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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

Artigos

Uma análise psicanalítica da compulsão e da impulsão a partir da perspectiva do gozo e do ato

 

A psychoanalytic analysis of compulsion and impulsion from the perspective of the jouissance and the act

 

 

Ana Carolina Pacheco Bittencourt*; Laéria Bezerra Fontenele**

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O artigo propõe uma compreensão e uma diferenciação dos conceitos de compulsão e impulsão a partir da perspectiva do gozo e do ato, tal como entendidos por Freud e Lacan. Nosso objetivo é refletir acerca das implicações clínicas das relações entre gozo, ato e sintoma para a direção do tratamento de pacientes que manifestam impulsões e compulsões. Pretendemos, com isso, destacar as contribuições que o psicanalista pode oferecer ao trabalho de uma equipe multidisciplinar voltada para o tratamento de transtornos alimentares.

Palavras-chaves: Compulsão, impulsão, gozo, ato.


Abstract

The aim of this paper is to understand and differentiate the concepts of impulsion and compulsion from the perspective of the jouissance and the act as expounded by Freud and Lacan. Our goal is to consider the clinical implications of the relationship between jouissance, act, and symptom for the treatment direction of patients who manifest impulsions and compulsions. We intend, therefore, to highlight the contributions that can be offered by the psychoanalyst to the work of a multidisciplinary team focused on the treatment of eating disorders.

Key-words: Compulsion, impulsion, jouissance, the act.


 

 

Introdução

As questões abordadas neste artigo são fruto de uma pesquisa em andamento, motivada por achados provenientes de nossa experiência clínica e pela inserção da primeira autora em programas voltados para o tratamento multidisciplinar de Transtornos Alimentares1, cujas equipes são formadas em geral por médicos (psiquiatras e endocrinologistas), nutricionistas, psicólogos, enfermeiros, dentre outros profissionais. Apesar da pluralidade de saberes nelas representada, observa- se a hegemonia do saber médico por sobre os demais. A inserção de um psicanalista nesse tipo de equipe convoca-o, pois, a enfrentar problemas resultantes da prevalência do discurso médico e de suas incidências diagnósticas.

Faz-se essencial precisarmos as diferenças dos tipos de práticas clínicas desenvolvidas, nesses programas, pelo psiquiatra e pelo psicanalista. Em geral, o psiquiatra, baseando-se nas diretrizes diagnósticas fornecidas pelos manuais de classificação das doenças (como, por exemplo, o CID-10 e o DSM-IV), supõe que os pacientes aí atendidos são "portadores" de algum tipo de Transtorno Alimentar e o seu trabalho se dá no sentido de investigar os comportamentos por eles apresentados e, com isso, confirmar ou não sua hipótese diagnóstica. A partir disso, o tratamento se realiza com o intuito de promover a remoção dos sintomas que caracterizam o transtorno detectado. O restabelecimento da saúde dos pacientes coincidiria, assim, com o desaparecimento de seus sintomas e dos efeitos mórbidos por eles provocados em seus corpos, o que resultaria na diminuição de peso - nos casos de obesidade - ou de aumento de peso - nos casos de anorexia e de bulimia. O uso de manuais de classificação das doenças como referência para as práticas diagnósticas psiquiátricas e para a administração das terapêuticas se faz a partir de uma perspectiva eminentemente sindrômica, centrada na observação fenomenológica dos sintomas dos pacientes. Neste âmbito, "o psiquiatra tem sido reduzido em sua função a um mero classificador e isso obedece a uma demanda social e não a uma exigência clínica pela classificação" (FONTENELE, 2006, p. 11).

Braunstein (1987) problematiza as classificações psiquiátricas, afirmando que "la asignación de um dígito no es um acto puramente formal. Es el momento em que el no saber del paciente acerca de lo que le sucede es remitido a la ilusión de um saber que está internacionalmente consagrado por la máxima autoridad" (p. 59). O que se transmite ao paciente, neste contexto, é um saber sobre o seu padecer, em geral sob a forma de um rótulo diagnóstico, pré-estabelecido pelos próprios responsáveis pela elaboração das classificações, que não foi construído por ele mesmo e, portanto, não foi subjetivado.

Em sua clínica, o psicanalista dedica-se à escuta do dizer do psicanalisando, através do qual se inscreve a produção dos meios por que se faz a construção analítica do sintoma. Nela, não há lugar e nem sentido para a constatação fenomenológica de sintomas, a não ser em sua relação com os traços estruturais, mais especificamente das neuroses. Afinal, o que se trata aí é de:

Reconstruir el proceso de elaboración del discurso del analizando; para ello debe poner entre parêntesis al sintoma, al síndrome, a la enfermedad, para redescubrir al paciente oculto por la mirada objetivadora del clasificador y poder explicar las fuentes de la angustia y del sufrimiento (BRAUNSTEIN, 1987, p. 60).

Com isso, evidencia-se que o Transtorno Alimentar não é uma categoria diagnóstica levada em conta pela psicanálise. Ao analista cabe direcionar a cura, buscando os caminhos que levaram à formação do sintoma e ao seu sentido particular. Da mesma forma, em não havendo correlação entre os ditos "transtornos" e a estrutura neurótica, haveria que buscar-lhe as possíveis relações com as demais estruturas – perversão ou psicose.

Foi a escuta de pacientes, ditos com transtornos alimentares, que nos levou a detectar a incidência clínica da impulsão e da compulsão e a constatar as diferenças com que se manifestam na economia psíquica desses sujeitos, além de nos permitir distingui-las e desvinculá-las da perspectiva médica. Tal nos levou a perscrutar estes dois modos com que pode ocorrer a relação do sujeito ao objeto de desejo e da pulsão. Destacamos a importância da diferença entre a incidência clínica de ambos para que seja feito um diagnóstico preciso dos sujeitos em tratamento, sobretudo quando desse resulta a prescrição de atos cirúrgicos irreversíveis que, em alguns casos, pode levar, a posteriori, à morte dos pacientes ou à ocorrência de graves rupturas em sua vida psíquica e/ou em seus laços sociais.

O levantamento que fizemos das publicações brasileiras, hospedadas nas bases de dados INDEXPSI, PePSIC, SciELO, LILACS e Portal Nacional BVS Brasil em Saúde, que abordam os transtornos alimentares a partir de um marco psicanalítico e que foram produzidas nos últimos dez anos (2002-2012), revelaram existir uma produção significativa sobre esse assunto, sendo que, a maioria delas ocupa-se da anorexia e da bulimia; e em número menor, da compulsão alimentar (23% dos trabalhos analisados).

Em nenhum destes trabalhos empreende-se a análise da compulsão alimentar a partir da incidência clínica da compulsão ou da impulsão. Sobre essa perspectiva, é fundamental mencionarmos as conferências ministradas por Diana Rabinovich, documentadas no livro Clínica da pulsão: as impulsões, nas quais são trabalhadas "as impulsões e, parcialmente, as caracteropatias como algumas das formas em que a pulsão se faz presente na clínica" (RABINOVICH, 2004, p. 7). Aí é estabelecida uma articulação entre a impulsão e os Transtornos Alimentares, a partir da apresentação de um caso clínico de bulimia. Devido a sua relevância, este livro tem sido uma das referências teóricas de base para a pesquisa que ora empreendemos.

Consideramos imprescindível esclarecer acerca dos modos como se dá a relação do sujeito com o objeto do desejo, que se encontra compreendida na impulsão e na compulsão alimentar, sobretudo devido às repercussões clínicas que tal precisão pode engendrar. Por isso, buscamos realizar uma leitura do diagnóstico psiquiátrico de compulsão alimentar, a partir da perspectiva da impulsão e da compulsão, considerando os conceitos de gozo e de ato em um primeiro plano e as categorias de estrutura clínica, desejo, pulsão e sintoma como auxiliares.

 

Análise da compulsão e da impulsão sob a perspectiva do gozo

Em seu Seminário acerca das formações do inconsciente, Lacan (1957- 1958/1999) concebe o gozo como o que se contrapõe ao do desejo e o diferencia deste e do prazer. Braunstein (2007) ressalta que: "definir o gozo como conceito é distingui-lo em seu valor diacrítico diferencial nessa dupla articulação com o prazer e o desejo" (p. 16). Esta polaridade, desejo e prazer de um lado e gozo de outro, mostra-nos que este último situa-se do lado de Das Ding – da Coisa –, o objeto da primeira experiência de satisfação do bebê, que foi inscrito psiquicamente por meio de seus fragmentos perceptuais, por traços de memória que aludem a tal experiência. O gozo, representado pela satisfação primeira que tal objeto promove, é sentido diretamente pelo corpo, estando para aquém da palavra e do sentido. O desejo, diferentemente do gozo, localiza- se do lado do Outro, diz respeito à cena inconsciente e se encontra relacionado com a tentativa de recompor, por uma via alucinatória, aquela experiência de satisfação primordial que, por mítica, jamais se repetirá, pois o seu objeto, estando para sempre perdido, só se faz presente no inconsciente por meio da recomposição alucinatória de seus restos perceptivos.

O gozo, de acordo com o entendimento lacaniano, diz respeito à manifestação do que se situaria mais além do princípio do prazer, a pulsão de morte e remeteria ao regime do excesso, sendo aquilo que, para ser atingindo plenamente, exigiria que o desejo fosse eliminado. O gozo confronta, portanto, com a morte. O princípio do prazer, entretanto, atua, no aparelho psíquico, de modo a impor um limite para o gozo; afinal, o princípio do prazer "nada mais é do que o princípio de menor tensão, da tensão mínima a manter para que subsista a vida. Isto demonstra que, em si mesmo, o gozo o transborda, e o que o princípio do prazer mantém é o limite em relação ao gozo" (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 47).

Braunstein (2007) destaca três concepções de gozo, no ensino de Lacan, que são essenciais para o seu discernimento: o gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do Outro. Estas estão, intrinsecamente, ligadas à tripartição conceitual introduzida por Lacan: Real, Simbólico e Imaginário. Jorge (2008), em seu livro Lacan, o grande freudiano, nos fornece uma valiosa síntese do sentido desses três registros; segundo ele, o Real diz respeito ao Impossível, ao que não cessa de não se escrever e, também, à falta de sentido, ao não-senso. O simbólico é contingencial, é o que cessa de não se escrever e é da ordem do duplo- -sentido. O Imaginário, por sua vez, é o necessário, é o que não cessa de se escrever, diz respeito ao sentido unívoco.

O gozo do ser é anterior ao acesso do sujeito ao significante e ao sepultamento do complexo de Édipo. Lacan, em seu nó borromeu, inscreve-o na interseção entre o real e o imaginário. Trata-se de um gozo fora do simbólico, inefável, mítico. Este modo de gozo pode ser observado, segundo Braunstein (2007), em algumas formas de psicoses precoces, que são decididas durante o período pré-edípico, em que se ocorre a relação do bebê para com o Outro materno.

O gozo fálico, Lacan o inscreve na articulação entre o real e o simbólico. Trata-se de um gozo localizado fora do corpo, efeito da castração e do acesso do sujeito à linguagem, resultando numa perda de gozo pelo sujeito; sendo, assim, limitado pelo diafragma da palavra. O gozo da Coisa (do ser) é perdido e é possível de ser perseguido pelas palavras; mas será outro gozo, o gozo fálico, que evoca a Coisa, mas que não faz com que ela reapareça. O gozo fálico será sempre marcado pela falta.

Na análise que faz do conceito de gozo em Lacan, Braunstein (2007) realiza a equivalência entre o gozo do Outro e o gozo do ser, pois os dois dizem respeito a modalidades de gozo do corpo, que estão fora da linguagem, na interseção entre o real e o imaginário; mas, posteriormente, demonstra que eles diferem em relação ao complexo de castração e à linguagem, pois o gozo do ser está aquém da linguagem. O gozo do Outro (sexo), por sua vez, implica a passagem pela castração e pela lógica da linguagem e as extrapola, estando, assim, para além da linguagem e da castração, não podendo por isso ser acessado pelo simbólico. O gozo do ser e o gozo do Outro se inserem na mesma região do nó borromeu, aquela referente à interseção entre o imaginário e o real.

Em relação ao gozo do Outro, é possível destacarmos, no ensino de Lacan, três de suas modalidades: o gozo feminino, o gozo psicótico e o gozo místico. O primeiro é fálico e não todo fálico, e neste caso, situa-se está para além do falo, resultando impossível de ser apalavrado, simbolizado e inscrito (já que o falo é um significante sem par). Ele pode ser caracterizado como sendo um gozo suplementar, conforme nos esclarece Lacan (1972-1973/1985):

Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e temos mesmo que dizer que se há algo de que elas mesmas se lamentam bastante por hora, é mesmo disto [...]. Nem por isso deixa de acontecer que se ela está excluída pela natureza das coisas, é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar (p. 99).

Ferreira (2005), em sua discussão sobre a partição dos gozos, afirma que no gozo psicótico, devido a não inscrição do significante do Nome-do-Pai, "o real aparece no gozo sob a forma de gozo do Outro" (p. 66). Ela precisa que a estrutura deste "se caracteriza por 'uma falta no nível do significante' (LACAN, 1955-56). Aqui, a falta se apresenta como falta, ou seja, há um buraco no lugar do significante do Nome-do-Pai" (FERREIRA, 2005, p. 66-67).

Com relação ao gozo místico, Lacan (1972-1973/1985) faz menção aos testemunhos de São João da Cruz e de Santa Tereza para demonstrar que "eles experimentam a ideia de que deve haver um gozo que está mais além" (p. 102). Para ele, os místicos dizem experimentá-lo, mas nada sabem sobre ele. Ferreira (2005) nos auxilia a pensar no gozo do Outro sob a forma de gozo místico, não apenas a partir dos testemunhos dos citados místicos, mas também por meio "da produção artística sob a égide do barroco, definido como estilo que regula a alma pela escopia corporal, exala a obscenidade e decanta 'tudo que desaba, tudo que é delícia' (LACAN, 1972-3, p. 158). Enfim, um estilo que estampa em imagens e em escrita a conjugação entre gozo e morte" (p. 69).

O conceito de falo serve de parâmetro para a diferenciação entre estas três modalidades de gozo: o que está aquém do falo é o gozo do ser, o que está relacionado ao falo como significante da diferença é o gozo fálico e o que está além do falo é o gozo do Outro.

Ressaltamos não ser possível a diferenciação rígida entre esses gozos. Para esclarecer tal dificuldade, destacamos um tipo de gozo que pode ser experimentado por sujeitos situados na ordem fálica, mas que manifestam um tipo de satisfação corporal autoerótica que confina com o gozo do ser. Trata-se de um gozo paradoxal, em que se estabelece a relação direta do sujeito com o objeto, sem a intermediação do significante. Seria ele o que mais se aproxima do conceito de impulsão proposto por Rabinovich (2004), assim definido como:

Algo associado, não ao sintoma, não ao desejo, mas à pulsão, e o mesmo termo de passagem ao ato no-lo diz. Quer dizer, há algo da ordem da satisfação que, ao satisfazer-se nesse "personagem" de forma direta, deixa o sujeito sem lugar, enquanto que, por sua vez, o sujeito desejante está como esse sujeito mudo da pulsão. Efetivamente, é um sujeito que não pode nos dizer quase nada, salvo nos mostrar, em ato, essa curiosa satisfação muda [...] (p. 60).

Demarca, assim, a autora, que a incidência clínica da impulsão pode se apresentar por meio de formas que vão "desde a bulimia ou o tabagismo até as drogas maiores" (RABINOVICH, 2004, p. 19). Nesses casos, o sujeito não necessita do Outro para obtenção de satisfação. Um gozo dessa ordem pode ser verificado, ensina-nos Braunstein (2007), na relação do toxicômano com o objeto droga:

A droga se assemelha ao auto-erotismo da proibição originária: o sujeito administra em si mesmo uma substância que o conecta diretamente com um gozo que não passa pelo filtro da aquiescência ou pelo forçamento do corpo de outro; consegue- -se deste modo a substituição da sexualidade (BRAUNSTEIN, 2007, p. 281).

Esse tipo de gozo parece ser o que é experimentado por Marcelo, paciente que assim nomeamos e que escutamos no ambulatório antes referido. Ele foi diagnosticado pela equipe clínica com tendo um Transtorno da Compulsão Alimentar Periódico (TCAP). A partir do que escutamos dele, levantamos a hipótese de que o mesmo não apresentava sintomas de compulsão, e sim uma impulsão alimentar. Em seu discurso, costumava estabelecer uma equivalência entre a satisfação obtida com o excesso de ingestão alimentar e uma sensação corporal que identificava como de prazer. O que, não seria de fato um prazer, mas um gozo corporal obtido com as grandes quantidades de alimento ingeridas e que pareciam prescindir de mediação simbólica, manifestando-se no real do corpo. Em determinada sessão, Marcelo relatou ter ido a um churrasco em que comera mais de um quilo de carne; e, em outra ocasião, descreveu um jantar que fora partilhado com sua esposa, no qual teria devorado cerca de cinco pizzas. Tal quantidade de comida só ganha importância e figura como excessiva na medida em que o paciente a acentua em seu discurso e confere a ela o valor de excesso.

Marcelo não atribuía sentido algum aos episódios em que comia em excesso, o que parecia demarcar o distanciamento desses episódios do campo do simbólico e do imaginário, ambos comprometidos com a produção de sentido. Antes, pareciam aproximar-se do real enquanto campo do sem sentido. Consideramos provável que o que este paciente definia como prazer seria da ordem do gozo, pois nestas ocasiões ele era apassivado por seu próprio ato, tornava-se ele mesmo o seu objeto. Em consequência desses tipos de ato, Marcelo corria sérios riscos de ter suas pernas amputadas, devido às consequências físicas de sua obesidade mórbida. O risco de perder as pernas era a única coisa que colocava uma barreira ao seu gozo para com a comida, tendo sido, também, o que aquilo fez buscar um tratamento no sentido de ajudar-lhe a reduzir o peso. Observe- se que, neste caso, fez-se necessário que o real do corpo confinasse com a morte para que Marcelo reagisse, no sentido de buscar assenhorar-se de seus atos e, com isso, procurar tomar distância do regime excessivo de seu gozo.

A compulsão, por sua vez, estaria mais próxima da lógica fálica. Freud (1907/1996) afirma que uma das condições da compulsão:

É o fato de que a pessoa que obedece a uma compulsão, o faz sem compreender-lhe o sentido – ou, pelo menos, o sentido principal. É somente através dos esforços do tratamento psicanalítico que ela se torna consciente do sentido do seu ato obsessivo e, simultaneamente dos motivos que a compelem ao mesmo. Esse fato importante pode ser expresso da seguinte forma: o ato obsessivo serve para expressar motivos e ideias inconscientes (p. 113).

Em um primeiro momento, a compulsão pode parecer tola e absurda, mas é possível que, posteriormente, no decurso da análise, o sujeito elabore, pela via da fala, um saber acerca dela, construindo-lhe, assim, o sentido. Isso se torna possível na medida em que a compulsão está relacionada com um conflito inconsciente e submetida ao regime simbólico da falta.

Natália, que também foi diagnosticada pela equipe como tendo TCAP, pode nos ajudar a compreender a compulsão em sua relação com o gozo fálico. O tipo de relação que esta paciente estabelecia com o objeto comida diferia, sobremaneira, daquela de Marcelo. Logo na primeira sessão, Natália afirmou ter buscado o tratamento devido a "problemas com a família, (...) quando era mais nova apanhava muito da mãe, depois muitas vezes recorria à comida" (sic). Quando falava sobre seus episódios de compulsão alimentar, nos quais comia uma quantidade de comida que considerava excessiva, procurava relacioná- los com os momentos em que se sentia triste e em que aparecia o desejo de "resolver os seus problemas" (sic), objetivo reiteradamente frustrado. Isso pode ser melhor ilustrado a partir de um relato feito por Natália, em que narrava a ocorrência de um tal episódio logo após uma discussão que teve com seu marido; nessa ocasião, ela assegura ter comido três bolos e ter bebido três copos de iogurte. Dizia ela que, antes do período de seus atendimentos, logo após tais ocasiões procurava induzir vômitos e/ou tomar laxantes "para colocar pra fora" (sic) o que havia comido, o que no momento ela havia substituído por remédios para dormir. Cabe ainda ressaltar que, no decurso do tratamento de Natália, ficou elucidado que o gozo obtido com o comer compulsivo tinha o propósito de satisfazer certas moções pulsionais recalcadas, demonstrando envolver um cálculo de gozo neurótico inerente à produção de seu sintoma, o qual expressava, por via metafórica, o seu sentido.

 

Análise da compulsão e da impulsão sob a perspectiva do ato

As concepções psicanalíticas e psicológicas acerca do ato em muito divergem. Na perspectiva da Psicologia, a ação diz respeito a algo que possui a finalidade de adaptação e está relacionado com a vontade daquele que atua. Por outro lado, em suas vertentes metafísicas, a ação designa algo realizado pelo próprio ser e não por algo que lhe é exterior, colocando, assim, em voga, a autonomia do sujeito.

Ao centrar sua experiência no conceito de inconsciente, a psicanálise subverteu as concepções psicológicas da ação, uma vez que o inconsciente não possui um fim ao qual estaria adaptado, estando a serviço do desejo e não da volição consciente. Isso tornou possível a colocação de novas questões acerca da dimensão da ação: "a quê gênero de 'fins' se pode realmente atribuir o inconsciente? O que lhe é possível, à sua maneira, 'querer'? De que tipo de 'autonomia' se pode prevalecer o sujeito que se deve, afinal, postular no inconsciente" (ASSOUN, 1996, p. 196)? A psicanálise não se centra na essência do agir, mas no processo ao qual o ato remete: "não postulamos mais aqui uma essência agente (psicológica ou metafísica): temos que nos ocupar de um processo que se recorta cinematicamente como passagem ou translação" (ASSOUN, 1996, p. 196).

Demarca-se, com isso, a existência de uma "oposição temática entre a ação e o ato" (p. 197), sendo que a atuação diz respeito à "passagem do dentro ao fora" (p. 196). O ato, por sua vez, "neutraliza a questão do dentro e do fora: ela aborda a questão na sua formalidade, pensa em outros termos a atividade do ato, apreendida na ponta real de seu efeito - ao passo que a 'ação' (Handlung) só faz retornar na realidade para aí inscrever seu efeito (Wirkung)" (p. 196).

Seguindo as elaborações teóricas de Freud e a sistematização proposta por Assoun (1996), discernimos três momentos distintos concernentes à problemática do ato: o primeiro seria o da elaboração freudiana da teoria da ação não específica, que forneceu as bases para pensar a ação específica e que resultou na construção de uma metapsicologia do ato; o segundo, aquele em que a clínica da ação suscitou o problema da impossibilidade de encontro entre a ação específica e a experiência de satisfação; e por fim, a constatação dos efeitos da dimensão do agir no tratamento e que resultou em teorizações técnicas sobre posição do analista e as atuações dos pacientes.

O que é nuclear na metapsicologia, com relação ao ato, é o fato de ele surgir, inicialmente, pela impossibilidade do sujeito de agir, ou seja, de sua impotência em dispor de objetos que o satisfaçam. Posteriormente, quanto à dimensão da ação específica, a descarga de excitação será sempre parcial. Já na clínica, em que se manifesta a ação, o sujeito age para modificar o exterior, colocando, com isso, o seu sintoma em ato. O agir no tratamento explicita o momento em que o ato se choca com a palavra e aparece como uma barreira à lembrança.

É possível afirmar que a compulsão está diretamente ligada ao pensamento, e que, por isso, seus efeitos emergem apenas na esfera psíquica. Assoun (1996, p. 209) chama nossa atenção para a neurose obsessiva, no entanto, em que a ação compulsiva é tida como a encarnação do sintoma, havendo nela um aspecto que "se cristaliza por um bloqueio da representação, ao mesmo tempo em que por uma descarga". Nestes casos, o sujeito se acha impedido de agir de outro modo que não seja compulsivamente, pois apesar de ter consciência do caráter absurdo de sua ação, a realiza, a despeito disso, o que tem o intuito de defesa contra afetos como a angústia, a culpa, a dúvida, dentre outros. Nessa neurose, a ação compulsiva figura como uma práxis, uma vez que não possui o seu fim em um objeto a produzir, mas sim o "seu fim em si mesma – a se entender aqui como aquilo que, do sujeito 'atuante', se refere ao Outro como princípio puro de atuação" (ASSOUN, 1996, p. 197).

A repetição das ações compulsivas leva à constituição de cerimoniais, os quais são destacados por Freud (1907/1996), no texto Atos obsessivos e práticas religiosas, onde aproxima os cerimoniais neuróticos dos religiosos. Ambos convergiriam no que diz respeito aos "escrúpulos de consciência que a negligência dos mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na proibição de interrupções), e na extrema consciência com que são executadas todas as minúcias" (FREUD, 1907/1996, p. 110-111), mas se afastariam em relação à "diversidade individual dos atos cerimoniais [neuróticos] em oposição ao caráter estereotipado dos rituais (...), enquanto todas as minúcias do cerimonial religioso são significativas e possuem um sentido simbólico, as dos neuróticos parecem tolas e absurdas" (FREUD, 1907/1996, p. 111).

A ação compulsiva é "a recolocação em ato, pela mediação simbólica, da Ação primeira. É preciso, pois, de modo realista, buscar no cerimonial simbólico o Ato que estava na origem" (ASSOUN, 1996, p. 210). O que move a realização da ação compulsiva é a sua busca em alcançar a Ação primeira, impossível de ser alcançada e que, por isso, repete-se reiteradamente. Assoun (1996, p. 210) afirma que "é realmente para esse ato impossível que tenderia a ação obsessiva, como assíntota", sendo tal ação, portanto, marcada pelo seu caráter ambíguo, uma vez que "por um lado ela adia a atuação por sua própria reiteração; por outro, permite praticar a defesa" (p. 210).

Rudge (1998, p. 118) destaca ser a problemática do ato "o terreno privilegiado em que se articulam pulsão e linguagem". Em sua perspectiva, todo ato é simbólico; portanto "para que um vínculo entre o ato e o sujeito se estabeleça é necessário o trabalho psíquico levando à elaboração de uma representação a posteriori" (p. 129). A representação, sendo posterior ao ato, indica que ela busca dar conta posteriormente das modificações realizadas no real pelo ato, pois "é no ato que a pulsão pode encontrar sua satisfação" (RUDGE, 1998, p. 137). Na medida em que a pulsão nunca é totalmente satisfeita, o ato expõe a divisão do sujeito. No caso da neurose, o ato será inibido e substituído pelo pensamento como forma de representação da satisfação pulsional, uma vez que "a neurose assegura satisfações imaginárias em que o risco da castração e a angústia são driblados numa formação de compromisso, mas só pode fazê-lo ao custo de uma renúncia ao ato" (RUDGE, 1998, p. 137).

A partir do exposto, podemos aproximar a compulsão dessa forma de satisfação pulsional substitutiva, a que se refere Rudge (1998), da concepção de Assoun (1996) acerca da compulsão como sintoma.

O caso Natália tornou evidente que, antes do seu engajamento em um tratamento, o comer compulsivo não era entendido por ela e que, em geral, eram seguidos por angústia e culpabilidade. Mencionara que, nos momentos em que comia em excesso, procurava fazê-lo diante da televisão para, com isso, não perceber a quantidade de comida que ingeria. Dizia ainda que por vezes, nesses momentos comia até ficar sem ar. Tais afirmações da paciente concorrem para a identificação de sua compulsão com as produções inconsciente do sintoma, os quais, em seu caso, representavam uma satisfação substituta, mas malograda, de seus conflitos inconscientes. O sentido dos sintomas compulsivos de Natália começou a emergir no decurso de seu tratamento, quando se precipitaram, do processo associativo e interpretativo, os elementos que a fizeram identificar seus sintomas com situações que considerava problemáticas.

Ao abordarmos os atos de impulsão, já destacamos que sua elaboração aparece comprometida e que a satisfação pulsional emerge diretamente por intermédio do próprio ato. Por isso, as impulsões dizem respeito a "apresentações do sujeito do lado da pulsão, não do lado do desejo, e o sujeito da pulsão é um sujeito mudo, cuja demanda é muda" (RABINOVICH, 2004, p. 60). O que caracteriza as impulsões é a dimensão do ato, nelas implicada, mas não "no sentido do ato logrado como ato falho, mas nesse outro sentido que dá Lacan quando diz que o ato, como tal, implica que o sujeito aposte sem o Outro" (RABINOVICH, 2004, p. 18 e 19). A impulsão aparece vinculada ao ato, seja pela via da "passagem ao ato, ato e acting out, e, obviamente, o fantasma desempenha nelas um papel fundamental" (RABINOVICH, 2004, p. 19). Essa satisfação direta, decorrente do ato, à qual o sujeito se acha impedido de renunciar, o deixa sem lugar.

Em seu seminário sobre a angústia, Lacan (1962-63/2005) propôs a diferenciação entre acting out, passagem ao ato e ato. O acting out mostra-se na conduta do sujeito e dimensiona-se a partir de sua orientação para o Outro. No acting out emerge a dimensão da encenação, o sujeito age a partir do texto de outro; o sujeito está na cena, eclipsado, e dirige-se ao Outro.

Em essência, a mostração, a mostragem, velada, sem dúvida, mas não velada em si, ela só é velada para nós, como sujeito do acting out, na medida em que isso fala, na medida em que poderia ser verdade. Ao contrário, ela é, antes, visível ao máximo, e é justamente por isso que, num certo registro é invisível, mostrando sua causa. O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa história (LACAN, 1962- 1963/2005, p. 138 e 139).

Para exemplificar isso, Lacan (1962-1963/2005) nos remete ao caso Dora e afirma que todo o "comportamento paradoxal na casa dos K." (p. 137) diz respeito a um acting out de Dora.

A passagem ao ato situa-se do lado do sujeito e diz respeito ao momento do "embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento" (LACAN, 1962-63/2005, p. 129). Neste caso, "o sujeito se encaminha para se evadir da cena" (LACAN, 1962- 63/2005, p. 130), falta a dimensão significante, "o objeto produzido não funciona como causa, pois não há sujeito a posteriori para se responsabilizar" (SILVEIRA, 2003, p. 113). Para evidenciar isso, Lacan (1962-63/2005) cita a cena relatada por Dora a Freud, em que a moça dá uma bofetada no Sr. K., quando este diz que sua mulher não é nada para ele. Segundo Lacan (1962- 63/2005), esta bofetada "nada pode exprimir senão a mais perfeita ambiguidade – será que ela ama o Sr. K. ou a Sra. K.?" (p. 130). Desta forma, a passagem ao ato diz respeito ao "sujeito enquanto apagado ao máximo pela palavra que o barra" (RABINOVICH, 2004, p. 71). Ela não pressupõe um direcionamento ao Outro, em contraponto ao acting out, no qual este aspecto se encontra presente.

No ato há também a abolição do sujeito da cena, que reaparece a posteriori e nele observa-se em ação a incidência do significante. Neste caso, devido à separação que existe entre o sujeito e o objeto "há por um lado a produção do objeto, que é sua dimensão real, e, por outro, como é uma operação significante, o sujeito pode advir mais além" (SILVEIRA, 2003, p. 113). Para Rabinovich (2004, p. 86), "o ato, no qual, o sujeito persiste como dividido, só pode ser definido como tal a posteriori, por suas consequências". Esses efeitos do ato são ambíguos e acarretam a "modificação da posição subjetiva, (...) que impede ao sujeito re-conhecer-se nele" (RABINOVICH, 2004, p. 86).

Foi possível observar, com Marcelo, que, ao relatar seus episódios de "compulsão alimentar", jamais pôde estabelecer conexões entre o ato de comer em excesso e os seus conflitos, sentimentos ou mesmo sua história. Ele, como observado acima, não se reconhecia no seu ato e que estaria, conforme poderíamos dizer com Rabinovich (2004), "em posição de objeto, onde o objeto não está latente, mas está em ato diante de nós, o sujeito se identificando com ele" (p. 47).

No entanto, é importante lembrar que "esta forma de apresentação não é própria de nenhuma estrutura" (RABINOVICH, 2004, p. 47-48). As impulsões não devem ser compreendidas como sintomas, pois, elas "estão do lado do fantasma e remetem ao autoerotismo, não se situam do lado do sintoma". (RABINOVICH, 2004, p. 19). Levantamos a hipótese de que a demarcação precisa da compulsão e da impulsão pode trazer contribuições ao trabalho do psicanalista no que tange ao estabelecimento do diagnóstico diferencial.

Freud (1917[1916-17]/1996), estabeleceu que os sintomas neuróticos possuem um sentido e um caminho de formação. Esse sentido é específico e tem por base as experiências do sujeito. Freud (1917[1916-17]/1996a) afirma ser o paciente aquele que detém o saber acerca do seu sintoma e não o analista, o que ilustra ao ressaltar, a propósito do comentário de um caso, em que: "a interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente, de um só golpe, sem qualquer intervenção por parte do analista" (p. 271). Além desse aspecto, Freud (1917[1916-17]/1996b) postula serem os sintomas o resultado de um conflito, que "surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido. As duas forças que entraram em luta encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado" (p. 361). O sintoma é uma forma distorcida de representar a satisfação de um desejo libidinal inconsciente, e "um substituto de uma satisfação frustrada, realizando uma regressão da libido a épocas de desenvolvimento anteriores, regressão a que necessariamente se vincula a um retorno a estádios anteriores de escolha objetal ou de organização" (FREUD, 1917[1916- 17]/1996b, p. 367).

Os sintomas apresentam também um caminho de formação que remete à satisfação libidinal relacionada com a vida infantil do sujeito. Ressaltamos ainda que os sintomas dizem respeito a uma forma de retorno do recalcado que ocorre devido à insistência da pulsão em satisfazer-se, exigência nunca de todo realizada. Os sintomas são formações exclusivas da estrutura neurótica. Consoante Jorge (2010, p. 71): "na perversão, o não recalque da fantasia é o responsável por essa estrutura ser, para Freud, o "positivo" da neurose. A fantasia constitui a matriz perversa da neurose, ela ocupa na perversão o mesmo lugar que o sintoma ocupa na neurose; e o delírio, na psicose".

A partir de todos os apontamentos acima, concordamos com Assoun (1996) quando afirma que: "existe, porém, um caso em que Freud reconhece as ações como encarnação do sintoma: é o das 'ações compulsivas'" (p. 208); ou seja, as compulsões podem ser compreendidas como sintomas, na medida em que dizem respeito a um retorno do recalcado que visa à satisfação pulsional – nunca alcançada –, possuem um sentido e um caminho específico de formação. Assim, inferimos que a compulsão é uma formação específica da estrutura neurótica. Entretanto, com relação à impulsão, não foi possível realizarmos tal aproximação, pois, diferentemente dos sintomas, as impulsões são atos; emergem suscitando uma satisfação direta que deixa o sujeito mudo e sem lugar. Desta forma, as impulsões não são específicas da neurose, sendo importante que estas sejam compreendidas do ponto de vista estrutural.

 

A repetição na compulsão e na impulsão

É importante pensarmos a dimensão da repetição em sua relação com a compulsão e com a impulsão, aproximando estes conceitos do terceiro momento referente ao ato proposto por Assoun (1996), pois tal aproximação nos moverá a refletir sobre os impasses que ambas podem trazer à condução do tratamento analítico. Este terceiro momento consiste ao agir no tratamento, problema levantado por Freud em seus textos técnicos. Neles, o ato é compreendido como um problema técnico, por isso "mais que reduzi-lo à sua função, convém abordá-lo fenomenologicamente, por seus efeitos, para determinar o que ele especifica da problemática freudiana precedente, bem como o que, dela, ele 'dramatiza'" (ASSOUN, 1996, p. 215).

Freud (1914/1996) afirma que, através do recordar, o paciente relembra o que fora esquecido e que tal é responsável pela produção do material sob o qual se dará a elaboração. A repetição, por sua vez, é concernente às atuações do paciente, que substituem a recordação. Assim, o ato se manifesta no tratamento por meio da repetição. Nesse sentido, "o agir é, pois, repetição do recalcado, 'sob forma de ação', e não 'sob forma de recordação'. Nisso, o denominador comum é o conteúdo recalcado, apreendido aqui sob forma de rememoração e ali sob forma de 'ato'" (ASSOUN, 1996, p. 215).

O ato manifesta e pratica o não sabido; e, com isso, o acesso à rememoração resulta inviabilizado. O ato, dessa forma, pode figurar como um suplemento à informação não sabida e à transferência, mas de forma alguma como a essência da relação analítica. Cabe ao analista trabalhar para que o paciente substitua a esfera da ação pela da fala, através da qual é possível elaborar pela via das palavras o que emerge na lembrança do paciente. Freud (1914/1996) nos ensina que para o médico:

Recordar à maneira antiga – reprodução no campo psíquico – é o objetivo a que adere, ainda que saiba que tal objetivo não pode ser atingido na nova técnica. Ele está preparado para uma luta perpétua com o paciente, para manter na esfera psíquica todos os impulsos que este último gostaria de dirigir para a esfera motora; e comemora como um triunfo para o tratamento o fato de poder ocasionar que algo que o paciente deseja descarregar em ação seja utilizado através do trabalho de recordar (p. 168).

A partir do que foi discutido com relação aos atos compulsivos, ressaltamos que o trabalho em torno do que é repetido em ato, pela via da recordação e elaboração, é possível, uma vez que as compulsões são sintomas carregados de significação. Quanto aos atos de impulsão o que se observa é o comprometimento de tal trabalho, pois a impulsão deixa o sujeito mudo, sem lugar, do lado da pulsão e não do desejo, "porém, nós só podemos analisar as demandas parolantes, as tagarelas" (RABINOVICH, 2004, p. 60). Tal aspecto vem colocar um impasse no que concerne à direção do tratamento analítico nos casos de impulsão. Rabinovich (2004) propõe que é necessário fazer operar uma perda de gozo nestes casos e ressalta:

O que me parece mais importante é que frente a esta necessidade de, de vez em quando, recuperar forças com a impulsão, começa a produzir-se uma virada da passagem ao ato (que Lacan situa precisamente do lado do "eu não penso") ao acting-out (que está do lado do "eu não sou"). Recordem que no acting-out o objeto está indicado, dirige-se a um Outro, da ordem de uma transferência selvagem, plenamente estabelecida, e este se assemelha, então, com o sintoma [...] (RABINOVICH, 2004, p. 61).

Dessa forma, o acting-out parece necessário porque geralmente "vincula- -se com o desencadeamento da transferência" (RABINOVICH, 2004, p. 61).

 

Considerações finais

Os dados antes apresentados nos levaram a mostrar a necessidade do analista se posicionar diferencialmente na condução do tratamento de sujeitos que apresentam os dois tipos de fenômenos clínicos objetos de nossa análise. Pudemos, ainda, reafirmar, a partir da nossa experiência com esses pacientes, citados por intermédio de vinhetas clínicas ao longo desse artigo, que a compulsão está do lado do desejo, do gozo fálico, sendo, assim, exclusiva da estrutura neurótica. Por outro lado, observamos que as impulsões podem ser situadas entre o gozo do ser e o gozo fálico, remetem a um gozo autoerótico e dizem respeito a atos que irrompem deixando o sujeito mudo. Além disso, elas devem ser compreendidas como atos e não como sintomas, e, em assim sendo, podem comparecer em qualquer estrutura clínica.

Buscamos, com este trabalho, suscitar uma discussão concernente à compulsão e à impulsão com relação ao diagnóstico psiquiátrico de compulsão alimentar, pois acreditamos que o analista, ao demarcar a diferença entre tais conceitos, pode trazer contribuições relevantes ao diagnóstico proposto pela equipe multidisciplinar e ao tratamento de sujeitos que manifestem tais sintomas ou atos, como pudemos observar a partir das vinhetas clínicas apresentadas. A distinção entre compulsão e impulsão contribui para ao trabalho do analista, uma vez que pode auxiliar no estabelecimento do diagnóstico diferencial do sujeito em tratamento.

No caso Natália, ressaltamos ter sido o trabalho analítico relevante por fornecer as condições para o início de um trabalho em direção à produção de um sentido para os seus sintomas de compulsão alimentar. Em contrapartida, no caso Marcelo, detectamos que a elaboração de um sentido para os atos de compulsão alimentar estava comprometida. O paciente relatava obter, com seus atos de impulsão alimentar, um prazer que, em verdade, tratava-se de um gozo que emergia diretamente no real do corpo.

Pesquisas apontam que o diagnóstico de TCAP está presente cerca de 11% a 49% dos casos de pacientes obesos em espera para a realização da cirurgia bariátrica (PALAVRAS et al., 2011). Nelas, destaca-se a relevância desse tipo de cirurgia ser realizada em pacientes obesos, dados os benefícios que podem ser alcançados quanto à perda de peso, à melhoria das comorbidades relacionadas com a obesidade, e para a melhora da qualidade de vida (FANDIÑO et al., 2004; MONTEIRO et al., 2008). Por outro lado, Fandiño (2004) demonstra os resultados de um estudo longitudinal, realizado por Hsu, Betancourt, Sullivan (1996), no qual 120 pacientes com obesidade mórbida foram avaliados, sendo que 58,3% apresentavam algum tipo de Transtorno Alimentar antes da realização da cirurgia. "Na avaliação pós-operatória, observou-se que estes pacientes tinham uma maior dificuldade para perder peso e, em alguns casos, teriam até apresentado ganho ponderal" (FANDIÑO, 2004, p. 59). Casos haveria em que os pacientes submetidos à cirurgia reganharam peso algum tempo depois. Fandiño (2004) constatou que alguns estudos "de seguimento a longo prazo de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica reportaram várias condições psiquiátricas como causas de morte no período pós-operatório, sendo o suicídio a principal ocorrência" (p. 49). Destaca, ainda, que a mortalidade Perioperatória ocorre em de 0.3% a 1.6% dos casos.

Estes dados suscitam reflexões acerca do que de fato está em jogo nesse tipo de manifestação psicopatológica que pode levar o sujeito a comer tão excessivamente de modo a prejudicar gravemente a saúde e arriscarem a própria vida.

Em nosso entendimento, a ação da pulsão de morte parece ser comum tanto nos casos em que se observa o comer compulsivo e o impulsivo. No entanto, o grau de defusão pulsional entre pulsão de vida e de morte se mostra mais intenso nos casos de impulsão alimentar, dada a dificuldade dos sujeitos em abrir mão do gozo direto por elas proporcionado e que desconsidera qualquer intermédio da alteridade simbólica e imaginária, o que resulta ilustrado pelos sujeitos que, barrados em seu gozo ou fracassados em sua reação ao seu excesso, cometem suicídio após a realização da cirurgia ou do vergonhoso ganho de peso, mesmo a despeito dela. Nos sujeitos com sintomas de comer compulsivo, as consequências da não satisfação do gozo fálico neles compreendido tendem a levar a outros tipos de prejuízos que incidem por sobre os modos de vida dos sujeitos e que indicam igualmente a ação da pulsão de morte, sem que, no entanto, sua vida seja ameaçada de forma tão severa ou irreversível.

Precipitaram-se para nós as perguntas: Quais os riscos para esses pacientes da realização de um simples diagnóstico sindrômico de compulsão alimentar? Por que em alguns casos a cirurgia bariátrica não opera como um limite que pode fazer face à relação excessiva do sujeito com a comida – o que pode ser observado nos casos de reganho de peso ou de morte?

Salientamos que não nos ocorre a negação da hipótese médica de que a cirurgia bariátrica e os tratamentos medicamentosos, seguidos de rigorosas prescrições nutricionais são fundamentais dados os benefícios que podem fazer recair quanto ao reajuste do funcionamento vital do corpo do sujeito em tratamento. O que nos interessa pôr em relevo é que a consideração pelo modo de estruturação psíquica em relação a tais atos ou sintomas é imprescindível para a tomada de decisão na adoção ou não desses tipos de conduta.

São tais questões que nos levam a considerar discutível, por exemplo, a realização da cirurgia bariátrica em Marcelo, pois seus atos de impulsão alimentar resultavam no experimento de um gozo corporal difícil de barrar, semelhante ao que podemos observar, por exemplo, em muitos casos de toxicomania. A barreira a este gozo no caso de Marcelo tornara-se o seu corpo. Era o risco de amputar suas pernas que impunham limites para suas "orgias alimentares". Uma vez que esta barreira é substituída por outros limites decorrentes de tal cirurgia, como nos casos em que se dá a redução de estômago ou de intestino, indagamos: como Marcelo deteria seu gozo após a cirurgia? Que implicações trariam para ele essas formas reais de limites, como por exemplo, a redução de estômago?

Em se tratando de um caso de compulsão alimentar, poderíamos apontar como uma solução mais fácil a tais problemas seria a possibilidade de haver o deslizamento do objeto comida para outro objeto; afinal, Freud (1917[1916- 17]/1996ª) nos ensina, quanto aos sintomas apresentados pela neurose obsessiva, que é possível ao sujeito "realizar deslocamentos, trocas, pode substituir uma ideia absurda por outra um pouco mais atenuada, em vez de um cerimonial pode realizar outro. Pode deslocar a obsessão, mas não removê-la" (p. 267). No entanto, essa simples substituição não indica ter havido uma elaboração dos conflitos presentes nas bases dos sintomas, podendo desembocar nas rupturas psíquicas e de laços sociais antes aludidas. Mas, nos casos de impulsão tal substituição é possível? O ato de comer excessivamente poderia ser substituído por outro ato? Seria isto o que estaria em foco nos casos de pacientes que passaram ao ato suicida?

Além disso, ressaltamos que para pensarmos a inserção do psicanalista numa equipe multidisciplinar de tratamento desse problema clínico, acreditamos fundamental o nosso propósito em traçar as diferenças de expressão da impulsão e da compulsão a partir da consideração pelas estruturas clínicas; afinal, os sintomas e atos dos pacientes não aparecem de forma autônoma independentes delas. Reafirmamos, por fim, a importância da realização do diagnóstico diferencial para a definição da posição do analista e da equipe na direção do tratamento, na compreensão do caso e nas decisões terapêuticas a serem adotadas, bem como no planejamento das ações a serem desenvolvidas junto à equipe multidisciplinar.

 

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Endereço para correspondência:
Ana Carolina Pacheco Bittencourt
e-mail: acpbittencourt@gmail.com

Laéria Bezerra Fontenele
e-mail: laeria@terra.com.br

Tramitação: Recebido em 21/03/2013
Aprovado em 28/04/2013

 

 

* Mestranda em Psicologia/Universidade Federal do Ceará (UFC), membro associado em formação permanente/Corpo Freudiano-Seção Fortaleza
** Professora associada Programa de Mestrado em Psicologia/UFC, coordenadora Laboratório álise/UFC, diretora Corpo Freudiano-Seção Fortaleza
1 Ressaltamos que, do ponto de vista psicanalítico, não existe a categoria nosográfica transtorno alimentar, e que, se a usamos no contexto deste trabalho, isso se deve ao fato de que ela se impõe de forma hegemônica no contexto dos citados programas, sendo neles utilizada no sentido que lhe é dado pelo DSM-IV e o CID-10 e diz respeito a um tipo de prática diagnóstica baseada em critérios fenomenológicos e sindrômicos.