Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
A Teoria da Comunicação no pensamento clínico de Donald W. Winnicott
Communicating theory in Donald W. Winnicott's clinical approuch
Sergio Gomes da SilvaI, II*; Carlos Augusto Peixoto JúniorIII**
ICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
IIIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRio - Brasil
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar as principais contribuições do analista e pediatra inglês Donald W. Winnicott sobre a constituição de uma teoria da comunicação no processo maturacional. Discute-se primeiramente a comunicação não verbal estabelecida entre o par mãe-bebê e expressa por meio de espelhamento e subjetivação, para, em seguida, discutir três formas de não comunicação: a não comunicação simples, relacionada aos estados tranquilos e de não integração vividos pelo bebê; a não comunicação ativa, expressão da saúde psíquica e originária da relação materno-infantil através de gestos, expressões ou das primeiras formas de linguagem verbal; e, por fim, a não comunicação reativa, essencialmente patológica e oriunda das falhas ambientais durante o processo maturacional.
Palavras-chave: Comunicação, Não comunicação, Teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the main contributions of the English analyst and pediatrician Donald W. Winnicott on theory of communication in the maturational process. I discuss primarily the non-verbal communicating established between mother-infant pair and expressed through mirroring and subjectivity, to then discuss three forms of not-communicating: the simple not-communicating, related to peaceful states and not experienced integration the baby; the active not-communicating, expression of mental health and originally from maternal and child relationship, lived through gestures and expressions or the earliest forms of verbal language and, finally, the reactive not-communicating, essentially pathological and arising by environmental failures during the maturational process.
Keywords: Communicating, Not-communicatin, Theory of emotional development, Winnicott.
É tão importante para o paciente saber que ele é livre para estar em silêncio, quanto é importante que saiba que é livre para falar. Privilegiar a fala sobre o silêncio, a revelação sobre a privacidade, a comunicação sobre a não-comunicação, parece ser tão não-analítico quanto privilegiar a transferência positiva sobre a negativa, a gratidão sobre a inveja, o amor sobre o ódio (OGDEN, Thomas H., Reverie e interpretação).
Introdução
Desde os primeiros escritos de Freud, os problemas da verbalização e da oralidade permaneceram no centro das preocupações da clínica psicanalítica, tornando quase impossível encontrar um lugar para o não verbalizável, o não comunicável, o indizível. O inconsciente recalcado só encontrava via de expressão por meio da verbalização entre o paciente e seu analista, seguindo a regra fundamental da psicanálise. O método clínico, estabelecido por Freud, seguindo essa regra, objetivava encontrar no inconsciente as raízes dos diversos males da alma humana. Com suas histéricas, os fenômenos conversivos exibidos por meio de expressões de horror, dor ou prazer lhe davam pistas sobre qual caminho deveria seguir: partindo das comunicações verbais dos afetos, poder-se-ia chegar até suas representações no inconsciente. Ainda, sem dar a devida importância aos gestos e expressões de alguns pacientes, compreendendo a recusa em falar, de alguns deles, como pura censura ou resistência ao tratamento, no início dos primeiros casos clínicos, para Freud, não havia escolha: o inconsciente só podia ser dizível ou verbalizável, para daí ser analisado e interpretado. Qualquer outra forma de comunicação deveria ser posta de lado (LOPARIC, 1999).
Quando o alcance da verbalização passou a ser questionado, primeiramente por Ferenczi, dando a devida importância à linguagem do corpo e dos gestos e, posteriormente, pelos analistas da Escola Inglesa de Psicanálise, compreendendo o desenvolvimento humano e o processo analítico a partir das relações de objeto, a clínica psicanalítica rompeu o encanto com os poderes da palavra. Foi o que ocorreu quando Winnicott ressaltou o inconsciente não verbalizável e constituiu, em torno dele, sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo e sua prática clínica.
Assim, o estudo da comunicação e da não comunicação aparece no centro da teoria winnicottiana1. Sua compreensão, no que se refere à comunicação entre a mãe e o bebê, trouxe grandes contribuições, seja no que se refere ao desenvolvimento infantil, seja no que se refere ao par analista-analisando, sobre aquilo que era vivido, sentido, percebido, experienciado, associado, verbalizado e não verbalizado no setting. Ele não contesta e nem exclui a possibilidade da existência de um inconsciente recalcado, da comunicação verbal, da regra fundamental e das interpretações causais apoiadas pelas especulações metapsicológicas em pacientes neuróticos, mas sustenta que esse inconsciente não explica o surgimento das psicoses, não determina o destino nem da sexualidade, nem do animal humano e, por fim, não é o referente único e satisfatório para entender a vida e a criatividade humanas (LOPARIC, 1999). Portanto, com Winnicott, a psicanálise passa a buscar no inconsciente não dizível, não verbalizável, os referentes últimos da subjetividade humana, postulando, assim, uma teoria da comunicação e da não comunicação, objeto de estudo do presente trabalho.
A comunicação pelo olhar
O "acontecer humano" está no centro do pensamento de Winnicott, a partir da diferenciação entre "eu" e "não eu", por parte do bebê e das mais variadas técnicas de cuidado materno, ao longo do seu primeiro ano de vida. Esta fase, conforme sabemos, marca o início de um relacionamento humano pautado na fusão do bebê com a mãe, dos cuidados desta com seu filho e no oferecimento de um ambiente confiável e seguro, que atenda às necessidades do infante.
Ora, também sabemos que, desde muito antes do nascimento, o bebê está em pleno contato com o corpo materno. Quando vem ao mundo, ele encontrará, no ambiente humano e no acolhimento de suas necessidades físicas e emocionais, um continente do qual necessitará para desenvolver seu mundo interno; um eu - em oposição ao não eu; um ego - que será tomado de empréstimo, inicialmente ao ego materno e um self - matriz do seu psiquismo.
Como ele depende totalmente da mãe nesse primeiro período do seu desenvolvimento, tudo o que a mãe lhe proporcionar será constitutivo do seu psiquismo, desde os atos mais elementares aos mais complexos: recebê-lo ao peito assim que nasce, promover sua primeira experiência de alimentação, embalá-lo, vesti-lo, limpá-lo, pô-lo para dormir, enfim, ver e ser vista pelo seu bebê. Todos os mais elementares atos de cuidado com o bebê constituirão, para ele e para a mãe, uma experiência enriquecedora, de troca mútua a partir dessa relação simbiótica. Do ponto de vista do bebê, seu potencial herdado proporcionará o sentido da continuidade da existência junto ao ambiente materno. De acordo com Winnicott (1968d/2006), a base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade é a continuidade da vida, que tem início muito antes do nascimento concreto do bebê. Aqui, encontra-se implícita a ideia de que nada do que faz parte da experiência de um indivíduo, desde o nascimento, se perderá ao longo de sua vida, mesmo que se torne inacessível à consciência, levando-se em conta as memórias corporais que farão parte de sua experiência subjetiva.
Foi nesse sentido que Winnicott se interessou logo cedo pela comunicação na relação mãe-bebê, na medida em que começou a atender uma grande quantidade de crianças, o que o levou ainda a formular uma extensa teoria sobre os primeiros momentos vividos entre o bebê e a mãe.
De acordo com o autor, diversos tipos de comunicação ocorrem desde o início da vida de cada indivíduo, e, seja qual for o seu potencial, a estrutura concreta das experiências que constitui uma pessoa é precária. Na medida em que há um ambiente acolhedor, fornecendo suporte para as mais primitivas necessidades, a verbalização, nesse primeiro momento, perde todo o sentido ou significado (WINNICOTT, 1968d/2006). Neste contexto, ela se constitui como uma instância secundária, na medida em que uma sucessão de cuidados ambientais deverá ser integrada ao self do bebê por meio de sensações visuais, táteis, gustativas, auditivas e olfativas, isto é, por uma cadeia sensorial ou sensual (tanto proprioceptiva quanto interoceptiva) que constituirá as memórias corporais no curso de seu desenvolvimento emocional (FONTES, 2002).
Winnicott foi um dos principais autores que buscou analisar a comunicabilidade entre a mãe e o bebê a partir da "função de espelhamento" (WINNICOTT, 1967b/1975). Para o psicanalista britânico, o rosto da mãe constitui-se no precursor do espelho que o bebê precisa para "ver" e "ser visto", na medida em que ele também constituirá, na sequência do seu desenvolvimento, uma unidade diferenciada da mãe. Para que o espelhamento ocorra, é preciso que a mãe se constitua como um continente para que o bebê possa se desenvolver. Alguns bebês observam o rosto da mãe de maneira significativa, principalmente quando são amamentados (WINNICOTT, 1969/1994). Eles podem olhar para o seio, enquanto se alimentam, mas também pode ser que eles procurem no rosto da mãe, o que é mais comum, os laços que unem um ao outro. E o que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe, pergunta-se Winnicott? Resposta: "Sugiro que, normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo. Em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali" [itálicos do autor] (WINNICOTT, 1967b/1975, p. 154). No entanto, muitos bebês podem não receber de volta o olhar materno. Eles olham e não veem a si mesmos. A mãe pode estar sofrendo de uma grande depressão ou não ter cedido à preocupação materna primária, o que lhe tornaria possível entrar em contato íntimo com o seu bebê. A mãe, para ele, nada mais é do que uma "mãe morta", na forma referida por Green (1988). Não se trata de uma morte real; a mãe morta, aqui, se refere a um objeto interno morto, sem vida, sem possibilidade de se constituir como um vínculo sadio para o bebê e sem possibilidade de estabelecer com ele qualquer tipo de comunicação.
Quanto a isso, diz Winnicott, há consequências significativas: primeiro, a capacidade criativa do bebê começa a se atrofiar, dado que ele não encontra o seio e o olhar materno reunidos em uma única experiência para desenvolver o sentido de onipotência, a partir do processo de ilusão primária. Por consequência, o self do bebê busca uma forma de se defender da falta de acolhimento materno, protegendo-se da invasão ambiental, construindo em seu entorno uma casca protetora para se refugiar em seu núcleo. Além disso, o bebê se acostuma à ideia de que, ao olhar para sua mãe, o que ele encontrará, certamente, é o próprio rosto materno. O rosto materno não é um espelho, adverte Winnicott, ele é o seu precursor: "Assim, a percepção toma o lugar da apercepção, toma o lugar do que poderia ter sido o começo de uma troca significativa com o mundo, um processo de duas direções no qual o autoenriquecimento se alterna com a descoberta do significado do mundo das coisas vivas" (WINNICOTT, 1967b/1975, p. 154- 155). Ao passo em que a criança se desenvolve e o processo maturacional torna-se mais apurado, as identificações entre a mãe e o bebê se multiplicam e ele passa a ser menos dependente dos rostos paterno e materno ou qualquer outro com o qual estabeleça um relacionamento (WINNICOTT, 1967b/1975).
Em termos de subjetivação, poderíamos dizer que há uma tríplice hélice narcísica no reconhecimento desse olhar, pontuado pela expressão "eu vi que você viu que eu vi", no qual o bebê reconhece que a mãe o viu no mesmo instante em que ele a viu (ROCHA, 2010). Esta é uma fase importante para que o bebê possa passar para um momento seguinte que se expressa pela frase "eu vi que você me viu como eu me vejo". O bebê necessita não só que a mãe o veja, mas o reconheça da forma como ele mesmo se vê nos olhos dela. Ser reconhecido é uma necessidade básica que o ser humano tem assim que vem ao mundo e essa experiência perdurará por toda a vida. Vale lembrar que o espelhamento não é uma experiência que se dá unicamente pelo olhar, mas por todo um conjunto de experiências mútuas entre a mãe e o bebê, no qual também se inclui a dimensão visual.
A importância do espelhamento na relação materno infantil também é destacada por Ogden (1996) e Robson (1967). Para Ogden (1996), o espelhamento não é uma relação de identidade entre a mãe e o bebê e sim uma relação de relativa semelhança e diferença, na qual a mãe, em seu papel de espelho, por meio do seu reconhecimento e identificação com o estado interno do bebê, permite que ele se veja como um outro, ou seja, a uma certa distância do seu self que observa e experimenta. Nesta experiência de se ver fora de si mesmo, a partir da mãe/outro (m/other) especular, diz Ogden, o que predomina não é a diferença entre o self e o objeto ("mim" [me] e "não mim" [not me]), mas uma vivência da diferença entre eles, isto é, o "self-como-sujeito" e o "self-como-objeto". Quando o bebê observa o reflexo de si mesmo na mãe, isto produz uma experiência de autoconsciência ou autorreflexão, ou, nas palavras do autor, uma percepção de uma "mim-dade" (me-ness) observável. A mãe/outro (m/other), descrita desse modo, proporciona uma subdivisão na vivência do bebê, o qual pode experimentar a si mesmo como observador (eu) e, ao mesmo tempo, sujeito-objeto do cuidado do outro (mim), com um espaço de reflexão entre ambos. "Eu" e "mim" só fazem sentido se forem relacionados entre si, ou seja, cada forma de experiência da subjetividade vivida na relação mãe bebê cria a outra e é totalmente dependente dela. De acordo com Ogden (1996), "eu" e "mim" não podem ser criados pelo bebê isoladamente da mãe. Ele necessita da relação especular para se ver como outro de si mesmo nos olhos e no rosto materno.
Para Robson (1967), o olhar mútuo entre o bebê e a mãe media uma substancial parte da relação não-verbal entre eles nos primeiros seis meses, favorecendo a proeminência do desenvolvimento intrapsíquico e interpessoal do bebê. Há um prazer materno ao reconhecer o olhar do seu bebê dirigido a ela e o prazer dele por meio do sorriso, quando seus olhos encontram os da mãe, reconhecendo-a. Ainda, de acordo com o autor, o contato olho no olho é um dos principais componentes na matriz do comportamento materno-infantil que promove interações recíprocas. A natureza do olhar entre a mãe e o bebê colabora para o desenvolvimento da interação entre eles convergindo para a intimidade deste par. Os laços que unem a mãe e seu bebê são afetados por esse contato (mas não só) durante os cuidados ambientais fornecidos pela mãe ao seu filho. Uma forma de conceber essa relação mãe-bebê e que influencia no vínculo (attachment) é o modo como o bebê experimenta, fenomenologicamente, o mundo que o cerca: bebês são eminentemente visuais, mas também são auditivos, táteis e sinestésicos, na medida em que eles exploram o mundo externo com o seu sistema perceptivo. Em termos winnicottianos, é, nos primeiros estágios de comunicação entre o bebê e a mãe, que estão sendo assentadas as bases da futura saúde mental do bebê (WINNICOTT, 1968d/2006).
O estudo dos opostos
Desde o momento em que nascem, os bebês se comunicam com o mundo ao seu redor. Os sons emitidos por eles pressupõem uma forma de expressar o afeto para só depois tomarem o sentido de um chamamento, carregando uma mensagem que necessita ser decifrada. Com efeito, o choro é um tipo de comunicação que pode representar um número infinito de sentidos, identificados, unicamente, pela mãe que se encontra em estado de preocupação materna primária. Até poderem fazer uso da linguagem verbal, há um longo caminho a ser percorrido pelos bebês. No entanto, eles não se comunicam apenas através do choro, em seus variados significados, mas também por um amplo conjunto de ações identificadas pelos pais: gritos, sorrisos, olhares, esperneios, balbucios, gorjeios, entre outros. De acordo com Stern (1992, p. 154), a palavra é "descoberta" ou "criada" pelo bebê, no sentido de que o pensamento ou o conhecimento já está na sua mente para ser ligado à palavra. Ela é dada ao bebê pelo ambiente materno, como um fenômeno transicional (um balbucio; uma sílaba ou duas, que se repetem; vocalizações ou subvocalizações, etc.) e não pertence nem ao "eu" nem ao "não eu", mas ocupa uma posição intermediária entre a subjetividade do bebê e a objetividade da mãe, ou, em termos winnicottianos, um espaço potencial entre eles (WINNICOTT, 1958/1983). Na verdade, a palavra é "alugada" por nós e constitui uma experiência de união, permitindo um novo nível de relacionamento mental por meio do significado compartilhado. Podemos verificar isso quando o bebê alcança, entre seis e oito meses, a capacidade de repetir determinados sons emitidos pelos pais, por meio da ecolalia. Por exemplo, a mãe (ou o pai) começa a brincar com o seu bebê e passa a falar, repetidas vezes, a palavra "ma-mãe" (ou "pa-pai"), de modo homogêneo, contínuo, permeado por diferentes tons sonoros. O bebê, aos poucos, passa então a repetir, ao seu modo, o que ouve. Como ainda não tem suas cordas vocais plenamente desenvolvidas, o que ele repete é algo próximo a "ma-ma-ma" (ou "pa-pa-pa") e logo entende o que a mãe quer dizer. Através do processo de imitação, o bebê passa a repetir as mesmas sílabas, reunindo, em uma única experiência, a palavra que ouviu e a imagem que tem diante de si, transformando "ma-ma-ma" em "mamãe" ou "pa-pa-pa" em "pa-pai", e, assim, entrando no mundo da linguagem (ALVAREZ, 2011).
Segundo Stern, a linguagem oferece uma maneira de se relacionar com os outros através do compartilhamento do mundo pessoal, proporcionando um encontro no domínio verbal. Esses encontros permitem formas de relacionamento por meio de significados diversos, produzindo níveis de intimidade e compartilhamento de sentimentos e sensações. Mais do que isso, a linguagem oferece ao indivíduo a capacidade de narrar sua própria história de vida, com potencial de mudança e na forma como a pessoa vê a si mesma. Envolve ainda um modo de pensamento e conversa consigo e com o outro, com intenções, objetivos e sequências causais com começo, meio e fim (STERN, 1992).
Mas, essa forma de se comunicar por meio da linguagem verbal precisa ser desenvolvida na continuidade do desenvolvimento maturacional. Os bebês, na medida em que a idade avança, passam a se utilizar de formas específicas de comunicação com os sujeitos adultos. Estes, por sua vez, também vão se utilizar de artifícios para se comunicarem com seus bebês. Há um rico e variado conjunto de recursos, que incita a mãe a entrar em contato com o seu bebê e este a entrar no mundo da linguagem.
Os adultos buscam uma forma melódica e muitas vezes infantil para se comunicarem com os bebês, por meio da prosódia, da motherese e do babytalk2. Essa forma de comunicação vem sendo estudada há algumas décadas por um variado quadro de pesquisadores das mais diversas áreas - dentre as quais se destacam as psicologias desenvolvimentista e cognitivista, a psicanálise, a psiquiatria infantil e a psicolinguística - os quais vêm construindo um extenso arcabouço teórico e técnico sobre a comunicação entre a mãe e o bebê.
Os resultados da maior parte dessas pesquisas afirmam que, desde a vigésima quinta semana de gestação, os bebês apresentam aptidões inscritas no seu código genético e possuem um programa de aquisição de linguagem que lhes permite valorizar alguns estímulos fornecidos pelo contato com a língua materna. Nesse sentido, os bebês percebem os sons das palavras, organizando-as, segmentando-as e reconhecendo-as por categorias de uma série de indicadores temporais e de frequência, que estruturam a organização das palavras, ainda no interior do útero. Alguns bebês são capazes de reconhecer, tanto a voz do pai quanto a voz da mãe antes mesmo de chegarem ao mundo. De acordo com Boysson-Bardies, a partir de estudos e experiências pré-natais, os bebês imprimem um ritmo semelhante ao ritmo da voz materna, a partir da percepção que tinham no útero, principalmente durante as últimas seis semanas de gestação. Por isso, não é incomum que os bebês prefiram escutar a voz materna a qualquer outra voz após o nascimento. Toda amostra da linguagem materna, como entonação e ritmo, imprime no bebê um sentimento de acolhimento e alerta, de acordo com suas necessidades físicas ou emocionais. A entonação da voz da mãe, por exemplo, deve ser o a mais natural possível para que ela possa acalmar o bebê que, junto com as outras sensações percebidas, a partir das variantes do corpo materno, fornece-lhe a impressão de que aquele ambiente que o acolhe é seguro e confiável. Por outro lado, a partir dos cinco meses de idade, as crianças mostram uma preferência pelas histórias que contêm pausas entre as palavras e uma entonação característica do "mamanhês". Isso ajuda na produção de subvocalizações e vocalizações pelo bebê, além de inseri-lo no plano da linguagem e da simbolização. O "mamanhês", assim descrito, é um modo pelo qual o adulto entra em contato verbal com o bebê, seja por meio de cantigas de ninar, seja pela emissão da sua voz propriamente dita, seja pelo reforçamento de alguns sons que parecem não fazer sentido para o bebê, mas que são dotados de certa musicalidade aos seus ouvidos (BOYSSON-BARDIES, 1999; SOCHA, 2008).
O "mamanhês" serve também para motivar a criança a estabelecer intercâmbios com os adultos, orientando o bebê para um modo de comunicação oral, tal qual o reconhecimento da palavra e dos objetos "mãe" e "pai", reunidos em uma única experiência pela comunicação oral, na medida em que ele desenvolve a linguagem. Ao final do segundo mês, por exemplo, aparece o comportamento de revezamento (turn-taking), durante o qual o bebê reage às solicitações verbais da mãe, balbuciando quando ela para de falar, estabelecendo assim uma espécie de diálogo através do "bebeguês". Esse tipo de comportamento estereotipado, na criança, determina algumas funções programadas para a comunicação entre a mãe e o bebê, principalmente se ela entrar em simbiose com o seu filho (BOYSSON-BARDIES, 1999). Enfim, o "mamanhês" e o "bebeguês" facilitam a interpretação das emoções através da voz e transportam as emoções dos pais para o bebê e do bebê para os pais. Por meio destes dois dispositivos, a criança vai aprender a interpretar e responder às emoções que lhe foram destinadas. Trata-se de um fenômeno comum em todas as culturas já estudadas e que ajuda o bebê a reconhecer a sua própria voz no desenvolvimento da linguagem.
Por sua vez, a prosódia caracteriza a organização melódica e rítmica da cadeia falada pelo ambiente humano, através de tons e semitons. As variações da frequência da voz dão lugar à entonação, enquanto que as variações de duração marcam o ritmo próprio da palavra. As variações prosódicas têm funções linguísticas: elas marcam as fronteiras sintáticas, os contrastes fonológicos ("línguas tonais" [langues à tons] ou "línguas com estresse" [langues à stress]) e distinguem as modalidades de frases (por exemplo, interrogativas, exclamativas ou assertivas), fazendo com que essa variância chame a atenção dos bebês.
A prosódia também tem funções não linguísticas. As variações prosódicas marcam estados afetivos e modalidades de humor (tom amistoso ou zangado), suscitam interpretações do discurso (ironia) e facilitam a conversa, conforme as primeiras sínteses da palavra. Por fim, a prosódia também se utiliza de pausas entre uma palavra e outra, um hiato necessário para que se compreenda, entenda e responda à variedade ampla de sentidos da linguagem humana (BOYSSON-BARDIES, 1999).
Esse tipo de comunicação não passou despercebido por Winnicott. Ao examinar diretamente a comunicação e a capacidade de se comunicar entre a mãe e o bebê, ele logo viu que elas estavam, diretamente, ligadas às relações de objeto (WINNICOTT, 1963b/1983). Com as relações objetais, diz o autor, ocorre uma mudança no propósito dos meios de comunicação entre o bebê e a mãe, à medida em que o objeto muda de subjetivo para objetivamente percebido. Isso ocorre quando a criança deixa para trás a experiência de onipotência primária, pois, uma vez que o objeto é subjetivo, não há necessidade de uma comunicação explícita. Mas quando o objeto é objetivamente percebido, duas coisas podem acontecer: ou a comunicação é explícita ou ela é confusa. O indivíduo pode vir a utilizar e apreciar os modos de comunicação ou, então, o self não se comunica e o seu núcleo permanece isolado (WINNICOTT, 1963b/1983). Isso decorre do tipo de comunicação que o bebê estabelece com a mãe: uma com a mãe-ambiente, que é essencialmente humana e outra com a mãe-objeto, que é uma coisa, muito embora também seja a mãe-ambiente ou parte dela.
Aqui Winnicott expõe sua pedra de toque sobre a teoria da comunicabilidade humana. No início da relação mãe-bebê, a comunicação entre eles é dada a partir da relação com o objeto subjetivo, que se constitui no atendimento das necessidades, na medida em que a mãe se oferece como um continente para o bebê. No progresso dos contatos de carinho e afeto com o infante, o objeto deixa de ser subjetivo, passa a ser objetivamente percebido e estabelecer a diferença entre o "eu" e o "não eu". Nesse instante, a mãe já foi internalizada como um objeto bom e o bebê atravessou o período da transicionalidade, que marca sua saída da dependência absoluta e seu ingresso na dependência relativa, rumo à independência.
O estudo da comunicação humana por Winnicott se deu, principalmente, na última década de sua vida, quando ele passou a se interessar pela comunicação inconsciente, afirmando que a habilidade de se comunicar não está fundada, inicialmente, na aquisição da linguagem, conforme defende a psicanálise clássica, mas em uma interação pré-verbal estabelecida por meio da relação de confiabilidade e mutualidade entre a mãe e o bebê. O desenvolvimento da capacidade de brincar e simbolizar do bebê precede o período em que ele passa a fazer uso de palavras (ABRAM, 2000). Não é que a linguagem não seja importante na teoria winnicottiana, mas, em determinados momentos, ela não é tão importante quanto outras formas de comunicação simbólicas, pré-verbais ou infraverbais, posto que cada indivíduo se constitui como um ser isolado, e, por consequência, pode vir a ter o direito de não se comunicar.
Para Winnicott, a intercomunicação do bebê com a mãe-ambiente é extremamente sutil, na medida em que a comunicação se dá pelo acolhimento das necessidades dele como dependente desse ambiente. Se a mãe não consegue se colocar no lugar do bebê, o que vai haver é uma perturbação do núcleo do self em desenvolvimento e a comunicação entre ambos estará corrompida. Quando isso ocorre, dificilmente haverá o desenvolvimento do processo maturacional saudável e é muito improvável que a relação entre ambos possa ser chamada de "uma comunicação". "À medida que o objeto se torna objetivamente percebido pela criança, assim também se torna significativo para nós contrastar a comunicação com um de seus opostos" (WINNICOTT, 1963b/1983, p. 166).
Quando o objeto objetivamente percebido se torna gradativamente uma pessoa, a comunicação pode ser entendida a partir dos seus opostos: a "não comunicação simples" e a "não comunicação" que é ativa ou reativa (WINNICOTT, 1963b/1983). A "não comunicação simples" refere-se aos estados tranquilos e de não integração vividos pela mãe e o bebê; ela é precursora do relaxamento, do repouso e de estados de isolamento e se dá no nível pré-verbal. Para Winnicott, a ideia do isolamento permanente do indivíduo¸ no qual no núcleo do self não há comunicação alguma com o mundo "não eu", também é de extrema importância. "Aqui, a quietude está ligada à imobilidade" (WINNICOTT, 1963b/1983, p. 172). Portanto, a "não comunicação simples" diz respeito a um estado que pode vir a se constituir como uma comunicação, na medida em que o processo maturacional e as necessidades do bebê seguem seu destino - quando a mãe e o bebê se olham longamente no momento da amamentação, ou quando seu olhar prende a atenção do bebê, tudo o que é vivido entre ambos pode ser entendido como uma comunicação pré-verbal. Esta é uma comunicação necessária para que o bebê vá constituindo aos poucos o seu mundo interno.
A "não comunicação ativa" diz respeito à saúde e tem sua origem em uma escolha, entre comunicar-se ou não, muitas vezes pautada em respostas do bebê para a mãe e da mãe para o bebê, por meio de gestos, expressões ou da linguagem oral em desenvolvimento. Por exemplo, quando o bebê está com fome ou sente algum desconforto, o choro é uma forma de comunicar que algo está errado e precisa ser modificado pela mãe ambiente. Quando o bebê ataca o seio da mãe, a partir da voracidade do amor cruel, ele comunica à mãe que a deseja e precisa que ela sobreviva à sua capacidade de destruição; em seguida, ele pode comunicar que continua amando a, a partir de momentos de reparação ao dano que provocou ao objeto seio. Por fim, quando o bebê dorme por um período mais prolongado de tempo, ele comunica à mãe que entende o seu cansaço e que ela pode se recuperar do trabalho que ele lhe deu, pois vai precisar da continuidade do seu acolhimento, em outros momentos.
Por outro lado, a "não comunicação reativa" é essencialmente patológica e emerge de um ambiente que não foi vivido como suficientemente bom e falhou, gravemente, no curso do processo maturacional (WINNICOTT, 1963b/1983). Quando a mãe falha, continuamente, em atender às necessidades do bebê, o que ocorre é um recolhimento do núcleo do self, que tenta se defender ou se proteger das invasões do ambiente, formando uma casca protetora, resultante de distúrbios psíquicos graves em termos de desenvolvimento emocional, tais como nos casos de esquizofrenia infantil (autismo), mas que também pode ser encontrado em indivíduos normais cujo desenvolvimento não foi distorcido por falhas ambientais.
Quando há certa patologia e alguma normalidade, o que podemos esperar é uma "não comunicação ativa", demonstrada por uma "reclusão", ou seja, momentos nos quais o ambiente facilitador ainda não se constituiu como suficientemente bom, na experiência subjetiva do bebê, e a mãe ainda está se constituindo, ora como mãe ambiente, ora como mãe objeto. O retraimento também pode ser experimentado, na medida em que a mãe se sente insegura, tem dificuldade de entrar em estado de preocupação materna primária e não consegue atender às necessidades físicas e emocionais do bebê nos primeiros encontros, promovendo pequenas falhas no seu cuidado. De acordo com Winnicott, esse retraimento ocorre devido ao fato de que a comunicação estaria vinculada, em algum grau, às relações objetais falsas ou submissas, oriundas das primeiras falhas ambientais, as quais não permitem que o bebê encontre um ambiente confiável e seguro e, consequentemente, não possibilitam o desenvolvimento do verdadeiro self e do gesto espontâneo. Por outro lado, a comunicação silenciosa ou secreta com os objetos subjetivos, matriz da saúde psíquica, da criatividade e do inconsciente não-verbal, produz no bebê uma sensação de ser real e precisa sobressair para restaurar o equilíbrio do núcleo do self danificado. O núcleo do self sofre uma cisão (split) na qual "uma parte do split se comunica silenciosamente com objetos subjetivos. Há lugar para a ideia de que o relacionamento e a comunicação significativa são silenciosos" (WINNICOTT, 1963b/1983, p. 167).
É isso o que ocorre no caso de doenças psíquicas graves tais como esquizofrenia adulta ou infantil, estados esquizoides ou borderlines, ou até mesmo na presença de tipos clínicos com "falso self". Os indivíduos que sofreram uma ruptura do núcleo do self, provocada por constantes e reiteradas falhas ou invasões ambientais, são indivíduos que não tiveram a possibilidade de comunicar-se, verdadeiramente, nem fazer uso do objeto subjetivo e precisaram criar uma complexa estrutura defensiva para conseguir operar a cisão da personalidade. Esta cisão ocorreu no momento em que o bebê mais dependia da provisão ambiental e é decorrente de um choque traumático, proveniente do ambiente materno. Nas fases iniciais do desenvolvimento do ser humano, a comunicação silenciosa, inerente ao aspecto saudável da comunicação entre a mãe e o bebê, relaciona-se com o aspecto subjetivo dos objetos. Neste tipo de clivagem da personalidade e do ego, o núcleo do self teve que se constituir, defensivamente, criando para isso um falso self patológico (WINNICOTT, 1964b/2011; 1960/1983; 1970a/1994).
De acordo com Winnicott, "há um desenvolvimento direto, na normalidade, desta comunicação silenciosa com o conceito de experiências internas na forma definida por Melanie Klein (objeto interno)" (WINNICOTT, 1963b/1983, p. 168). Para Klein, no trato clínico com a criança, tudo o que está dentro do setting se refere ao que está no mundo interno dela (brinquedos, mesa, cadeira, todos eles são objetos subjetivos) e tudo o que se encontra fora da sala de atendimento está fora da criança. Para Winnicott, Klein se equivoca, pois, no início, o mundo interno não pode ser usado conforme a teoria kleiniana postula, porque o lactente ainda não estabeleceu, apropriadamente, os limites do ego e ainda não domina, apropriadamente, os mecanismos mentais de introjeção e projeção. Assim, "interno", nesta acepção, refere-se, apenas, a "pessoal", na medida em que o indivíduo é uma pessoa com um self no processo a ser desenvolvido. O mundo interno da criança, ou seu mundo interior, está em plena formação, com a ajuda e o apoio do ego e do self da mãe.
Ryle (1951, 1979), ao tratar das noções de mente e interioridade, vai conceber o mundo interno como equivalente a eventos privados que se dão por meio da introspecção. O que ele chama de mente ou mundo interior são atividades distintas que ocorrem "dentro da mente" ou "dentro do mundo interno" do indivíduo, tais como pensar, sentir, falar, fazer cálculos, chorar, sonhar, desejar, dentre outras possibilitadas pela linguagem ordinária. Costa (2007), ao comentar as teses do autor sobre a vida interior, afirma que Ryle não se recusa a empregar o termo "mente" ou "mental", e, sim, a aceitar a ideia de que todos os atos etiquetados de mentais portem uma qualidade comum que lhes é emprestada por uma mente indefinível e evanescente. Segundo Ryle (1979), ao pensar silenciosamente, ao dialogar imaginariamente com alguém ou ao evocar uma música, uma paisagem ou a figura de um animal mitológico, etc., estamos testemunhando a presença de fenômenos que adjetivamos como "internos". Pensar silenciosamente não é entrar na zona mágica de fatos etéreos e misteriosos, mas manifestar disposições corporalizadas para acionar mecanismos vocais, sem concluir a ação.
Para Costa (2007), "interior" ou "interno" não tem a ver com conteúdos mentais confinados em um imaginário espaço geométrico. "Interior", para o autor, é um termo que pertence à gramática da ação e da comunicação. O que podemos encontrar em certos indivíduos é a sensação ou a experiência de reclusão, ou, dito de outro modo, uma forma de proteger o self por meio dos fenômenos de retraimento ou regressão. A criança pode ainda transformar partes desses objetos internalizados, como uma espécie de segredo ou um self privado que não se comunica, e, ao mesmo tempo, quer se comunicar e ser encontrado. Lembremos que, para uma criança, "é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado" (WINNICOTT, 1963b/1983, p. 169). Winnicott quer chamar a atenção para a privacidade do self ou self secreto que, por direito, nunca se comunica nem deve sofrer influência da realidade externa. Aqui encontramos os traços da incomunicabilidade humana e do indivíduo vivendo a solidão essencial. Primeiro, há um núcleo da personalidade que correspondeu ao self verdadeiro da personalidade cindida. Esse núcleo nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos, nem é influenciado pela realidade externa. Segundo, "embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar, o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente isolado sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na realidade, nunca encontrado" (itálicos do autor) (WINNICOTT, 1963b/1983, p. 170).
Com efeito, na saúde, há um elemento não comunicável na vida de cada pessoa que se constitui como sagrado e merece ser preservado, ou seja, merece permanecer isolado. Quando o indivíduo sofre traumas oriundos do ambiente materno, esses traumas levam à organização de defesas muito primitivas. O trauma ameaça encontrar, alterar e se comunicar com o núcleo isolado do self, que tenta se defender desse tipo de comunicação. A defesa, por consequência, consiste no ocultamento ulterior do self. O indivíduo que sofre este tipo de ameaça experimenta a morte em vida, ou, então, as agonias impensáveis, o caos em termos de mundo interior, sem tomar consciência dessa experiência no núcleo do seu self. A imagem construída por Winnicott é a de um mundo apocalíptico em termos da violação do núcleo do self (WINNICOTT, 1963b/1983). A questão que ele aponta em termos de comunicação com o mundo externo é: mas como ser isolado sem ter que ser solitário?
A resposta encontra-se nas mães que não se comunicam com seus bebês, exceto quando se constituem como objetos subjetivos, ou seja, a partir da experiência de onipotência do bebê. Se a mãe se oferece como um objeto a ser devorado pelo bebê e permite que nela sejam projetadas as mais variadas imagens representativas do mundo externo, a partir da experiência de ilusão primária, então o indivíduo pode permanecer isolado e estabelecer uma comunicação silenciosa com a mãe-ambiente ou com a mãe-objeto. Se as mães conseguem se oferecer como esse continente, elas podem vir a ser percebidas, objetivamente, e seus bebês passam a usar várias técnicas de comunicação, dentre elas a própria linguagem verbal (WINNICOTT, 1963b/1983). Assim, o bebê desenvolve pouco a pouco o sentimento de "ser" real, vivendo, criativamente, na medida em que a mãe lhe oferece a oportunidade de compartilhar toda uma gama de experiências culturais, nas quais ambos estão mergulhados.
Se tudo correr bem durante o processo maturacional, a criança pode dispor de três formas de comunicação, a saber: a) a comunicação que é para sempre silenciosa, saudável, vivida em conjunto entre os pais e o bebê, compartilhada na realidade externa por outras pessoas que fazem parte da vida do indivíduo e experimentada em momentos calmos e tranquilos quando se vivencia a solidão/solitude; b) a comunicação explícita, indireta e agradável, que pode ou não ser expressa por meio da linguagem verbal, na qual o verdadeiro self estará presente, recorrendo algumas vezes ao falso self defensivo - neste caso o falso self se constitui como um mecanismo de defesa, dada a impossibilidade de o indivíduo se comunicar o tempo todo a partir do seu self verdadeiro; e c) uma forma intermediária de comunicação, que se desvia do brinquedo após a passagem pela infância e caminha no sentido da experiência cultural e religiosa, comunicando-se criativamente com o mundo, onde Winnicott localizou a "experiência cultural"- a comunicação criativa, pertencente ao gesto espontâneo, ao espaço potencial e pode estar presente nas expressões artísticas, religiosas ou culturais. Na saúde, o indivíduo comunica-se criativamente com o mundo (WINNICOTT, 1963b/1983; 1967a/1975; 1967c/1994; 1968b/1997, 1970b/2011). Desse modo, o bebê se comunica criativamente e, no seu devido tempo, se torna capaz de usar o que foi por ele descoberto.
Considerações finais
Conforme vimos, ao longo deste artigo, a comunicação entre a mãe e o bebê não é uma via de mão única: a mãe e o bebê participam, mutuamente, dessa comunicação na medida em que tudo o que eles vivenciam é um encontro criativo. Para Winnicott, a criatividade é o elã vital da saúde psíquica do bebê, o que significa dizer que essa comunicação é um encontro entre duas subjetividades: a da mãe, que empresta o seu ego para que o bebê possa experimentar, criativamente, o mundo e a subjetividade do bebê, sempre em desenvolvimento no curso do processo maturacional. Segundo o autor, esse encontro é expresso da seguinte forma: "Encontro você; Você sobrevive ao que lhe faço à medida que a reconheço como um não eu; Uso você; Esqueço-me de você; Você, no entanto, se lembra de mim; Estou sempre me esquecendo de você; Perco você; Estou triste" (WINNICOTT, 1968d/2006, p. 92). Uma vez que esse encontro se dá, comunicar ou não comunicar se torna uma questão de manejo (handling) pelo ambiente materno.
Quando a mãe possibilita uma provisão ambiental suficientemente boa para o bebê, ela o deixa livre para experimentar estados tranquilos e excitados, recolher-se ou não à sua solidão essencial, sem a necessidade de produzir defesas na ausência de invasões ambientais. O bebê, assim, pode experimentar a comunicação sob a forma de gestos ou expressões, ou permanecer isolado, vivenciando a mãe como um objeto interno, na sua solidão essencial. Se a mãe se comunica com o seu bebê sabendo suficientemente aquilo de que ele necessita, antes que suas necessidades precisem ser expressas, por exemplo, através de um gesto, a comunicação destas necessidades pode se dar deliberadamente, e, então, se transformar em desejo, fazendo com que a mãe possa voltar a se sentir novamente livre para ser ela mesma (WINNICOTT, 1967d/2006). As pessoas que alcançam esse estágio podem conviver, perfeitamente bem, com estados onde o silêncio se faz presente e podem se recolher, narcisicamente, de uma maneira tranquila para descansar e dormir. Outras, que não tiveram essa oportunidade, vivenciam o silêncio de forma disruptiva, ameaçadora e precisam organizar defesas contra o caos vivido no mundo interno.
Enfim, se tudo ocorrer bem, o indivíduo, quando criança, pode entrar nos campos simbólicos e da linguagem verbal, a comunicação com os objetos objetivamente percebidos por meio do verdadeiro self, preenchendo o mundo, criativamente, a partir do que ele constituiu no seu mundo interno. Tal como foi possível ver no decorrer deste artigo, isto só se dá com a condição, imprescindível, de que a comunicação e a não comunicação tenham sido facilitadas e acolhidas pelo ambiente materno.
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Artigo recebido em: 17/08/2016
Aprovado para publicação em: 18/01/2017
Endereço para correspondência
Sergio Gomes da Silva
E-mail: sergiogsilva@uol.com.br
Carlos Augusto Peixoto Júnior
E-mail: cpeixotojr@terra.com.br
*Psicanalista, membro associado/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), doutorado Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), supervisor da Divisão de Psicologia Aplicada Profa. Isabel Adrados/Instituto de Psicologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
**Psicanalista, prof. do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
1Conforme Winnicott (1960; 1963a/1983; 1963c/1994; 1964a/2006; 1968c/2006; 1968a/1994).
2Aqui optaremos pela tradução de "motherese" pelo neologismo "mamanhês" e "babytalk" por "bebeguês", como formas de indicar a fala da mãe e a fala da criança. A motherese ou, de agora em diante, o "mamanhês", manifesta-se pelas modificações da voz por meio da prosódia, enquanto que o "bebeguês" manifesta-se por subvocalizações de algumas poucas palavras que vão constituir o repertório linguístico do futuro falante.