Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
Sexualidades: fronteiras, limites, limiares
Sexualities: borders, boundaries, thresholds
Jô Gondar*
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Brasil
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
RESUMO
O artigo procura examinar os valores incrustados nas teorias psicanalíticas sobre a sexualidade, questionando particularmente a diferença sexual como matriz da subjetivação e da cultura. Parte das reivindicações gays contemporâneas para examinar o tema da diferença em Freud, Lacan, no estruturalismo (Héritier) e no movimento queer. Discute as consequências de se pensar a diferença por meio das noções de fronteiras, limites ou limiares. Termina por distinguir, no campo das sexualidades, uma lógica fundada nos limites (para além) dos paradoxos do espaço potencial (ainda não).
Palavras-chave: Sexualidade, diferença sexual, gays, queer, espaço potencial.
ABSTRACT
The article aims at examining the values embedded in psychoanalytic theories of sexuality, by questioning, in particular, the sexual difference as the matrix of subjectivation and culture. It starts from contemporary gay demands for the study of the sexual difference issue in Freud, in Lacan, in structuralism (Héritier) and in the queer movement. It discusses the consequences of thinking about difference through the notions of boundaries, limits or thresholds. It ends by distinguishing, in the field of sexualities, a logical thought built on the limits (beyond) of the paradoxes of potential space (not yet).
Keywords: Sexuality, sexual difference, gay, queer, potential space.
Quando eu cursava a universidade, minha amiga mais próxima era negra. Neste período, final dos anos 70, começava no Brasil um movimento negro que se afirmava, entre outras coisas, pelo uso de certos adereços como roupas multicoloridas, tranças e búzios nos cabelos. Minha amiga, no entanto, passava ao largo desse movimento. Ainda que fosse de esquerda, alisava os cabelos e usava roupas sóbrias. Vez por outra eu a interpelava: "você ficaria mais bonita se ousasse mais, se se permitisse mais cores e fizesse um penteado afro." Um dia ela se cansou das minhas "sugestões" e respondeu: "Por que motivo eu, pelo fato de ser negra, preciso ser exótica? Por que não posso ser uma pessoa comum, como você?" Fiquei surpresa. Essa amiga me mostrou o quanto o preconceito me rondava, ainda que disfarçado de posturas libertárias. Aprendi, com seu comentário, que não nos livramos dele tão facilmente e que a luta contra o preconceito implica um permanente trabalho sobre nós mesmos.
A exigência desse trabalho é mais forte quando o "nós mesmos" se refere aos psicanalistas. E o trabalho se torna ainda mais difícil quando as questões migram do plano racial para o sexual. É que a disputa entre brancos e negros não toca o nosso ponto fulcral, nem põe em xeque as teorias que abraçamos. Mas, quando as questões se referem a novas maneiras de subjetivar e experimentar a sexualidade, ao casamento gay, às mudanças propostas pelos transexuais, ao trânsito por parceiros de sexos diferentes entre os adolescentes, aí somos forçados a interrogar aquilo que aprendemos sobre o assunto. Inquietamo-nos diante da discrepância entre os valores que atravessam as vivências sexuais contemporâneas e aqueles que nos foram transmitidos pela educação, mas também - e aqui chegamos ao problema desenvolvido neste artigo - em relação aos valores incrustados nas teorias que embasam a nossa clínica.
O casamento gay e a questão da diferença
O casamento gay é um bom tema para examinar o modo pelo qual esses valores alimentam argumentações científicas. Sabemos que desde o ano de 2000, quando foi aprovado na Holanda, o casamento gay tem sido regulamentado em diversos países. Em 2013, foi a vez do Brasil e da França. No Brasil, não houve aprovação de projeto de lei, tendo o Supremo Tribunal Federal reconhecido a união estável entre pessoas do mesmo sexo em 2011 e, dois anos mais tarde, regulamentado o casamento homossexual. Na França, deu-se um intervalo maior entre a aprovação dos PACS (Pactos Civis de Solidariedade), em 1999, até a aprovação do casamento gay, em 2013. Por se passar um tempo longo entre as duas medidas, por se tratar da aprovação de um projeto de lei e devido à tradição (para o bem ou para o mal) da psicanálise na França, instaurou-se em todo o país um debate público, no qual os analistas foram convocados a dar o seu parecer. Seu discurso terminou por embasar uma argumentação político-científica a respeito do casamento gay.
Diante da questão, os analistas franceses se mostraram divididos. Alguns, contrários à mudança, se assentaram numa afirmação construída por Freud a partir de um aforismo de Napoleão: "A anatomia é o destino" (FREUD, 1924/1976, p. 197). Ao ser apresentado como suporte teórico para criticar o casamento homossexual, o aforismo privilegiou a ordem da natureza, a mesma justificativa utilizada pelo discurso religioso. Evidentemente, do ponto de vista da psicanálise, o argumento se mostrou frágil. A teoria freudiana sobre a diferença sexual não poderia ser reduzida a uma frase proferida num determinado contexto, quando, no conjunto da obra, o esforço de Freud seguiu a direção contrária, sublinhando a não compatibilidade necessária entre a sexualidade psíquica e o sexo anatômico.
Outro argumento foi mais insidioso, tendo sido apresentado por colegas que se colocavam, em um primeiro momento, na posição de crítica ao conservadorismo. Vejamos, por exemplo, a posição de Jean-Jacques Rassial numa entrevista dada à Revista Percurso, em 2004: "O que eu disse é que tenho muita simpatia pelos homossexuais militantes contra a normalidade e que sinto muito desprezo pelos homossexuais que querem ser considerados normais" (RASSIAL, 2004, p. 146). Um pouco mais adiante, Rassial reforça teoricamente a sua "simpatia":
(...) Agora vivemos o sucesso de um movimento que se chamou Arcadie, que é o movimento dos homossexuais que querem ser considerados normais, que querem, de certa forma, transformar a homossexualidade numa nova norma. Freud e Lacan são muito claros sobre a homossexualidade, dizendo que é uma perversão. Ambos mantiveram essa posição até o fim. A posição homossexual que acho simpática é a subversiva (...) (idem, p. 147).
Este argumento condena as reivindicações de normalização dos homossexuais contemporâneos. O que está sendo deplorado é seu desejo de família e filiação que, em termos mais práticos, traduz-se pela reivindicação ao casamento oficial, à adoção de crianças e transmissão de herança. Rassial lamenta a disposição dos gays à conformidade social e sua distância da posição subversiva que antes ocupavam. Ele não está sozinho nesta forma de pensar, ainda que a expresse de maneira mais direta e pessoal que seus colegas. Em outros psicanalistas, este mesmo argumento ganha contornos teóricos mais sofistica dos e a articulação entre homossexualidade e perversão é matizada. Jean-Pierre Deffieux, por exemplo, se vale do emprego positivo que Lacan faz da ideia de perversão em 1958, em seu Seminário sobre o Desejo, para interrogar um suposto conformismo homossexual. Assim, entre as chamadas para o Colóquio Quando os desejos se tornam direitos, realizado pela Universidade Popular Jacques Lacan em maio de 2013, Deffieux escreve:
A perversão, no sentido em que Lacan o emprega, visa o remanejamento dos conformismos anteriormente instaurados, e até mesmo sua ruptura. Perversão=antitradição. Eis porque a atualidade me levou a interrogar o devir do desejo homossexual, esse desejo tão criador da nossa cultura através dos séculos, se ele não mais resistir à normalização. A sociedade poderá perder (DEFFIEUX, 2013).
Porém, matizado ou não, o argumento é o mesmo. Os homossexuais possuem um lugar cativo na cultura e esse lugar é o da perversão, mesmo quando ela é entendida como contestação às leis e às normas. Para serem admitidos, precisam se manter transgressivos e inassimiláveis, como um Rimbaud, um Jean Genet, ou um Oscar Wilde. É fato que as instituições tendem a normalizar o desejo, através do casamento e das regras de filiação e herança. A normalização atinge a quase todos e a maior parte de nós - incluindo os psicanalistas - casa-se, tem filhos, transmite seus bens. Nem por isso nosso desejo é colocado na parede. Somente a alguns é exigido - para que o devir do seu desejo não seja interrogado - que sejam personagens literários, sublimes e malditos, ou ao menos personagens curiosos com insígnias visíveis, como ursos no triciclo. Desse modo a aceitação do desejo homossexual se dá sob a condição de que ele permaneça (ex)cêntrico ou exótico, do mesmo modo como são aceitos os africanos que toquem atabaque ou os índios que usem cocar. Mas, que eles não ousem ser pessoas comuns - eis aqui o mesmo preconceito denunciado por minha amiga negra. É neste ponto que uma premissa, supostamente progressista, mostra sua face conservadora: a cultura precisa se alimentar do exotismo e da perversão do Outro, para que o desejo daqueles que obedecem às normas possa manter o seu valor de desejo, tornando mais suportável a banalidade cotidiana. Sob este aspecto, nada distingue o argumento de qualquer outro discurso de segregação.
A despeito desses argumentos, prevaleceu, entre os psicanalistas franceses, uma atitude de não oposição à mudança da lei ou, mais exatamente, uma crítica à instrumentalização da psicanálise para fins jurídico-políticos. Isso não impediu que outros analistas se valessem do momento de efervescência pública para marcar sua posição a respeito da importância - e, mais que isso, da imprescindibilidade - da diferença sexual. Esse argumento não recorria à nenhuma justificativa da ordem da natureza; ao contrário, ele defendia a necessidade de uma "preservação simbólica" da ordem social e cultural. A alegação se ligava diretamente ao tema do declínio do simbólico, da função paterna e das instituições que têm preocupado, desde os anos 90, alguns psicanalistas, sobretudo na França. Presente em analistas como Jean-Pierre Lebrun, Charles Melman, Dany-Robert Dufour e Roland Chemama, essas preocupações indicam, segundo Eherenberg (2010), uma tendência declinológica na atual psicanálise francesa. Proliferam os discursos pessimistas que apontam abalos devastadores para a cultura a partir de um "declínio da função paterna", "declínio do Significante Mestre", "declínio do grande Outro", etc. O argumento principal é o de que o declínio do simbólico se encontra na raiz do enfra-
quecimento das instituições modernas, causando estragos nos modos de subjetivação e nos laços sociais. Não haveria outra possibilidade de ordenação subjetiva ou social: quando o Simbólico perde seu poder limitador e discriminador se instaura no campo subjetivo e social um reino do vale tudo.
Para os declinologistas, a grande ameaça seria a abolição da diferença. Toda diferença seria sustentada, em última instância, pela diferença sexual. E essa envolve a verticalidade fálica, a partir da qual um mundo indiferenciado se organiza. Para os declinologistas, as reivindicações homossexuais estariam pleiteando excluir do casamento o outro sexo para instaurar uma horizontalidade, isto é, uma política de indiferenciação ou confusão sexual. Não haveria simpatia pelas reivindicações gays porque a horizontalidade seria, nessa perspectiva, fonte de infelicidade e desorganização.
Em La societé du malaise, Ehrenberg (2010) faz uma crítica contundente à posição declinológica, denunciando-a como conservadora e normativa. Os partidários dessa posição não estariam simplesmente realizando uma crítica ao contemporâneo; o que eles fazem é "um ritual de celebração do passado e de exorcismo do presente" (EHRENBERG, 2010, p. 256). Desse modo, os psicanalistas estariam, inevitavelmente, celebrando as formas passadas de subjetivação e socialização como as corretas e válidas; mais do que isso, estariam se arrogando o direito de prescrever o modo certo de viver, sofrer e fazer laços. Essa prescrição lamenta a verticalidade perdida e enxerga a horizontalidade como um mal a ser combatido.
Cabe observar que as instituições que seguem a orientação de Jacques Alain-Miller não comungam dessa crítica à horizontalidade. A indicação da AMP tem sido a de reconhecer o rebaixamento do Nome-do-Pai e o surgimento da horizontalidade - entendida não como indiferenciação sexual, mas como feminização do mundo - sem considerá-las negativamente. Miller tem procurado, oportunamente, conjugar a psicanálise às transformações da cultura e desvencilhá-la de um apelo retrógrado: "O declínio da ordem simbólica não é um axioma da psicanálise. As mudanças se constatam, elas estão em todo lugar. O mundo de hoje é um mundo novo. A função do pai não é mais o que era" (MILLER, 2013). A feminização do mundo é não só reconhecida como festejada por Miller; não haveria motivos para oferecer a ela qualquer resistência:
Os homens são os antigos mestres, decaídos, degradados, por causa da emergência das mulheres (...) Os homens não se situam muito bem face à feminilidade que emerge, reivindicando mudanças em muitos domínios (...) Os tempos mudaram. No presente o diabo saiu de sua caixa. O gozo feminino tem verdadeiramente o poder de perturbar todas as certezas. As culturas podem se pensar como maneiras de conter o gozo feminino. Sem sucesso. As profissões se feminizam. E por que se teria que resistir à feminização? As mulheres sustentarão certamente a prática analítica no século XXI (idem).
O reconhecimento do incontornável, no entanto, não implicou a proposta de uma nova forma de pensar a sexuação. A ideia de feminização do mundo mantém a distinção sexual como pilar da cultura. Ainda que mude o polo privilegiado, a subjetivação e os laços sociais continuam referidos a uma ontologia da diferença sexual. Essa forma de reconhecimento expressou-se também na posição - bastante sagaz - tomada por Miller com relação ao casamento gay: sem declarar-se a favor, ele foi contra o uso da psicanálise para validar os argumentos contrários ao casamento gay, isto é, ele foi contra os que se colocaram contra baseando-se no saber psicanalítico. Porém o problema da diferença - e da diferença sexual - permanece. Mesmo que o Nome-do-Pai tenha sido pluralizado, relativizado, substituído pelo sinthoma1, mantém-se a necessidade de distinção entre uma tendência vertical, masculina, e uma tendência horizontal, feminina, ambas compreendidas a partir de uma diferença sexual fundante.
Essa questão continua sendo colocada nos encontros das escolas que seguem a orientação da AMP: a preocupação dos analistas é a de que sem a submissão a um princípio de limitação, que aponte a castração aos sujeitos toda diferença se desvaneça e eles passem a acreditar que tudo é possível. Assim, se pode ler no argumento do X Seminario Internacional del CIEC (Centro de Investigaciones e Estudios Clinicos de Córdoba, instituição filiada à AMP) intitulado La feminización del mundo (2013): "Se o princípio de limitação está do lado masculino da sexuação, do lado fálico, como se orientam hoje os sujeitos que não se orientam pelo falo?" Essa pergunta indica um problema: "O gozo não todo fálico, de cada um, hoje se apresenta como um direito para todos". Configurado esse problema, pode desenhar-se a questão fundamental: "Nesse regime que favorece o todos iguais, como se introduz a diferença (X SEMINARIO INTERNACIONAL DEL CIEC, 2013)"?
Vemos assim que, para diferentes vertentes da psicanálise francesa, o tema da diferença parece se colocar na ordem do dia e no cerne do debate. A preocupação com a possibilidade de abolição da distinção sexual termina por se articular aos argumentos que têm alimentado o medo de certa tendência da psicanálise diante uma ordem social que se transforma e de uma verticalidade que se desvanece. Mas, e se for justamente a ontologia da diferença sexual - e não a masculinização ou a feminização do mundo - que estiver sendo colocada em xeque nas transformações subjetivas contemporâneas? Sabemos responder a essas novas formas de experimentar e subjetivar a sexualidade para as quais nossos instrumentos teóricos não nos prepararam? A teoria psicanalítica nos torna capazes de estabelecer duas posições claras quanto à sexuação e de afirmar as características próprias de uma e de outra? Teríamos nós o poder de estabelecer a diferença sexual como matriz invariante de toda diferença, em qualquer ordem cultural?
Variações da função sexual ou diferença sexual fundante?
Não encontramos em Freud esse invariante antropológico. Inserido na perspectiva de seu próprio momento cultural, Freud foi um inversor e um remapeador de geografias e formas de sexualidade aceitas e estabelecidas. Por mais que tenha escrito sobre a dissimetria de percursos da sexualidade masculina e feminina e sobre as consequências psíquicas da distinção anatômica, Freud não pensou em modos de sexuação inerentes ao sujeito humano. Sua tentativa foi sempre a de fornecer mais matizes às formas que sua época lhe apresentou: estendeu a homossexualidade para todos (FREUD, 1905, p. 136n); reconheceu, para além da homo e da heterossexualidade, a existência de "intermediários sexuais" - designados por Ferenczi como indivíduos "homo-eróticos quanto ao sujeito" (idem, p. 137n); destacou o quanto a sexualidade é perversa e contrária à natureza (idem, p. 151). Se tomamos um texto como Moral "civilizada" e doença nervosa moderna (1908/1976), vemos que aí as diferenças entre masculino e feminino, neurótico e perverso, homo ou heterossexual, não aparecem em termos essenciais, invariantes, e sim como posições produzidas por uma ordem civilizatória contingente. Tanto os pervertidos quanto os homossexuais - e Freud os distingue, caracterizando um grupo por sua fixação num objetivo sexual preliminar e o outro pela deflexão que seu objetivo sexual apresenta em relação ao sexo oposto - são produções de um determinado estádio da civilização. Ele descreve, nesse artigo, três momentos da civilização, e o melhor indicador de sua contingência é o fato de não podermos nos reconhecer, atualmente, em nenhum deles. O que nos fica sugerido nesse texto é que, se de fato temos uma dimensão universal, constituinte, ela não reside em posições sexuais estabelecidas a priori, mas na extrema plasticidade da pulsão e em nossa disposição perversa polimorfa.
Freud fala em variações da função sexual, o que é bem diferente de propor uma ontologia da diferença entre os sexos. Quem afirma essa diferença como fundante do humano é o estruturalismo, atribuindo à distinção entre masculino e feminino a condição sine qua non da alteridade. Françoise Héritier, antropóloga que substituiu Lévi-Strauss no Collège de France, escreveu a esse respeito dois livros intitulados Masculino/Feminino, vols. 1 e 2. No primeiro, O pensamento da diferença, Héritier enxergava, tanto na diferença sexual como na hierarquia entre masculino e feminino, um "invariante antropológico". Defendia a tese de que em todos os lugares e em todos os tempos o masculino é considerado superior ao feminino (HÉRITIER, 1996). Esse fatalismo lhe rendeu muitas críticas que a fizeram escrever um segundo volume, cujo subtítulo era Dissolver a hierarquia. Agora, ela questionava a naturalização de uma hierarquia entre os sexos, mas não a diferença sexual como base da ordem social. Essa se mantinha como condição necessária para a experiência de alteridade que, segundo Héritier, seria a experiência determinante do pensamento e da organização humana: a percepção das diferenças entre homens e mulheres fundaria a estrutura do pensamento. A partir dessa percepção seria construído um sistema de oposições binárias que poderia ser encontrado em qualquer cultura: "Pensar é antes de tudo classificar, classificar é antes de tudo discriminar, e a discriminação fundamental é baseada na diferença de sexos" (HÉRITIER, 1998). A antropóloga prossegue, indicando a ameaça dos homossexuais na esfera da cultura: "Não se pode sustentar que essa diferença se movimente no cerne do casal homossexual" (idem).
Entretanto, o modo como se pensa a diferença sexual não é indiferente. É preciso admitir que a psicanálise, mesmo quando sofre uma influência estruturalista, não deixa de questionar o estruturalismo quanto ao seu modo de conceber a diferença. Entre Lévi-Strauss/Héritier e Lacan, existem nuances e fissuras. Como a ordem psíquica poderia se fundar inteiramente no fato biológico da dualidade de sexos? Isso fará com que Lacan situe a diferença em outro lugar. Se o estruturalismo pensa que masculino e feminino estabelecem a distinção primordial que nos inclina a organizar o mundo a partir de oposições binárias - dia/noite, quente/frio, branco/negro - a proposta lacaniana aponta, no horizonte, para o limite da estrutura: a diferença não se faz entre um sexo e outro, mas entre um sexo e algo que lhe escapa, um não-todo que o ultrapassa e, ao mesmo tempo, lhe faz resistência. Daí o obstáculo à relação sexual, que Lacan transformou no seu aforismo mais famoso.
Ao invés de pensar a diferença como uma fronteira entre o masculino e o feminino - como a que existe entre dois territórios, por exemplo, todos dois conhecidos e nomeáveis -, Lacan quer pensar um limite que se desenha para além do conhecido e do nomeável. A partir dessa distinção entre fronteira e limite, ele inaugura uma lógica do para além - para além do limite do falo, do simbólico, do sexo. Mais do que uma diferença sexual, instaura-se uma diferença feminina que, na qualidade de suplemento, deveria ser vista como uma diferença em si mesma. Será?
A questão é que em Lacan a diferença antecede os dois termos dos quais ela é diferença. Ou, como escreve Le Gaufey: "Talvez a diferença que mantém um separado do outro não pertença nem a um nem a outro" (2006, p. 11). O problema não está na relação entre masculino e feminino e tampouco na configuração de um além, mas sim na subordinação de ambos - incluindo o "além" - a uma medida prévia a partir da qual o todo e o não-todo se definem. Assim, se fulana é alta e sicrana é baixa, sicrana não se define em relação a fulana e sim em relação a um metro prévio que permite posicionar a altura - e até mesmo um além da medida - de fulana ou de sicrana. Com respeito à sexuação, tanto a posição masculina quanto a feminina são diferenças relativas a uma medida que, na perspectiva lacaniana, é o falo. Nesse caso, o falo seria a única diferença em si mesma. Não haveria diferença feminina em si porque um suplemento não existe em si mesmo; ele é o suplemento de algo, um além que aparece enquanto margem da ordem fálica. Com isso, não escapamos do falocentrismo e, consequentemente, da diferença relativa.
Porém, seríamos injustos com Lacan se não reconhecêssemos o quanto ele foi, com suas fórmulas de sexuação, também um remapeador de geografias, um ousado pensador das questões que seu tempo lhe colocou, provocativo o bastante para situar-se do lado feminino de seu próprio quadro. Hoje, para além dos problemas da feminilidade, outras questões se colocam como desafio e provocam, sob este aspecto, tanto os psicanalistas quanto os pensadores queer.
Queer: a crítica dos binarismos
O falocentrismo como sustentação da cultura: é contra essa ideia que surgiu nos Estados Unidos, a partir dos anos 90, um movimento articulando ativistas políticos, professores e pensadores que se afirmavam como queer. Trata-se de uma gíria inglesa usada para designar um homossexual de maneira pejorativa, quando se pretende dizer que ele é anômalo, estranho, aberrante. Este termo, com toda a sua carga de estranheza e de deboche, foi assumido por uma vertente dos movimentos gay e feminista para caracterizar sua perspectiva de contestação. Ao incorporarem esse insulto para si, os queer estariam se colocando contra a própria classificação que produziu o termo, distinguindo uma sexualidade straight (referida ao heterossexual), da abjeta (queer). E estariam afirmando que todas as identidades ou posições sexuais são anômalas.
Em outras palavras: o movimento queer recusa a classificação dos sujeitos em categorias universais como homem, mulher, masculino, feminino, homossexual, heterossexual, sustentando que elas escondem um número enorme de variações, nenhuma delas sendo mais natural ou mais fundamental do que a outra. Todas seriam queer. Julia Kristeva foi uma psicanalista apreciada pelo movimento, principalmente por seu modo de falar da abjeção:
Há na abjeção uma dessas violentas e escuras rebeliões do ser contra aquilo que o ameaça e que parece vir de um fora exorbitante, lançado para além do alcance possível e do tolerável, do pensável. Ela está ali muito próxima, mas inassimilável. Ela incita, inquieta, fascina o desejo que, entretanto, não se deixa seduzir. Assustado, ele se afasta; enojado, ele se recusa (...) Incansavelmente, um vórtice de atração e de repulsão coloca aquele que está habitado por ela literalmente ao lado de si mesmo (KRISTEVA, 1982, p. 1).
A teoria queer começou no final dos anos 80, influenciada pela psicanálise - a ideia de descentramento do sujeito, de polimorfia da sexualidade foram importantes - e principalmente pelos trabalhos de Julia Kristeva; foi também marcada pela obra de Michel Foucault - principalmente pela História da sexualidade - e pelo método de desconstrução de Derrida. A desconstrução foi fundamental para o combate contra a heteronormatividade e, a partir dela, contra qualquer imposição normativa. Derrida mostra que a lógica ocidental opera através de binarismos. Na forma de pensar binária, elege-se e se fixa como fundante ou como central uma ideia, uma entidade ou um sujeito e se determina, a partir deste lugar, a posição do outro, o seu oposto subordinado. Ou seja, a lógica binária, embora aparentemente paritária e neutra, é na verdade vertical e autoritária: cultura/natureza, essência/aparência, homem/mulher, branco/negro, ocidental/oriental, heterossexual/homossexual - há sempre um termo que é compreendido como superior enquanto que o outro é o seu derivado inferior. Derrida afirma que essa lógica pode ser abalada por um processo desconstrutivo capaz de reverter, desestabilizar e desordenar esses pares. Para ele, desconstruir um discurso é perturbar e subverter os termos sobre os quais o próprio discurso se afirma. Porém, desconstruir não significa destruir. Como diz Barbara Johnson (1980), desconstruir "está muito mais perto do significado original da palavra análise, que etimologicamente significa desfazer" (p. 132). As teorias queer usam a desconstrução de Derrida para desestabilizar binarismos linguísticos e conceituais, ainda que se trate de termos tão "naturalizados" como homem/mulher, masculino/feminino.
A norte-americana Judith Butler e a espanhola Beatriz Preciado são as teóricas queer mais conhecidas no Brasil. Butler se tornou conhecida por um livro, Problemas de gênero (2003), onde procura fazer uma desconstrução do lugar que é conferido ao feminino em nossa cultura. Os estudos de gênero sempre tentaram mostrar a diferença entre sexo e gênero: o sexo seria natural, enquanto que o gênero seria construído culturalmente. A novidade de Butler consiste em dizer: não há diferença nenhuma. Todos os dois são construídos. Não há no feminino nada natural, invariante; esse suposto invariante não passa de uma construção da cultura através de performances e discursos. Não existe uma sexualidade feminina original e verdadeira. Butler se recusa a acreditar num invariante feminino, numa posição feminina, num gozo feminino. Ela argumenta que feminino e masculino são produções do poder, produções culturais, efeitos de instituições, práticas e discursos. Duas dessas instituições são objeto da desconstrução de Butler: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. Como efeito dessa desconstrução, o feminino deixa de ser uma noção estável, tanto quanto a noção de mulher, pois tanto uma quanto outra são relacionais, só tendo sentido no seio de um binarismo que é produzido culturalmente. Desse modo, Butler estaria criticando tanto a ideia de que existe uma essência feminina, quanto a de que existe uma posição feminina. Mudar de essência para a posição seria apenas uma forma de relançar a essência de uma maneira mais sofisticada.
Butler apresenta uma relação de admiração e de crítica com a psicanálise. Por um lado, aprecia o fato de que a teoria psicanalítica tenha contribuído para desnaturalizar o registro do corpo, da sexualidade e do desejo. Por outro, critica-a por manter teoricamente o binarismo sexual e a lógica da subordinação.
Outra teórica queer importante, mais radical do que Butler, é a espanhola Beatriz Preciado. O movimento queer surgiu na Europa de um modo diverso dos Estados Unidos, onde deriva do feminismo e do movimento gay. Na Europa, ele provém do movimento anarquista e da cultura dos transgêneros. Preciado (2011) critica os efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação de identidades - "mulher", "gay", "homossexual" etc. - propondo, como sujeito do movimento queer, as multidões sexuais.
Multidão é um conceito que Preciado toma de Hardt e Negri, autores de Império (2001) e Multidão (2005). Para pensar a política contemporânea, Negri e Hardt buscaram um conceito capaz de indicar um conjunto de pessoas, sem que esse conjunto fosse identitário - já que toda identidade é binária - e submetido a um líder -, já que toda relação de liderança implica hierarquia e verticalidade. Propuseram, então, o conceito de multidão como um conjunto, uma multiplicidade de singularidades. Nesse sentido, o conceito de multidão se distingue tanto do conceito de massa (enquanto conjunto homogêneo) quanto do conceito de povo (enquanto conjunto identitário). O povo e a massa podem ser guiados ou manipulados, mas a multidão tem potência por si própria. É isso que Preciado procura resgatar: ela busca um retorno do corpo, e com esse intuito valoriza a potência dos anormais. Em Butler, as sexualidades haviam se tornado efeito das práticas culturais linguístico-discursivas; influenciada por Foucault e Derrida, Butler colocava o corpo como produção do poder, do biopoder, da biopolítica. Preciado segue uma outra via: inspirada em Deleuze, Lazaratto e Negri, valoriza a materialidade dos corpos que criam e oferecem resistência ao poder; assim, em vez do biopoder, ela fala das potências da vida.
Porém, o objeto de críticas de Preciado, ao usar o conceito de multidões queer, não é apenas a noção de identidade. Ela se insurge particularmente contra a noção de diferença sexual, que considera "sinônimo da principal clivagem da opressão" (PRECIADO, 2011, p. 18). Sobre isso, escreve: "A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de diferença sexual, tal como foi explorada tanto pelo feminismo essencialista (...) como pelas variações estruturalistas e/ou lacanianas do discurso da psicanálise (Roudinesco, Héritier, Théry)" (idem). Preciado condena a luta tanto pela igualdade quanto pelo direito à diferença, já que o propósito desta última é o de ser integrada no seio do Estado. Assim, ao invés do reconhecimento da diferença sexual, propõe a expansão das multidões queer: "Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade das relações de poder, uma diversidade de potências da vida" (idem).
Fronteiras, limites, limiares
Retornamos agora à teoria psicanalítica. Vimos que Lacan teria proposto um quadro de sexuação que não cabe na ideia de fronteira, exigindo um passo além - o limite além do qual o feminino se coloca. Mas vimos também que, sob a lógica de um para além marcando o limite do simbólico, não escapamos da diferença relativa, cujo eixo central é o falo. Como poderíamos então pensar a diferença? Esta é a questão que provoca os psicanalistas quanto os pensadores queer.
O desafio, nesse caso, não é instituir a diferença como uma posição para além, mas o de tornar pensável aquilo que ainda não se diferenciou. Como escreve Boris Groys: "Além da identidade e da diferença existe o domínio do não diferenciado, indiferente, arbitrário, banal, não considerável, desinteressante, indigno de nota, não idêntico e não diferente" (GROYS, 2005, p. 49). Como poderíamos pensar o domínio do informe, do que ainda não é classificável, do que não poderia estar em nenhum dos lados de um quadro da sexuação? Para pensar este inclassificável, a noção de limite não seria suficiente. Teríamos que fazer aqui a distinção entre limite e limiar e, para isso, podemos utilizar um fragmento de Walter Benjamin. O limite pode ser marcado principalmente pelo caso limite, que é aquele que, ao indicar um para além, dissolve a regularidade aparentemente fixada de um estado, questiona este estado e o conduz a uma nova dimensão. É sob esta lógica que se apresentam as fórmulas lacanianas da sexuação, onde o limite estabelece duas posições. Entretanto, limiar é outra coisa. No livro inacabado das Passagens, Benjamin escreve:
O limiar deve ser rigorosamente diferenciado de fronteira. O limiar é uma zona. Mais exatamente, uma zona de transição. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, entumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados (...) Tornamo-nos muito pobres em experiência liminares. O "adormecer" é talvez a única que nos restou. Porém, assim como se sobrepõe ao limiar o mundo onírico com suas figuras, também sobrepõe-se a ele as oscilações do entretenimento e as mudanças de comportamento entre os sexos ao longo das gerações (BENJAMIN, 1927-1940, fragmento M26, p. 535).
Jeanne-Marie Gagnebin (2010) escreve um belo artigo sobre essa distinção. A fronteira, diz ela, designa uma dupla operação de espírito e de linguagem: desenha-se um traço ao redor de algo para lhe dar uma forma bem definida e evitar que esse algo se derrame sobre suas bordas. A fronteira contém e mantém algo, evitando seu transbordar; define seus limites e as limitações de seu domínio. É um conceito que remete a contextos jurídicos de delimitação territorial. "Sua transposição sem acordo prévio ou controle regrado significa uma transgressão, interpretada no mais das vezes como uma agressão potencial" (GAGNEBIN, 2010, p. 13).
Quanto ao limiar, Gagnebin explica que ele se inscreve num registro mais amplo do que o da fronteira - um registro de movimento, de ultrapassagem, de "passagens", de transições. Não se trata apenas de um limite ou de uma posição para além, mas de um trânsito, de um movimento contínuo. Na arquitetura, o limiar tem justamente essa função: "permitir ao andarilho, ou também ao morador ou ao passante que possa transitar, sem maior dificuldade, de um lugar determinado a outro, diferente, às vezes oposto." (idem, p. 14). Como exemplos arquitetônicos teríamos a rampa, o umbral, a soleira de porta, vestíbulo, corredor, escadaria, sala de espera num consultório, sala de recepção num palácio, pórtico, portão numa catedral gótica. Em suma, o que o limiar faz não é simplesmente separar dois territórios (como faz a fronteira), nem tampouco marcar o alcance de um território (como faz o limite): ele permite a transição. Benjamin o aproxima da ideia de onda. E não é por acaso que escreve sobre o limiar num caderno sobre prostituição: o limiar é uma zona. Lembra viagens, fluxos e contrafluxos. Não significa apenas a separação, como a fronteira, mas indica também um lugar e um tempo intermediários e, portanto, indeterminados. Há um limiar, por exemplo, na passagem para o adormecer, assim como entre o adormecer e o acordar. Do mesmo modo, se poderia pensar em oscilações e transições entre os sexos ao longo de uma vida, ou ao longo de gerações, ou na passagem do informe para a forma. No entanto, resistimos a pensar esse "entre" e aos paradoxos que ele nos traz, em diversos domínios:
[O limiar] Designa essa zona intermediária à qual a filosofia ocidental opõe tanta resistência, assim como o chamado senso comum também, pois na maioria das vezes, preferem-se as oposições demarcadas e claras (masculino/feminino, público/privado, eu/outro), mesmo que se tente, mais tarde, dialetizar essas dicotomias (GAGNEBIN, 2010, p. 15).
Ora, nós temos, na teoria psicanalítica, uma noção próxima a essa concepção benjaminiana. Ela também implica o trânsito contínuo, a passagem do informe para a forma - mais exatamente, para uma forma sempre inacabada - envolvendo a mesma modalidade de paradoxos. É a noção de espaço potencial proposta por Winnicott. Rogério Luz a resume bastante bem:
A noção de espaço potencial pretende dar conta de um movimento de aproximação/distanciamento, união e separação (...) Espaço de indeterminação, não orientado com vistas de um objeto ou de um objetivo, sem destino, sem sentido ou sem forma (...) Espaço de ultrapassagem entre não ser e ser, o mesmo e o outro, repouso e movimento (LUZ, 1989, p. 30-31).
Enquanto espaço - também - de subjetivação, o espaço potencial pode ser visto como território de sexuação sem coordenadas identificatórias definidas. Ao invés do para além, trata-se do espaço do ainda não. Nesse caso, a sexualidade se mostraria como domínio permanentemente inacabado, não cabendo a ideia de uma posição sexual e tampouco o propósito de uma situação "assumida" ou "fora do armário".
Diferença: para além e ainda não
Os modos de sexuação que se produzem na nossa atualidade social apresentam variações inclassificáveis, segundo o quadro binário de que dispomos na tradição psicanalítica, e indiferenciadas segundo o princípio que faz do falo o diferenciante da diferença. Impõe-se hoje uma multiplicidade de formas sexuais para as quais os estudos queer têm chamado a nossa atenção e que não podemos mais ignorar, ainda que ao preço, certamente, de precisarmos rever nossas balizas teóricas sobre sexualidade. Para os psicanalistas, o problema não se reduz a um debate sobre binarismo ou multiplicidade - e, naturalmente, sobre as implicações da afirmação de um e de outro. As teorias queer denunciam a contingência histórica da redução binária das sexualidades e essa é uma contribuição importante para a psicanálise e para a cultura. Porém sob uma outra perspectiva, a psicanálise também tem uma contribuição a fazer: binária ou múltipla, sexualidade é conturbação. Nesse campo não se formam identidades prêt-à-porter ou diversidades apaziguadas. Quanto a isso, o medo dos partidários da declinologia é injustificado: a clínica nos mostra que a horizontalidade da organização social e política não destrói a dimensão trágica presente em cada modo de sexuação, nem o fato de que eles são sempre um território de impasse e uma questão em aberto.
Sem o recurso às coordenadas identificatórias pré-estabelecidas, a sexualidade torna-se um problema da economia libidinal dos indivíduos. Em O mal-estar na cultura (1930 [1929]), Freud já havia nos alertado sobre a impossibilidade de encontrarmos uma fórmula da felicidade ou, ao menos, de nos situarmos bem em nossa pele, no mundo e com os outros: "A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia libidinal do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo" (FREUD, 1930 [1929], p. 103) Podemos parodiar esta ideia formulando-a também com relação à sexualidade: caberia a cada um encontrar os caminhos de seu desejo e seus modos próprios de situar-se quanto ao sexo.
Com menos coordenadas fornecidas pela cultura, esses modos se tornam cada vez mais marcados pela contingência e pelos encontros; isso não significa dizer que na ausência de um significante mestre estamos condenados a viver, como propôs Badiou, em mundos atonais que se equivalem (BADIOU, 2006, p. 442-445). Um mundo múltiplo não é um mundo indiferenciado; ao contrário, a multiplicidade comporta uma grande variedade de diferenças e seus valores são heterogêneos. A questão é que, na ausência de um significante mestre determinando um padrão, esses valores serão contingentes, mutáveis, produzidos ou sofridos por cada um.
Se a psicanálise ainda pode apostar na invariância, esta incide na impossibilidade de uma sexualidade definida ou acabada. "Nenhum dos caminhos leva a tudo o que desejamos", escreve Freud (1930 [1929], p. 102-103). De fato, no que diz respeito à sexuação, os caminhos são múltiplos, mas comportam um invariante: todos eles são gauches. Daí o impraticável de qualquer regra de ouro a esse respeito, mesmo quando ela é libertária - isso o sonho hippie dos anos 60 e 70 trabalhou para nos mostrar. Se os abordamos pela lógica dos limiares, os modos de sexuação permanecem como questão em aberto. Há neles alguma coisa de inclassificável, passagens para uma forma que não chega a ser atingida, oscilações e transições. Ao invés de uma diferença fundada na distinção entre os sexos, teríamos um processo de diferenciação que ainda não encontrou a sua forma. Mas não residiria nesse ainda não a produção da diferença?
Referências
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Artigo recebido em: 20/08/2014
Aprovado para publicação em: 10/09/2014
Endereço para correspondência
Jô Gondar
E-mail: jogondar@uol.com.br
*Psicanalista, membro efetivo/CPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), doutora em Psicologia Clínica/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), profa. do Programa de pós-graduação em Memória Social/UNIRIO (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
1Para o último Lacan, isto é, o Lacan dos anos 70, o sinthoma aparece como alternativa para pensar a subjetivação e a sexuação, ao invés do Nome-do-Pai ou da ordem simbólica. Enquanto resto irredutível do sintoma, índice do incurável e do singular de cada um, o sinthoma permitiria ao sujeito fazer uma amarração do real, simbólico e imaginário, amarração até os anos 70 referida ao Nome-do-Pai.