Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
Winnicott, Kohut e a teoria da intersubjetividade: uma psicanálise do pertencimento frente à precariedade contemporânea dos vínculos
Winnicott, Kohut and the theory of intersubjectivity: a psychoanalysis of belonging facing the contemporary precariousness of the bonds
Beatriz Gang Mizrahi*
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
RESUMO
As questões de muitos pacientes apontam a precariedade do contexto social: dificuldade de encontrar trabalho estável ou relações duradouras são fontes de sofrimento, revelando a fragilidade ou ausência de um sentimento consistente de pertencer. Depois de recorrer a certas contribuições da sociologia para compreender essa precariedade dos vínculos, relacionando-a à dissolução das proteções sociais, recorro a autores da Psicanálise que valorizam a experiência subjetiva de pertencer a um ambiente empático como fundamental no processo de subjetivação, encontrando em suas ideias uma importante ferramenta crítica para a validação dos aspectos potencialmente traumáticos dessa nova realidade social.
Palavras-chave: Pertencimento, Contexto, Empatia, Kohut, Winnicott, Intersubjetividade.
ABSTRACT
The issues of many patients indicate the precariousness of the social context: the difficulty to find stable jobs and lasting relationships are sources of suffering, revealing the fragility or absence of a consistent sense of belonging. After resorting to certain contributions of sociology in order to understand such precariousness of the bonds, relating it to the dissolution of the social protections, I turn now to psychoanalytic authors who consider the subjective experience of belonging to an empathic environment as being essential to the process of subjectivation, recognizing the potentially traumatic aspects of the new social reality.
Keywords: Belonging, Empathy, Kohut, Winnicott, Intersubjectivity theory.
Hugo1, paciente de 41 anos, advogado que há três anos voltou para o Brasil, depois de um mestrado na França, tenta, desde então, sem sucesso, se inserir na vida profissional e me traz uma queixa recorrente "eu sinto que não pertenço a esse lugar". Essa frase aparece quase toda vez que se decepciona em suas tentativas de conseguir se empregar como advogado ou professor universitário, deparando-se com a pouca oferta de vagas, apesar de sua excelente formação. Essa mesma fala surge também depois de frustrações sucessivas, uma vez que suas "paqueras" com rapazes na internet e em encontros fugazes nas noites do Rio de Janeiro não se desenvolvem em relacionamentos. Ele chega a pensar em voltar para a França, mas teme que as coisas por lá não sejam muito melhores: a Europa está em crise - dizem seus conhecidos, que o aconselham a pensar duas vezes antes de emigrar (mesmo que tenha a cidadania francesa). Ao mesmo tempo teme a solidão de um europeu recém-chegado num país onde as pessoas, segundo ele, "seriam mais fechadas e seletivas que os brasileiros a respeito das amizades". Sentindo-se "sem lugar no mundo", ele se desanima e deprime a ponto de, por vezes, "não conseguir sair da cama". Em nossos encontros a queixa significativa é com a realidade social em que vivemos, queixa que tento validar oferecendo abrigo empático, sem deixar de atentar para a possível relação entre os temas sociais e as muitas decepções que ele viveu com seus pais na infância.
Outra paciente, Esther, 35 anos, médica, trabalhando no serviço público, desenvolve tal desesperança nos relacionamentos, depois do término de um casamento de cinco anos, que a leva a uma compulsão por álcool e sexo sem compromisso, a uma depressão importante, com tentativa de suicídio, obrigando-nos a uma intervenção psiquiátrica de peso, com medicação, licença e risco de internação. Sua fala descrente quanto ao possível estabelecimento de novas parcerias amorosas no futuro se alterna com outra desesperança em relação aos suportes sociais consistentes, que pudesse encontrar para realizar o seu desejo de maternidade. Ela me diz: "o que adianta ter um filho num mundo tão incerto, onde, no fundo, eu ficaria sozinha com a criança, sem o apoio consistente de um pai, dos amigos e da sociedade, tendo que pagar com dificuldade por tudo". Pondera, com amargura, que nem mesmo a perspectiva de fazer um esforço para concluir o doutorado, em andamento, lhe garantiria a segurança necessária para criar um filho com tranquilidade. Novamente, a queixa social tem presença muito significativa, sendo que, várias vezes, ela lembra com lucidez que "as coisas estão cada vez piores para quem trabalha na área da Saúde".
Sugiro que esses são exemplos clínicos que nos remetem a um aspecto importante da experiência subjetiva contemporânea: a fragilidade dos vínculos e das relações - sejam vínculos de trabalho, de assistência, de comunidade, de relacionamento amoroso, de família, de amizade, produzindo um sentimento recorrente de não pertencimento e solidão que se desdobra com frequência em quadros depressivos de maior ou menor gravidade - levando muitos às compulsões como recurso defensivo (compulsões por sexo, por trabalho, por drogas lícitas ou ilícitas).
Apesar da importância de, por vezes, remontarmos, na clínica, essas queixas sobre a fragilidade dos vínculos em nosso contexto social, ao desamparo que possa ter sido vivido, de forma particularmente difícil, por alguns pacientes em momentos decisivos do seu desenvolvimento, defendo neste trabalho a importância de oferecermos, por outro lado, uma validação desses sofrimentos, sem negarmos a origem sócio-política que lhes foi atribuída. Ou seja, penso que, por vezes, olhar para a história passada, quando o paciente aponta com aguda sensibilidade para uma experiência de insegurança e precariedade experimentadas, como tendo origem na dinâmica coletiva mais ampla, pode significar para ele uma não validação desse tipo de dor emocional, desperdiçando assim a chance de integrá-la ao self e contribuir para a sua coesão e vitalidade.
Eu gostaria também de desenvolver aqui o reconhecimento de que as teorias psicanalíticas, que pensam os processos de constituição da subjetividade, com base na experiência satisfatória de pertencimento a um ambiente empático, capaz de responder à vitalidade criativa do self, têm potencial ainda inexplorado para reconhecer e validar esse sentimento, hoje recorrente, de não pertencimento dos indivíduos, tão presente em nosso contexto mundial de dissolução das proteções sociais. Ou seja, a centralidade da experiência de pertencer ao ambiente relacional, como geradora da própria subjetividade em teorias como as de Winnicott, Kohut e da Intersubjetividade - por pensarem a possibilidade mesma de existência psíquica como sendo sempre dependente de um contexto que faça o indivíduo "sentir-se parte" - oferece ferramenta preciosa para dar um lugar de direito à dor daqueles que sentem a fragilidade de seu lugar social, em tempos de individualismo defensivo e mercantilização da vida. Penso que isso distingue essas teorias daqueles referenciais clássicos que, considerando a experiência subjetiva sempre centrada no desamparo do sujeito pulsional em conflito com seu ambiente cultural, não têm o mesmo potencial da validação dos sofrimentos ligados ao não pertencimento.
Este trabalho vai incluir dois momentos: O primeiro é um percurso pela contribuição de autores da sociologia que pensam a experiência de precariedade e fragilização dos vínculos no contexto mundial contemporâneo; o segundo é uma análise das perspectivas psicanalíticas acima mencionadas, buscando compreender o contraponto que oferecem, no sentido de facilitarem o reconhecimento desses traumas que têm origem na realidade social.
I. Situando a experiência do não pertencimento no contexto social contemporâneo
O sociólogo Robert Castel nos fala, claramente, de um momento mundial em que estamos perdendo os suportes que surgiram, gradualmente, desde o começo do século XX, para viabilizar a existência do indivíduo livre e autônomo, que desde os primórdios da modernidade (séc. XVIII) emerge como ideal a ser conquistado. Castel afirma o paradoxo de que a existência efetiva desse indivíduo livre se mostrou, aos poucos, fortemente dependente de certas proteções sociais, inicialmente ausentes nos primórdios da era industrial.
O autor (2009) observa, então, como na aurora da modernidade na Europa a grande maioria das pessoas tinha apenas perdido certos laços antigos de tradição, que, embora autoritários, davam-lhe certa experiência de pertencimento. Aparentemente livre dos vínculos de obediência servil (aos nobres, aos senhores feudais e aos mestres de profissão do antigo regime), os primeiros trabalhadores industriais, desprovidos de propriedade e de qualquer proteção social, não tinham, de fato, como escolher quase nada em suas vidas. Para garantir, meramente, as mínimas condições de sobrevivência eram obrigados a aceitar as condições de trabalho miseráveis, que predominavam nos primórdios do capitalismo. Nesse sentido, as conquistas políticas de cidadania, defendidas pela Revolução Francesa só chegaram mesmo a se efetivar quando certos mecanismos de proteção social passaram a compensar o desamparo desse "indivíduo puro", desprovido de qualquer suporte.
Foram as grandes revoltas trabalhistas do século XIX que determinaram a criação gradual, desde as primeiras décadas do século XX, de um regime de reinserção coletiva dos indivíduos, via proteções ao trabalhador. Esse processo se desdobrou, depois da Segunda Guerra Mundial, na consolidação de um sistema de propriedade social como direito coletivo ligado, fundamentalmente, à ocupação profissional no mundo da produção.
Para esse trabalhador que, em princípio, não era dono de propriedade, a sociedade passa a oferecer direitos protetores que se tornam a sua propriedade social: acesso a aposentadoria, garantia de certa estabilidade no emprego, serviços públicos de saúde e educação e, o que é muito importante, reconhecimento social por meio da profissão exercida. Tendo adquirido esses direitos, o indivíduo deixa de ficar refém dos abusos de poder daqueles a quem, anteriormente, podia ter que se submeter para chegar a sobreviver - fossem seus patrões ou familiares. Teríamos, então, o paradoxo de que foram as ancoragens e garantias coletivas que permitiram, de fato, um aumento da mobilidade e do poder de escolha do indivíduo.
Castel (2009) e Standing (2013) nos mostram que foram justamente essas proteções sociais que deram alguma consistência à liberdade e autonomia do indivíduo, aquelas que se desmontam agora no modelo neoliberal. Este introduz a competitividade econômica como orientadora de todas as relações e de todos os espaços da vida. Trata-se de um modelo que promove a perda generalizada da confiança no "outro" como capaz de oferecer o que necessitamos para nos sustentar como indivíduos, e que vê a competição como sempre necessária, sendo esta, muitas vezes, uma tentativa solitária do sujeito de lutar pela própria existência, diante do vazio de vínculos confiáveis.
O princípio da competitividade implica a difusão no nível mundial de um modelo onde o trabalho deve tornar-se flexível, onde os governos devem reduzir garantias, direitos e gastos sociais, o que, na prática, implica a transferência de riscos e inseguranças para os trabalhadores e suas famílias (STANDING, 2013). À medida que governos e corporações competem para fazer o trabalho se tornar flexível, as empresas migram para regiões onde o trabalho custa menos e se adapta a todo tipo de demanda. Para Standing, esse processo resulta na formação do que ele chama de um precariado mundial: pessoas que não mais possuem uma identidade ancorada no trabalho ou no pertencimento de classe ou comunitário. Pessoas que, tendo que se adaptar aos caprichos do mercado flexível, ocupam trabalhos inconstantes, desprovidos de memória e reconhecimento social, sentindo-se inseguros quanto ao seu lugar no mundo.2
O quadro de precarização se agrava também à medida que o modelo de aceitação flexível da mudança e da instabilidade passa a exercer um poder normativo também na esfera familiar, na das amizades e dos relacionamentos amorosos. A família e as parcerias afetivas sólidas, uma vez que estão na contramão da disponibilidade ilimitada para aceitar a novidade no trabalho e no consumo, muitas vezes acabam perdendo força. Por outro lado, as configurações relacionais efêmeras, afinadas com o modelo de flexibilidade e inconstância no mundo do trabalho, são idealizadas como se fosse o pretenso lugar da liberdade individual conquistada.3 Novamente, diante da liquefação dos vínculos afetivos em relacionamentos circunstanciais, tão bem descrita por Bauman (2001), é a confiança das pessoas nas relações, que diminui ainda mais, fortalecendo, num círculo vicioso, o sentimento de isolamento e a aceitação do modelo individualista da concorrência.4
É nesse contexto que muitos, em função da perda maciça de vínculos sustentadores, deixam de afirmar a sua própria potência criativa no mundo para se tornarem indivíduos, no sentido de sua experiência de desvinculação e desamparo (CASTEL, 2009). Tem sido, então, comum que as pessoas vivenciem a sua própria individualidade como um peso, uma vez que são cobradas no sentido de serem criativas e empreendedoras, de tomarem a iniciativa, reagirem positivamente às dificuldades da vida, quando, na verdade, não é natural que se possa criar sozinho, na ausência de suportes minimamente estáveis (CASTEL, 1998).
Nesse sentido, o que torna a situação especialmente dolorosa para quem vivencia a desvinculação no trabalho e nas relações é que as pessoas tendem a ser responsabilizadas por seu próprio destino, na medida em que a suposta criatividade, incessantemente promovida - na verdade, é uma obrigação de reagir sozinho ao próprio desamparo. Cabe aqui a pergunta: de onde uma pessoa sem trabalho, com vínculos familiares, amorosos e de amizade ausentes ou pouco consistentes, há de tirar forças para ser criativo e inovador? Qual o ânimo para criar o que logo deve cair no esquecimento e dissolver-se em meio às novas demandas de consumo? Dessa forma, a falsa confiança social no indivíduo empreendedor, hoje tão difundida, funciona, muitas vezes, como mais uma exigência normativa que controla as subjetividades.
Foucault (1975-1976) nos mostrou como o biopoder moderno que controlava a vida pela vertente da disciplina (incidindo sobre o indivíduo) e da regulação (incidindo sobre a população), dependia da crença de que a saúde da sociedade e seu desenvolvimento econômico pressupunham a vigilância constante sobre cada um e sobre todos. Mas esse poder, embora sempre em alguma medida internalizado, até poucas décadas atrás ainda era exercido por instâncias que ficavam, até certo ponto, fora do indivíduo: pessoas e instituições investidas de autoridade, legitimadas pelo discurso científico, nas fábricas, hospitais, escolas, prisões, com seus chefes, professores, médicos e psiquiatras. Hoje, entretanto, notamos que o poder acaba agindo cada vez mais de dentro, à medida que, pela própria instabilidade da inclusão social, a pessoa internaliza as exigências de mercado que a responsabilizam por seu fracasso em se inserir na vida social. Nessa lógica, caberia então a cada um escolher, adequadamente, e tomar as decisões certas, inclusive decisões de consumo, para maximizar seu desempenho profissional e social e defender o seu lugar no mundo. Assim, uma vez que se diz que tudo depende do indivíduo, quando ele percebe a fragilidade dos seus pertencimentos, seu sofrimento tende a ser desmentido pela crença difundida de que ele poderia ter evitado se apenas tivesse tomado a iniciativa.
Na contramão desse processo social de desmentir a realidade do não pertencimento, precisamos compreender a peculiaridade desse novo arranjo: a maioria hoje não vive mais um desemprego pontual que, provavelmente, será revertido pouco adiante, mas sim aquela experiência generalizada de não mais pertencer com segurança ao mundo do trabalho. Da mesma forma, muitos passam pelo rompimento de uma relação amorosa, não como uma experiência pontual de decepção, mas como a constatação de sua imersão em um contexto histórico maior, no qual a solidez dos vínculos relacionais e familiares parece ter-se tornado obsoleta.
Esse olhar histórico nos ajuda, então, a reconhecer e validar a nota diferente que aparece na fala de muitos de nossos pacientes, quando suas queixas apontam insistentemente para o social. Muitas vezes, eles não estão falando sobre experiências pontuais de rejeição no trabalho, no amor ou na amizade, cuja gravidade e o peso que possam atribuir às mesmas sejam consequência, sobretudo, de traumas vividos em seu contexto passado e familiar específico, que lhe impuseram um olhar pessimista sobre a vida. O que eles estão falando, recorrentemente, é de um sofrimento novo, ligado à perda de um mundo social acolhedor com o qual até há pouco ainda contavam.
Nesse sentido, o analista se inteirar das nuances sócio-políticas da atualidade, com a ajuda da história e da sociologia não é um preciosismo teórico amplo demais e inútil para a clínica da singularidade, mas um movimento que pode contribuir para reintegrar no campo relacional da análise esses sofrimentos solitariamente vivenciados.
II. Kohut, Winnicott e a teoria da Intersubjetividade: a psicanálise do pertencimento como um contraponto à precariedade
Se a experiência de não pertencimento, baseada na precariedade atual dos vínculos coletivos e das relações no novo capitalismo, é hoje dominante na experiência subjetiva e se reflete nas questões trazidas por nossos pacientes, isso se baseia numa ideologia que desacredita de saída na inclusão plena do indivíduo em seu ambiente social. O credo neoliberal que promove a retração de direitos, estabilidades e proteções sociais parece ver o indivíduo sempre sob suspeita de prejudicar com seus anseios de proteção e amparo, o desenvolvimento sócio-econômico global. Nessa lógica, seriam as leis "puras" do mercado - aquelas que, seguidas à risca, trariam os verdadeiros benefícios sociais, sendo que o cumprimento satisfatório das mesmas exigiria o fim das garantias e proteções individuais - supostamente geradoras de parasitismo e perda de iniciativa.
Fica, então, para a psicanálise o desafio de pensar de forma distinta o indivíduo não como sendo, em princípio, suspeito de usurpar com o seu egoísmo a boa sociedade e seu desenvolvimento. O contexto contemporâneo nos apresenta a necessidade de vislumbrar uma relação possível entre subjetividade e cultura em que a plena proteção, reconhecimento e pertencimento de cada um não representem risco à vida coletiva.
Poderíamos dizer que Freud, apesar de seus esforços constantes para considerar a relação do sujeito com a cultura, não chegou a pensar no indivíduo como podendo sentir-se de fato parte de uma tradição cultural e coletiva sem a ameaçar com seus anseios mais básicos. Ao contrário, ao longo de toda a sua obra, ele sustenta uma concepção do psiquismo centrada principalmente na dimensão pulsional baseada no conflito entre indivíduo e cultura.
Embora aqui e ali, o criador da psicanálise reconheça como o ambiente pode tornar essa dimensão pulsional mais ou menos traumática para o sujeito, o processo de subjetivação passaria, inevitavelmente, pela aceitação da própria separação em relação ao outro que nos constitui e a elaboração de uma experiência sempre frágil de pertencimento: como o sujeito carregaria impulsos antissociais primários, sua inclusão social seria sempre periclitante porque dependente de um controle precário do ego sobre forças internas que ameaçam a sua vida de relação.
Seja no antagonismo entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação (FREUD, 1910), na oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade (Id., 1911) ou no contraste entre narcisismo e amor objetal (Id., 1914), ou em sua formulação final do dualismo entre pulsões de vida, (Eros) e de morte, (Thanatos) (Id., 1920), temos, em alguma medida, o mesmo tema do sujeito em conflito com o ambiente, o que tornaria ilusória a nossa esperança de pertencimento seguro ao mundo relacional e social.
Em especial, a sua formulação de 1920 sobre uma pulsão de morte (Thanatos), que envolve o homem num anseio primário e fundamental pela descarga total das tensões (princípio de nirvana) - anseio que, em princípio, seria destrutivo para si mesmo e para os outros, e que só, parcialmente, poderia ser neutralizado pelo movimento da pulsão de vida de tolerar as tensões da realidade e permitir os laços vitais de relação - introduz, de forma radical, o suposto antagonismo entre nossos anseios mais íntimos e nossa necessidade de pertencer à cultura. A agressividade humana oriunda de Thanatos, sempre resistiria parcialmente a fusionar-se com a pulsão de vida, recusando parte das funções conciliatórias de Eros (FREUD, 1930). Dessa forma, o sujeito sempre traria dentro de si uma ameaça ao relacionamento com os outros e aos laços coletivos.
Embora a teoria da angústia, desenvolvida em 1926, desse mais lugar para o papel do ambiente, no sentido de proteger o psiquismo de um afluxo excessivo de excitações - o cuidado e proteção recebidos, promovendo potencialmente os efeitos benéficos de uma angústia bem dosada, que ajudaria a pessoa a tolerar as excitações - Freud ainda mantém aqui a ideia de um nível de tensão que é sempre excessivo e socialmente disruptivo, em função da tendência da pulsão de morte a livrar-se de toda energia. Não existe ambiente familiar e social capaz de fazer um indivíduo dotado dessa pulsão destrutiva, que busca a descarga total de tensões, sentir-se em casa num mundo que a todo tempo lhe exige, para agir e se relacionar, tolerar essas mesmas tensões.5
São autores como Kohut e Winnicott que, priorizando uma vitalidade criativa do self, que em princípio não é destrutiva - uma vez que necessita da força e vitalidade do outro para chegar a se expressar - que nos permitirão a virada, na direção de uma crença na experiência do pertencimento como base necessária para a sustentação da subjetividade. Nessas concepções, o anseio básico do indivíduo de ser atendido pelo ambiente deixa de ser visto sob suspeita de ameaçar as suas relações, já que sua força passa a ser vista como expressão de vitalidade, que só se torna agressiva ou sexualmente abusiva quando não atendida.
Depois de postular, em 1971, que o narcisismo tinha uma linha de desenvolvimento separada, abalando assim a centralidade do complexo de Édipo, Kohut em A restauração do Self (1977) rompe, mais claramente, com o modelo da psicanálise clássica, já que questiona o caráter primário das pulsões supostamente antissociais, sejam elas sexuais ou agressivas. Freud - nos diz então Kohut - teria supervalorizado o biológico em suas formulações e se esquecido do relacional. Ao mesmo tempo, não teria se mantido próximo à experiência de seus pacientes em suas elaborações teóricas, falhando em reconhecer, plenamente, a empatia como meio fundamental de acesso à vida psicológica.
Para Kohut (1977), a psicanálise clássica estaria também permeada por uma moralidade normativa, acreditando ter alcançado seu objetivo clínico, quando capaz de levar o indivíduo a conhecer e domar os seus impulsos.
Além disso, ele vê uma idealização da independência humana engastada no saber psicanalítico, uma vez que este nos faz acreditar que o desenvolvimento psicológico teria como objetivo último a separação da criança, em relação aos seus cuidadores. Dessa forma, a dependência e os suportes relacionais são vistos sob suspeita de paralisar o desenvolvimento, o que se afina bem com as tendências contemporâneas que condenam as proteções sociais.
Abordando o self e não mais o conflito pulsional como configuração central da psicologia humana, Kohut vai apontar para dois tipos fundamentais de anseios narcísicos selfobjetais, passíveis de serem satisfeitos por um ambiente relacional empático. Essas boas respostas dos cuidadores, quando equilibradas com frustrações ótimas que permitem a internalização das respostas selfobjetais recebidas, levam à consolidação de um self forte e coeso, onde o pulsional - no sentido daquilo que pode ser excessivo e ameaçar a vida social - perde a centralidade que lhe fora atribuída na teoria clássica.
O chamado "self bipolar" (KOHUT, 1977) teria, de um lado, o anseio expansivo-exibicionista de ser espelhado empaticamente por um selfobjeto que possa, verdadeiramente, admirá-lo (função especular) e, do outro, o anseio por encontrar um selfobjeto idealizado, no sentido de contar com um cuidador a quem possa admirar, misturar-se com sua força e sentir-se seguro.
Para Kohut (1977), a assertividade é expressão de vitalidade e só se transforma em fúria raivosa e antissocial quando não obtém a resposta selfobjetal satisfatória. Da mesma forma, as compulsões exibicionistas ou voyeuristas excessivas, tanto da criança quanto do adulto, não seriam manifestações psicológicas primárias da sexualidade, mas ocorreriam diante de falhas dos selfobjetos em responder aos anseios infantis de espelhamento e idealização. Nesse caso, o erotismo, que em princípio seria uma das manifestações vitais do self, teria se fragmentado em impulsos isolados, numa tentativa defensiva de permitir que o indivíduo recupere a sua vitalidade, diante da falência do ambiente em atendê-lo.
Se, para Kohut, as pulsões violentas e disruptivas que ameaçam as relações, deixam de ser parte de nossa realidade biológica primária, tornando-se produtos do colapso do Self como centro de iniciativa e vitalidade, a possibilidade do ambiente de assegurar o sentimento de pertencimento ao mundo das relações, deixa de ser vista como necessariamente ilusória porque incompatível com o nosso egoísmo primário.
Ao mesmo tempo, se Kohut dava destaque à infância como momento fundamental da constituição do self, dando grande importância às primeiras respostas selfobjetais que consolidam o narcisismo saudável, ele condena, por outro lado, a falácia psicanalítica de idealizar a autonomia e a separação em relação aos cuidadores, como aparente conquista da vida adulta. Autonomia, para ele, não é uma questão de prescindir dos selfobjetos separando-nos dos mesmos. Tampouco se trata de sacrificar o nosso narcisismo, em nome da hegemonia das relações objetais. Em vez disso, autonomia é uma questão de o indivíduo, tendo recebido e internalizado os bons selfobjetos da infância, poder escolher para si em cada circunstância, dependendo da oferta que o mundo lhe traga, os bons encontros selfobjetais possíveis.
Com isso, a crença na possibilidade de o ambiente social atender ao indivíduo - em vez de vê-lo, como no regime neoliberal, sob suspeita de uma dependência negativa a ser combatida por medidas que lhe cobrem autonomia - encontra na psicanálise de Kohut um poderoso aliado, ainda inexplorado. Em especial, se escutarmos a ideia por ele defendida (KOHUT, 1977) - de que as necessidades selfobjetais não se esgotam na infância; e que relacionamentos da vida adulta, além de proporcionarem satisfações narcísicas importantes por si próprias, funcionam, muitas vezes, como estruturas compensatórias para falhas na estruturação inicial do self, entendemos que a perda atual de vínculos como fenômeno social - seja no trabalho, nas amizades ou nos relacionamentos - pode não ser uma experiência periférica, diante da centralidade psicológica da infância e das primeiras relações. Com Kohut, somos levados a valorizar esses temas sociais que aparecem na clínica como podendo se referir a traumas bastante reais, fruto da perda maciça de referências selfobjetais suficientemente estáveis, indispensáveis também para a saúde dos adultos.
Winnicott, como sabemos, é outro autor que, tal como Kohut, acredita numa construção da subjetividade a partir da experiência de pertencimento do indivíduo, ao ambiente capaz de atender às suas necessidades. Com isso, também ele nos ajuda a reconhecer e validar os possíveis efeitos traumáticos da experiência, hoje, dominante de fragilização dos vínculos protetores.
Reconhecendo também a importância do espelhamento inicial ao bebê e à criança pequena por parte de seus primeiros cuidadores, ele conceitua a chamada "experiência transicional", situada entre o self e o mundo, que, emergindo nos primeiros vínculos de suporte ao lactente, chega até o universo maior das artes, da religião e das trocas sociais mais amplas que compõem a cultura. Sustentando que, também, a transicionalidade é sempre uma questão de relação com um outro, capaz de responder à apropriação criativa que o indivíduo faz da realidade, Winnicott, tal como Kohut, reconhece que os suportes ao viver criativo são necessários para além da infância, precisando estar disponíveis também para o adulto, em seu ambiente social.
O psicanalista inglês critica, diretamente, o conceito freudiano de pulsão de morte e o abandona, argumentando que, assumir a existên-cia dessa força primariamente destrutiva, implica uma negação da dependência humana, uma tentativa de conceber a destrutividade do indivíduo sem considerar o contexto maior de relações que levou ao seu surgimento (WINNICOTT, 1971).
Ele integra então a sexualidade ao conjunto maior e diversificado de manifestações da força vital que ele chama de agressividade, única força dinâmica por ele reconhecida, base do viver criativo. Essa vitalidade do self, tal como em Kohut não é, em princípio, antissocial e só aparece como fúria violenta ou perversidade sexual se não for devidamente atendida.
A força vital de Winnicott (1958) se satisfaz no encontro do self com um ambiente que, em parte, cede aos seus gestos criativos (que buscam transformar a realidade para adaptá-la às suas necessidades) e, em parte, resiste a esses mesmos gestos, dando-lhes sustentação. Assim a resistência da mãe à vitalidade do bebê, quando bem dosada e de acordo com o seu momento maturacional, não é um obstáculo à sua potência criativa, mas permite que o que é criado possa ter consistência numa realidade confiável, passível de ser usada pelo lactente.
Ele nos fala de três formas de relação entre o self e o mundo, que surgem na infância e se apresentam mais tarde também nas relações adultas, dependendo da oferta de encontros acolhedores oferecidos ao indivíduo, em cada momento da vida. O que muda nessas distintas formas de relação criativa entre o self e o mundo são os níveis variados de adaptação e resistência oferecidos pelo ambiente aos gestos criativos do indivíduo, variação condizente com a transformação de suas próprias necessidades, ao longo da infância e também da vida adulta.
A relação com o chamado objeto subjetivo depende de grande adaptação do ambiente à vitalidade potencial do self (WINNICOTT, 1971), o que implica uma resistência muitíssimo pequena que o mundo possa colocar aos seus gestos espontâneos. Assim, a mãe (ou seu substituto), profundamente identificada com seu bebê nas primeiras semanas, ajusta-se tão sensivelmente às suas necessidades (que são corporais, mas também singulares e já influenciadas pelas primeiras experiências no mundo), que permite ao bebê experimentar a onipotência e a ilusão de que é ele quem cria o cuidado que recebe. É esse processo que vai lhe permitir a experiência básica de existir e a formação de um núcleo fundamental de self.
Se esse núcleo tiver se formado, o indivíduo - inicialmente o lactente - vai ansiar por encontrar um mundo um pouco menos ajustado e mais resistente e objetivo. Porém que, diante de seu gesto de negação criativa e pessoal dessa mesma objetividade, concede, parcialmente, ao que é assim criado, permitindo que a realidade possa situar-se a meio caminho: entre a separação e a união.
Essa negação criativa da separação feita por aquele que age no mundo, quando devidamente respondida pelo ambiente - com um aumento das resistências iniciais que não impede por outro lado certas concessões aos seus gestos espontâneos - constituem o que Winnicott (1971) chamou de experiência transicional. Esta aparece, inicialmente, no uso dos primeiros objetos de apego por parte do bebê e, mais tarde, na brincadeira, nas artes e demais manifestações da cultura sempre que a apropriação criativa que o indivíduo faz das coisas encontrar certo nível de confirmação.
Quando, para além do vivido transicional, Winnicott postula uma terceira modalidade de relação com o mundo em que a pessoa pode usar objetos, o autor apresenta, claramente, a ideia de que o ódio dirigido ao outro, quando o indivíduo se depara com o seu caráter separado, não é primariamente destrutivo; pois só se torna fúria antissocial se o ambiente não puder sobreviver e permitir a sua expressão criativa.
A mãe sensível perceberia o momento em que seu filho anseia por um mundo bem menos adaptado e mais resistente que lhe permita repudiar com ódio aquilo que é externo e assim se diferenciar. Se ela pode, não só, reduzir a adaptação ao filho nessa hora, mas também deixar-se afetar e transformar pelo ódio que ele então lhe dirige, sem se submeter ou perder vitalidade, ela "sobrevive" a esse processo (WINNICOTT, 1971). Isso significa que ela recebe a comunicação do ódio, potencialmente criativo, sem retaliar, passando a ser, aos poucos, amada pelo lugar que deu ao movimento de diferenciação da criança. Torna-se assim alvo de um gesto reparador de seu filho, gesto que só se realiza se puder ser recebido por ela com alegria.
Ressaltamos, então, que o ódio, em Winnicott, anseia pela sobrevivência e vivacidade da mãe e por isso não é manifestação de uma pulsão violenta, mas sim de força vital, potencialmente criativa, que precisa encontrar um outro vivo para chegar a se expressar.
Notamos, aqui, que essas várias modalidades de relação propostas por Winnicott: objeto subjetivo, experiência transicional e uso do objeto - viabilizados pelo ambiente na infância e internalizados pela criança - se tornam parte de um ego, que não controla pulsões para adaptá-las à realidade, mas que, em vez disso, conduz o indivíduo, em cada circunstância, para os contextos relacionais satisfatórios onde possa expressar sua vitalidade, nunca deixando de precisar dos suportes relacionais do ambiente para chegar a se realizar. O cuidado satisfatório da infância permite que se crie uma bússola egoica, que ajuda o indivíduo a encontrar na vida os espaços de acolhimento; isso não o torna autônomo de modo algum, no sentido de vir a prescindir dos contextos favoráveis na maturidade.
Ou seja, também em Winnicott, como em Kohut, parece não haver início tão satisfatório que torne o self invulnerável e totalmente protegido diante de contextos adversos que possam se apresentar na vida adulta. O ego forte pode, apenas, ajudar a encontrar o bom ambiente; mas os bons encontros precisariam sempre se apresentar, suficientemente, em qualquer fase da vida, o que pressupõe que estejam, minimamente, disponíveis na cultura.
Ora, quando reconhecemos que nunca prescindimos de suportes e que a boa acolhida por parte dos primeiros cuidadores não nos dá uma blindagem absolutamente protetora, diante da perda de relações vitalizadoras no futuro, somos chamados, mais uma vez, a dar um lugar de direito às queixas sociais de nossos pacientes, que apontam para a perda de consistência e estabilidade dos vínculos na atualidade.
É verdade que vínculos fortes e satisfatórios com pai e mãe (ou seus substitutos) na infância, uma vez internalizados, podem ser ferramentas inestimáveis para ajudar o indivíduo a reconhecer as ofertas relacionais satisfatórias da vida adulta, mesmo em contextos sociais difíceis. Mas isso não nos impede de ver que, mesmo quando bem equipados pelo passado para perceber as brechas do presente, não deixamos de precisar da presença de contextos intersubjetivos favoráveis, que precisam, em alguma medida, estar disponíveis na vida social.
Se nem mesmo o self mais bem constituído pode dispensar o amparo social, por que então temos falado tão pouco do desamparo compartilhado de nosso mundo precarizado e seus desdobramentos na clínica? E isso, mesmo quando abraçamos os referenciais de Winnicott ou da Psicologia do Self, que entendem o processo de subjetivação pela via do pertencimento ao ambiente e não do desamparo pulsional constitutivo?
Embora Winnicott e Kohut, como vimos, nunca tenham desprezado a qualidade das respostas do ambiente ao self mesmo na vida adulta, e de certa forma considerassem, cada um ao seu modo, a necessidade de o analista manter-se vivo na relação terapêutica (e, portanto atento às suas próprias necessidades6), a ênfase desses dois autores, na importância das respostas ambientais na primeira infância e na possibilidade de o analista se adaptar às necessidades dos pacientes regredidos, dão margem a alguns usos mistificados de seus conceitos que desconsideram que, tanto analistas, quanto adultos em geral, sempre dependerão de suportes e cuidados e que, portanto, não terão garantia quanto a não serem atingidos pela falta de proteção social.
6 Pois de outra forma não poderia mostrar-se verdadeiramente empático com o paciente (KOHUT) ou sobreviver às suas expressões de vitalidade. (WINNICOTT).
Penso que aqui são os teóricos da intersubjetividade, que nos oferecem contribuição preciosa. Ao afirmarem, claramente, que todo fenômeno psicológico é sempre fruto da interação entre os diversos participantes dos campos relacionais onde estão inseridos - e entenderem a própria existência de nossa individualidade como estando sempre dependente de contextos capazes de permitir ou não a sua emergência (ATWOOD; STOLOROW, 1992) - esses teóricos nos impedem de desconsiderar o contexto social, uma vez que este é parte integral das trocas intersubjetivas que compõem nossos mundos de experiência.7
Além disso, essa visão nos coloca de frente para o risco sempre presente de perdermos nossas relações sustentadoras e cairmos no trauma, uma vez que, apesar de valorizarem o passado, questionam também o seu caráter definitivo na estruturação da experiência, sempre nos remetendo ao aqui e agora das relações. Qualquer um de nós que venha a perder a dose relacional afetiva necessária para alimentar o self, deixa, pelo menos provisoriamente, de existir como centro de expressão vital e criatividade, sendo essa possibilidade de perda aquela que nos remete ao que Stolorow (2007) entendeu como sendo a dimensão existencial traumática da experiência.
É justamente essa dimensão da experiência, que sempre inclui o trauma como possibilidade, aquela que pode ser despertada em nós pela fala de nossos pacientes sobre a realidade social atual, que fragiliza os pertencimentos, podendo, então, nos levar a acionar defesas para evitarmos reconhecê-la. É nesse momento que tentamos, defensivamente, nos assegurar de que foram exclusivamente as dificuldades muito específicas, que nossos pacientes viveram na infância, as únicas responsáveis pelo sofrimento que eles relacionam ao social.
Mas, se nos remete tão enfaticamente a esse risco de perda radical daquilo que nos sustenta e às possíveis defesas que podemos acionar frente a isso, a intersubjetividade também nos coloca diante da possibilidade esperançosa de darmos um lar afetivo para o trauma. Com a validação empática de um outro capaz de reconhecer nossos sofrimentos como parte do horizonte existencial compartilhado, nós recuperamos os vínculos de pertencimento que tinham ficado ameaçados pelo trauma e então podemos, novamente, nos sentir pertencendo a um mundo de relações acolhedoras.
Isso vale para nossos pacientes, mas também para nós: reconhecer os traumas que chegam (ou ameaçam chegar) da realidade social é permitir que os que estão sob nossos cuidados retomem conosco os laços vitalizadores que podem ter ficado fragilizados. Por outro lado, falar entre nós, analistas, dos traumas que podem atingir nosso trabalho clínico e também nossas vidas a partir da realidade social, é nos devolver para a área fundamental das relações acolhedoras, justamente quando também nós podemos sentir que elas têm estado em risco.
Quando o trauma, ou sua possibilidade, é assim validado, há o reconhecimento da solidão como possibilidade de nossa existência, sem que estejamos, de fato, completamente sozinhos. Isso nos remete ao "estar só na presença de alguém" tão bem descrito por Winnicott: a presença do outro, sua resposta afetiva, incluindo sua capacidade de reconhecer o que, dolorosamente, me falta, é a base de minha existência. Com ele posso até chegar a reconhecer certas faltas traumáticas, sem cair no abismo do desamparo.
Referências
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Artigo recebido em: 11/07/2016
Aprovado para publicação em: 14/12/2016
Endereço para correspondência
Beatriz Gang Mizrahi
E-mail: biagang@infolink.com.br
*Psicóloga, psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro/(CPRJ), membro efetivo/Associação Brasileira para o Estudo da Psicologia Psicanalítica do Self (ABEPPS), mestrado e doutorado em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
1Os nomes e informações que aparecem nas vinhetas clínicas, ao longo deste trabalho, foram devidamente modificados para atender à necessidade de sigilo e preservação da privacidade dos pacientes.
2Precisamos lembrar que a terceirização maior ou menor de certos serviços de saúde e educação, bem como a política de contenção austera de gastos públicos, tem lançado médicos, enfermeiros, professores, advogados, psicólogos e outros grupos de profissionais que até então não funcionavam segundo a lógica empresarial da concorrência, na mesma experiência de insegurança e precariedade que passou a imperar no mundo corporativo.
3Seguindo essa mesma cartilha da flexibilidade, as redes sociais como o Facebook promovem a efemeridade da conexão e desconexão fugazes, aspecto que pode permanecer como característica dos movimentos sociais que se mobilizam através dessas redes. Talvez, por isso mesmo, esses movimentos acabem, por vezes, sendo passageiros, ocorrendo descontinuidade ou inconstância em termos de participação e reivindicação. Nesse sentido, o desafio daqueles que protestam pode ser, no fundo, o de como chegar a oferecer um contraponto de confiança e vinculação em termos de amizades e pertencimento relativamente estáveis, capazes de se desviar do modelo majoritário da inconstância.
4Podemos dizer que, se hoje, a norma que se impõe às relações íntimas - seja na família, no amor ou na amizade - é a de aceitação da fluidez e instabilidade dos vínculos, antes do desmonte neoliberal o que se impunha normativamente na esfera da intimidade, era que se gerasse, no espaço privado da família, uma afetividade capaz de compensar a rigidez repetitiva e fria do espaço produtivo fordista. Entretanto, sabemos que essa exigência de geração de um espaço de intimidade compensatória ante a dureza disciplinar do trabalho, onde ao mesmo tempo, os pais, contraditoriamente, pudessem criar as crianças com a disciplina necessária para se tornarem "bons trabalhadores", oprimiu a parentalidade e, em particular, a mulher-mãe, com muitas exigências normativas em torno da boa criação dos filhos.
Aqui, podemos nos perguntar se, para alguns de nossos pacientes que foram crianças nesse tempo, a precariedade dos vínculos, sentida socialmente hoje, pode ter sido reforçada por uma história anterior permeada, na infância, por outro tipo de precariedade: a de se relacionarem com mães para quem a maternidade era, sobretudo, uma questão de obrigação social.
5Mesmo quando, nesse referencial clássico, fala-se na importância de uma análise, no sentido de permitir ao indivíduo conceder-se realisticamente certa medida de satisfação pulsional, o objetivo dessa concessão parece ser, ainda assim, viabilizar o próprio controle egoico das pulsões supostamente disruptivas.
6Pois de outra forma não poderia mostrar-se verdadeiramente empático com o paciente (KOHUT) ou sobreviver às suas expressões de vitalidade. (WINNICOTT).
7Dessa forma, os intersubjetivistas olham para a clínica afirmando que nada do que analista ou paciente expressam no contexto terapêutico pode ser visto independentemente da participação e da possibilidade afetiva do outro. Sugerem que cada um traz para o setting os princípios organizadores da própria experiência, construídos ao longo de sua história relacional. Esses princípios organizadores podem sofrer transformações profundas ou ser confirmados, dependendo da forma como paciente e analista venham a interagir no setting. Esses teóricos também reconhecem mais explicitamente as necessidades emocionais do analista, deixando claro que as boas respostas selfobjetais que possa oferecer ao paciente dependem, em alguma medida, de que ele também possa se abastecer da experiência terapêutica, ainda que no lugar de cuidador.