permitem que ele tenha um contato com o Real, na perspectiva do modo como ele pode vir a ser tomado: como falta, impossível, trauma. Ao mesmo tempo, proporcionam-lhe um sentido, uma simbolização.

Na perspectiva de Lacan (1967a/2003), a fantasia estabelece uma inter- -relação entre o Real e o sintoma, na medida em que ela é ao mesmo tempo, condição para a formação do sintoma e o único acesso possível ao Real. Com isso, a entrada em análise se dá em função do sintoma, que leva sempre a uma construção fantasística. O fim de análise tem relação com o que o autor denominou de travessia da fantasia. Uma operação que desvela sempre algo de Real por trás da estrutura psíquica. É esse Real que fornece os indícios para se pensar uma realidade construída que tenta dar conta da condição inassimilável do recalque que, por não ser simbolizado, torna-se fundamentalmente traumático, evocando no psiquismo um modo de defesa.

O recalcado é de certa forma uma ideia que representa a pulsão (JORGE, 2010). Entretanto, existe algo na pulsão que é da ordem do Real. Tal como a proposta freudiana, há algo no seio da pulsão fadado à insatisfação, "[...] esse impossível de ser satisfeito é o real inerente à própria pulsão" (JORGE, 2010, p. 66). Mas é por haver essa insatisfação que a fantasia se dispõe como "[...] uma das formas privilegiadas de satisfação da pulsão" (JORGE, 2010, p. 68), justamente por conseguir fazer face ao impossível de ser simbolizado e, consequentemente, satisfeito.

É da lacuna entre o Real e a realidade que se deduz a fantasia em sua função mediadora, também suposta na articulação entre a pulsão e o inconsciente, pois é a fantasia que gera uma dimensão de representações que vão se associar pelas leis do processo primário e do princípio do prazer, ou seja, vão se associar de modo a gerar uma satisfação possível para a constante pressão exercida pela pulsão em busca de satisfação. O processo primário, explica Freud (1911/1996), pode ser tomado como a lógica fundamental da realidade psíquica, que tem por princípio a busca do prazer, não se confundindo com o processo secundário em que pesa a força da realidade, nem tampouco com o princípio de realidade, por meio do qual o sujeito opera na realidade.

Entretanto, o avanço em jogo neste estudo, vai na direção de propor, tal como afirma Lacan (1959/1988), que o princípio de realidade está a serviço do princípio do prazer, ou como afirma Jorge (2010), o princípio de realidade é sucedâneo do princípio do prazer.

Para Godino Cabas (2005), a fantasia revela o objeto da catexia, ou seja, ao se perguntar de que forma o objeto "real" pode vir a se inscrever no psiquismo, afirma que a fantasia expressa a relação peculiar entre a identificação e o objeto e sustenta que todo objeto seria submetido a uma determinação narcísica. Assim, é "[...] em função desse narcisismo que a catexia nunca é contínua, nunca permanece totalmente voltada para o objeto, e sim vai sendo regulada em frequências sintonizadas de catexia objetal e catexia narcisista" (GODINO CABAS, 2005, p. 8). A captura fantasística oscila entre investir no eu e investir nos objetos e se o investimento no objeto ocorre, ele é também determinado pela projeção dos conteúdos narcísicos.

Portanto, a função do eu é muito menos a percepção e síntese da oscilação do investimento (em direção ao próprio sujeito ou ao objeto), que a projeção de esquemas mentais no mundo (SAFATLE, 2009). É, ao recalcar as possibilidades de sua origem, que o desejo entra em cena incluindo o desejo do Outro como condição de desejar. Desta forma, o objeto vai receber o estatuto de objeto reencontrado, tal como afirma Freud (1905/1996, p. 210), "[...] o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro", pois o que se projeta tem relação direta com o que supre a ausência constante do objeto.

A percepção do mundo se dá por meio de um conjunto de referências que lhe são aparentemente próprias, já que faz menção ao atravessamento do sujeito pelo desejo, como Lacan (1949/1998) explicita no Estádio do espelho. No entanto, esse atravessamento ocorre ao nível de fazer do desejo do Outro o seu objeto, atualizando assim a fórmula lacaniana de que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Dessa forma, é a partir do plano do desejo que o sujeito vai se constituir, visto que é nesse plano que ele se dispõe a abrir mão de seu próprio desejo para se alienar no desejo do Outro (LACAN, 1964/1998).

Se à fantasia cumpre fornecer os objetos, os elementos, a realidade possível ao desejo, então o enredo que o sujeito cria para fazer face ao enigma do desejo do Outro é que vai sustentar sua condição de sujeito, já que este enredo se configura como a trama mínima de sua constituição. Assim, por meio dessa noção do grande Outro, o desejo aponta para a fantasia como mediadora na construção da realidade e da formação dos laços que possibilitam as relações sociais, justamente pelo fato de o enredo sempre fazer referência à relação do sujeito com o Outro.

 

A fantasia como a realidade dos laços sociais na neurose

É possível localizar proposições que sustentam a ideia de laço social, em Totem e tabu, como as metáforas do mito da horda primeva e do assassinato do pai totêmico para descrever o advento da cultura e da instituição social (FREUD, 1913 [1912-13]/1996). Baseando-se em pesquisas antropológicas e etnológicas, o autor destaca dois tabus fundamentais: o assassinato do animal totêmico e a proibição do incesto. Assim como os membros da tribo desejavam inconscientemente infringir tais leis, os neuróticos também mantêm um desejo inconsciente de ter a mãe e afastar o pai. Freud (1913[1912-13]/1996), portanto, estabelece um paralelo entre os tabus totêmicos e o complexo de Édipo. Dessa forma, o que torna o clã coeso, o que enlaça seus membros é a lei a que todos devem respeitar.

Nas palavras de Poli (2004, p. 42-43), enquanto o mito da horda primeva e do assassinato do pai totêmico fundam "[...] o princípio de equidade como regulador da relação entre os irmãos; [...] o laço social, por sua vez, refere-se às diferentes formas que as fratrias têm de lidar, ao longo da história, com as consequências e os retornos deste ato primitivo." Ainda de acordo com a autora, "[...] os laços sociais estabelecem a história, eles inscrevem ao longo do tempo as formas de enlace que os humanos constituem entre si" (POLI, 2004, p. 43).

A partir de Psicologia de grupo e a análise do ego, o fundador da Psicanálise estabelece a relação entre a Psicologia do indivíduo e a Psicologia social: "Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, [...] de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (FREUD, 1921/1996, p. 81). Esse "algo mais" do qual fala Freud (1921/1996), pode ser pensado como um laço social, ou seja, aquilo que permite ao sujeito se relacionar com o outro e obter satisfação pulsional. Quando o sujeito consegue se enlaçar ao outro, considerando que ali há alguém a quem endereçar seu afeto, é possível falar de um bem-estar social, de um sujeito inserido no discurso social.

Já em O mal-estar na civilização, Freud (1930[1929]/1996) afirma que as relações humanas são a maior causa de sofrimento na vida. O autor resgata o provérbio romano "O homem é o lobo do homem" para falar da agressividade inerente ao homem e que se constitui como um enorme impedimento à civilização. A afirmação freudiana de que é preciso limitar os instintos humanos agressivos aponta para a questão de como se manter o laço social. Faz-se necessário ao sujeito renunciar a uma parte da satisfação pulsional para garantir sua permanência na sociedade. Na interpretação de Lacan (1969/1992), descrita a seguir, a constituição do laço social implica em aceitar a perda de uma parcela de algo, a saber, o gozo.

Se o avanço teórico de Freud se deu pelo recurso da fundamentação clínica, então não lhe passou despercebido que não existe clínica sem sujeito e que este se constitui pelos atravessamentos em jogo em suas relações. E por não haver clínica sem sujeito, os atravessamentos sociais precisam ser igualmente teorizados, na qualidade de serem causa e consequência do mal-estar. Assim, Freud (1921/1996) percebe que a civilização se constitui a partir de um interdito que exige uma renúncia pulsional e propõe o caráter homo por trás do fenômeno da formação do grupo. Esse fundamento homo, como denomina também Quinet (2006), é o ideal que torna iguais os componentes do grupo, por meio da identificação dos indivíduos na composição do mesmo laço social.

No entanto, Quinet (2006) afirma que Lacan tratou de acentuar o elemento hétero (outro) como objeto a, o que é excluído da civilização, o objeto da pulsão. Com isso, falar de desejo implica fazer alusão a um modo de gozo que impele o sujeito a encontrar-se com o outro. Assim, se os encontros se definem pelos laços sociais estabelecidos, sustentar o laço social implica aceitar uma perda de gozo.

Consequentemente, o sujeito passa a ter certo acesso ao gozo, pois o Real do gozo permanece inacessível, sendo somente intuído por vezes, pelo recurso de ser pensado como a satisfação absoluta, a mesma que também poderia destruir o sujeito pelo excesso de tensão em jogo. Desta forma, o sujeito tem acesso ao gozo de modo parcial, pois este acaba sendo emoldurado pela atividade fantasística (JORGE, 2010), sem a qual a humanidade não poderia existir, "[...] na verdade, os homens não podem subsistir com a escassa satisfação que podem obter da realidade", afirma Freud (1917 [1916-17]/1996, p. 374).

A fantasia é uma forma singular de cada sujeito lidar com o Real. É neste sentido que Jorge (2010, p. 242) afirma que "[...] a fantasia constitui a realidade psíquica para cada sujeito", pois é ela que vai operar a mediação entre o Real e o sujeito, interpondo-se como uma matriz psíquica, por meio da qual o desejo vai ser sustentado na medida em que vai ser fixado ao sujeito pela ação dela. E o desejo passa de uma cifra singular do gozo a um modo de compor com o outro a realidade dos laços sociais pelo recurso do discurso.

Assim, se é na cena do discurso que se desenrola a análise, é o dispositivo clínico que vai propor uma forma de ultrapassar algo da realidade fantasística construída na neurose, no sentido de ser esta realidade um enredo que fixa o sujeito numa forma única de gozo que o faz sofrer, por se ver cifrado e barrado, no sentido de ser dividido. É na condição de ter que sustentar a renúncia ao objeto pulsional e de constituir laço com quem também sustenta essa mesma condição que o mal-estar dos laços sociais precisa ser pensado, pois o objeto da renúncia ocupa um lugar diferente de acordo com o discurso do sujeito (LACAN, 1969/1992).

Entretanto, enquanto o sujeito partilha suas histórias a partir de uma perspectiva trágica, referindo seu mal-estar a uma exterioridade absoluta, é sinal de que algo ainda resiste a ser subjetivado, algo desta sua condição de sujeito faltoso. Segundo Vieira (2003), o dispositivo analítico vai, justamente, em direção à mudança do foco de percepção revelando o caráter de construção do enredo fantasmático, permitindo assim modificar o estilo de sua expressão. Para Safatle (2006), essa modificação da forma de expressão recebe o nome de travessia da fantasia fundamental. No dispositivo clínico, a fantasia fundamental seria o enredo mínimo que organiza a ação do sujeito em sua realidade, sendo para o sujeito a realidade mais fundamental, o núcleo duro de sua significação sobre a realidade.

A travessia da fantasia se configura como processo que precisa ser superado de alguma maneira no sentido de que a mesma fantasia que compõe a realidade para o sujeito também o fixa num modo de relação neurótico com esta construção. Igualmente, Safatle (2006, p. 204), percebe que se "Lacan pode assim afirmar que a realidade própria ao sujeito é fundamentalmente fantasmática", significa que esta realidade demanda ser "atravessada", ultrapassada em seu regime fixo de sentidos, abrindo espaço para algo que não permanece evidente para o neurótico: o caráter de construção de sua própria realidade. Evidência esta que permitiria a geração de um espaço para se tentar novas formas de relação, tanto com os objetos de sua realidade, como consigo próprio.

Assim, a travessia da fantasia implica uma destituição subjetiva, no sentido de que ela sustenta a instituição subjetiva, ou seja, na medida em que a relação do sujeito com os objetos é assegurada por suas identificações, é a fantasia que emoldura esta realidade:

A fantasia é o que dá enquadramento da relação do sujeito com a realidade: sua janela para o mundo. É dela que o sujeito tira a segurança do que fazer diante das situações que a vida lhe apresenta. A análise, ao levar o sujeito a atravessar a fantasia, promove um abalo e uma modificação, nas relações do sujeito com a realidade, levando-o a uma zona de incerteza, pois ele é largado pela âncora da fantasia (QUINET, 2002, p. 104).

A travessia da fantasia não significa eliminar a fantasia, mas sim fazer a travessia de um lado ao outro deste regime de sentido imposto pela cena da fantasia fundamental, para que deste modo possa ser percebido justamente o caráter fantasmático desta travessia. Assim o sujeito não deixaria de fantasiar, ao contrário, ele perceberia as vantagens inerentes ao ato de fantasiar, no sentido do que este implica: uma constante construção de sentidos, ao contrário do já referido sentido absoluto imposto pela fantasia fundamental.

Do que foi exposto, resta uma questão identificada por Safatle (2006, p. 205): como operar a travessia da fantasia sem que o sujeito seja arremessado definitivamente, "[...] de uma vez por todas, no silêncio absoluto da angústia?". Ou seja, de que forma o sujeito poderia ultrapassar a condição rígida de sua neurose, imposta em partes pela sua formação de compromisso e em partes pelo limite imposto por um caráter neurótico inflexível que o impede de agir? Uma resposta ágil poderia ser: por meio de uma análise. O sujeito poderia atravessar a fantasia ao se implicar em sua análise, no sentido de que fazê-la, do início ao fim, implica na travessia da fantasia. A destituição subjetiva em jogo na travessia não se refere à dissolução da categoria de sujeito, mas sim de uma ultrapassagem da síntese fantasística a qual este mesmo sujeito submete toda sua sorte de objetos e relações, inclusive sua relação com o analista.

De acordo com Safatle (2006), quando Lacan fala de uma destituição subjetiva, ele acena para o amor como um sentimento capaz de promover esta destituição. Tanto o amor de transferência que ocorre na cena analítica quanto o amor exterior a esta cena. O neurótico não seria, afinal de contas, aquele sujeito que não conseguiria exercer os dois verbos identificados por Freud e que afinal o fazem sofrer? Se a "cura" da neurose é o que permite ao sujeito poder amar e trabalhar, o amor poderia ser também o motor desta destituição, no sentido de deslocar o neurótico de sua completude subjetiva. Esta completude fálica, oriunda de um narcisismo precoce, é efeito da realidade na qual se encerra o neurótico, a saber, no limite tenso de seus sentidos fixos positivados pela fantasia.

Desta forma, o ato de amar impediria que seu desejo assimilador se fechasse em um narcisismo mortífero, que ao mesmo tempo em que tornaria impraticável uma relação com o outro da diferença, também o impediria de trabalhar. Este narcisismo mortífero impediria então a composição do laço social, já que tornaria impraticável a ação, tornando-a inadequada de acordo com a noção neurótica de tempo: ou tarde demais, ou cedo demais. Neste ponto, reside o mal-estar na atualidade, tal como apontado por Birman (2009, p. 25): "O que justamente caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença radical, já que não consegue se descentrar de si mesma". Este autor caracteriza a sociedade atual de narcisista e denuncia que a realidade do sujeito é especular, em que lhe interessa somente o engrandecimento exagerado da própria imagem.

Neste contexto, a possibilidade da travessia da fantasia revela algo da lógica do que condiciona este mal-estar, a saber, a impossibilidade de o sujeito sair de si para se posicionar com relação aos sentidos propostos pelo outro, ou de se relacionar com os demais de modo que a natureza de seus laços não se reduza ao enredo idiossincrático que precisa ser ultrapassado para que a noção mais geral de intersubjetividade possa ser uma realidade crescente frente ao constante mal-estar na atualidade.

Assim, a travessia da fantasia seria o índice do fim da análise. Nessa perspectiva, a fantasia ocuparia todo o horizonte de investimento teórico da Psicanálise, sendo condição para a reflexão dos elementos nas proposições iniciais relativas aos fenômenos do inconsciente até ser condição da realidade dos laços sociais, passando por se propor como uma manifestação ao ser atravessada, por revelar-se como uma construção. E sendo uma construção é possível gerar outras que possam tornar mais leve a árdua condição da realidade.

 

A função de mediação do conceito de fantasia

A proposição da "realidade psíquica" significou um considerável avanço teórico empreendido por Freud para tentar conciliar clínica e teoria, de modo que a questão do sentido, em jogo em toda a investigação analítica, passasse a ser vista por outra perspectiva, ou seja, pela perspectiva de uma construção de sentido. Enquanto recurso teórico, a "realidade psíquica" abriu espaço para que os acontecimentos pudessem ser relativizados no que eles possuíam de mais radicalmente objetivos, possibilitando um lugar para a reflexão das consequências dos efeitos da subjetividade sobre tais acontecimentos.

Freud percebe os limites impostos pela noção puramente objetiva dos acontecimentos no âmbito de sua clínica. Quando abandona a teoria da sedução, ele, de certa forma, deixa para trás uma noção de acontecimento que pudesse se referir a um fato precisamente circunscrito em algum lugar do tempo e espaço exterior. Este gesto freudiano se dá em função do que ele antevê como recurso de investigação presente na noção de realidade psíquica e na forma como os acontecimentos poderiam ser representados. Nesse momento, o autor já se antecipa às consequências teóricas de se formular uma teoria do psiquismo que tomasse a questão da representação pelo recurso da adequação a algum modelo preexistente na realidade exterior. Assim, propõe a "realidade psíquica" como uma solução para os reducionismos implícitos na perspectiva da adequação entre a representação psíquica e um referente exterior.

Neste sentido, a proposição de uma "realidade psíquica" significou uma ágil ultrapassagem da secular questão filosófica sobre o problema da representação, que desde Platão não encontrava solução no plano da reflexão epistemológica. A maior parte das formulações estava direcionada a um modelo que poderia ser encontrado em algum lugar no exterior. Platão acenava que o lugar da representação era um locus ideal, mas ao forçar sua localização numa exterioridade, impedia que a questão dos limites da linguagem na descrição do mundo fosse subjetivada.

A passagem da semiologia médica para a hermenêutica perpetrada por Freud significou um avanço no plano do sentido. Este agora era referente ao plano psíquico e o problema da representação se reduzia à articulação infindável entre as próprias palavras. Assim, o que é reformulado é o próprio estatuto dos acontecimentos, que deixam de se referir a uma objetividade absoluta, indiscutivelmente localizada num plano exterior para fazer menção aos sentidos construídos pelo recurso da fantasia.

Tem-se assim uma nova teoria do trauma, em que este deixa de ser o ponto fundador de toda produção discursiva, por ser tomado como um acontecimento objetivo crucial que costura os traços psíquicos, para fazer menção a uma questão mais fundamental: o encontro do sujeito com o Real, encontro que se torna possível a partir da função de mediação da fantasia. Nessa perspectiva, a produção de sentido passa a ser efetuada pelo imperativo do desejo inscrito nas cenas fantasísticas, revelando que todo acontecimento possui algo de Real que precisa ser fantasisticamente suportado. As soluções de Freud para dar conta deste aspecto de Real nos acontecimentos foi tomá-lo como um incognoscível kantiano, ou seja, considerar que a realidade é em si incognoscível. Assim, Freud, estabelece uma distinção fundamental entre uma realidade interior e uma realidade exterior.

Partindo de Freud, Lacan avança no sentido de fazer com que toda realidade seja abordada pelo recurso de ser psíquica. O que está em jogo neste avanço são os dois pontos fundamentais deste estudo. O primeiro diz respeito a se postular algo como o Real impossível e suas consequências no sentido de se pensar a realidade. Ou seja, se há uma distância irredutível entre um e outro, entre Real e realidade, então a realidade se configura como uma produção interminável, o que abre espaço para se pensar o dispositivo clínico como lugar da escuta e da construção de sentido. Se o Real é impossível, como postula Lacan, mas e se mesmo assim ele se configura como um registro, ao lado do imaginário e do simbólico, ele só poderia se registrar de forma negativa, justamente pelo que ele não é no plano da experiência subjetiva, a saber, falta absoluta, impossível, gozo absoluto, etc.

O outro ponto fundamental corresponde à função de mediação da fantasia, visto que esta se encontra em meio ao Real impossível e à realidade possível, fazendo face a este impossível ao positivar objetos para dar conta da falta absoluta. O desejo mantém uma relação estreita com a falta ao tornar recorrente o movimento incessante e sempre falhado de tentar suprimir esta falta.

Este ponto ainda se desdobra em outra consideração, que é a que permite associar realidade psíquica e fantasia, a saber, a de que a fantasia é a realidade possível do neurótico. Esta afirmação pode ser ilustrada pelo que Freud (1900/1996) denominou como a via régia do inconsciente: os sonhos. O sonhar é também uma realidade possível para o neurótico, na medida em que as formações da fantasia (Phantasiebildungen) se constituem como sendo o "[...] ponto de partida e matéria-prima do trabalho do sonho e da formação do sintoma, as quais, apesar do caráter altamente organizado, permanecem recalcadas" tal como afirma Garcia-Roza (2004, p. 241).

É o que se pode verificar no capítulo VII de A interpretação dos sonhos, quando Freud (1900/1996) afirma que os acontecimentos psíquicos, mesmo os conscientes, não possuem nada que os possa qualificar como sendo arbitrários. O que é pressuposto nesta afirmação é o fato de haver uma lógica inconsciente. Este pressuposto é corroborado pela existência mesma da censura efetuada pelos sistemas PCs e Cs. O fato de os pensamentos oníricos estarem sujeitos a deformações não significa que seja por eles serem da ordem do não sentido, mas por haver uma forma outra de encadeamento do que se submete à deformação, pois se se tratasse de conteúdos puramente desconexos e caóticos, não haveria motivo para serem distorcidos pela consciência.

Assim, existem elementos para se considerar o sonhar como uma realidade possível para o neurótico por um duplo motivo. O primeiro é bem localizado na metapsicologia freudiana a partir do desenvolvimento do conceito de recalque e os destinos das representações inconscientes. O segundo diz respeito ao fato de que o sonhar se configura como uma possibilidade outra, na qual se vê subvertida a repressão imposta pelo pragmatismo e o automatismo, modos de funcionamento e captura característicos da sociedade contemporânea e determinante na conformação das possibilidades de expressão da consciência. Deste modo, o sonhar se qualifica como uma realidade outra, na qual prevalecem os atravessamentos da outra cena, dispondo o sujeito em sua relação com o Outro como o conteúdo do que é encenado.

Desta forma, o desejo, pelo recurso da fantasia, vai em direção de fazer da falta localizada no Outro um empuxo ao encontro com o outro da cena social, no sentido de este fazer parte do enredo proposto pelo sujeito para dar conta do Real impossível. É por este recurso que a fantasia é a realidade possível do neurótico, justamente por acenar que o laço social é uma captura do outro num modo de relação que faz menção constante às primeiras experiências de satisfação, que passariam a ser alucinadas, sonhadas e fantasiadas. E aqui se encontra o ponto de báscula em que a fantasia é tomada no dispositivo analítico como um processo a ser ultrapassado, pois do contrário, as relações do sujeito são reduzidas aos efeitos de um narcisismo mortífero em cena no mal-estar na atualidade.

Estes pontos fundamentais são desdobrados em consequências diretas para que fique claro o papel de mediação do conceito de fantasia. A primeira consequência diz respeito ao fato de que a realidade é oriunda de um movimento da fantasia de fazer face ao Real, que por sua vez gera representações para dar conta do sem sentido em jogo. A segunda consequência tem relação com o fato de o princípio de realidade estar a serviço do princípio do prazer, o que justifica a ampliação do alcance da fantasia no plano exterior, sobretudo, no plano das relações, justificando também a ação do enredo fantasístico ao qual tem de se submeter o outro da cena social para que seja encenada a relação. A terceira é referente à constatação de que os laços sociais, na experiência subjetiva do neurótico ao menos, são enquadres fantasísticos. Sendo assim, justifica pensar o alcance que poderia haver na proposta de travessia da fantasia fundamental como recurso frente ao mal-estar contemporâneo.

Se a experiência clínica aponta para o fim da análise como possibilidade de ocorrer uma destituição subjetiva e os laços poderem ser compostos a partir das diferenças em jogo, outras soluções, exteriores ao dispositivo analítico, não passam despercebidas. Soluções como o amor e o trabalho se configuram como ações impraticáveis na realidade do sofrimento neurótico. A experiência do amor, por exemplo, implica uma destituição subjetiva na medida em que leva o neurótico a reconhecer o ponto por meio do qual a falta passa a ser subjetivada e a completude fálica deixa de ser o aspecto mais importante de sua vida. Portanto, da realidade psíquica à composição do laço social, a fantasia ocupa um amplo horizonte de investigação da Psicanálise, desde o início, como conteúdo da realidade psíquica, até como condição a ser ultrapassada, para que o enredo que submete o sujeito e o outro da cena social à servidão voluntária seja reconhecido pelo viés de perceber no desamparo constitutivo um empuxo ao encontro com o outro no que este possui de mais estranho e familiar.

 

 

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Endereço para correspondência:
Mardem Leandro
e-mail: mardemls@yahoo.com.br

Daniela Paula do Couto
e-mail: dp.couto@yahoo.com.br

Maria dos Anjos Lara e Lanna
e-mail: zanjalara@pucminas.br

Tramitação: Recebido em 22/10/2012
Aprovado em 13/02/2013

 

 

* Psicólogo, mestrando/Departamento de Psicologia/Universidade Federal de São João del- ínica Psicanalítica
** Psicóloga, mestranda/Departamento de Psicologia/Universidade Federal de São João del- Rei, integrante da Linha de Pesquisa Conceitos Fundamentais e Clínica Psicanalítica
*** Psicóloga, cientista social, doutora em Linguística/Universidade Federal de Mina Gerais, estágio sanduíche na Université de Genève – Diplôme d'Études Approfondis em Linguistique, profa. Pontifícia Universidade Católica - Minas Gerais, líder do ções Interdisciplinares/CNPq
1 Informação retirada da nota 1 da página 644 de A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1996).