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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

ARTIGOS

 

Goze! Notas sobre a Nova Economia Psíquica

 

Enjoy it! Thinking about the New Psychological Economy

 

 

Urias ArantesI*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio interroga o trabalho de Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun em seu esforço para mostrar os efeitos clínicos e teóricos do declínio do patriarcado e a ressurgência do matriarcado (ou do maternal) sobre os laços sociais e sobre os novos modos de subjetivação e de transmissão. Sugere-se que a pertinência dessas análises não deve ocultar o pouco de atenção dada ao processo democrático e, assim, à dimensão do político que a psicanálise não pode ignorar, tanto mais que ela mesma participa da aventura democrática.

Palavras-chave: Nova Economia Psíquica, democracia, patriarcado, matriarcado.


ABSTRACT

This paper intends to examine Charles Melman and Jean-Pierre Lebrun's work in their effort to indicate the clinical and theoretical effects of the decline of patriarchy and the resurgence of matriarchy ( or the maternal) on social bonds and on the new ways of subjectivation and transmission. It is suggested that the pertinence of those analyses should not conceal the minor attention paid to the democratic process and, thus, to the political dimension that cannot ignored by Psychoanalysis. This is all the more important when considering Psychoanalysis as an intrinsic part of the democratic adventure.

Keywords: New Psychological Economy, democracy, patriarchy, matriarchy.


 

 

"Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos,
sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama."
Oswald de Andrade, Manifesto antropófago.
In Revista de Antropofagia, nº 1, março de 1928. Ed. Facsimile. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.

 

"A lingua é minha pátria
E eu não tenho pátria
Tenho mátria
E quero frátria."
Caetano Veloso, Língua. In Velô, 1984.

 

As páginas que seguem são o resultado de pelo menos um duplo encontro: com Raphaël e com alguns textos de Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun. Não se trata de reconciliar teoria e prática, fazendo de uma a prova ou a verdade da outra, mas antes, de tentar formular o que aparece entre a psicanálise e o político, quando a primeira não ignora ou tenta não ignorar o segundo. Isso significa que, se o teórico é privilegiado, a clínica nunca está muito longe. Não há aqui nada de conclusivo, mas um esforço para formular questões que a psicanálise, hoje, não pode ignorar.

 

1.

Encontrei Raphaël uma meia dúzia de vezes, sozinho, numa situação escolar e sempre atendendo a seu pedido. Ele falava pouco e pedia desculpas, às vezes, "por ter um nó na garganta". Como vira sua mãe anteriormente, pude reconstruir em parte a situação dos laços afetivos de Raphaël. A mãe, funcionária numa repartição pública, vivia exclusivamente para o filho: "dei-lhe tudo o que podia", depois que o pai abandonou o lar, algum tempo após o nascimento de Raphaël e fundou uma nova família. Raphaël via o pai regularmente, mesmo se os adultos quase não se falavam. Desde cedo, o pai começou a dar dinheiro a Raphaël: "e foi tudo o que me deu", contou Raphaël. Eles quase não se falavam durante as visitas e o menino concluiu que seu pai "não gostava muito de palavras". Havia também a namorada, a filha única de um casal com um pai autoritário e uma mãe "esmagada". Segundo Raphaël, o pai teria feito a mesma coisa com a filha: "ele a apagou completamente". Por volta de seus quinze anos, Raphaël começou a fugir de casa, primeiro da casa da mãe, em seguida do centro onde um juiz o colocara contra a vontade da mãe, mas de acordo com Raphaël. Ele dormia na rua nessas ocasiões de fuga - "eu tinha medo e fazia pesadelos" e voltava para casa antes que a polícia se lançasse a sua procura. Para explicar seu gesto, ele repetia: "estava de saco cheio" (em francê: j'en avais marre"1). A expressão voltava frequentemente à sua boca. A pedido da mãe, o pai tentou falar com ele, mas Raphaël respondeu que não via porque ele se interessava agora por sua vida. Raphaël era um bom aluno e obteve seu baccalauréat com menção2, apesar de esta ser uma atitude considerada como "estranha" por colegas e professores.

No fim do ano escolar, Raphaël desapareceu. As buscas foram inúteis e a mãe entrou em crise. O pai parece não ter reagido. Algum tempo mais tarde, recebi um cartão postal de uma cidade portuária estrangeira: "larguei as velas" (em francês: j'ai largué les amarres").

Eu me lembro que, no nosso último encontro, Raphaël parecia ter chegado a uma espécie de conclusão, declarando "quero ir morar à beira do mar" (em francês: je veux aller vivre au bord de la mer"). Como em outros momentos, não tentei levá-lo a falar mais, por exemplo, fazendo perguntas. Minhas raras "respostas" consistiam em sublinhar uma palavra pronunciada, retomando-a para mim. Se, às vezes, o silêncio durava, era evidente que Raphaël estava pensando furiosamente. Como se fosse necessária a minha presença para poder pensar. Ele me comunicava então fragmentos, que eu ouvia como se fossem momentos de impasse ou de conclusão: "estou de saco cheio" (em francês: j'en ai marre"), "minha namorada foi apagada completamente pelo pai," "meu pai esta se lixando." Mas também como momentos de compreensão: "tenho um nó na garganta," "não aguento mais minha mãe, se eu for embora, ela vai morrer, ela me ama demais" (em francês: je ne supporte plus ma mère, si je la quitte, elle va mourir, elle m'aime trop"). Eu sublinhava então o nó, as amarras e porter" ou savoir porter". E quando ele chegou ao que ouvi como manifestação de seu desejo e resposta a seus problemas - ir viver à beira (em francês: bord") do mar - sublinhei o bord" e o port", à beira do mar (e não dentro) há portos", pontos de amarragem que permitem a partida, mas também o retorno. Essa simples observação de geografia afetiva parece ter ido na direção de seu desejo - uma autorização? um reconhecimento? - e ele a largué les amarres". Não sei se simplesmente fugiu - como seu pai já fizera diante da empresa devastadora da mãe - ou se encontrara seu caminho para crescer. Um pouco dos dois, talvez.

 

2.

Em L'homme sans gravité (MELMAN, 2002), o autor sugere que a psicanálise freudiana contribui também para o declínio atual do patriarcado, pois Freud permitiu a difusão, em Malaise dans la culture (FREUD, 1929) de um ideal de civilização não repressiva. Como se sabe, para Freud o mal-estar se deve à repressão que a cultura exerce sobre as pulsões sexuais, donde resulta a incompatibilidade entre a cultura e a felicidade. Ora, prossegue Melman, pode-se verificar, hoje em dia, os efeitos de uma moral relaxada: a coisa perde seu interesse, pois os recalques foram suprimidos. No mesmo movimento o prazer tende a desaparecer, abrindo o caminho para uma lógica materna, lógica do amor que substitui progressivamente a lógica patriarcal do dever. Entrevê-se desse modo o tempo de uma satisfação sem limite (o que significa uma satisfação indefinida): Peçam o impossivel! Gozem!

A emergência do matriarcado como forma de transmissão é favorisada por um modelo econômico que promove, promete e permite uma (in)satisfação sem fim. No entanto, o reinado das mães sempre existiu: por que a psicanálise quase nunca se interrogou a seu respeito?3 Melman pensa que uma tal censura deve-se ao nosso desejo que a vida se transmita independentemente do sexo, um desejo que o progresso da ciência está transformando em realidade. O declínio do patriarcado e seus efeitos sobre as novas formas clínicas exige que se aborde essas questões até aqui abandonadas.

Para o menino, a lógica do patriarcado implica o sacrifício da mãe pelo amor do pai e, em consequência, uma grande ambivalência a respeito do pai. Quando o menino amará uma mulher, ela será uma substituta e, quando ele se tornar pai, ele permanecerá filho. Esse jogo de substituições produz no casal "uma insatisfação constitutiva" (MELMAN, 2009, p. 224). Para o casal, a ambiguidade face ao pai permanece na marca do sacrifício do desejo individual em nome da procriação. Em outros termos, o desejo individual é marcado pelo recalque e só se manifesta com a autorização e sob a autoridade do pai. A lei do pai é a lei do dever. Essa é a origem das neuroses que, na sua totalidade, manifestam o ódio do pai e da sexualidade. Ora, afirma Melman, o poder político também se funda sobre o nome-do-pai e, assim, todo protesto contra as injustiças sociais é endereçado ao pai, causa das dificuldades, indiferente ou incapaz de resolvê-las.

A lógica do matriarcado, na qual prima a dimensão doamor, é totalmente outra. O amor é provocado pela fragilidade do outro: fragilidade do poder da mãe sobre a criança diante do pai e fragilidade da criança diante da mãe. A mãe não exige do menino que ele faça um sacrificio, mas que se torne um homem de verdade. Ela lhe transmite o que ela não possui, "as insígnias da virilidade". Para o menino haverá assim mesmo sacrifícios em nome do amor fundado sobre a fraqueza: tornar-se um donjuán ou renunciar à sexualidade.

Para a menina é um pouco mais complicado, segundo Melman. Ela não sabe o que sua mãe espera dela e, como não há "insígnias da feminilidade", donde poderia ela recebê-las? Não do pai - e, caso aconteça, é o incesto. Para a filha resta a "posição especular" face à mãe, a mãe como ideal inacessível. Uma tal posição de inferioridade pode se dissipar na maternidade, mas para a filha a questão da feminilidade permanece incerta.

Para resumir: a autoridade paterna (e, segundo Melman, toda autoridade) não faz referência à mãe, mas aos ancestrais ou a um terceiro exterior (a nação ou uma divindade); a autoridade materna só tem como referência a maternidade e, para a criança, ela é ilimitada, isto é, arbitrária.

O ressurgimento da lógica materna e a tendência atual ao seu predomínio, paralelamente ao apagamento da figura paterna, é imediatamente perceptível sobretudo nos jovens: os valores tradicionais do dinheiro e das honras perderam sua importância, pois os pais não servem mais como referentes e os jovens procuram inventar uma nova vida. A relação ao dinheiro mudou: os pais devem dá-lo, pois trata-se do que é devido, enquanto que os filhos não devem nada. Outros efeitos são perceptíveis: não podendo mais ser autorizados pelos outros, por nenhuma autoridade, os jovens se autorizam a si mesmos e tornam-se inteiramente responsáveis. Há menos exigência de conformidade com um pai ideal, assim como mais solidariedade e partilha. Frequentemente, isso se acompanha de uma busca "de aniquilação subjetiva" (MELMAN, 2009, p. 234) com recurso às drogas ou ao álcool, por exemplo.

A psicanálise só pode constatar a tendência ao desaparecimento das neuroses tradicionais, e até mesmo das psicoses, ambas cedendo o lugar aos estados borderline. O recuo dos recalques associado ao declínio da lei do pai fazem que as psicoses tendam a desaparecer em função de uma experiência real dos limites, de limites reais, orgânicos, que o corpo opõe a todo gozo. Impõe-se assim uma insatisfação fundamental, um vazio que ninguém nem nada pode preencher, mas que não se pode evitar de tentá-lo. Nesse sentido, as experiências com a cocaína em Bright Lights, Big City, de Jay McInnerney, assim como a experiência do consumo de imagens das adolescentes de Bling Ring, de Sofia Coppola - nos dois casos, observe-se que o sexo praticamente não existe - são significativas. Num registro mais complexo, lembre-se do universo fictício dos romances de Breat Easton Ellis.

O caso de Raphaël ganha também um outro enfoque, uma outra dimensão.

Para Melman, o patriarcado (transmissão com a castração) e o matriarcado (transmissão sem a castração) são estruturas numa relação dialética: o enfraquecimento da primeira exige que a atenção se volte para a segunda, o funcionamento e os efeitos de uma esclarece os efeitos e o funcionamento da outra. Com a erosão da figura do pai, "promotor do desejo," (MELMAN, 2002, p. 26) é um mundo inteiro que desmorona: o recalque e o desejo cedem lugar ao gozo e à perversão, a representação à presentação4; intervém a abolição da diferença dos sexos, a predominância de práticas sem autoridade fundadora; a política não tem mais sentido e cede lugar à gestão. Novas formas de sociabilidade horizontal se desenvolvem. É a grande liberação, o que significa que o pensamento se esteriliza, posto que pensar só é possivel para um sujeito dividido. Abrem-se as portas do "fascismo voluntário" (MELMAN, 2002, p. 46). A psicanálise nada pode fazer diretamente, mas apenas mostrá-lo, fazê-lo aparecer (MELMAN, 2002, p. 44), o que quer dizer, clinicamente, "fazer existir (...) esse lugar vazio que permite ao sujeito organizar sua palavra, sem o qual ela torna-se incoerente, o que é seu sofrimento" (MELMAN, 2002, p. 221).

 

3.

No mesmo sentido, J.-P. Lebrun afirma que o declínio da função paterna implica o disfuncionamento de três operações fundadoras do sujeito: castração primária (inscrição da linguagem na realidade psíquica), castração secundária (intervenção do pai real) e validação (o sujeito assume o processo de castração, sobretudo na adolescência). A ponte entre o pai simbólico todo poderoso e o pai real impotente se faz graças ao pai imaginário, figura que a criança deve sacrificar para passar do mundo das coisas ao mundo das palavras. Se o pai imaginário permanece, o que implica que a criança recusa a representação que o pai não é deus, ela não poderá "entrar na lei da linguagem" e o pai abdicará da "tarefa essencial de presentificar, representado-a, a organização simbólica que nos caracteriza como humanos" (LEBRUN, [1997] 2009, p. 63).

Os efeitos dessa falência da castração se manifestam por uma mutação no laço social, a qual se reconhece em termos de ascensão do igualitarismo, da permutabilidade dos lugares, da simetria dos estatutos, da reciprocidade dos direitos, da procriação fora da diferença dos sexos, da garde alternée", etc. Falência igualmente do trabalho da cultura sobre o conflito que divide a criança entre seus desejos incestuosos e assassinos e a proibição. Como para Melman, para compreender o que está surgindo, o nó é a transmissão, as novas modalidades de constituição dos sujeitos e dos desejos.

Na direção traçada pela perda das referências - reforçada pelo discurso científico que desvaloriza a enunciação em proveito do enunciado (o que elimina o juizo de autoridade) e pela proliferação do liberalismo econômico (anunciando o gozo sem limite do objeto) - há a desvalorização do político correspondente à mutação do laço social. O conjunto desses fatores pode ser colocado sob a rubrica "crise da autoridade" que, segundo Lebrun, conheceu na Revolução Francesa um momento crucial, preparado e antecipado pelos avanços do discurso científico desde Galileu. Se privilegiamos esse aspecto, é sobretudo para sugerir que a análise estrutural da Nova Economia Psíquica não é incompatível com a análise histórica de Lebrun das condições de emergência da transformação. Talvez ambas dependam dos mesmos pontos obscuros, ou cegos.

Para Lebrun, a Revolução Francesa teve como projeto o apagamento da diferença de posição, impondo a igualdade. Os que governam são simples representantes do povo que tomou o lugar do rei. Assim, o novo poder é assegurado por todos, virtualmente e de modo precário. Sua autoridade é sistematicamente questionada, pois a desincorporação do poder, que se torna assim um lugar vazio, faz com que seu ocupante seja frágil. Nas democracias modernas, a tendência é a de transformar os homens no poder em simples gestionários, mais ou menos cercados de especialistas.

O Terror foi a "matriz" do totalitarismo enquanto tentativa de possessão total do poder em nome do povo. Essa forma extrema não é o único perigo ou a única contrapartida da democracia: o imaginário social tornou-se uma questão para institutos de sondagem de opinião. Acusa-se assim de "reacionário" aquele que sustenta um "não" diante do saber dos especialistas: "a culpabilidade de não poder responder à demanda daqueles que ocupam um lugar de autoridade, o anonimato atrás do qual se ocultam as decisões, a formidável pressão da economia: tudo isso nos leva a consentir que o navio continue seu caminho sozinho e que, no lugar de um comandante escolhido por nós, apareça o comando acéfalo dos saberes" (LEBRUN, [1997] 2009, p. 196).

A Revolução Francesa reforçou uma mutação profunda do laço social, pois o funcionamento coletivo não se refere mais a uma instância exterior. Os sujeitos vivendo juntos não se reconhecem como sujeitos diante de um Outro. Os efeitos, os novos sintomas, são invenções da subjetividade neoliberal que instala "no adulto a perversão polimorfa da criança" (LEBRUN, [1997] 2006 p. 17), com a exclusão da enunciação, o desaparecimento do senso dos limites e a perda da faculdade de julgar. As novas patologias são as adições de todos os tipos, a toxicomania e os estados borderline. Na sociedade, as seitas se multiplicam, há recrudescência da transgressão do incesto e do homicídio.

É crucial que a psicanálise possa medir essa mutação que aparece na clínica e funciona no social. Trata-se das mesmas moções pulsionais, como Freud formulou noMal-estar. A contribuição de Lacan foi de mostrar que os fundamentos da descoberta freudiana - reconhecimento do inconsciente, da transferência e do primado da sexualidade - são fatos de linguagem, essa capacidade humana por excelência. Uma nova perspectiva abriu-se para esclarecer o que é o Mal-estar atual: assinalar "como nosso social, marcado pelo implícito do discurso tecnocientífico, secreta uma adesão ignorada a um 'mundo sem limite' e autoriza, assim, a infração das leis da palavra que nos tornam humanos" (LEBRUN, [1997] 2009, p. 34). Desse ponto de vista, o psicanalista pode se considerar como "um médico da civilização", segundo a expressão de Nietzsche.

 

4.

A mutação que Melman e Lebrun tentam circunscrever diz respeito aos sujeitos e ao modo do viver-juntos hoje. Os psicanalistas têm como tarefa compreender o que acontece e fornecer instrumentos para a boa conduta da clínica. Um tal esforço coloca a questão política no coração mesmo da psicanálise e da prática dos psicanalistas. Renova-se assim a dimensão cultural, a dimensão da psicologia coletiva, tão importante para Freud e frequentemente escamoteada. Para Melman e Lebrun, a mutação estrutural e histórica que atinge a forma da família, lugar da transmissão, afeta, ao mesmo tempo, o laço social e cria novas alianças com o discurso da ciência, com o "democratismo" e as práticas econômicas do liberalismo desenfreado.

A análise das novas modalidades de transmissão, isto é, da constituição de novos sujeitos, deixa entrever a nova palavra de ordem social dos adultos: gozem! Em oposição ao desejo e aos recalques que o desejo implica, em oposição à logica edipiana do sujeito desejante e sua travessia do conflito entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, o gozo é o programa e a finalidade da Nova Economia Psíquica. Não se trata, de modo algum, de querer voltar à época em que se amarrava o cachorro com uma corda de linguiça e ele não a comia. Não há retorno e a psicanálise não tem por função enriquecer o arsenal retórico de forças reacionárias. Trata-se de compreender as razões do declínio da função do pai e os efeitos que se seguem, repertoriar as mudanças sociais e individuais fornecendo meios para interpretar o desamparo contemporâneo que se observa na clínica, assim como reconhecer o trabalho das respostas que estão se construindo. Uma outra formulação: se a época deixa cada vez menos lugar à escolha e à reflexão, pois as diferenças se apagam, a psicanálise tem por missão a preservação dessas duas dimensões essenciais de nossa humanidade, inscritas nas leis da linguagem. Outros não hesitam em falar de refundação da psicanálise. A tarefa não parece exigir novos conceitos, pois a psicanálise freudo-lacaniana dispõe das noções necessárias e suficientes, sob condição que lhes sejam restituidas a dimensão interrogativa e que não sejam utilizadas como bens adquiridos.

Não há dúvida que o convite é interessante e que ele se elabora em textos corajosos e demonstrando uma liberdade de pensar que se tornou rara entre os psicanalistas. É inutil ignorá-lo ou afastá-lo com argumentos tais como: a clínica deles é fraca, muitos bons analistas não percebem na clínica os sinais anunciadores de uma NEP e, de qualquer modo, se fosse verdade, a análise não seria mais operante atualmente e deveríamos nos contentar com a psicoterapia. É inútil porque, independemente do fato que aspectos quantitativos não têm muita importância na prática clínica, é preciso lembrar que sempre foram as questões clínicas que abriram pistas fundamentais da elaboração teórica. E isso é incontornável, se a psicanálise ainda tem um sentido. A singularidade de um caso neutraliza o enfoque estatístico, mas, paradoxalmente, permite construções generalizantes: basta reler os casos de Freud para se convencer disso. A psicanálise se mantém nesse lugar impossível, um entre-dois no qual ela não pode abandonar nenhum dos dois lados: uma singularidade inesgotável e uma generalização sem termo final. Essa é a razão porque o convite de Melman e Lebrun abre uma discussão, coisa rara entre os psicanalistas confortados e reconfortados pelo grupo próximo, mestres ou discípulos, mas quase nunca companheiros de aventura.

Certo número de pontos merece um exame aprofundado. Em primeiro lugar, o enfoque social e/ou político centrado sobre a análise de mutações do laço social propõe o esboço de uma NEP, ampliando assim o alcance do Mal-estar e sua orientação filogenética ou cultural. Mas, trata-se da mesma perspectiva? A reflexão sobre a cultura e a reflexão sobre o que está em jogo em termos de realidade psíquica (ou de Imaginário Social) não possui outras perguntas e outras dimensões, diferentes da reflexão sobre o laço social, sobretudo se se insiste sobre a pulsão de morte? Se uma distinção entre os dois enfoques - digamos, rapidamente, cultural e político - é útil e necessária, o problema exige o retorno à analise freudiana do mal-estar cuja tese maior é a da incompatibilidade entre a cultura e a felicidade. Mas, justamente, no plano do viver-juntos ou do laço social, o que significa "felicidade"? Questão tanto mais importante que Melman coloca, entre os efeitos da mutação, as exigências de justiça, de solidariedade, de liberdade, de liberação do peso da tradição, acompanhados do sentimento crescente de responsabilidade?

Um outro ponto diz respeito ao uso da noção de matriarcado para nomear uma estrutura que emerge quando a estrutura patriarcal declina. É supreendente, e inquietante, o silêncio sobre o movimento feminista, assim como sobre maio de 1968. Pode-se, simplesmente, colocá-los como o que certamente não são, a saber, o negativo do patriarcado, simples efeitos de superfície? Pode-se suspeitar aqui a existência de um ponto cego equivalente ao lugar da mulher e do feminino como lugar que só pode ser pensado como "falta". Lembro-me de uma menina que observava um menino no seu banho e colocava o problema de modo totalmente diferente: "não tenho nada, tenho um buraco". Um buraco não é nada?

Nossos dois autores estão de acordo para dizer que o declínio da figura paterna arruina os fundamentos psíquicos da autoridade e conduz, assim, à desvalorização da política. Lebrun estabelece uma relação direta entre isso e a emergência da democracia moderna, da possibilidade que ela inaugura, no Terror, de tornar-se totalitária, como mostra a experiência histórica. Exceção feita ao Terror, para a análise do qual Lebrun apoia-se sobre Lefort que fala de Terror em ato nos discursos de Robespierre - um fato que não é sublinhado na análise de Lebrun, a saber, que houve um discurso de justificação - o autor não fala da possibilidade, ela é também uma experiência histórica, de uma inversão do totalitarismo em democracia, fato que lança uma nova luz sobre os avatares da democracia moderna e do que ela inaugurou. Essa questão da democracia moderna, de sua novidade e de suas transformações deve ser retomada inteiramente.

Um último ponto, tão antigo quanto a reflexão sobre a cidade ideal de Platão, a saber, o pressuposto de uma analogia, e mesmo de uma identidade, entre o funcionamento do aparelho psíquico individual e do social, da psicologia coletiva, diria Freud. Freud a assume igualmente e nos lembra que as moções pulsionais são transindividuais. Mas isso seria suficiente para pensar o laço social? A estrutura edipiana basta para captar o novo mal-estar na cultura e nos ajudar a comprendrender a natureza e as condições históricas de sua emergência? Se queremos compreender as novas patologias sociais e as respostas que se elaboram, basta tomá-las como patologias individuais em grande escala? Não corremos assim o risco de não ver o que é mobilizado quando vivemos juntos, particularmente na democracia? As mesmas noções podem ser aplicadas ao individual e ao social? Quais são as consequências para a clínica? Se Freud o fez em seu ensaio filogenético, a operação é legítima na dimensão política?

Um vasto programa!

 

5.

No caso de Raphaël não é possível falar do ouro da psicanálise, mas certamente existiram momentos analíticos, momentos de manifestação da verdade do sujeito e de seu desejo, momentos de conflito e de contradição. Por exemplo, a respeito da ambiguidade do amor materno, mas também da ambivalência de Raphaël a propósito de sua mãe, ou ainda a abdicação do pai diante da qual a ambiguidade de Raphaël parecia mais oculta. Também há a "resposta" consistindo em abandonar a casa e, em seguida, a cidade, mas para se encontrar onde havia um porto donde podia partir. Ele não inventou uma outra familia, como o pai, mas escolheu conduzir sua própria barca. Os nós, se não foram desfeitos, pelos menos relacharam e Raphaël pôde se separar.

A abdicação do pai e o amor invasivo da mãe parecem ter produzido dois efeitos principais: Raphaël satisfez durante anos o desejo da mãe, um homenzinho perfeito mergulhado num amor materno irrespirável. O dinheiro que seu pai lhe dava, Raphaël o tomava como uma dupla indenização: por ter sido abandonado e por ter sido colocado no lugar que devia ocupar junto à mãe, mulher frágil, um lugar do qual o pai tinha escapado. As fugas de Raphaël parecem assim ter um duplo sentido: fugir da dupla injunção pela qual pai e mãe lhe impunham a realização do que nem um nem o outro puderam assumir, isto é, a perda do pai, para a mãe, a falta do pai para o ex-marido. E mesmo se a armadilha funcionou durante um certo tempo, os nós eram apertados demais para a criança. Raphaël começara a querer sair dessa situação tentando enfrentar o pai autoritário da namorada. O fracasso foi total, mas eu deixo de lado esse momento importante do processo. Em seguida ele quis partir longe de todos, mas não sem oferecer à mãe o sucesso nos exames e atingir a maioridade. Para inventar-se, era preciso ir embora ainda que, no fundo, talvez não estivesse fazendo outra coisa senão repetir a fuga do pai. Uma fuga criativa? Evidentemente não há nenhuma garantia de sucesso: partir era a condição talvez necessária, mas certamente não suficiente. Tavez seja nesse ponto que a análise ficou em suspenso. Raphaël abandonava os braços da mãe dos quais, às vezes, sentia falta: ela nunca quis um outro homem". Escapava também da armadilha preparada pelo pai. Acabei me dizendo que, no fim das contas, toda fuga é também uma procura.

Do ponto de vista clínico, o fundamental nessa situação me pareceu ser a escuta, permitindo, desse modo, a enunciação da insatisfação profunda que Raphaël sentia, iniciada e alimentada pelo amor irrespirável da mãe e pela demanda destrutiva do pai. Escutar igualmente sua maneira própria de procurar soluções: as fugas repetidas, a residência judiciária, a relação com a namorada, a oposição a seu pai, tentativas desajeitadas que apontavam o desejo de ser mestre de seu destino, de se liberar dos nós que lhe impediam de respirar. Escutar também o que se erguia como obstáculo à manifestação do desejo. Do ponto de vista edipiano, a falência do pai é evidente, reforçando em consequência a empresa da mãe. Ignoro as condições de separação dos pais. Raphaël parecia representá-la assim: após o nascimento da criança, não havia mais lugar para o pai. Ele falou uma vez de fotografias dele criança, sempre com a mãe ou sozinho, nenhuma fotografia com o pai. Raphaël nunca me pediu um conselho ou uma opinião, ele parecia dirigir a mim o que teria querido dizer ao pai, esse personagem que, na sua história, brilhava pela ausência. Uma história em grande parte marcada por essa ausência que uma presença excessiva queria apagar.

No seu universo, até um certo momento, não havia nada nem ninguém exterior ao território ocupado pelo belo amor entre ele e a mãe. O pai reforçava esse espaço fechado pagando para que continue a sê-lo. O dinheiro dado neutralizava as exigências da palavra. Em consequência, há ausência da autoridade, da figura que se ama e se teme ao mesmo tempo porque ela representa a lei, ou então, como para Raphaël, apenas uma lei concebida como pura condenação: você não abandonará sua mãe. Seu pai havia recusado o papel de terceiro ou o ocupava negativamente, como reforço da relação dual. Penso que fui colocado no lugar desse vazio, lugar de uma ausência, como uma referência diante da qual Raphaël pôde elaborar pelo menos uma parte de suas questões. Minha presença devia tornar ativo esse lugar, ocupado agora por uma autoridade que não estava marcada nem pela falta (o desejo incestuoso) nem pela dívida ou pela culpabilidade (a morte do pai) e que, dessa maneira, aparece para além ou através da transferência. Minha hipótese aqui é que o psicanalista instalado nesse lugar pela transferência possui essa outra forma de autoridade, diferente da autoridade paterna, da autoridade política ou religiosa. Se esse lugar não é reconhecido, como parece ser o caso de Melman e de Lebrun, a reflexão sobre o declínio da autoridade corre o risco de ignorar o que está em jogo na relação entre o analista e o analisante, mas igualmente nas possibilidades do que eles designam como uma NEP. O psicanalista não é o exemplo mesmo de uma outra figura da autoridade? Sobre o que ela poderia se fundar, se uma fundação é necessária? O problema aqui não é somente o dos mecanismos de transferência, mas tambem o do "saber" do analista.

Para dizê-lo em outras palavras: a ausência de referência ativa, o apagamento da figura da lei, não implica ausência ou apagamento da dimensão da lei. A lei certamente não se encarna, nessa perspectiva da dimensão, mas resta seu apelo e a esse apelo há respostas de uma maneira ou de outra. A psicanálise é uma delas.

Em What is autority? (ARENDT, [1968] 1980) a autora se interroga sobre a experiência moderna da perda de autoridade. Ela propõe inicialmente a diferença entre autoridade e poder ou força, e aproxima a autoridade da noção de legitimidade. Ela afirma igualmente que a persuasão não pode ser a base da autoridade, pois esta é sempre hierárquica, enquanto que a persuasão supõe a igualdade. Convocando a experiência política romana para pensar a autoridade como ligada a uma experiência sagrada de fundação, ela afirma que a autoridade é sempre autoridade dos fundadores e daqueles que "aumentam" (auctoritas tem a ver com augere, aumentar) a fundação, o que corresponde ao papel do Senado romano que aconselha sem coerção. Quanto à politica e à filosofia, os romanos reconhecem como ancestrais, como autoridades, os gregos. No mundo moderno, a única revolução fundadora é a revolução americana, pois no caso francês a violência foi necessária para fundar um novo corpo político. Os americanos escreveram uma constituição que não inaugurava uma ordem nova, mas que confirmava e legalizava um corpo político já existente.

Essa outra figura da autoridade sem coerção, e cuja figurabilidade talvez seja mítica, mas fundada sobre o reconhecimento de uma experiência estabelecida, uma experiência de começo e de fundação, permite o esclarecimento parcial da "autoridade" do analista, no caso de Raphaël, assim como a percepção do que estava em jogo na sua demanda. É diante do analista que ele tenta formular os nós que o impedem de existir. Analista e analisante são certamente iguais diante do que não compreendem, o analista tampouco sabe como dizer o que ainda não foi dito. Mas seus lugares respectivos não são os mesmos, o que Raphaël parecia bem sentir não perguntando jamais o que deveria fazer. Mas era necessário que o analista estivesse lá, diante, não como se está diante de um espelho para reencontrar uma imagem, mas para poder dizer o que se sabia sem saber que se o sabia a propósito de seus impasses e desejos. Diante de uma orelha acolhedora, aberta, neutra.

Um aspecto fundamental, aqui, vem do fato que "falar diante" não significa confirmar uma experiência fundadora, mas (re)conhecê-la, formulá-la e desejá-la para si mesmo (e que não coincide necessariamente com o que diz o analista) e, de uma certa maneira, recomeçar, poder escolher onde nenhuma escolha parecia possível. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a autoridade do analista não tem, propriamente falando, conteúdo, e que sua substância só existe na medida em que o analisante lhe dá. Daí a tarefa fundamental do analista de sustentar seu lugar como lugar vazio, mas lugar assim mesmo. Quero dizer: um lugar que dá lugar ao que não tinha lugar reconhecido.

O que me leva a retomar à análise da experiência moderna da democracia e da Revolução Francesa proposta por Lebrun. Retomando algumas teses de Lefort, Lebrun aceita que a democracia "é portanto por excelência o regime político que abre o lugar do vazio, e que pode por isso mesmo realizar a tarefa de transmiti-lo" (LEBRUN, 2007, p. 120). No entanto, uma transformação interveio e o vazio foi ocupado e mesmo oculto, donde um ideal novo de gozo reforçado pelo triunfo do capitalismo liberal. Essa possibilidade de "preencher" o vazio e de negar assim a heteronomia se anunciava já no Terror, essa "matriz" do totalitarismo. Quando tal não foi o caso, a democracia tornou-se "democratismo" Mas a questão é de saber se a democracia não revelou também outras possibilidades fora o totalitarismo ou o democratismo? A dimensão aberta, a indeterminação da autoridade, não inauguram outras possibilidades?

Torna-se dificil ir na mesma direção que Lebrun quando, a partir desse ponto, ele se lança na análise do laço social que exclui um terceiro (não há mais Deus, nem rei, nem pai). Ele parece pouco sensível às "respostas" que nunca deixaram de aparecer e que Melman evoca: todas vão no sentido da invenção de novas figuras do social, pois também é importante compreender que a democracia é um regime onde a invenção é possível, revelando assim seu parentesco íntimo com a psicanálise e reciprocamente. Se ela introduz a possibilidade do totalitarismo, a experiência mostrou que ela introduz igualmente a possibilidade da inversão do totalitarismo. Se há inversão da democracia em totalitarismo ou democratismo, há também a possibilidade de inversão da inversão, os dois movimentos sendo hoje experiências históricas vividas.

O que me parece escapar às analise de Lebrun é o fato que a democracia institucionaliza o conflito e que este não somente abre a porta à invenção de novas formas de resistência ao liberalismo, mas também de resistência contra a limitação de liberdades fundamentais do cidadão moderno. Não quero negar a força da empresa de domesticação do desejo, de dominação pelo dinheiro ou pela ideologia que se torna mundial atualmente. A exteriorização forçada que corrompe a subjetividade, a colonização do inconsciente ou do imaginário social são realidades que ninguém pode negar. Mas a conflitualidade não esta desaparecendo, pode-se mesmo pensar o contrário, se somos atentos às novas formas que ela inventa e nas quais se manifesta. Novas formas que as formas tradicionais de oposição, de discussão ou de contestação não podem enquadrar. E quando há recuperação da novidade e isso parece acontecer sempre - a invenção não se esgota.

Curiosa e paradoxalmente, a crise da autoridade as multiplica, o que sugere que, se não há mais lei incontestada e incontestável, permanece a exigência da dimensão da lei, um tema caro a Kafka e que tornou-se a experiência quotidiana do cidadão moderno. Não é porque não cessamos de tentar preenchê-lo ou negá-lo que o vazio não permanece vazio, não se manifesta e se multiplica com uma força crescente. No plano clínico, a tarefa fundamental do analista não é a de tornar atento a tais sinais? Não é o que deseja secretamente o analisante, espaços novos de circulação e de invenção?

 

6.

Com efeito, se a dissimetria, o vazio que nos faz falar (o que os psicanalistas chamam de real) não têm mais lugar no discurso do coletivo (tanto mais que o liberalismo sem limites e a sociedade dita de mercado oferecem de modo concreto uma distração cada vez melhor) de que maneira tratar coletivamente o gozo e o o ódio, como nos impor encontrar-lhe outro destino que sua realização? Como precrever ainda que, no jogo do desejo, é preciso perder para ganhar. (LEBRUN, 2011)

Na carta VII, Platão expõe as razões que o conduziram à filosofia. Ele relata como Sócrates, "o homem mais justo dessa época" (324a), foi condenado à morte pela cidade. Platão que, como todo jovem ateniense livre, desejava ocupar-se dos negócios da cidade, será colocado diante das dificuldades fatuais da administração correta dos negócios públicos, assim como diante da corrupção generalisada. É aí que, "tomado de vertigem e incapaz de cessar o exame dos meios que fariam um dia se produzir uma melhoria tanto nessa matéria (dos negócios públicos) como, evidentemente, para o regime político no seu conjunto" (325 e). A República é em grande parte a síntese e o resultado desse esforço.

A República tenta formular a natureza da justiça e, como é difícil captá-la no homem individual, Platão propõe "um quadro maior e portanto mais facilmente perceptível" (368 e): a cidade. O pressuposto é que a natureza da justiça é a mesma na alma e na cidade. Estudando a genealogia da cidade para melhor captar a formação da justiça e da injustiça, a pesquisa platônica desliza para a procura de uma cidade ideal. O modelo de uma cidade ideal fundada sobre o saber, a verdade e a justiça - sobre a razão aparece pouco a pouco como uma cidade não democrática, posto que sua organização é hierárquica: os filósofos, os guardas, o povo. Poder-se-ia imaginar que na cidade perfeita não haveria nenhum lugar para a mentira e a manipulação, coisas indignas de um filósofo, mesmo ocupando o poder. Mas tal não é o caso5 se se trata das necessidades eróticas dos guardas, homens e mulheres, pois a tarefa dos governantes é de conduzir os melhores a reproduzirem os melhores, como sabe qualquer criador de passarinhos ou de cavalos. E para que isso funcione, "nossos dirigentes correm o risco de dever recorrer a uma quantidade considerável de mentiras e enganos, no interesse daqueles que são dirigidos" (459c). A razão é que as necessidades eróticas podem ser mais fortes que as necessidades geométricas, introduzindo desse modo a desordem na cidade. É também a razão do segredo que cobre mentiras e enganos: "a tropa dos guardas deve ser isenta o máximo possivel de dissensão interna" (459 e).

Esse ponto merece uma atenção particular, quero dizer que na alma individual há uma dissimetria, e mesmo um conflito, entre a razão e as paixões que não podem ser ultrapassado pelos mesmos artifícios políticos, pelas mentiras e pelos enganos. Dito de outro modo: a analogia, ou a identidade, entre a alma individual e o corpo político não implica somente uma diferença de tamanho entre o grande e o pequeno, como pretende Platão. Há uma diferença senão de natureza, pelo menos de funcionamento, pois se a alma pode viver com o conflito, elaborá-lo e lhe dar um sentido, a cidade, segundo Platão, é incompatível com a dissensão que coloca em perigo a própria existência do corpo político.

Isso não invalida a tese da natureza idêntica da justiça na alma individual (a excelência do indivíduo) e no corpo político (a excelência da cidade), mas sugere pelo menos que suas realizações respectivas comportam diferenças importantes. Pode-se encontrar em Freud uma idéia próxima no que diz respeito à possibilidade de obter a felicidade para o indivíduo e para o grupo.

A analogia entre a psiquê do indivíduo e a psicologia social é apontada por Freud desde Totem e tabu (1912), na introdução de Psicologia das massas e análise do ego (1921), assim como no Mal-estar na cultura (1929). Mas nesse último texto, Freud chama a atenção sobre o fato que a analogia de fins, de meios e de efeitos entre o processo cultural e o desenvolvimento do indivíduo não pode ocultar uma diferença profunda. Se o indivíduo procura sempre a felicidade e a união com os outros na comunidade, os processos individuais resultam do jogo dessas duas tendências, sem exclusão. Dito de outro modo: o programa do princípio de prazer - ser feliz - é mantido. Ora, tal não é o caso na cultura que tem "em regra geral um papel restritivo" (FREUD, [1929] 1995, p. 84). Assim, é apenas uma das tendências do indivíduo - a união com a comunidade que é satisfeita no processo cultural. Freud mostra também a extensão possível da analogia, sobretudo no nível do superego cultural. O indivíduo pode chegar a um equilíbrio e chamá-lo "felicidade," mas a cultura tem um outro programa no qual a procura da felicidade funciona como um obstáculo. Freud conclui pedindo prudência na questão de uma terapêutica cultural: trata-se somente de uma analogia e "é perigoso não apenas para os humanos, mas também para os conceitos, tirá-los da esfera onde nasceram" (FREUD, [1929] 1995, p. 89).

Encontramos aqui a conhecida prudência freudiana quando se trata de avançar rapidamente em psicanálise, mas também seu não menos conhecido "pessimismo" face aos processos culturais em relação à felicidade. A cultura é essencialmente repressiva face às pulsões, uma tese que, como se sabe, será contestada desde o inicio dos anos 30, em particular por Erich Fromm, suscitando um vivo interesse no seio da Escola de Francfort, sobretudo da parte de Horkheimer: interesse que dará nascimento ao freudo-marxismo cujo texto fundamental é de 1955, Eros e a civilisação, de H. Marcuse. Esse livro, de "caráter experimental" e que não se preocupa com a clínica, tem como tese fundamental a ideia de uma compatibilidade entre a felicidade e a sociedade civilizada graças à abolição do trabalho alienado. Tal abolição será o fruto da maturidade, na sociedade industrial avançada, da contradição entre as possibilidades de liberação e a realidade da repressão. Muitos consideraram os acontecimentos de maio de 1968 como os primeiros sinais da superação da contradição.

Dois pontos importantes aparecem aqui: a analogia entre processos individuais e processos coletivos é limitada e faz pensar que a análise dos efeitos dos processos coletivos sobre os indivíduos exige instrumentos diferentes dos que são elaborados para os processos individuais. Assim, por exemplo, a formação de um superego cultural. Em seguida, a impossibilidade de uma terapia cultural no plano teórico, mas também no plano do poder, pois não há autoridade que poderia impor a terapia sobre a massa. Freud talvez pense aqui na experiência de Platão em Siracusa, mesmo se a referência mais imediata é a experiência socialista. Em outros termos: a análise cultural não pode ir além do debate cultural do qual ela faz parte.

As análises de Melman e de Lebrun são frágeis e ao mesmo tempo provocadoras. Passa-se do individual ao coletivo e vice-versa facilmente demais, como se as duas dimensões fossem transparentes, seja historicamente (Lebrun) seja estruturalmente (Melman). É um fato que Lebrun se reclama dos avanços lacanianos que reinventam a descoberta freudiana em termos de fatos de linguagem, desmascarando assim as armadilhas do discurso tecnocientífico. O mal-estar atual vem dos efeitos de discurso que secretam a adesão a "um mundo sem limite" onde as leis da palavra, que definem a humanidade do humano, não são mais respeitadas. Daí sua afirmação que o psicanalista pode e deve ocupar a função de "médico da civilisação" científica.

Ora, privilegiar as leis da palavra é igualmente inscrever a reflexão e a análise na dimensão do político. Quando Freud analisa os processos culturais, o que o interessa é a compreensão das modificações e transformações impostas ao jogo das pulsões e que produzem o mal-estar. Seu quadro de referência é a oposiçao natureza/cultura. As análises de Melman e Lebrun têm por nó o laço social, ou seja o princípio ou conjunto de princípios geradores das relações que os homens entretêm entre eles e com o mundo - o que parece definir precisamente o objeto da reflexão política, a qual se reclama da herança da filosofia política, segundo C. Lefort (1986, p. 8).

A hipótese que proponho aqui, como um programa de trabalho, é que, à medida que a psicanálise encontra o político, ela não pode se contentar com a descrição de mecanismos e do repertório dos efeitos. Ela toma posição e se engaja numa direção, talvez mesmo num combate. Não é a mesma coisa que acontece no plano clínico da relação analista/analisante, embora a "neutralidade" do analista esteja também em relação com o político (ou melhor, talvez, com uma ética?). Mas as coisas não estão no mesmo plano. Não se trata de afirmar a separação radical de dois espaços, como entre público e privado, por exemplo, distinção sustentada por Arendt. Mas, se um analista é interrogado publicamente sobre, digamos, o casamento homossexual, que ele afirma que pai e mãe são funções culturais, simbólicas, que exercem um papel essencial na formação do sujeito e de seus desejos, ele tomou uma posição, que ele queira ou não, e, com seu prestígio de expert, reforçou os argumentos favoráveis à transformação da imagem social tradicional = e considerada sem razão como natural, ajunta o psicanalista - da família. A mesmo coisa vale para outros problemas, como o da extensão aos homossexuais da PMA (procréation medicalement assistée) ou do direito de adoção.

E assim que, concluindo provisoriamente, Melman e Lebrun parecem tomar uma posição clara em favor de uma política do desejo contra uma política do gozo. Não despertam eles assim um desejo de política, manifestando-o como o recalcado da psicanálise?

 

 

Referências

ARENDT, H. Between past and future. (1968). London: Penguin books, 1977.         [ Links ]

FREUD, S. Le malaise dans la culture. Trad. Cotet, P., Lainé, R. e Stute-Cadiot, J. Paris: PUF, 1995.         [ Links ]

LEBRUN, J.-P. L'avenir de la haine. Bruxelles: Fabertt, 2011.         [ Links ]

LEBRUN, J.-P. Un monde sans limite. (1997). Toulouse: Erès, 2009.         [ Links ]

LEBRUN, J.-P. La perversion ordinaire: vivre ensemble sans autrui. Paris: Denoël, 2007.         [ Links ]

LEFORT, C. Essais sur le politique. XIXe-XXe siècles. Paris: Seuil, 1986.         [ Links ]

MELMAN, C. L'homme sans gravité. Jouir à tout prix. Paris: Denoël, 2002.         [ Links ]

MELMAN, C. La nouvelle économie psiquique. La façon de penser et de jouir aujourd'hui. Toulouse: Erès, 2009.         [ Links ]

PLATON. Lettres. Trad. Brisson, L. Paris: GF Flammarion, 1994.         [ Links ]

PLATON. La république. Trad. Leroux, G. Paris: GF Flammarion, 2002.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 16/03/2014
Aprovado para publicação em: 21/08/2014

Endereço para correspondência
Urias Arantes
E-mail: urias.arantes@gmail.com

 

 

*Filósofo, psicanalista (Estrasburgo-Alsácia-França).
1O francês aqui é necessário para a compreensão das análises posteriores.
2Baccalauréat é o exame de conclusão dos estudos secundários na França.
3A pergunta colocada por Melman, nesse contexto, só concerne à tradição psicanalítica francesa.
4No seminário de 5 de março de 1958 (Les formations de l'inconscient), Lacan distingue, pela primeira vez, desejo e gozo, este sendo o pano de fundo e o horizonte daquele, ainda que, ao mesmo tempo, esteja nele implicado através da relação entre desejo e significante. É o ponto de partida de um percurso difícil de seguir. A melhor referência que conheço é La jouissance au fil de l'enseignementde Lacan (RITTER, M. et JADIN, J.-M. (Orgs). Toulouse: Erès, 2009).
5Uma crônica de R.-P. Droit chamou a atenção sobre essa passagem pouco comentada de A República (Le Monde, 19 jul. 2013).

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