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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

Artigos

O caso Valkiria R.

 

Valkiria R.: a case study

 

 

Francine Simões Peres*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Tendo por base uma história verídica, relatada na peça O caso Valkiria R., o objetivo do artigo é pensar algumas das possíveis formas de conversão da dor psíquica em dor física que, apesar do avanço da medicalização, se fazem presentes em queixas recorrentes. É feito um recorte nas teorias de Sándor Ferenczi e Donald Winnicott, com destaque para a importância do corpo e da regressão na cena clínica, considerando-se a possibilidade de estar e de 'sentir com', no intuito de amenizar o sofrimento daquele que busca auxílio.

Palavras-chaves: Dor, corpo, clínica e regressão.


Abstract

Based on a true story reported in the play "O caso Valkiria R.", the aim of this paper is to have a reflection about the possible ways of conversion from psychic pain into physical pain, which are present in recurring complaints, in spite of the advances in modern medicine. The idea is to approach the theories of Sándor Ferenczi and Donald Winnicott, particularly when they discuss the importance of the body and of regression in the clinical setting, considering the possibility of 'being with' and 'feeling with' as intended to relieve suffering of the one who seeks help.

Key-words: Pain, body, clinic and regression.


 

 

O caso

A questão abordada na peça 'O Caso Valkiria R.', de autoria de Claudia Süssekind, se desenrola entre as décadas de 1940 e 1980, e diz respeito à história da paciente homônima1, que sofre de dores físicas e recorre a um tratamento psicanalítico, já que outros médicos não conseguem detectar as suas causas nem amenizar o seu sofrimento, mesmo com o uso de medicamentos: "não existe remédio para mim", dirá a paciente.

Valkiria inicia a primeira cena com a seguinte frase, ensaiando, sem êxito, escrever o seu livro:

Minha antiga cidade tinha um céu cor de chumbo e os mais longos invernos de minha memória... Noites frias... As luzes apagadas no antigo casarão... Os fantasmas à espreita... Tento em susto e em sobressalto encontrar uma porta... As portas estão trancadas... Não me escuto, não te escuto... Onde estão as palavras que podem me acalmar??!

A cena se transporta imediatamente para o consultório de Dr. Goldstein, o psicanalista, a quem Valkiria pede socorro e começa a relatar as suas queixas. Valkiria sofre de dores insuportáveis nas articulações, que parecem ser decorrentes de reminiscências de sua infância, pois seus exames clínicos se mostram sem nenhuma alteração.

A história da paciente foi marcada pela perda da irmã mais velha, Violeta, que morreu precocemente, aos sete anos, de pneumonia, quando sua mãe ainda estava grávida de Valkiria. Nessa época, ainda não existia antibiótico. Não conseguindo se recuperar, a mãe entra num estado melancólico e não se atenta para o mundo dos vivos. "Ela não me via", ressalta Valkiria.

A mãe, Gardênia, cria uma fixação pela filha morta, espalhando fotos dela por toda a casa, obstruindo a sua capacidade de brincar, de transmitir afeto, carinho e segurança para as outras filhas: além de Valquíria, havia a caçula que se chama Vitória. Esta, por sua vez, sempre se (pre)ocupou com os problemas de Valkiria, destinando grande parte de seu tempo para tomar conta dela, tornando- se quase uma mãe. Acompanhava a irmã em quase todas as consultas. Nas suas palavras, "eu prometi nunca te deixar sozinha. E nunca te deixei. Quem foi que te acompanhou por toda a sua vida? Dias e noites ao seu lado (...) E agora, não sei pra onde ir."

No consultório, o psicanalista se coloca disponível para trabalhar uma lacuna afetiva, segundo Ferenczi, os brancos psíquicos - dos quais falaremos na sequência - sentidos por sua paciente que se tonalizam sob a forma de dor, e, concomitantemente, de um grau de hipocondria: "Doutor, esse mal que me ataca o corpo, pode atingir o coração? (...) Vou morrer?", pergunta a personagem num tom fatalista. Seu diagnóstico se aproxima daquele relatado em 'Psicanálise de um caso de hipocondria histérica', por Ferenczi:

Suas queixas consistiam em sensações corporais hipocondríacas, às quais se associava a uma angústia da morte. Sentia uma coisa na garganta (...), o coração palpitava, etc. Em todas as situações desse gênero, razão pela qual a paciente observava-se ininterruptamente, ela via um sinal de sua morte próxima (...) (FERENCZI, 2011, v. 3, p. 67-68).

No decorrer do tratamento, as dores pioram ainda mais e a sua dificuldade de caminhar é tamanha que Valkiria passa a usar muletas. Uma espécie de efeito homeopático se dá exacerbando o sintoma, mas, que, no entanto, caminha em direção à cura. Ou, melhor dizendo, a partir da experiência de estar sendo cuidada pelo analista, Valkiria (re)experimenta e encara com outras lentes as origens de sua sintomatologia, proporcionando-lhe novos contornos.

"Não existe nenhuma doença orgânica", registra Dr. Goldstein em seu gravador, "o que a paciente teve foi um esgotamento psíquico por estarmos mexendo em situações muito estressantes. Provavelmente, a carga emotiva foi muito intensa e parte dela foi deslocada para o corpo."

Tudo indica que a dor foi uma maneira que Valkiria se virou para dar continuidade à sua existência e não perder a conexão com o próprio corpo. O seu processo de personalização é colorido e comprometido em função deste (não) olhar da mãe. A dor sofrida por Valkiria é um SOS, como diria Winnicott, um sentido de esperança e de socorro; uma forma de não entrar em nenhum colapso, ou ainda, uma proteção frente às suas angústias impensáveis.

"Personalização é uma palavra que pode ser empregada para descrever a conquista de uma relação íntima entre psique e corpo (...); o ego é essencialmente um ego corporal, isto é, não uma questão de intelecto" (WINNICOTT, 1990, p. 201, grifos nossos).

Se Valkiria nasceu num ambiente congelado pela situação da perda, desde muito pequena, antes do advento da fala, sentiu em seu próprio corpo o espelho opaco do olhar da mãe que não se fazia presente, embora estivesse lá. Nesse estágio de amadurecimento, Valkiria ainda não tinha palavras para dizê-lo, somente afecções ou, segundo Daniel Stern, afetos de vitalidade. Os afetos de vitalidade são sensações que por serem indefiníveis em termos léxicos,

(...) são mais bem capturadas em termos dinâmicos, cinéticos, tais como "surgindo", "desaparecendo", "passando rapidamente"(...) prolongado"(...). Eles serão chamados, experimentalmente de afetos de vitalidade para distingui-los dos afetos categóricos tradicionais (...) de raiva, alegria, tristeza e assim por diante (STERN, 1992, p. 47-48).

Stern compara a expressividade dos afetos de vitalidade ao movimento das marionetes que, embora não apresentem mudanças em suas expressões faciais, a partir da maneira pela qual gesticulam, podemos perceber diferentes posturas, das mais letárgicas, as mais enérgicas. É claro que no caso dos bebês, suas expressões faciais traduzem os afetos por eles sentidos, mesmo que ainda sem nominação categórica.

Os afetos de vitalidade são apresentados por Stern como um diferencial em relação aos categóricos tradicionais de raiva, alegria, tristeza, etc. (idem, p. 48). Assim como as marionetes desenham no espaço o movimento do artista que as maneja, o desejo da mãe – incluído e imanente ao gesto de cuidar – é o que vai servir de gatilho disparador para o surgimento dos afetos de vitalidade do bebê.

A mãe tomada de um estado melancólico ficou impossibilitada de encarnar a preocupação materna primária (WINNICOTT, 1990); em outras palavras, seu manejo não foi bom o bastante. Gardênia, diferentemente da mãe suficientemente boa (idem), se fechou para as filhas vivas ocupando-se somente daquela morta. Diante de tal circunstância, a mãe não pôde se contagiar com os afetos expressos pelo corpo de Valkiria. Seu pai, supondo protegê-la, decidiu não participar à filha o diagnóstico da mãe; o que acabou sendo revelado por Martha, sua analista de infância, já perto do final do espetáculo, quando a protagonista retorna à sua cidade natal: "Gardênia tinha uma impossibilidade de se integrar à realidade. A melancolia interfere na capacidade de pensar logicamente. A indiferença é um sintoma da doença. Não se trata de crueldade, nem de desvalorização em relação a você."

As doenças físicas, a depressão, as grandes dificuldades objetivas (ausência de um companheiro [ou perda de um ente querido], penúria econômica, confronto com graves tensões sociais...) serão capazes de impedir, ou pelo menos dificultar, uma mulher de exercer a sua função propiciadora de um ambiente facilitador (COUTINHO, 1997, p. 102).

Esse processo permeado pelo não olhar da mãe, se deu antes da sua capacidade de verbalização. Portanto, somente a partir da regressão em análise, Valkiria poderia fazer contato com ele, e, assim, promover um rearranjo de sua economia psíquica (des)colorida pela dor. Para que o analista pudesse lidar com um "mundo de sentidos que volta ao mundo do corpo e da vida de cada um (...) nesse território misto de corpo e sentido" (Ab'Saber, 1988, p. 10) deveria promover uma espécie de relaxamento na paciente, fazê-la baixar a guarda de suas defesas no estado de regressão e o que Ferenczi denomina de princípio de laisser-faire (2011, v. 4, p. 68).

Médico e paciente uniam suas forças e seus esforços para tentar, de algum modo, reconstruir as causas recalcadas da doença a partir de fragmentos disparatados do material associativo, do mesmo modo que se procede para os espaços em branco de palavras cruzadas muito complicadas (idem, p. 63, grifos nossos).

O analista, na continuidade das sessões, faz um contraste e paradoxalmente é identificado com a figura da mãe melancólica, oferecendo um ambiente mais caloroso no setting clínico, mesmo que povoado de silêncios. O analista, com sua presença sensível, se importa com a sua paciente, a olha, a escuta, e, de certo modo, funciona como um eu auxiliar e um espelho àquele ainda insípido. Todavia, exclama Valquíria, solicitando de forma ríspida a sua atenção: "Você não me enxerga! Você é igual à Gardênia, não escuta nada! Se não consegue entrar aqui, no meu mundo interno, como vai me ajudar? Não aguento mais." Retomando Ferenczi: "(...) o esgotamento de todas as agressões possíveis permitia, em seguida, uma transferência positiva e resultados mais tangíveis" (idem, p. 66).

Não podemos deixar de mencionar que Valquíria, eventualmente, se utilizava de seu poder de sedução para conquistar o analista, como explicitado na cena a seguir: "Você não me acha atraente?", pergunta Valquíria. "Não vamos misturar as coisas, não vê que isso vai contra você?" Retruca Goldstein, após se afastar da paciente que tentara lhe beijar ao se recordar, mais uma vez, de fragmentos de sua infância. Semelhante ao caso apresentado em 'Dificuldades técnicas de uma análise de histeria':

(...) a paciente recaiu em sua inatividade habitual, que dissimulava sob o amor de transferência. As sessões passavam-se em declarações e juras de amor apaixonadas por parte dela e, da minha, em vãos esforços para fazê-la entender a natureza transferencial de seus sentimentos e reconduzi-la aos objetos reais mas inconscientes de seus afetos (...) Suas fantasias assemelhavam-se a delírios febris de onde emergiram finalmente fragmentos de lembranças havia muito tempo enterrados, que se agruparam pouco a pouco em torno de certos eventos da infância e forneceram as circunstâncias traumáticas mais importantes da doença (FERENCZI, 2011, v. 3, p. 1-2, grifos nossos).

O interessante é que a peça se desdobra nesse vai e vem entre idade madura e lembranças da infância da protagonista que configuram o estado de regressão, e, plasticamente, o mesmo ator pode desempenhar com maestria diferentes personagens em épocas distintas.

Num determinado momento, durante uma das consultas com o Dr. Goldstein, Valkiria recorda-se de que seu pai passava a maior parte do tempo trabalhando e viajando. Sua mãe vivia presa à situação da filha morta, encastelada: não tinha atividades, era acometida por delírios e não dava atenção ao mundo a sua volta em geral. Gardênia cerrava as portas de seu afeto, salvo para a filha que não estava mais presente. Sua capacidade de amar se restringia a ela e não economizava palavras para dizê-lo: "Ah, (Violeta) era uma boneca! Com os cachinhos de ouro (...) era um anjo. Olhos azuis como os meus!!!"

Valkiria costumava receber os brinquedos mais modernos da época quando o seu pai retornava das frequentes viagens a negócio e, logo em seguida, os destruía. Certa vez, seu pai solicitou que os brinquedos fossem todos devidamente consertados. Depois de um breve momento de felicidade, ao vê-los novinhos em folha - agora, numa cena com a sua primeira terapeuta ainda na infância, Martha -, sem pestanejar, Valkiria os destrói novamente, de uma maneira ainda mais brutal que a anterior. A reparação dos brinquedos foi feita, mas não foi acompanhada, ao menos por enquanto, dessa mesma capacidade pela criança abandonada. Talvez, se a própria criança o tivesse feito, quer dizer, consertado com a ajuda (ou não) de um adulto os seus brinquedos, o efeito teria sido outro.

Os impulsos instintivos levam ao uso impiedoso dos objetos, e daí um sentimento de culpa que é retido e mitigado pela contribuição à mãe ambiente que o latente pode fazer no decurso de algumas horas. Além disso, a oportunidade para se doar e fazer reparação que a mãe-ambiente oferece por sua presença consistente capacita o bebê a se tornar cada vez mais audaz ao experimentar os seus impulsos instintivos; ou, dito de outro modo, libera a vida instintiva do mesmo. Deste modo, a culpa não é sentida, mas permanece dormente, ou em potencial, e aparece (como tristeza ou estado de ânimo deprimido) somente se não surge a oportunidade de reparação (WINNICOTT, 1990, p. 73, grifos nossos).

No caso em pauta, esses ataques de ira em direção aos brinquedos seriam mais uma forma de chamar a atenção e de agredir Gardênia e o ambiente como um todo. A mãe, por sua vez, não ofereceu uma "presença consistente" para Valquíria e nem deu muita atenção para tais acontecimentos. As figuras que poderiam minimamente ocupar esse lugar, seriam a governanta da casa e a terapeuta de infância, Martha. Quando não há uma figura zelosa para receber o gesto de reparação o que fica comprometida é a capacidade de se preocupar, em outras palavras, o "fracasso da reparação leva à perda da capacidade de se preocupar e à sua substituição por formas primitivas de culpa e ansiedade" (idem, p. 78).

 

O rosto da mãe como um espelho

Nos primórdios da vida do bebê, a mãe funciona como um eu auxiliar ou um escudo protetor, apresentando o mundo em pequenas doses a ele. Em O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil (1975), Winnicott retoma a temática do estágio do espelho apresentada por Jacques Lacan (1949). Sem negar tal influência, Winnicott refere-se à sua importância na gênese emocional, afirmando que o próprio rosto da mãe funcionaria como tal, isto é, como um espelho.

"O eu encontra a si mesmo situado naturalmente dentro do corpo, mas, em certas circunstâncias, pode vir a dissociar-se do corpo no olhar da mãe e em sua expressão facial, e no espelho, pode vir a representar o rosto da mãe", sustenta Winnicott (1975, p. 154).

O que o bebê vê no rosto da mãe? Ele mesmo. A mãe é um espelho onde o bebê se reconhece. É uma via de mão dupla, já que o desenvolvimento e o olhar do bebê também fazem parte da vida da progenitora, ou da pessoa que cuida. Daí a importância do humor da mãe na constituição desse novo ser. A mãe deprimida ou melancólica, por exemplo, pode lançar um olhar de Medusa que petrifica (ou congela) a capacidade criativa de seu filho. O olhar da mãe como um espelho opaco, um rosto inexpressivo e sem vida, compromete todo esse processo, pois o bebê irá internalizá-lo como sendo seu próprio.

O olhar especular da mãe deve ser dotado de uma aquosidade, de uma ondulação modulada pelos afetos, sensações e grau de maturidade do bebê, servindo de continente para o bebê. Ou seja, de um movimento thalássico, que é vital para ele. Etimologicamente, thalássico é tudo aquilo que é relativo ao mar. Ferenczi (1990), no decorrer de seu trabalho intitulado ThalassaEnsaio sobre a teoria da genitalidade; faz uma analogia entre o ventre materno, o oceano, e a terra, se utilizando do termo "bioanalítico", para compreender os processos genitais sob o ângulo entre a psicanálise e a biologia. Contudo, no caso das marés propriamente ditas, elas estão sempre sintonizadas com um movimento de um sistema maior que é o universo.

O olhar é uma forma privilegiada de comunicação, não só no ambiente maternante, como também, na clínica. "O mundo possível não existe à margem do rosto que o expressa, e sempre oscila entre o expressado – como qualidade ou potência – e a expressão – como ação" (CANGI, 2005, p. 13). Quando o rosto da mãe não é sentido como um espelho em que o bebê se reconhece, pode emperrar determinados processos, isto é, a capacidade onipotente de a criança inventar um mundo que, afinal, já estava lá. Segundo Winnicott, o ambiente é subjetivamente concebido para ser objetivamente percebido. O bebê pode desenvolver, dentre outros, comportamentos hipocondríacos, deprimidos, hiperativos, psicossomáticos ou expressar um desenvolvimento intelectual precoce.

A criança precisa estar diante de um olhar afetuoso, confiável e empático. O sentimento de existir é um derivado dessa experiência. O eu do bebê é forte ou fraco dependendo do eu auxiliar da pessoa que cuida. O bebê não tem consciência de sua imaturidade e dependência. Quando bem cuidado, amado e confortável, ele não possui meios de saber o que está sendo provido, mesmo porque ainda não existe noção do que é interno e externo. Isso vale também para as falhas ambientais. Quando não atendidas, suas necessidades serão sentidas sob a forma de ruptura na linha de continuidade do ser. Os traumas precoces têm sérias implicações nos processos de singularização e de personalização.

 

Os brancos psíquicos

Podemos fazer, salvo as evidentes diferenças, uma possível articulação, e por que não dizer, uma brincadeira, dos não-inscritos ferenczianos com os primórdios da fotografia, de origem fotoquímica. A imagem fotográfica é feita desde o início em função do jogo de luz e sombra, e, para que seja revelada, é preciso uma determinada substância, uma ambiência singular e adaptada que inclui, principalmente, o controle da luminosidade e da temperatura.

O papel fotográfico contém a 'imagem latente', mas não a vemos. Latente aqui não é contrário de manifesto, inclui o manifesto. O que importa é que a foto está lá, mas não a enxergamos. Algo semelhante ocorre com a não lembrança do evento traumático. O branco fotográfico pode ser análogo aos não-inscritos em Ferenczi e ao inimaginável ou ansiedade impensável em Winnicott.

Essas ansiedades são 'impensáveis' porque esse tipo de ansiedade não pode ser concebido, provocando impacto e trauma (reação à intrusão). Para Winnicott, as angústias primitivas constituem a intrusão. A intrusão causa no bebê o sentimento de que o self foi aniquilado. É o oposto do ser; é o trauma de aniquilação, é o que violenta o núcleo do self (ABRAM, 2000, p. 31).

De quê maneira comparar o branco fotográfico com essa não inscrição? Alguns elementos fazem parte, podendo até mesmo determinar as nossas formas de agir, mas não os vemos, são imperceptíveis e inomináveis. No entanto, estão impressos na nossa memória corporal possuindo uma 'cor', uma potência, mesmo sob a forma de dor e da experiência de intrusão. Para que a imagem se atualize, é necessário um elemento catalisador, e todo um cuidado (holding) especial e muito tato. O tato é a faculdade de "sentir com" (Einfühlung) (FERENCZI, 2011, v. 4, p. 31).

Tato. É essa a função do terapeuta: atualizar, propiciar um espaço para que o sentido não seja meramente intelectual, mas também corporal, e isso não é representação é apresentação, atualização de uma nova imagem do corpo. A representação (Vorstellung) seria da ordem do simbólico e a apresentação ou atualização (Darstellung) imediata. Ademais, tudo leva a crer que somente essa última estaria implicada no processo singular de criação.

No verbete "Atuar para rememorar", que se encontra no Dicionário do pensamento de Sándor FerencziUma contribuição à clínica psicanalítica contemporânea (KAHTUNI & SANCHES, 2009, p. 64), as autoras afirmam que, dependendo da intensidade do trauma, o que ocorre é uma clivagem do ego que pode engendrar uma fragmentação e, ainda, uma atomização egóica. Nesses casos, "o registro da experiência traumática [é] totalmente inexistente" (idem).

Isso significa dizer que experiências traumáticas desse tipo não podem ser rememoradas via insight, isto é, pacientes desse tipo não satisfazem nosso tão fortemente introjetado desejo de reconstrução da história psíquica por meio da rememoração de representações inconscientes, porque tais experiências traumáticas – que jamais foram conscientes – não podem ser relembradas, mas apenas atuadas, reencenadas ou revividas (idem, p. 65, grifos nossos).

Dito de outro modo, o analista, junto ao paciente, preenche os vazios de palavras cruzadas muito complicadas. Para tal, inventa a cada instante uma nova língua que, na esteira deleuziana, chama-se aqui de língua menor do corpo, para não ocasionar a confusão entre a linguagem da ternura e a da paixão, capciosamente denunciada por Ferenczi (2006). Em termos fotográficos, para não queimar o filme, ou, pensando agora com Winnicott, para não estragar a brincadeira.

Entendemos por língua menor, não somente aquela que se contrapõe à standard, mas também "(...) qualquer coisa que poderia ser também o grito de silêncio, ou a gagueira, e que seria como a linha de fuga da linguagem, falar na sua própria língua em estrangeiro, fazer da linguagem um uso minoritário..." (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 35). A Língua menor pode ser pensada como um work in progress, um idioma em construção que se dá no espaço entre analista e analisando, uma linha de fuga que tangencia a técnica. Aquele que cuida deve ser bilíngue (STERN, 1992), no sentido de ter uma escuta sensível à linguagem da ternura presente na criança que surge no estado de regressão e, ao mesmo tempo, à linguagem da paixão: "Arranhe o adulto e encontre a criança", afirma Ferenczi.

A confusão de línguas, denunciada por Ferenczi em seu último texto, em 1933, não seria exclusiva das relações entre crianças e adultos, mas também pode se precipitar na dupla do setting clínico. É preciso uma dose de ternura para sentir com o analisando o que se passa,

(...) saber quando e como se comunica alguma coisa (...), quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente, etc. (FERENCZI, 2011, v. 4, p. 31).

No caso do contraste entre um ambiente que falhou e a situação facilitadora, acontece, com as devidas ressalvas, um processo semelhante ao da revelação fotográfica. O que aparece não é só uma imagem. Talvez, uma experimentação de uma nova imagem de corpo sob uma luz irradiada por uma mudança de postura, abrindo-se novos rumos para a compreensão afetiva do acontecimento traumático. Um solo que permite a revivescência do split ou do corte na continuidade do sentimento de existir, integrando o paciente em sua própria história e o analista num aprendizado contínuo.

Ferenczi (2011, v. 4), por sua vez, sem o saber utiliza a linguagem da fotografia ao se referir exaustivamente a um contraste necessário entre um ambiente hostil e um mais aprazível. Nas suas palavras: "A semelhança entre a situação analítica e a situação infantil incita mais, portanto, à repetição; o contraste entre as duas favorece a rememoração". Repetição esta, de um registro inconsciente, paradoxalmente, pela primeira vez precipitado através do corpo de forma consciente. Além do termo 'resolução' que também é utilizado pelo autor, não ao que se refere à resolução de uma foto, é claro, mas de um acontecimento traumático através da análise. Mais uma citação que contém a palavra contraste: "admitir um erro valia a confiança do analisando (...). Essa confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre o presente e um passado insuportável e traumatogênico" (idem, p.115). O referido contraste seria proveniente de um ambiente bom o bastante em relação a um meio maternante que perturbou possíveis momentos de repouso e de relaxamento.

A partir da prática de regressão em análise, Ferenczi e Winnicott fornecem uma inteligibilidade aos processos ocorridos nas fases mais precoces do amadurecimento. Experiências satisfatórias e traumáticas deixarão impressões, e, mesmo que imperceptíveis estão indeléveis no corpo, outrossim, na memória corporal do indivíduo. Dar vazão a esse tipo de percepção é incluir de forma singular o corpo do próprio analista na cena clínica e na experiência da contratransferência.

(...) quando o psicanalista aprendeu laboriosamente a avaliar os sintomas da contratransferência e chega a controlar tudo o que poderia dar lugar a complicação em seus atos, sua fala e até em seus sentimentos, ele corre então o perigo de cair no outro extremo, tornar-se excessivamente duro e inacessível ao paciente, o que retardaria ou mesmo tornaria impossível o surgimento da transferência, condição prévia de toda análise bem-sucedida. Poderíamos definir essa segunda fase como a de resistência à contratransferência. Uma ansiedade desmedida a esse respeito não é a atitude correta e só depois de ter transposto essa fase é que o médico pode aguardar a terceira: a de controle da contratransferência (FERENCZI, apud KAHTUNI, SANCHES, 2009, p. 106).

Negligenciar a sua fragilidade é adotar a 'hipocrisia profissional', apontada por Ferenczi (2011, v. 4, p. 113), podendo engendrar uma 'atmosfera' fria no espaço clínico. Lembremos que a postura do psicanalista sempre foi uma questão para ambos os autores.

Acolhemos polidamente o paciente quando ele entra, pedimos- -lhe que nos participe suas associações, prometemos-lhe, assim, escutá-lo com atenção e dedicar todo o nosso interesse ao seu bem-estar e ao trabalho de elucidação. (...) é bem possível que certos traços, externos ou internos, do paciente nos sejam dificilmente suportáveis.(...) nesse caso não vejo outro meio senão tomar consciência do nosso próprio incômodo e falar sobre ele com o paciente, admiti-lo, não só como possibilidade mas também como fato real (idem, p. 114).

As concepções winnicottianas sobre a clínica psicanalítica, no rastro de Ferenczi, contribuíram para expandir a dimensão do afeto no gesto de cuidar. A implicação do corpo do analista e, principalmente, o reconhecimento e o uso de suas falhas na cena do cuidar tem um lugar de destaque em ambos os autores, a partir da qualidade do vínculo afetivo que se estabelece nesse ato. Um processo semelhante ocorre no amadurecimento emocional que se constitui no ambiente bom o bastante permeado por falhas.

Os autores estudados ultrapassam as 'recomendações' e 'conselhos técnicos' freudianos no sentido de permitirem uma elasticidade na técnica, uma maior liberdade a si próprios e a seus pacientes, de acordo com cada situação. Podem ser considerados "artistas de exceção de quem esperamos progressos e novas perspectivas" (FERENCZI, 2011, v. 4, p. 30).

O espetáculo termina, não caberia aqui relatá-lo na íntegra, depois de uma visita de Valkiria a sua casa em sua cidade natal - que inclui um encontro com Martha (sua analista de infância) e, finalmente, com Gardênia na mesma posição de sempre: sentada em sua poltrona com o olhar perdido. Mas, para Valquíria desta vez, tudo parece diferente:

Voltei a minha antiga cidade, ao velho casarão e aquele quarto já não parecia ameaçador, era tão real, organizado, claro. Não passava de um quarto comum com suas janelas abertas. Andei ali com o prazer de quem se despede de um antigo lugar, repleto de significados que povoaram a minha vida e me levaram até lá novamente. Tudo permanecia igual. No meu quarto os velhos móveis, e na sala de estar, Gardênia mergulhada em sua mesma cegueira. Mas desta vez eu não era a mesma. Percebi como eu havia crescido e como eu estava distante das angústias que vivi lá dentro. Respirei aliviada porque nada mais me assustava. O quarto tinha agora outra cor, e suas cortinas voavam para o lado de fora. Fui até a janela olhar o antigo céu cor de chumbo, e foi quando eu mais me surpreendi, pois os mesmos olhos que cerravam na escuridão do céu, agora se expandiam no infinito do horizonte.

E, apagaram-se as luzes.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Francine Simões Peres
e-mail: francineuni@hotmail.com

Tramitação: Recebido em 22/08/2012
Aprovado em 13/01/2013

 

 

* Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
1 O nome da personagem é fictício