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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

Conferência

A dor (ou o gozo) de existir*

 

 

Fernando Coutinho Barros**

Escola Brasileira de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 

Sendo decorridos mais de cem anos da invenção de Freud, ainda há em nossos dias e mesmo em nossa profissão, quem não dê a devida importância à linguagem e à fala como vetores de nossa alegria ou tristeza, nosso prazer ou sofrimento enfim, nossas experiências de seres humanos.

Não dando a devida importância à fala, esquecemos que somos todos, pelo menos no Ocidente, filhos da Torá ou do Novo Testamento, os textos sagrados que nos ensinaram desde sempre que somos seres criados pela palavra.

O evangelho segundo São João, primeiro livro do Novo Testamento, começa assim: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus."

Com pequena diferença, o Gênesis, primeiro livro do Pentateuco, um dos cinco livros que compõem a Tora, também se inicia com Deus criando com sua palavra, a partir do nada, todas as coisas e seres existentes.

Esse é o início da história do nosso pensamento, isto é, todas as coisas que existem foram criadas a partir do nada, a partir do Verbo, da palavra de Deus, o Ser supremo que assim se definiu para Moisés, ao entregar-lhe as taboas da lei, face à sarça ardente: "Eu sou o que sou", isto é, o único ser que se define por si mesmo, que prescinde de qualquer atributo de existência.

Apesar dessa herança cultural, que nos define desde sempre como seres de fala, não nos é nada fácil adequar essa existência virtual ao real de um corpo biológico, fisiológico, orgânico.

E é essa inadequação que vem se traduzindo ao longo dos séculos sob a forma de uma dor de existir, de um sofrimento existencial. Foi visando tratá- -la, apaziguá-la, que Freud inventou um laço sui generis, a psicanálise, que nos mantém hoje aqui reunidos.

Ao longo desses séculos que precederam Freud, o homem tem atribuído as mais diversas causas a seu sofrimento moral.

Remorso, culpa, abandono pelo ser amado, falta de dons materiais, de atributos físicos ou intelectuais, desencontros de toda sorte, etc., eram alegados como impeditivos do bem-estar do homem, para não dizer da sua felicidade.

Diferentemente de outros seres vivos, animais ou vegetais, que têm um mundo ao qual se integram perfeitamente (salvo, claro, alguns animais domésticos, que padecem dos efeitos de fala de seus donos), o homem não tem um mundo, ele está no mundo, desprovido de qualquer saber prévio que lhe permita sobreviver como indivíduo e reproduzir-se como espécie. É esse estado que Freud definiu como o estado de desamparo do ser humano.

Em 1929, tendo já escrito o mais importante de sua obra, Freud nos lega uma espécie de testamento, sobre o que aprendera com a escuta dos seus pacientes e a leitura que pudera fazer da nossa condição humana. O mal estar na civilização pode ser lido por nós como um verdadeiro tratado sobre a impossibilidade do ser humano de ser feliz.

"Não é possível nos defendermos da impressão de que os homens se enganam, geralmente, em suas avaliações. Ao mesmo tempo em que se esforçam em adquirir para si o gozo, o sucesso ou a riqueza, ou que admiram isso nos outros, subestimam os verdadeiros valores da vida." 1

Um pouco de história.

Freud foi médico, antes de tornar-se o primeiro analista da série da qual fazemos parte. Como médico, foi impregnado do espírito científico de sua época, foi impregnado do positivismo do final do século XIX. Porém, ainda assim ousou romper com as certezas dessa corrente do pensamento ao fazer pouco caso da anatomia que, como Foucault nos ensinou no Nascimento da clínica2, estava nos fundamentos da medicina moderna.

Contrariamente a seus colegas de profissão, Freud ousou situar a dor do ser humano fora de qualquer substrato orgânico. Ouvindo a queixa de suas histéricas, soube que elas localizavam o sofrimento de que se queixavam em outro corpo que aquele da ciência, no qual não se encaixavam, não se adequando ao organismo dos anatomistas.

Ouvindo essas queixas, o pai da psicanálise interpretou a dor desses acontecimentos de corpo, transformando-os em relato, transformando-os em um discurso que nomeou romance familiar.

Para tanto, além de precisar inventar um outro corpo, onde localizar essa dor, para a qual a medicina não tinha remédio, inventou também um vínculo social inédito, que chamou de transferência e que se destinava a tratá-la.

Precisou também criar uma tópica (um espaço virtual) onde pode localizar esse discurso que estava por trás do que era falado, do que era dito pelo paciente em sofrimento. A esse espaço, por ele inventado, deu o nome de inconsciente. A escolha talvez não tenha sido das melhores, uma vez que essa palavra, além de já existir na literatura com um sentido bem definido, comportava um aspecto negativo que se opunha à função basicamente positiva e ativa, no que diz respeito à produção de efeitos.

Estou repetindo o que todos nós aqui presentes estamos cansados de saber, pois trata-se do nosso "B A BA". Trata-se, entretanto, de uma repetição necessária para abordar a questão que a Comissão de Formação Permanente do Círculo propôs como tema de trabalho para o ano de 2012: A dor de existir.

Para construir seu monumento conceitual e sua prática, Freud, além de ter criado um novo corpo e um novo discurso, criou também um mito, o seu mito, como ele carinhosamente se referia ao instrumento de seu trabalho. Criou o mito da pulsão, energia mental, inspirada no conceito de energia física, elemento da termodinâmica, mas que a ela não se adequava.

No esforço por tornar "científico" o campo de saber que ele desbravava, serviu-se também da noção de aparelho, de máquina movida a energia, para dar conta desse Outro, familiar e estranho, que é encarnado pelo nosso organismo. Esse Outro que dá forma e consistência a nossa existência.

Freud poderia ter falado em sujeito, conceito já estabelecido pela filosofia e literatura de sua época, mas preferiu falar em aparelho, para se manter fiel a seu ideal científico e seu desejo de incluir, no domínio da ciência, o campo de saber que desenvolvia dia a dia. Sendo assim, o ser humano freudiano, como as máquinas da termodinâmica, tem o seu funcionamento garantido por uma energia que ele chamou de psíquica e posteriormente de pulsional. Porém, assim como todas as máquinas, o aparelho freudiano às vezes falha, funciona mal, alterando o seu produto final, que deve ser o prazer, o bem-estar.

Como todo gênio, entretanto, Freud não se limitou a navegar sempre nos mesmos mares, trocando de vez em quando as águas da ciência para se aventurar nas das artes e das letras, de onde vai extrair o estofo imaginário com o qual vai humanizar seu aparelho de prazer, quando funciona bem, ou de desprazer, quando falha. Essas falhas se localizam, via de regra, na própria construção do aparelho, aparelho de memória, como foi denominado no Projeto, aparelho constituído por traços, marcas de experiências vividas pelo indivíduo, que depende da interpretação que faz da realidade sensorial (sobretudo do que ouviam), na qual se insere

Deixando temporariamente de lado a termodinâmica, criou um novo mito, cuja inspiração foi buscar na Grécia clássica, de onde trouxe o relato de uma história trágica, tomando-a como modelo imaginário, bem mais adequado que o modelo da física (o do Projeto), para dar conta das experiências de prazer ou de sofrimento do ser humano.

A tragédia de Édipo passou, então, a ser universalizada como modelo de desenvolvimento da alma freudiana.

Nesse novo modelo, a mãe é colocada no centro da construção dramática, como o objeto primordial de satisfação pulsional. Sendo esse objeto passível de três destinos: ser perdido para sempre, permanecer idêntico ao Outro que o constituiu ou tornar-se objeto de satisfação desse Outro.

Uma vez perdido, esse objeto faltante pode se deslocar para outros objetos, tornados assim desejados como objetos substitutos. A experiência da perda, entretanto, se arrastará ao longo da vida, como experiência de sofrimento, de incompletude, de insatisfação, etc.

São essas as três saídas, concebidas por Freud como processo de humanização; porém, todas as três comportam em si um mal-estar, todas as três comportam em si um sofrimento.

Essas três saídas (neurose, perversão e psicose), referentes ao complexo de Édipo, comportam invariavelmente um saldo de sofrimento.

Foi com essas invenções que Freud compôs sua obra e refinou sua prática, da qual somos todos herdeiros.

Era com esses elementos que o analista freudiano operava, interpretando o discurso de seus pacientes e essa interpretação produzia efeitos de cura, de desaparecimento dos sintomas.

A interpretação das chamadas formações do inconsciente (sonhos, atos falhos e sintomas) produzia uma disjunção entre os componentes de prazer e de desprazer nelas presentes e o paciente ficava, além de aliviado, mais apto para o amor, para o sexo e para o trabalho, e mais apto à sublimação, destino pulsional apontado por Freud, como sabemos, como indício de cura, indício de final de análise.

Apesar do sucesso desses primeiros anos da psicanálise, que a partir de 1910 ultrapassaram o âmbito do seu local de origem para ganhar o mundo, a prática terapêutica esbarrou num considerável obstáculo, detectado por Freud por volta dos anos vinte.

Foi quando Freud, abatido pelos horrores da primeira grande guerra, na qual sofreu importantes perdas de familiares, constatou com tristeza e coragem que a psicanálise que ele inventara se deparava com um obstáculo significativo, aparentemente inexpugnável.

Os sintomas neuróticos, uma vez interpretados, não desapareciam. Os sofrimentos dos pacientes não somente persistiam como, algumas vezes, eram até ativamente procurados por eles.

Com honestidade e bravura, ele constatou, então, que havia, no funcionamento da mente humana, algo que ia além do seu princípio do prazer, que resistia à cura e se comprazia com o sofrimento.

Nomeou essa nova força (ou energia psíquica), que resistia ao sentido produzido pela interpretação, de pulsão de morte. Também não foi uma boa escolha de nome, como ele mesmo reconheceu. Para conceituar essa nova pulsão, inspirou-se em pesquisas biológicas da época que apontavam para a imortalidade da substância viva dos seres como algo imortal, desde que não fosse perturbada por elementos deletérios que produziam a morte.

A descoberta dessa "pulsão demoníaca" não desanimou Freud, mas o levou a construir uma nova tópica para o seu aparelho mental.

Desenvolveu o conceito de super eu (até então embrionário), ampliou o conceito de eu e instituiu o isso, como instâncias psíquicas. Essa última instância o ajudou-o a pensar os impasses da clínica, uma vez que nela situou sua recém descrita pulsão, responsabilizando-a pelos fracassos da clínica, sob a forma de viscosidade da pulsão, reação terapêutica negativa, etc.

Iniciava-se então a elaboração do Mal-estar civilização e de Análise terminável e interminável.

Com a elaboração da pulsão de morte, tornou-se cada vez mais pessimista em relação a um possível final de análise, preconizando, mesmo para os analistas, a volta ao divã a cada cinco anos. As análises eram infinitas porque os analistas não sabiam como tratar, clinicamente, dois grandes obstáculos: o rochedo da castração e a inveja do pênis, que hoje poderíamos reduzir a um só, comum a homens e mulheres: a recusa do feminino.

Foi nesse impasse do final das análises que Freud localizou o impossível da psicanálise, a fonte inesgotável do sofrimento humano, que viria a ser desenvolvido posteriormente por Lacan, adquirindo o estatuto de conceitos: o real e o gozo.

É bem verdade que, desde que se dispôs a acolher as queixas de suas histéricas, desacreditadas, tratadas como farsantes e mentirosas pelos outros médicos, desde o momento em que decidiu acreditar em suas verdades (mesmo quando mentirosas), desde o momento em que decidiu privilegiar, não o que diziam, mas o que não diziam, o que ficava esquecido por detrás dos seus ditos, o que desejavam dizer mas que calavam, Freud entrou em contato com o real sofrimento dos seres falantes. E até o final de sua obra não tratou de outra coisa, mas privilegiando a questão do sofrimento em três momentos: Além do princípio do prazer, Análise terminável e interminável e o Mal-estar na civilização. Esse último, um poderoso texto de 1929, de grande alcance clínico. Este vigoroso texto discorre abertamente sobre o sofrimento humano e os fatores impeditivos da conquista da felicidade pelos seres humanos. Ao longo do texto, discorre corajosamente sobre a religião como ilusão e sobre os fundamentos da nossa civilização. Discorre sobre o preço que pagamos (o recalque) para com isso garantirmos a permanência das nossas instituições, que vão possibilitar o convívio entre os homens, a reprodução, etc. Não se mostrava nada otimista, entretanto, no que dizia respeito ao futuro da humanidade fora das saídas neuróticas ou sublimatórias. Mesmo no que diz respeito à sublimação, no seu texto, legítima é apenas a saída pela ciência ou pelas artes, não deixando nenhum espaço para outras invenções, tão importantes nos nossos dias. A sublimação, para Freud, está a serviço dos valores tradicionais da cultura.

Porém, apesar das críticas que hoje podemos fazer a algumas ideias de Freud, contidas no texto, trata-se de um belíssimo e valioso guia para lidarmos com alguns problemas clínicos da nossa contemporaneidade, como o problema das compulsões e das adições.

Seguindo criteriosamente os passos de Freud, Lacan foi além dele em alguns pontos, dos quais destacarei apenas os que hoje nos interessam, para tratar da questão do ser e do existir, na ótica da dor e do prazer.

Como eu disse anteriormente, Freud não explorou a questão do sujeito do inconsciente, porém nos deixou várias pistas, ao longo de sua obra, para que o fizéssemos. Lacan não se privou de se servir delas.

O que mais se aproxima, em Freud, do sujeito do inconsciente é a sua noção de um eu dividido. Há uma fenda no eu, que não cessa de aumentar ao longo da vida, afirma ele num de seus últimos trabalhos. Em O eu e o isso, defende também a ideia de que o eu é dividido, parte do mesmo está localizado no consciente e parte no inconsciente.

Sim, foram essas pistas que Lacan seguiu, para chegar perto, nos últimos anos do seu ensino, do que pode ser pensado como o ser e a existência, conceitos que nos enviam imediatamente à ontologia, desembocando inevitavelmente na questão do Um e do Outro; questões filosóficas, porém de grande utilidade no manejo da clínica psicanalítica e de difícil teorização.

Em Lacan, desde o Estado do espelho (1936), encontramos a presença de um sujeito, embora não se trate ainda do sujeito dividido pelo significante ou pelo objeto de seminários bem posteriores.

De forma simplificada, podemos dizer que um sujeito lacaniano, alienado ao significante, vem tomar o lugar do sujeito freudiano, que se manifesta nas formações do inconsciente, a começar pelos sonhos com os seus personagens, definidos pelo próprio Freud como seres precários, aspirantes à realização de um desejo, que poderíamos traduzir como um desejo de existência. Trata-se, na verdade, de seres frágeis, evanescentes, de vida curta, que duram muitas vezes apenas o breve instante de uma lembrança.

Em seguida, os atos falhos, da mesma forma que os chistes, também revelam um sujeito efêmero, dizendo ou fazendo o que não queria dizer ou fazer.

Em terceiro lugar, como sujeito mais persistente, de mais longa duração (muitas vezes existindo durante toda vida), Lacan vai apontar, em Freud, um sujeito que é revelado pelos sintomas.

Essas três versões de sujeito são, na verdade, versões de seres de linguagem, que comportam e condensam em proporções diversas, satisfações pulsionais conflitantes, que se manifestam, ora sob a forma de prazer ou desprazer, ora de alegria ou tristeza, ora de bem-estar ou de mal-estar. Esses sujeitos, de que tratamos na psicanálise, são na verdade seres produzidos pela fala e que dão consistência lógica a nossa existência, nossa experiência humana. Quanto mais consistente for esse sujeito dividido do sintoma, esse sujeito alienado pelo significante, ou identificado a uma imagem, mais tênue será sua capacidade de usufruir conscientemente de sua existência, de gozar da substância viva do seu corpo imaginário.

Freud, ao longo de sua obra, não chegou a conceituar claramente a noção de gozo da existência, quer no seu aspecto positivo, do prazer, quer no aspecto negativo da dor, do sofrimento. Não fica claro na obra que ele nos legou, quem padece ou usufrui prazerosamente ao assumir o aspecto de um ser de consciência, de um sujeito identificado a uma forma (uma imagem de corpo), ou uma ideia, uma função (um significante enigmático). O que mais se aproxima em Freud da noção de um sujeito é a instancia psíquica estabelecida por ele como o eu.

Por outro lado, ao longo do seu ensino, Lacan empenhou-se, justamente, em definir o que os pensadores tentaram definir como um ser humano, inteiramente diferente dos demais seres da natureza, por ser dotado de consciência e de fala. E foi por tentar definir esse ser, sujeito da linguagem, dotado de uma fala que lhe é própria, que durante mais de trinta anos, ao realizar o que definiu como um ensino, que Lacan precisou desenvolver três noções, segundo ele necessárias para dar conta da experiência humana, traduzir o gozo da existência. Erigiu três conceitos que passaram a funcionar como os três pilares de sua construção teórica: o imaginário, o simbólico e o real.

O real lacaniano, talvez tenha sido a criação mais verdadeiramente sua, sua maior contribuição para se aproximar do incognoscível, do contingente, do impossível, a consistência lógica indispensável ao enlaçamento das outras duas consistências (imaginário e simbólico).

O simbólico é a fala propriamente dita, com um papel relevante na criação das funções e instituições que regem as relações humanas.

O imaginário, como o próprio nome diz, que é responsável pelo universo do sentido, pelo mundo das aparências, por tudo aquilo que pode ser visto, diferentemente do real e do simbólico que escapam à percepção. É o imaginário que dá sentido ao sem sentido do significante, ao sem sentido do símbolo verbal. Pode ser mesmo pensado como o significado dos significantes. É com o imaginário que as relações humanas fundadas pelo simbólico são tecidas.

É com o imaginário que é possível construir o mundo visível no qual vivemos, construir nossa realidade, nossas relações afetivas.

É o imaginário que dá uma forma ao objeto faltante do nosso desejo, objeto da demanda que fazemos ao Outro.

Talvez tenha me detido um pouco mais do que gostaria, na apresentação da tríade de elementos lacanianos, para poder apresentar agora a questão do gozo, da experiência de usufruto da existência por um ser falante, dotado de um corpo imaginário, encarnado num organismo vivo.

De acordo com Jacques-Alain Miller, em Experiência do real no tratamento psicanalítico3, o ensino de Lacan pode ser entendido como a doutrina do gozo.

Nos primórdios do seu ensino, Lacan, seguindo os passos de Freud no que diz respeito ao narcisismo e à função do eu na economia pulsional, propôs o tratamento psicanalítico do gozo pela sua imaginarização, pela interpretação da contradição da satisfação pulsional nas formações do inconsciente (sonho, ato falho e sintoma). O prazer pulsional precisava ser desvinculado do seu componente superegoico (edípico), do sofrimento contido no sintoma, para que a pulsão pudesse se satisfazer livremente.

Trata-se do seu chamado ensino pré-estruturalista, que corresponde ao Estado do espelho e aos Complexos familiares. É nesse período que Lacan introduz o simbólico (a fala) como a dimensão eminente da experiência analítica, a subjetivação dos fatos e acontecimentos da vida. O analista decide sobre o sentido do que é dito pelo analisante, ouvindo, pontuando e interpretando, reduzindo assim o sofrimento do analisante. Nesse período, o gozo é visto como a satisfação imaginária a ser reduzida pela interpretação simbólica. Nada diferente do que era proposto por Freud, que com suas interpretações visava diminuir o sofrimento (o gozo) dos seus pacientes.

Num momento seguinte, ele vem a reconhecer que o imaginário é o gozo que escapa ao simbólico e que resiste à interpretação. O imaginário está assim a serviço do sintoma, contra a cura e precisa ser interpretado.

É aí que vai surgir um sujeito simbólico, capaz de metáforas e metonímias, regulador de um gozo puramente imaginário, suscetível ao prazer.

O analista se propõe então a conduzir o tratamento do analisante, se propõe a levá-lo a fazer a passagem da demanda ao desejo, do imaginário ao simbólico, aumentando assim a satisfação da pulsão de vida e limitando a da pulsão de morte, para falar em linguagem freudiana.

No momento seguinte, vai reconhecer como desejo a identificação a um determinado significante, porém, mesmo assim, a satisfação completa só seria possível pela transgressão. O gozo passa a ser visto por ele como real, como equivalente ao encontro impossível com a Coisa freudiana, com Das Ding.

Resta ao ser humano, então, usufruir de um suplemento, de um resto que jamais será capaz de lhe proporcionar um prazer completo. O lugar que seria o da coisa passa a ser visto como um lugar vazio, impreenchível. Recorre a Freud, para demonstrar que esse gozo absoluto, transgressivo, é um gozo de morte, um gozo além do princípio do prazer. O princípio do prazer funcionaria, então, como uma barreira erigida contra um gozo excessivo. O sintoma é visto como uma defesa contra esse excesso, uma defesa contra o gozo mortífero.

Na etapa seguinte, que corresponde a seu Seminário XI, Lacan vai, praticamente, normalizar o gozo, com a valorização dos objetos (a) como causa de desejo. Além desses objetos "naturais", extraídos do corpo (seio, fezes, voz, olhar e mesmo o vazio do objeto fálico), os objetos construídos, os objetos de arte, de sublimação funcionam como causa de desejo. Ironicamente, Jacques-Alain Miller chama esse momento do ensino de Lacan do momento do gozo normal. É o momento da alienação e da separação. O ser humano goza do (ou dos) significantes que o representam, da mesma forma que do objeto com o qual se identifica, na medida em que tanto o significante quanto o objeto restabelecem, de certa forma, o furo deixado no Outro, de onde provém o sujeito.

Em seguida, Lacan, ao desenvolver os seus quatro discursos, dos quais o da psicanálise é o avesso do discurso do inconsciente, já afastado do estruturalismo, vai enfatizar a própria fala, o próprio discurso, como gozo, desvinculado do sentido. É o gozo do blábláblá, da fala que não serve para a comunicação, apenas para fazer o sujeito gozar. Do ponto de vista de sua prática, é quando começa a encurtar cada vez mais a duração das suas sessões, uma vez que a conhecida "elaboração" realizada pelo analisante estava mais a serviço da defesa, da resistência à análise, da produção sem limite de sentido, do que a serviço da cura. A produção excessiva de significantes falha na sua função de representação do sujeito, ampliando o vazio sobre o qual se assenta, ampliando o mal estar, a angústia, o sofrimento.

No final do seu ensino, Lacan se afasta ainda mais da questão do significante, tão decisiva na primeira parte desse ensino, para dar maior ênfase ao corpo, como suporte da substância viva do sujeito. Deixa mesmo de lado o sujeito do simbólico, passado a se referir aos seres humanos como "parlêtres", como seres falantes ou falaseres (como foi traduzido em português).

Sem dúvida, esse rebaixamento do valor da fala, reduz também a importância do Outro, como algo prévio ao sujeito, como tesouro dos significantes, como agente primordial do simbólico.

Nesse derradeiro ensino não se trata mais do gozo da falação, do blábláblá, da fala que não se presta à comunicação. Trata-se do gozo do balbucio, do gozo da lalíngua (lalangue), espécie de língua natural, prévia à língua aprendida, língua recalcada, mas que tende a vencer a barreira do recalque, tal como um sintoma, para se imiscuir no discurso do ser falante, sem a menor finalidade de conectá-lo com o Outro, seja o Outro sexuado, ou qualquer das manifestações desse Outro.

Essas intuições lacanianas, que foram bastante rejeitadas mesmo pela comunidade lacaniana, como o foi a noção de pulsão de morte pelos analistas contemporâneos de Freud, traz consequências, tanto para a prática da psicanálise quanto para a compreensão do mal-estar do sujeito contemporâneo, cada vez mais desvinculado do Outro.

Gozar, imediatamente, a qualquer preço e de qualquer maneira, prescindindo do Outro para isso, rompendo os vínculos existentes e não construindo novos.

A tradição, os valores institucionais baseados na aplicação na civilização e nas culturas da função paterna freudiana, do nome do pai lacaniano, cedem lugar à reivindicação de direitos de gozo, dos mais legítimos aos mais estapafúrdios. Estamos na era das comunidades de gozo, mais a serviço da segregação que da integração.

Estamos vivendo o tempo das invenções (novas famílias, novos vínculos humanos, etc.). Não há por que rejeitá-los incondicionalmente, porém, é preciso estar atentos ao que possa ser aproveitado deles.

A psicanálise, na sua prática, não pode se recusar a refletir sobre essas questões de nossa contemporaneidade, em cujo centro está o gozo, no que ele tem de mortífero, de compulsivo (como nas mais diversas adições, às drogas, ao sexo, à comida, ao trabalho, etc.).

Nos últimos anos de ensino, Lacan valorizou justamente a questão da invenção, como um possível tratamento do mal-estar, do gozo mortífero, das compulsões. Chamou essa saída da saída pelo sinthoma, que guarda em si uma possibilidade de conciliação entre o ser e o existir, entre o Um e o Outro, mas deixando uma porta entreaberta para um possível de gozo do Um sem o Outro, desde que seja preservada a possibilidade de estabelecer laços com os semelhantes, bem como com o Outro sexuado.

Tomou como parâmetro para essa saída, como sabemos, a invenção de Joyce, mas, evidentemente, não espera que tenhamos a genialidade do grande escritor que ele foi para inventarmos nossas saídas criativas.

Gostaria de finalizar essas reflexões, não com uma vinheta clínica, para não correr o risco de identificar nenhum analisante, mas com um personagem de um filme que foi exibido recentemente em nossos cinemas. O título do mesmo é bastante sugestivo e por isso mesmo nem foi traduzido em português. Trata-se de Shame.

Brandon, o protagonista do excelente filme dirigido por Steve McQueen, representa com requinte de detalhes as nuances do mal-estar desse sujeito dos nossos dias. Bem sucedido profissionalmente, jovem, bonito, morando numa das cidades mais sofisticadas do nosso mundo globalizado, Nova York, tenta extrair do seu corpo um gozo que Lacan classificaria, sem dúvida, como o gozo do idiota, o gozo auto-erótico do masturbador contumaz.

A primeira cena do filme o apresenta numa cama, semi-descoberto, com uma das mãos debaixo do lençol, sugerindo o final de uma cena de onanismo. Ao levantar-se para o banho, demonstra total indiferença a uma voz de mulher emitida por uma secretária eletrônica, que ansiosamente lhe pede que a atenda. Muitos de vocês devem ter visto o filme, não vou contar o drama do personagem ao longo da trama, que realmente merece ser vista.

O vazio da vida do personagem está presente em todas as cenas do filme, seja no trabalho, na consulta compulsiva aos sites pornográficos do computador, nos contatos furtivos e frequentes com mulheres (nunca as mesmas!), nos encontrões com a irmã.

Brandon é cínico, sabe que o Outro não existe, sabe que a relação sexual não existe, sabe que o corpo goza e repete compulsivamente atos masturbatórios, na solidão dos banheiros, na cama com as mais diversas mulheres (muitas delas, garotas de programa), e até mesmo com outros homens, numa boate gay.

Inadequado à cidade em que vive, mas na qual não nasceu, inadequado ao trabalho que nada significa para si, inadequado ao jogo do amor, onde é sempre necessário fazer-se um pouco de tolo, inadequado aos laços familiares, etc.

Em duas cenas, ao longo do filme, fraqueja, vislumbra um possível encontro e isso o derruba, desfaz sua camada protetora de gelo afetivo: ao ouvir a irmã cantar num bar e ao ter um "encontro amoroso" com uma colega de trabalho. Ao ouvir a irmã cantar, deixa escapar uma lágrima, que logo enxuga e ao encontrar-se com a colega, broxa, para logo em seguida chamar uma prostituta com quem consegue realizar seu ato masturbatório na presença de um outro.

A arte torna a ficção mais verossímil que a própria realidade, sem dúvida. Entretanto, em reuniões com amigos, no trabalho ou no consultório, cada vez mais tropeçamos em Brandons.

Por isso mesmo, nossa responsabilidade como analistas é grande. Não dá para recuar, quando somos procurados por alguém como ele e, cada vez mais, esses são nossos pacientes. Não dá para recusar ao pedido de ajuda do sujeito desbussolado e solitário dos nossos dias e que muitas vezes, como um último recurso, bate à nossa porta.

 

 

Endereço para correspondência:
Fernando Coutinho Barros
e-mail: barros-fc@uol.com.br

 

 

* Esta conferência fez parte do Ciclo de Conferências 2012, tendo ocorrido em 03/10/2012.

** Psiquiatra, psicanalista, especialista em criança e adolescente no Centre de Santé Mental Infantil du XIIIeme de Paris (1969/1972), mestre em Etno-Psiquiatria na École des Hautes Études/Paris (1971/1974), membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP).

1 FREUD, S. Malaise dans la civilisation. Paris: PUF, 1971, p. 5 (tradução livre do francês feita pelo autor).

2 FOUCAULT, M. Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1963.

3 MILLER, J.-A. La experiência de lo real en la cura psicanalítica. Buenos Aires: Paidós 2003. p. 221.