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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

Artigos

Invisibilidade, identidade e laço social na contemporaneidade: sobre a exclusão nas esferas psíquica e social

 

Invisibility, identity and social link in contemporaneity: about the exclusion under the perspective of psychic and social

 

 

Maria Lenz Cesar Kemper*

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A partir da entrevista de um rapaz pobre, discutem-se os efeitos subjetivos da criminalização e da marginalização da pobreza, tendo como referências a dimensão pulsional em Freud e alguns de seus estudos sobre o laço social, bem como a análise de psicanalistas contemporâneos sobre esse aspecto. A exclusão, a clivagem, a violência, a impossibilidade de inscrição simbólica, são dimensões de falta e de excesso, presentes, tanto na precariedade econômica quanto na cultural, que apontam para um caráter traumático.

Palavras-chaves: Exclusão, marginalização, identidade, laço social, contemporaneidade.


Abstract

The starting point of this article is an interview of a poor young man, that raises questions about the subjective effects of the criminalization of poverty and of marginalization, taking as reference the drive dimension in Freud and some of his studies about social link, as well as the analysis of contemporary psychoanalysts. Exclusion, cleavage, violence, the impossibility of symbolic inscription are dimensions of lack and excess, present in both the economic and the cultural precariousness, that indicate a traumatic aspect.

Key-words: Exclusion, marginalization, identity, social link, contemporaneity.


 

 

Quando olho sou visto, logo existo. Agora tenho como olhar e ver. Agora olho com criatividade (…). (WINNICOTT, 1968)

Introdução

Há alguns meses circulou pelas redes sociais um vídeo em que um jovem rapaz, algemado e com um hematoma no rosto, decorrente de uma surra da polícia era "entrevistado" em uma delegacia por uma "repórter", que insistia em acusá-lo de estupro1. Trata-se de um desses programas policialescos sensacionalistas, nos quais quanto maior a miséria humana, maior o IBOPE. A entrevistadora esforçava-se, então, em piorar a situação do jovem, detido por roubo, o qual ele confessava, insistindo, aos berros, que se ele não tinha estuprado a vítima de seu roubo, "queria estuprar". O rapaz, chorando diante das câmeras, jurava inocência, nomeando alguns poucos parentes que poderiam testemunhar que ele jamais seria capaz de estuprar, embora já tivesse "caído em delegacia" antes. Na tentativa de ratificar que não era "estrupador", afirmava que faria um exame, ficaria frente a frente com sua vítima e que esta também deveria ser examinada.

A jornalista, encarnando a defensora dos bons costumes e raivosamente insistindo em apresentar o rapaz como a grande ameaça a esses, arvora-se também a defensora do bom português, esbaldando-se ao conseguir a isca que precisava: o rapaz não sabia falar o nome do exame que propunha fazer. Ele cita exame de "estropa", o qual a risonha repórter pede para ele repetir inúmeras vezes, sob o efeito de edição sonoro de um choro de bebê. A situação consegue ainda piorar, quando, diante da insistência de que ele repita o nome do exame, o rapaz se justifica, dizendo que não sabe falar direito, e, ao tentar se corrigir, nomeia "exame de próstata". Aí, a ironia e o desrespeito, marcantes desde o início da reportagem, intitulada "Chororô na delegacia", explode, com mais efeitos sonoros, dessa vez de risos e uma boa gargalhada da repórter, que ainda insiste mais duas vezes que o rapaz responda qual é nome do exame que "quer fazer", afirmando que o vídeo iria para o youtube. Por fim, grita "estuprador, Paulo Sérgio estuprador!" Ela termina com "chave de ouro", esclarecendo que quem faz exame de próstata é homem, ironizando a disponibilidade que o rapaz apresenta para fazê-lo e provocando ao dizer que ele gosta, que estava com vontade de fazer tal exame.

Apesar do absurdo do mencionado vídeo, infelizmente, trata-se de algo corriqueiro na televisão brasileira. Por outro lado, nas redes sociais, que têm se mostrado uma enorme potência questionadora e alternativa às grandes mídias, ocorreu uma mobilização que colocou em debate importantes temas condensados na dantesca situação. Circularam muitas discussões sobre concessão televisiva, que, em teoria, tem finalidade educativa e cultural, em relação ao papel da mídia na nossa cultura da desigualdade e da criminalização da pobreza, quanto ao acesso que esses programas têm às delegacias e aos supostos criminosos e a respeito da conduta antiética da jornalista.

Dentre tantas questões relevantes presentes nesse episódio, destacamos que esse rapaz, ao ser cruelmente desprezado pela entrevistadora, paradoxalmente, sai de sua invisibilidade e vira tema de discussão nas redes sociais. O jovem de dezoito anos, negro e pobre, torna-se visível, provavelmente, pela primeira vez na vida, sob luz, câmera e um microfone perverso, a partir da ira da loira defensora dos bons costumes e do bom português. Alvo de atenções como marginal, Paulo Sérgio também passa a ser olhado como sujeito de direitos, inspirando textos, manifestos, movimentos, processos – o que culminou com a demissão da jornalista.

Tomando como ponto de partida o vídeo e seus desdobramentos, que nos apresentam uma série de questões sobre a marginalização, o presente artigo propõe algumas reflexões sobre a exclusão social e suas incidências psíquicas. A partir da compreensão da marginalização enquanto clivagem, discutiremos a relação entre a situação de não reconhecimento e os processos subjetivos e identitários. Para tanto, nosso fio condutor são as referências freudianas sobre a economia pulsional e a perspectiva psicanalítica de que o social e o psíquico estão intrinsecamente ligados. Assim, com base em indicações da teoria freudiana e de psicanalistas contemporâneos, como Marcelo Viñar (2007, 2010), Liana Albernaz de Melo Bastos (2006, 2009) e Jean Furtos (2007), teceremos considerações sobre a exclusão, pensando o laço social e sua estreita relação com o desenvolvimento narcísico-identitário.

 

Fora da ordem

A compreensão de marginalidade pode ser remetida a uma divisão entre dentro e fora, a um contraste entre os que estão incluídos e os que são excluídos da ordem social. Tal noção designa, segundo Viñar (2007, p. 4) "(...) uma massa amorfa (...), os excluídos, categoria na qual é fácil projetar a figura do monstro que carregamos. (...) Esses homens não são meus semelhantes, não são meus próximos, são outros, espécies de alienígenas, de alienados." (tradução nossa). Para Viñar (op. cit.), a marginalidade contém todos os males e nenhuma esperança.

O excluído é invisível, está no âmbito do que não é inscrito ou representável. Podemos pensar a exclusão, a partir das ricas reflexões de Bastos (2006, 2009), como um mecanismo de clivagem (tanto para os que estão "fora" quanto para os que estão "dentro"), que é defensivo e ao mesmo tempo perverso, no sentido em que há uma denegação: ao olhar para o outro lado para evitar o confronto com o excluído, exclui-se uma parte de si mesmo, projetando-a para o exterior na figura do outro, do diferente, do marginal, do estranho, do pobre. Dessa forma, todos sofrem um empobrecimento: uns por não reconhecerem e outros por não serem reconhecidos. Não há troca de experiências e o outro se torna o inimigo. Assim, a violência é comodamente compreendida como pertencendo ao "fora" e deve ser combatida, pois o "inimigo" é tido como perigoso e invasor, uma vez que o material projetado retorna ao eu na figura do perseguidor.

Como sugere Reis (2012), é a imagem do bárbaro que pertence ao fora, cuja invasão deve ser evitada com muros, barreiras, controles de segurança, políticas antiterroristas. O estrangeiro torna-se inimigo, nos diz Freud (1915).

O narcisismo das pequenas diferenças, segundo Freud (1930), permite dirigir a raiva para o exterior, para aqueles que não pertencem a mesma comunidade, a mesma raça, a mesma religião, etc. Essa raiva pode inflamar sem limitações, como demonstra a história e a repórter-justiceira, bem como seu coro de raivosos.

Viñar (op. cit.) lembra que, durante o século XX, os marginalizados foram segregados metodicamente em instituições a partir da justificativa de proteção; fazendo-nos indagar se o intuito é proteger quem está dentro ou quem está fora.

No caso de Paulo Sérgio, o rapaz que saiu do anonimato a partir da entrevista narrada acima, seu crime ganhou desdobramentos para além de sua momentânea visibilidade. De maneira um tanto quanto equivocada, o exagero da repórter inverteu a lógica da criminalização da pobreza, tão presente na nossa cultura, e repetida na TV, onde programas como esses partem do princípio de que todo detido é culpado e não interrogam o fato, por exemplo, de o rapaz estar machucado por ter apanhado da polícia antes de ser levado à delegacia. Afinal, "bandido tem que morrer ou apodrecer na cadeia", como afirmam tan

tos comentários feitos nas redes sociais depois do vídeo ser amplamente divulgado e discutido.

 

O beco sem saída da pobreza

Marginal, excluído, estuprador são generalizações que reduzem o sujeito e impõem uma identidade que ofusca qualquer outra. O marginal passa de adjetivo a substantivo, uma categoria.

A identidade se constrói entre o individual e o social: a identidade pessoal é sempre ligada ao cultural, ao laço social, aos valores e crenças que constituem o sujeito e são ao mesmo tempo por ele constituídos.

O reconhecimento é o que nomeia o sujeito não somente aos outros, mas para ele próprio. Assim, a impossibilidade de reconhecimento e de inscrições grupais e sociais ameaça o desenvolvimento narcísico-identitário, reduzindo as referências identificatórias e, portanto, as possibilidades criativas de existência.

Viñar (op. cit.) lembra quanto é fundamental um laço social que sustente a filiação, o pertencimento a um grupo, o reconhecimento. Cada grupo, cada comunidade precisa de seu mito de origem, seu lugar na genealogia, afirma ele.

Filhol (2002) trata da questão da filiação como suporte da identidade a partir da história contada, das experiências de vida, da troca familiar. É esta herança familiar, essa história "que institui a ordem genealógica, que sanciona nosso pertencimento, que funda nossa identidade" (ibid., p. 125, tradução nossa). Ele continua:

(...) o pertencimento é um ato fundador dos adultos, que identificam a criança ao nomeá-la em um ato simbólico que a inscreve numa descendência. No entanto, parece fundamental lembrar que os problemas de desfiliação (nas palavras de Robert Castel) e do sofrimento que eles causam nas crianças não pode ser despojado das armadilhas de privação social e econômica que permanecem, quer gostemos ou não, um dos fatores agravantes dos mecanismos de transmissão (loc. cit., tradução nossa).

Na exclusão, frequentemente, há uma ruptura da rede social por conta do isolamento, da pobreza, da violência, da fome, do desemprego, das limitações de oportunidades, etc. Não se trata apenas da precariedade objetiva, mas de um empobrecimento do laço social, da inscrição simbólica. A consequência é uma ferida narcísica profunda, que não cicatriza facilmente (VINÃR, op. cit.).

Assim, além das marcas relativas à carência material e cultural e à vulnerabilidade ligadas à insegurança, à instabilidade e à exposição a situações-limite, a exclusão social é marcada pela marginalização, um processo ativo e reiterado de ataque aos processos de filiação e identificação.

Ora, se tomarmos tais processos como parte da condição humana, que é sustentada sobre a relação entre espaço íntimo e espaço social, entendemos que a pobreza econômica, muitas vezes, desdobra-se em pobreza simbólica, das relações intersubjetivas, da capacidade de modificar o ambiente e de encontrar formas de inclusão.

Assim, no caso da exclusão social, há um ciclo-vicioso sem-saída: o excluído é aquele que não é visto, não é reconhecido, não pertence e essa impossibilidade de ser olhado dificulta a criação de respostas que permitam algum tipo de inclusão produtiva.

 

Violência gera violência

A exclusão é uma ruptura da ordem simbólica, que é a base do sujeito, da rede que confere humanidade ao humano, segundo Viñar (op. cit.). Quando faltam as condições mais básicas de humanidade, impõe-se a violência e estratégias de sobrevivência limítrofes:

Despojados da disponibilidade de projetos e horizontes prospectivos, destituídos da ordem social e simbólica vigente, reduzidos a estratégias de sobrevivência, aparecem novas formas ou práticas de subjetividade, aptas a habitar as condições-limite, novos códigos resultantes dessas condições de existência (ibid., p. 8, tradução nossa).

Bastos (2009) afirma que, na ausência de uma rede de afetação positiva que ofereça uma base, em que o sujeito possa manifestar-se em sua potência expressiva, "o que se vive é da ordem do horror, que se manifesta como violência" (ibid., p. 7). A invisibilidade desses excluídos só se coloca em questão quando eles perturbam a ordem social através da violência, passando momentaneamente à visibilidade.

Em Exclusão social: aspectos traumáticos da violência contemporânea (2006), Bastos lembra que a exclusão é um sofrimento ainda mais profundo do que aquele advindo do mal-estar na cultura, pois não diz respeito à renúncia pulsional em nome de uma aceitação e pertencimento sociais, mas à impossibilidade de participar do pacto social, de ser reconhecido. Para ela, a violência é uma das formas de apresentação desse sofrimento, assim como a depressão, as adições e algumas formas de psicoses. São sintomas ligados ao próprio mecanismo da exclusão, marcados pela fragmentação, mobilidade e atravessados pela angústia do desligamento, relativa ao não pertencimento.

Furtos (2007) também aborda o mal-estar na cultura, afirmando que a humilhação, o desprezo e a indiferença compõem um quadro de dores psíquicas, que como Freud (1930) já assinalava, provêm da maior fonte de sofrimento humano, qual seja, a relação com o outro. Ele lembra que o humano não existe individualmente, mas sempre em relação a um grupo, seja pertencendo a ele ou sendo dele excluído. A vulnerabilidade humana reside nessa dependência do outro, em que só se existe a partir do reconhecimento coletivo.

Segundo este autor, a exclusão social é vivida como o sentimento de não fazer parte da humanidade e a ausência de reconhecimento, que Furtos afirma ser o maior horror humano, acarreta uma clivagem psíquica. Esta tem como consequência uma negação do eu e uma desconexão entre corpo e psiquismo. Seu caráter traumático, relativo a um horror irrepresentável, permite-nos indagar se tal processo de clivagem favorece comportamentos disruptivos.

Nesse sentido, a manifestação compulsiva do ato violento pode ser compreendida como uma contrapartida à falta de pertencimento, a um excesso pulsional advindo de situações-limites, a uma dificuldade de simbolizar o que se vive e ainda como uma forma de lidar com o outro como inimigo.

A ruptura do pacto social, ou seja, a ausência de contrato de renúncia pulsional em nome da vida comunitária, pode manifestar-se em comportamentos violentos e antissociais. Ora, se a exclusão põe em xeque o pertencimento ao social, ela coloca em questão a grupalidade, uma vez que, sem acordo intersubjetivo, o respeito à lei não tem sentido.

É a lei que impõe limites ao narciso primitivo, potencialmente criminoso, que regula os limites da agressividade (VIÑAR, op. cit., p. 9), que afirma o outro como próximo, como sujeito de igualdade, com mesmos deveres e direitos. Para que esta lei e esta igualdade sejam possíveis, é necessário haver um terceiro, a ordem simbólica. Num contexto em que a função simbólica encontra- se comprometida por conta da marginalização, é preciso questionar a ideia de lei e relativizar o sentido da transgressão. Assim, o que é compreendido como delinquência e comportamento antissocial é relativo a uma perspectiva de pacto social que supõe o equívoco que o sujeito assim nomeado é sujeito da lei, pertencente à ordem simbólica instituída.

Norbert Elias (1997) mostra que a delinquência juvenil pode representar uma via identitária, uma autoafirmação quando a comunidade de pertencimento não exerce um controle social e não oferece outras vantagens identificatórias. Ele aponta que a formação de identidades, coletivas e individuais, são diretamente afetadas pelos processos de desqualificação e estigmatização, sendo a marginalização um caminho de mão dupla: a comunidade rejeita um determinado grupo porque ele se comporta mal e ele se comporta mal porque a comunidade o rejeita. Desorganizar e constranger aqueles que excluem é um incentivo para a má-conduta, afirma. Assim, a agressividade diz respeito às incidências psíquicas da relação entre dois grupos e se inscreve nas relações de poder entre excluídos e dominantes.

Segundo P. Mannoni (2000), na ausência da possibilidade de satisfação de desejo por meio da inclusão ou do consumo, o campo da delinquência se torna atraente. Trata-se de uma tentativa de se construir e desconstruir, sendo a destruição organizada uma possibilidade de existência, única forma de exercer algum poder sobre as coisas e os seres. São destruições oriundas da necessidade de agir, seja com caráter simbólico ou, simplesmente, de satisfação pulsional, de busca de destino para o mal-estar experimentado.

A leitura de Mannoni (op. cit.) sugere que a passagem ao ato pode ser pensada como consequência da impossibilidade de investimentos objetais. Quando a vida está empobrecida a ponto de não existirem alvos para canalizar a pulsão, esta se apresenta de forma disruptiva e destrutiva, seja contra o próprio sujeito, seja contra o exterior. A busca de um objeto oferece um continente a um transbordamento narcísico e à dificuldade de se enquadrar às exigências sociais e, nesse sentido, o pertencimento a grupos marginais serve de suporte identificatório diante da falta de outras possibilidades, como família e redes de vinculação social. Mannoni propõe que esses "bandos" são substitutos familiares, micro sociedades, onde se encontra um enquadramento, uma forma de vida gregária, sendo possível construir com outros semelhantes o que não é possível construir em outros espaços.

Assim, podemos nos interrogar se o lugar de "bandido", o pertencimento a grupos marginais (como o de traficantes de drogas, ou o de meninos de rua, ou o de "trombadinhas") não é uma tentativa identificatória. Além disso, em contextos marcados por uma fragilidade da ordem simbólica, podem surgir relações de poder em que a marginalidade representa uma possibilidade de assumir uma posição ativa, como é o caso do tráfico de drogas nas favelas de grandes centros urbanos. Este não só exerce enorme atração nos jovens marginalizados, a partir da oferta de um lugar social, mas marca toda uma cultura e uma identidade local, com suas leis próprias, sua música, seu vocabulário, além da instituição da violência como parte do cenário cotidiano.

Furtos (op. cit.) destaca a transformação de uma posição passiva (ser excluído) em ativa (se excluir) como única possibilidade de agir na realidade, nos casos extremos de exclusão. Nesse sentido, cabe indagar se os comportamentos "delinquentes" podem ser pensados como uma maneira de se apresentar ativo num processo de marginalização, ou ainda, de justificar tal processo. Se o sujeito é um ser social, que só tem sua existência legitimada pelo pertencimento a uma comunidade, é preciso significar essa relação mútua entre indivíduo e sociedade. À medida que o sujeito é dela excluído, nada mais natural que se apresentar, ativamente, enquanto tal através de comportamentos marginalizantes.

Assim, os comportamentos violentos e provocativos são uma forma de assumir uma posição ativa, de ter voz, de sair da invisibilidade. Mannoni (op. cit.), assim como Viñar (op. cit.), aponta que a violência pode ser uma forma de deixar o anonimato. Os excluídos só aparecem "quando a miséria material arrasta a miséria psíquica e irrompe desorganizando nosso mundo de bons costumes" (VIÑAR, op. cit., p. 3).

Viñar afirma que a tendência antissocial pode ser associada a uma infância desprovida, que carece de referências identificatórias íntegras, onde a penúria crônica, a miséria e a exclusão impedem o sentimento de empatia com o outro. Este só é possível quando se é visto e reconhecido pelo outro. Furtos (op. cit.) afirma que o sentimento de exclusão da comunidade humana gera uma ausência generalizada de sentimentos. A insensibilidade à dor do outro é um reflexo, espelho do que é vivido pelo sujeito ele próprio (VIÑAR, op. cit., p. 14). Podemos inferir que os "marginais" são sujeitos que vivem a violência e, portanto, é natural que a atuem. Afinal, o recalque da agressividade tem como compensação a aceitação social apenas para aqueles que pertencem à comunidade simbólica.

Entretanto, o próprio Viñar chama atenção: não cabe dar sentido à violência; trata-se justamente de uma passagem ao ato resultante da impossibilidade de significar, de inscrever subjetivamente, de representar simbolicamente (op. cit., p. 10).

 

Além

Paulo Sérgio, filho de uma prole de seis irmãos, vive na rua desde criança. Não sabemos mais sobre sua história (e só soubemos de sua existência e desse pequeno fragmento de sua vida por conta deste acaso que o tornou visível), mas nos cabe estranhar, por mais absurdamente comum que isso seja, que uma criança deixe sua casa para viver na violência, no anonimato, na indignidade das ruas. É válido também interrogar sobre as formas de resistência e de identidade, sobre as dimensões de vida e de morte nessa escolha da rua, se é que podemos chamar de escolha.

De fato, escolha não parece a palavra mais adequada para situações em que o cotidiano é vivido na dimensão da urgência, é tão terrível, que a vida psíquica parece limitada a lidar com um excesso incessante, para o qual são escassos os recursos de mediação simbólica.

Em situações de emergência, aguda ou crônica, a mente habita só o tempo atual e urgente do presente. Quando se perde ou deteriora a capacidade de integrar o tempo vivencial em um tríptico de passado, presente e futuro, de um tempo que articule a memória com desejos e projetos, o acontecer perde sentido e o tempo psíquico é vivenciado epileticamente como uma sucessão de presentes perpétuos (VIÑAR, op. cit., p. 10, tradução nossa).

Na ausência de um aparato social, do recurso a um outro, de um substrato simbólico, há uma dificuldade de inscrição, uma impossibilidade de elaboração psíquica, que faz com que as vivências não simbolizadas permaneçam como um excesso para o aparelho psíquico, como algo que Freud (1920) situa "além do princípio do prazer".

Segundo Laplanche e Pontalis (1978), no traumatismo, o aparelho psíquico não é capaz de descarregar uma tamanha quantidade de excitação, o que faz com que a vivência excessiva, sem possibilidade de ab-reagir ao estímulo, de elaborar, mantenha-se como um corpo estranho no psiquismo, como algo que não se conhece.

É como os soldados de guerra dos quais fala Benjamin (1933), que retornam da batalha sem possibilidade de narrar e significar o que eles viveram2. Podemos também fazer referência, guardadas as devidas proporções, aos pacientes que chegam aos consultórios particulares "sem queixas", dos quais tanto se fala hoje no meio psicanalítico.

É a possibilidade de falar, de significar, de transformar vivência em experiência que permite a inscrição simbólica, e, portanto, a inclusão. Compartilhar experiências está na base da subjetivação, do que caracteriza o humano como ser social. A narrativa é uma forma de afirmar o desejo, um espaço de troca, que abre a novas possibilidades e permite um repertório de estratégias subjetivantes no encontro com a rede social.

A capacidade de contar é uma forma de fazer laço entre individual e social, entre a vivência subjetiva e a experiência coletiva, entre o pessoal e o comunitário. A narrativa é também a possibilidade de transmissão, de geração em geração, da cultura, dos valores sociais, da tradição, da sabedoria, da autoridade.

Podemos interrogar como esta capacidade narrativa, a transmissão, se dá nas situações de marginalidade, onde o pertencimento ao coletivo já se encontra fragilizado e a vivência muitas vezes está limitada à urgência da necessidade. Será possível, nesses contextos de exclusão, transformar o vivido em experiência pela narrativa? E, se não, podemos então afirmar que a impossibilidade de transmissão, que tem função de laço social, agrava a situação, aumentando a marginalização? Que cultura, que identidade, que valores o sujeito em situação de precariedade social consegue transmitir?

Viñar (op. cit.) faz uma distinção entre viver e sobreviver. A consciência de si, a capacidade reflexiva é característica do viver, no qual há projetos e marcas singulares. Naturalmente, a vida pode tomar caminhos mortíferos – da doença psíquica, do niilismo – mas se trata, afirma Viñar, de caminhos subjetivos, o que difere de uma situação inelutável na qual as vias psíquicas estão impedidas, limitadas a uma imposição exógena, às exigências da necessidade.

A marginalidade só pode ser superada quando o sujeito é sujeito de sua própria experiência, ao se apropriar de seu corpo e de sua voz. A narrativa permite dar sentido, afirmar o sujeito, e, por sua função mediadora, substituir a violência (aquela que é vivida e aquela que é atuada).

Viñar, assim como Benjamin, afirma a importância da narrativa como parte da condição humana, do processo de simbolização, permitindo a inserção do homem no social: "A palavra subjetivante é uma necessidade tão essencial quanto o alimento" (VINÃR, op. cit., p. 17, tradução nossa). Ela é o substrato de base para a descarga dos estímulos experimentados pelo aparelho psíquico.

Assim, a inexistência desse espaço de narrativa representa uma hemorragia psíquica, comprometendo o espaço íntimo de autorreflexão. Neste caso, o universo simbólico não dá conta de significar e inscrever um excedente que é da ordem de algo que insiste e repete, de algo traumático.

Trata-se da ideia de trauma como excesso, introduzida por Freud em 1920, a partir da metáfora da vesícula viva, que sofre um traumatismo quando uma excitação atravessa seu filtro protetor e adentra o aparelho psíquico. Entretanto, há outras perspectivas do trauma. Dentre elas, cabe destacar uma sugestão freudiana, apresentada em 1926, de que o psiquismo é fundado num trauma, o do nascimento. Neste, o bebê vivencia uma angústia que, por conta da imaturidade psíquica, não é passível de simbolização. Tal experiência provoca um recalque originário, constitutivo do sujeito. Nesse sentido, o trauma ganha um acepção mais extensa, subjetivante, estruturante3.

O destino subjetivante ou dessubjetivante do trauma depende da singularidade de cada sujeito e da maneira como a vivência excessiva articula-se com o social. Ou seja, a experiência traumática implica dois tipos de fatores: o evento traumático e a constituição psíquica do sujeito que o experimenta. Quando uma vivência não pode ser elaborada, transformada em narrativa e assim em experiência – quando não se pode dar sentido a ela – há um problema para o psiquismo.

O isolamento e o desamparo dificultam a elaboração das vivências disruptivas, e a fragmentação e o caos do excesso traumático, muitas vezes, manifestam- se em expressões mortíferas, como a loucura, a depressão, a toxicomania, a violência (BASTOS, 2006).

Para que as vivências se inscrevam como experiências e ganhem expressões de vida, elas demandam uma rede social que as acolham, que os mecanismos perversos da negação sejam abandonados em prol de um reconhecimento. O existir de cada um só se sustenta no reconhecimento respeitoso da existência do outro. (op. cit. p. 59)

O traumático patológico, assim, é o que não encontra no psiquismo e na sua relação com o social um suporte de significação, uma possibilidade narrativa. É a falta de sentido, a impossibilidade de inscrição psíquica, a incapacidade de mudar o ambiente.

Por outro lado, o traumático que leva a respostas subjetivantes é aquele que encontra uma rede social que ajude a lidar com a perturbação psíquica da desfusão pulsional. Um suporte de afetação positiva que promova trocas, introjeções, afetos e narrativas favorece uma mobilidade e um potencial de expressão (id., 2009).

É a partir de um ambiente de experiências satisfatórias que o sujeito pode construir uma base sólida de elaboração psíquica, de simbolização das tensões encontradas pelo psiquismo. Esta capacidade permite e marca a relação com o outro e a constituição subjetiva. Em outras palavras, a presença de uma mãe que possa traduzir as vivências do bebê, dar sentido às sensações do início da vida, é a base da possibilidade de linguagem e de desenvolvimento subjetivo.

Assim, os processos de subjetivação que conduzem à inclusão social, à criatividade, se referem à capacidade de dar novos significados às vivências e de modificar o ambiente. No extremo oposto, os contextos marcados pela privação das necessidades fundamentais, pela violência, desorganizam a continuidade do ambiente e, por consequência, a base sobre a qual o sujeito pode explorar o mundo e encontrar soluções criativas para fazer frente às situações de violência, de perigo e de insegurança (CZERMAK, 2009).

Logo, a falta de um suporte simbólico, de uma rede social que ofereça um apoio ao sujeito, representa um empobrecimento da possibilidade de fazer mediação e de dar sentido aos excessos pulsionais, às situações-limite. Sem esse suporte, há um comprometimento do pensamento, do narcisismo, da identidade e a vivência é da ordem do horror e da violência.

Portanto, a exclusão, no sentido da perda de laços e de pertencimento, tem como consequência a ameaça ao processo de simbolização.

 

Da nova ordem mundial

Não são nada grandes as chances de cruzar a fronteira da exclusão. Paulo Sérgio, que nunca teve pão, curiosamente conseguiu deixar o anonimato, ao virar circo, a partir de seu suposto crime. Foi assim, por acaso, que entrou no enquadre legal, tendo a seu favor um processo de danos morais, além da possibilidade de responder ao seu delito dentro dos trâmites jurídicos regulares, em vez de ser mais um invisível esquecido no sistema prisional. Paulo Sérgio era um fora-da-lei, no sentido de marginal não só como quem comete um crime, mas quem nunca esteve dentro da margem, nunca esteve sob a Lei, de quem está fora do registro do pacto social, daquilo que é compartilhado, da base que promove a troca e a empatia com o outro.

A exclusão, sempre presente na história das sociedades4 hoje se apresenta particularmente perversa, quando o consumo torna-se o mais importante, quando a única maneira de existir é ter.

No capitalismo, apenas os incluídos no sistema de consumo e de produção são visíveis, num mundo dividido entre excelência e inutilidade. A partir de uma lógica de produção regida pelo "quanto mais melhor", a tecnologiasubstitui o trabalho humano e o nível de especialização é cada vez mais complexo. Assim, não há lugar para os que estão de fora da excelência.

Bauman (2004) chama atenção para o fato de que a situação agrava-se quando os excluídos deixam de ser até reserva de mão-de-obra, reduzindo-se a resto. Eles não consomem nem produzem, não existem. São invisíveis em uma sociedade onde a visibilidade é essencial (como mencionado, só aparecem quando surge a violência, para retornar em seguida à invisibilidade). O excluído não tem mais lugar nenhum, nem mesmo o de ser explorado.

No processo de modernização, onde a prioridade é a lógica competitiva do mercado, o número de pessoas "inúteis" – por não serem nem produtoras nem consumidoras - aumenta e a exclusão torna-se uma perspectiva em potencial. Assim, hoje a exclusão é a regra, uma vez que não há nada a fazer ou deixar de fazer para "merecê-la". Bauman mostra que os reality-shows, tão presentes na atualidade, são uma representação do que se vive, de fato, no contemporâneo: a exclusão é inevitável e há uma cota de exclusão necessária, então o destino é ir para o "paredão", ser descartado, ficar fadado à invisibilidade. (id., 2005).

O contexto atual é regido por uma lógica econômica (não somente financeira, mas também relativa à economia social e psíquica), que promove duas clivagens: uma social, a exclusão, que divide a sociedade entre os que fazem parte do pacto social e os que estão fora; e outra psíquica, decorrente dessa primeira. Como visto, a exclusão como fragilidade social representa uma ameaça subjetiva, uma vez que a vida psíquica apoia-se no social.

Trata-se de um mal-estar mais cruel que aquele abordado por Freud (1930), que oferecia pelo menos a compensação da inclusão: o sofrimento era relativo à necessidade de abdicar da satisfação pulsional, mas em troca de pertencer à sociedade.

A "invenção" freudiana refere-se a um sofrimento psíquico determinado pelo contexto cultural da burguesia do fim do século XIX, no qual a moral civilizada exigia o recalque dos componentes da sexualidade que não estivessem a serviço da reprodução. Como a sexualidade humana é perverso-polimorfa, não se limitando à genitalidade, o princípio do prazer, com seu programa de reduzir a excitação, colocava o aparelho psíquico em confronto com a cultura (FREUD, 1908).

Mais de um século passou e a cultura, compreendida ao longo de toda a obra freudiana como produtora de mal-estar, reflete uma série de mudanças, fazendo com que o mal-estar de hoje seja muito diferente do da época de Freud. Com a liberação sexual, a partir do advento da pílula anticoncepcional, já não há tantas restrições à sexualidade. Além disso, como Freud já apontava em 1927, a ciência permite cada vez mais que o homem busque formas de controlar a natureza para tentar fazer frente ao seu desamparo. Entretanto, o desamparo não é menor, o que justifica que a psicanálise, apesar de todas as mudanças, ainda seja uma ferramenta legítima para ajudar o sujeito a encontrar formas mais variadas e saudáveis de lidar com seu mal-estar.

Todas as transformações culturais não reduziram o mal-estar na nossa paradoxal sociedade individualista. Ao contrário, essa abertura de possibilidades provoca frustração. O excesso de autonomia deixa o sujeito sem referência e a tão desejada liberdade mostra-se sem sentido. A globalização, a informação em tempo integral, a publicidade massiva, somada à busca de sucesso a todo custo, fazem do homem, paradoxalmente, o único responsável por suas próprias escolhas. Como aponta Dufour (2003), na atualidade, cabe ao sujeito se autoengendrar.

A função do sujeito pós-moderno de conquistar o que deseja leva a uma insatisfação permanente e aponta para um sentimento de inadequação na conduta da sua própria vida. "Cuidado com o que desejas, pois poderás ser atendido", diz o provérbio judaico.

Vive-se a crise da sociedade individualista, onde as realizações são tão necessárias quanto descartáveis. A produção incessante de novos valores, de necessidades de informação, de diferentes parâmetros, traz, juntamente com a incapacidade de assimilação, a impossibilidade de se determinar os referenciais básicos que situem o sujeito contemporâneo.

Assim, a ausência de suporte social, de dimensões de representação e simbolização, não é exclusiva de uma cultura da precariedade social, stricto sensu. Há uma precariedade da cultura, uma fragilidade generalizada da dimensão simbólica.

A estética do consumo imediato, o tempo contemporâneo do instante impede um espaço de reflexão, tende a rejeitar o que não é fácil, imediato e simples, deixando de lado o complexo, atropelando o que é íntimo e nos permite fazer elaboração.

A consequência é um problema econômico para o psiquismo, que parece ter dificuldades em encontrar um destino apropriado para tamanha excitação, em ligar e fazer mediação ao que é vivenciado5.

São dimensões de excesso e também de falta: por um lado, a sedução do mercado, o tempo do "aqui-agora", o imperativo do sucesso; por outro, situações de privação ligadas à insegurança, à fragilidade simbólica, a um não pertencimento, à ausência de referências comuns.

Há uma dificuldade de autoengendramento e uma difícil exigência à economia psíquica, um "mal-estar na civilização" relativo à dificuldade de simbolizar. Diante da impossibilidade de dar sentido e elaborar as situações-limite, diante da desfusão pulsional, o funcionamento psíquico utiliza os mecanismos de sobrevivência mais simples.

Benjamin (1933) ressalta que há um empobrecimento quando a cultura não permite transformar vivência em narração. A dificuldade de compartilhar a experiência, a vulnerabilidade, a vivência de um presente eterno, a impossibilidade de dar sentido, não são prerrogativas apenas das pessoas que vivem na miséria econômica. É uma miséria psíquica geral.

Entretanto, convém relativizar, afirmando nossa perspectiva, de que o panorama atual não é apenas negativo. Há características do contemporâneo, como a liberdade, a flexibilização das normas e dos costumes, a autonomia, que são também produtoras de subjetividades criativas.

 

Uma pobreza de toda a humanidade

Assim, tanto a precariedade da exclusão social quanto aquela da cultura contemporânea apontam, paradoxalmente, para esses aspectos de privação e de excesso: carência de recursos, ausência de um suporte social que favoreça o sentimento de pertencimento, falta de sentido em relação a um excesso impossível de simbolizar; e, por outro lado, uma demasia (de informações, de exigências e de necessidades presentes na atualidade, ou de violência, de sofrimento, das situações-limite da precariedade) que impõem uma difícil exigência de trabalho. O tempo do imediato experimentado, tanto na pressa contemporânea quanto nas situações em que cada dia é uma batalha para buscar o que se vai comer, pode ser compreendido como um problema econômico para o aparato psíquico. Trata-se da dimensão do além do princípio do prazer, algo que pode ser disruptivo e inominável, que Freud chama de traumático.

Em outras palavras, sofre-se de privações e excessos – instabilidade, vulnerabilidade, exclusão, desamparo, violência, imperativo do sucesso, achatamento do tempo – que caracterizam uma precariedade social, seja no sentido econômico, seja relativa a uma sociedade que representa sempre um mal-estar.

Schauder (2006, p. 3) lembra que cada um tem sua cota de precariedade, uma vez que o desamparo original faz parte da constituição humana. Sob esta ótica, cada sujeito é frágil, prematuro e dependente de outro: "a precariedade está, na verdade, na base de todas as experiências existenciais humanas" (ibid, p. 3, tradução nossa).

Há uma pobreza de toda a humanidade, como vimos com Benjamin (1933), uma vez que se vive o tempo do trauma, na relação entre tempo e espaço das grandes cidades, saturada de eventos e de situações em que o cotidiano não deixa tempo para a narrativa, o que empobrece a imaginação e a criação de espaços coletivos, de compartilhamento de experiências (id, 1939). A capacidade de narrativa, para este autor, está em declínio desde a I Guerra Mundial, situação agravada pela crise econômica posterior.

Ele dá o exemplo dos soldados da guerra de 1914, que retornam sem capacidade de falar. O que lhes faltava não era somente a narrativa, mas a vivência como experiência compreensível e comunicável. É preciso que a vivência possa ser colocada em narrativa, retransmitida, para que a vítima transforme- -se em testemunha.

Benjamin faz uma associação entre esta incapacidade narrativa e a figura do bárbaro, existente em cada um de nós, "que nos encontramos mergulhados num mundo transtornado, cuja promessa histórica se rompeu" (REIS, op. cit., p. 6)6.

Reis (op. cit.) propõe que a fragilização da sabedoria coletiva não é apenas negativa, de acordo com o sentido que Benjamin imprime à barbárie, uma vez que o declínio da tradição e do saber coletivo abre espaço ao novo. Benjamin (1933) afirma que aos pobres de experiência não resta mais do que produzir uma nova barbárie.

 

Conclusão

Pode-se concluir, portanto, que as respostas às situações de precariedade podem ser mais ou menos patológicas, podem conduzir à impotência ou à criatividade, calar ou estimular a palavra. Como afirma Reis (op. cit.), as formas de resistência podem tomar caminhos mortais ou vitais.

Depende de como se dá o laço social, o encontro entre o mundo interior e a realidade objetiva. Ou seja, depende de como cada um se inscreve – a partir de sua história, sua identidade – no mundo, no que é partilhado socialmente; de como cada história toma parte da História. Tal História será experimentada e elaborada por cada um a partir da possibilidade de compartilhar, de inscrever desejos, projetos e marcas singulares, de nomear o que é vivido.

Como vimos, dificuldades no processo de identificação têm como consequência um empobrecimento dos recursos de simbolização e, portanto, uma fragilidade do manejo dos excessos pulsionais. Estar fora da margem, invisível, traz um prejuízo do registro simbólico, uma vez que há dificuldades de inscrição social. O desamparo e o isolamento dificultam a elaboração de situações traumáticas, de excesso pulsional, ocasionando um transbordamento que pode se desdobrar em violência e em comportamentos destrutivos. Em outras palavras, fica reduzida a possibilidade de tradução do concreto da vivência, da possibilidade desejante, por conseguinte.

Segundo Piret (2012), é do encontro entre o sujeito do inconsciente e o sujeito político que o desejo pode nascer e tal encontro está prejudicado nas situações de precariedade. É preciso um olhar que sirva de aparato simbólico, de rede social, de reconhecimento para fazer frente à precariedade.

Nesse sentido, a clínica é um recurso valioso ao oferecer esse olhar, uma escuta, outro ao qual o sujeito possa, talvez pela primeira vez, se referir. É um espaço de significação e legitimação de um estar no mundo que não tem outros recursos de suporte e afirmação à sua existência.

A psicanálise, enquanto lugar de acolhimento da narrativa, pode facilitar a inscrição simbólica, oferecendo suporte ao desejo e sustentando, portanto, a pulsão de vida. Além disso, de outro ponto de vista, é também pela via da clínica que nos depararmos com o bárbaro que possuímos em nós mesmos, reconhecendo-nos também em nossa precariedade/desamparo, o que talvez possa nos ajudar a lidar com a precariedade do outro, evitando o narcisismo das pequenas diferenças e possibilitando um laço social mais rico de existência e de trocas.

Faz-se pertinente, portanto, uma convocação a pensar e agir nessas fronteiras entre social e individual, cidadania e exclusão, preconceito e respeito, tendo como referência uma ética do reconhecimento. Ser reconhecido, aceito e legitimado é fundamental para uma existência menos miserável, não apenas economicamente, mas também em relação à miséria da alma, que é algo comum a todos nós, que nascemos desamparados.

É justamente a partir desse mal-estar cultural, que nos atinge a todos, que podemos produzir encontros potentes e ricos pelas diferenças. É com engajamentos sociais que construam e desconstruam de forma crítica o "estar junto", que "Paulos Sergios" não precisarão mais encarnar o monstro que não queremos ver em nós mesmos, sem percebermos que tal violência, à qual se o acusa aos brados, é reflexo da exclusão, da impossibilidade de ser visto em sua singularidade.

Que práticas micropolíticas ricas em cidadania possam sustentar o reconhecimento de Paulo Sérgio e de muitos outros. E que eles possam começar a contar suas próprias histórias, deixando de ser apenas representantes de tantos excluídos, apenas "inimigos", nos quais se projeta toda a violência.

Esse "outro", esse "estranho" que está à margem da inclusão social precisa do que precisamos todos: justamente do sentimento de empatia, do reconhecimento, de possibilidades identificatórias não redutoras. Vale ressaltar, como afirma Viñar (op. cit.), que ser o excluído, o estranho, o hostil é uma experiência vizinha à loucura.

Nesse sentido, cabe à psicanálise, que tem como compromisso ético uma atenção para com o sofrimento humano, suscitar discussões sobre a questão da exclusão social, problemática que deve tocar a todos nós. Trata-se de um mandato clínico, político e ético.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência:

Maria Lenz Cesar Kemper
e-mail: mariakemper@hotmail.com

Tramitação: Recebido em 06/05/2013
Aprovado em 17/07/2013

 

 

* Psicóloga, psicanalista, doutoranda em Estudos Psicanalíticos/Université de Strasbourg (França)
1 Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=iehM887J4aE
2 Benjamin (1989) faz uma distinção entre experiência e vivência. A primeira se refere ao coletivo, ao histórico, ao cultural e a vivência é privada e individual, saturada de eventos e sensações que precisam ser ab-reagidos
3 Bastos (2006) denomina paradoxo do trauma esse ponto de vista de que que ele não é traumático em si, mesmo que excesso pulsional
4 As relações de dominação já existiam nos homens primitivos, determinadas pela força e pela inteligência. Na sociedade medieval a desigualdade se apresentava na relação de poder entre senhores e vassalos, monarcas e súditos. Com a Revolução Industrial, a desigualdade tornou-se mais complexa (para citar apenas um aspecto: surgem as categorias de empregador e empregado)
5 Podemos compreender os sintomas de excesso e de apatia como uma compensação a essa demanda impossível à economia psíquica: o compulsivo (as toxicomanias, a anorexia, a bulimia e talvez o pânico e as somatizações) passa ao ato, sem possibilidade de mediação face às imposições da sociedade de consumo; e o deprimido se recusa a partilhar das demandas, necessidades, informações e exigências da contemporaneidade)
6 Freud (1915) também assinala que, apesar de todas as conquistas científicas e tecnológicas, o homem atualiza e repete a destruição e o mal-estar na relação com o outro, o que aponta para a impossibilidade de integração de uma experiência coletiva.