Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise
Literary genre and form: considerations about the fictional structure of clinical cases in psychoanalysis
Christian Ingo Lenz DunkerI*; Tiago RavanelloI, II**
IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil
IIUniversidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS - Brasil
RESUMO
Frente às inúmeras críticas destinadas aos relatos de casos clínicos, sejam elas internas ou externas ao campo psicanalítico, pelo que esses escapam ao modo de empiria, relato e comprovação científica importados por saberes psi de outros ramos da ciência, propomos a retomada do problema, através da distinção entre dois diferentes níveis de abordagem: o exame em extensão da categoria de gênero literário, enquanto ordenador metadiscursivo, segundo o qual o caso clínico se aproxima do romance policial; e o exame em intensão, através da delimitação da forma literária, que confere estrutura específica ao caso clínico pelo modo de encaminhamento de suas propriedades discursivas e, em especial, a estratégia de inclusão do estranho relativo à prática clínica.
Palavras-chave: Psicanálise, Clínica, Relato.
ABSTRACT
In the face of the many criticisms aimed at the clinical case reports, either internal or external to the psychoanalytical field, directed at what those reports lack in terms of a scientific methodology of testing, describing and evidencing, imported by psychology from other branches of science, we propose to retake the problem by distinguishing two different approach levels: the examination "in extension" of the literary genre category as a metadiscursive model that brings clinical cases reports close to crime novels; and the examination "in intension", delimitating the literary form that gives a specific structure to the clinical case report, analyzing how it mobilizes discursive properties of that form, and, specially, the strategies of inclusion of the strange related to de clinical practice.
Keywords: Psychoanalysis, Clinical, Case report.
I. Introdução
Dentre as diferentes formas possíveis de produção teórica no campo psicanalítico, seja ela direta ou indiretamente ligada à experiência clínica, uma série de críticas recai, especificamente, sobre o modelo de publicação relativo aos casos clínicos e tem servido de mote para reflexões acerca dos fundamentos e da sustentação da prática analítica, sobretudo a autores que tomam a obra lacaniana como ponto de partida ou alvo de suas apreciações. Apesar da importância histórica e epistemológica no cerne da estruturação de conceitos psicanalíticos, leitores atentos, certamente, já ouviram críticas de que o caso clínico é uma produção imaginativa do psicanalista, fora da posição que o constitui no interior do método de tratamento, tendencialmente autoconfirmatória e, portanto, de baixo valor como evidência. Isso relativizaria a força epistêmica e probatória, não só do caso clínico como das formas que lhe são assemelhadas como: testemunho livre de análise feito por não psicanalistas (REY, 1990), relatos de passe (HORNE, 1999), diários clínicos (FERENCZI, 1985/1990), reconstruções biográficas de experiências psicanalíticas (SCHNEIDER, 2006), reconstrução memorial de cunho jornalístico de tratamentos psicanalíticos (ROAZEN, 1995/1999), memorialístico (PEREC, 2000) ou oculto (LECLAIRE, 1988), estudos etnográficos sobre pessoas que passaram por tratamento psicanalítico (PEREIRA, 1999) ou reconstruções históricas de casos originais (ANDERSON, 1974/2000). Mas, há um ponto, ainda que não se consiga precisar qual, no qual estas variantes de casos clínicos encontram seu limite, depois do qual teremos que falar em anedotas e vinhetas e não mais em caso clínico.
A psicanálise se assemelha a outras teorias que pretendem explicar e integrar uma imensa gama de fenômenos heterogêneos, situações relacionais, fenômenos psicológicos, fatos psicopatológicos e experiências de linguagem. Sua teoria da prova seria semelhante a que encontramos na teoria da evolução, proposta por Darwin, ou na teoria marxista da economia política. A despeito de diferenças epistemológicas marcantes, o fato comum é que nenhuma destas teorias pode ser comprovada por nenhuma evidência isolada. Consideremos como o autor de A origem das espécies (DARWIN, 1859/2004) teve que combinar fontes e fatos de diferentes proveniências para erigir suas hipóteses: modificações geológicas, existência de fósseis, variedade de formas fenotípicas entre as espécies, transmissão genética de caracteres. Também a teoria psicanalítica emprega o caso clínico como parte de sua teoria da verificação levando em conta a variedade de formas concorrentes para postular a unidade de sua teoria. O caso clínico não ocupa o mesmo papel do informante em antropologia, que nos traz notícias de uma cultura distante, nas quais devemos acreditar, dispondo do recurso virtual de verificação direta. Não foi necessário saber se o pequeno Hans (FREUD, 1905a/1991) passou suas férias de quatro anos em Gmunden ou Gstaad para vermos como as leituras que Ferenczi, Melanie Klein ou Lacan concorrem para aprimorar nosso entendimento clínico da fobia. Assim como um mito, o caso clínico consiste, apenas e tão somente, em suas versões. E tais versões não estão abertas nem a qualquer interpretação, nem a qualquer método de construção. Assim, propomos para o encaminhamento do artigo o uso de uma distinção lógica comum na filosofia da linguagem, a saber, a oposição entre a abordagem em extensão e em intensão para a delimitação da especificidade do caso clínico na psicanálise.
II. Caso clínico e gênero literário
Nossa hipótese, no presente trabalho, é a de que a concepção de gênero literário recobre a temática do caso clínico em extensão, atuando com vistas a determinar a classe dos objetos descritos sob seu mote. No entanto, tal procedimento não esgota a temática e, simultaneamente, coloca uma série de impasses que repercutem na necessidade de seu estudo também em intensão, ou seja, na averiguação quanto aos princípios que regem sua delimitação, aqui pensada em termos da proposição da forma literária, como operador conceitual da especificidade do caso clínico. Dito de outra forma, a leitura do caso clínico, enquanto gênero literário e sua aproximação com o romance policial, implica no estudo de certa recorrência na produção de efeitos, que se estabilizam pela repetição autoral e pelo acolhimento de seus destinatários na exata medida em que "para que os gêneros existam como uma instituição eles funcionam como 'horizontes de expectativas' para os leitores e como 'modelos de escrita' para os autores" (TODOROV, 1991, p. 53). Nesse sentido, a proposição bakhtiniana do que venha a ser um gênero discursivo é paradigmática1, na medida em que é proposto através da identificação de três elementos que o compõem: estrutura composicional, temática e estilo (CERQUEIRA; TORGA, 2013). Tais elementos geram "um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico" (BAKHTIN, 1997, p. 284).
Um dado gênero estabiliza, por relações de similaridade, um conjunto de temas, unidades composicionais e estilos (em extensão), podendo ser enrijecido, seja por maiores tentativas de exclusão do estilo individual, seja pela necessidade de repetição e controle de seu exercício (documentos científicos, jurídicos, militares, etc...). Tais variações no estilo, ou mesmo a presença de um em especial, não depõem contra o recobrimento de um conjunto de práticas discursivas sob a égide de um gênero literário. Mesmo não se tratando de um plano rígido, as variações possíveis no estilo e nas escolhas temáticas e composicionais obedecem ao conjunto da estrutura potencial de um gênero que são norteadas por um conhecimento tácito, por parte do autor, dos meios iterativos inerentes ao gênero (DELL'ISOLA, 2012). Nesse sentido, afirmar o caso clínico como gênero literário repercute em indicar seu modo de destinação e acolhimento através de suas unidades composicionais. Porém, na mesma medida em que a padronização de um conjunto de elementos estruturais pode mitigar o estilo individual, em prol da reafirmação do estilo do gênero, através de padronizações mais ou menos forçosas, tal medida também implica na diminuição de seu caráter de estranheza e seu poder intrínseco de desestabilização do próprio gênero.
Quando há estilo, há gênero. Quando passamos o estilo de um gênero para outro, não nos limitamos a modificar a ressonância deste estilo graças à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero. Assim, portanto, tanto os estilos individuais como os que pertencem à língua tendem para os gêneros do discurso. Um estudo mais ou menos profundo e extenso dos gêneros do discurso é absolutamente indispensável para uma elaboração produtiva de todos os problemas da estilística (BAKHTIN, 1997, p. 287, grifo nosso).
Apesar das variações possíveis, quanto ao estilo, previstas no conjunto de suas similaridades, o caso clínico não deixa de ser, portanto, parte de um gênero que antecedeu historicamente a psicanálise e que para ele contribuiu com um grande índex textual: o conceito. Contudo, suas variações não são análogas as que encontramos na definição de obras literárias em geral, bem como aos critérios de exatidão e rigor que esperamos do manejo dos conceitos no registro da ciência.
Não obstante, deve-se ter em mente que relatos exatos de casos clínicos analíticos têm menos importância do que se imagina.
Mais especificamente, possuem apenas exatidão ostensiva da qual a psiquiatria 'moderna' nos concede alguns exemplos. [...] A experiência invariavelmente revela que, se os leitores estão dispostos a confiar em uma analista, confiarão em qualquer sutil revisão a que ele submeteu seu material (FREUD, 1912/1991, pp. 113-114).
Diante do exposto não se pode negar ao nosso interlocutor imparcial, que os leitores que não estão dispostos a confiar em uma analista, não confiarão em qualquer revisão sutil ou ostensiva à qual ele submete seu material. Diante desta declaração, é lamentável que muitos psicanalistas se contentem em endossar as críticas de Borch-Jacobsen (2005/2011), Frank Sulloway2 (2005/2011) e Jacques Van Rillaer (2005/2011), no Livro negro da psicanálise, de que devemos interromper a escrita de casos clínicos, porque eles podem não ser honestos, nem fiáveis aos fatos, ou, no pior estilo sartreano, que eles não podem sair do "entre quatro paredes". Dizer que os "casos clínicos" são análogos aos "casos literários" e, por isso, Lacan se dedicou a Antígona, Hamlet, Signe de Coufountaine e Joyce, em vez de escrever seus próprios casos, menospreza a literatura. Tais críticos sugerem que o campo da literatura é capaz de inventar qualquer coisa, uma liberdade manipulativa que se presta a corroborar qualquer tese, pois seu domínio equivale ao meramente ficcional. Ora, isso é falso. A literatura captura a verdade de uma época, do mesmo modo que o gênero é o "lugar de encontro da poética geral com a história literária eventual" (TODOROV, 1991, p. 55). Ela possui cânones, ela tem uma estrutura e é ridiculamente simplificador dizer que ela é um conjunto de forma destituído de sua materialidade social. Os casos "literários" são possíveis e necessários a partir dos casos clínicos. Eles não são análogos a estes, mas homólogos. Eles não operam por identidade acumulativa de semelhanças, mas por comparação ordenada de diferenças. Assim como na literatura, um caso clínico deve ser lido em uma série, um diálogo, um regime de plausibilidade que é redefinido continuamente. O caso é parte de um gênero, por isso, quando tomado isoladamente ele não se presta a argumento algum e tem sua veridicção prejudicada.
Se se quer questionar a escrita de casos, devemos tomá-la como um gênero. Neste caso, se trata de impugnar um gênero e não apenas este ou aquele caso, bem ou mal construído. O caso clínico é um gênero, no sentido em que se pode falar em gênero literário (genre). Voltemos aqui às três fontes históricas da escrita de casos: a casuística cristã, inspirada no conceito de vidas exemplares, de Plutarco, o romance moderno, desde as gestas medievais até a Princesa de Cléves e os relatos de doenças, que marcaram o início da medicina moderna desde Sydenham até Claude Bernard. Estes três gêneros parecem bem representados nas três superfícies nas quais podemos localizar as estratégias textuais de composição de casos clínicos em psicanálise: a psicoterapêutica enquanto tática de intervenção, que visa o tratamento de um sofrimento, a clínica, como estratégia que implica na delimitação de um método para a descrição, sanção e abordagem do sintoma e a da cura, pensada através de uma política do cuidado relativa ao mal-estar (DUNKER, 2011).
Um notável exemplo de cruzamento entre estas três superfícies discursivas, a ética da cura, o método clínico e a terapia literária, encontra-se no fato de que a psicanálise é contemporânea da emergência do romance policial, enquanto forma literária de busca da verdade, bem como da aparição do cinema, enquanto arte do real.
Quando Freud declara que seus casos são como romances e que, para escrevê-los, se requer certa habilidade literária, ele nos oferece a contrapartida disso. Para lê-los, temos que nos comportar como cientistas que se deparam com problemas, que colhem evidências, que descartam suspeitos e que levantam provas, até que estas são julgadas pelo tribunal da razão. Mas também, esperamos de nosso autor certas habilidades esperadas dos neuroanatomistas do século XIX, na arte do desenho (GAMWEL; SOLMS, 2006/2009), sem o qual um anatomista ou uma taxonomista não poderia passar. Igualmente, as experiências de Charcot com a fotografia (DIDI-HUBERMAN'S, 2003), precedidas pelos estudos de Géricault sobre os loucos (BARIDON; LAXENAIRE, 1990), são exemplos de como a arte era entendida como função colaborativa para cientistas. O método de investigação freudiano mimetizaria o romance policial. Há o crime (problema), geralmente, evidenciado em seu princípio, através da exposição de um corpo, há suspeitos e evidências e há uma solução final. Para muitos, esta estrutura não exprime mais a forma privilegiada das narrativas de sofrimento de nossos pacientes (SPENCE, 1992), assim como também não seriam mais os sintomas ligados a uma fantasmática corporal as principais queixas a adentrarem nos discursos clínicos, tal como advogam os defensores de uma suposta derrocada dos sintomas histéricos em nossa atualidade. Isso seria suficiente para concluir que a escrita de casos clínicos é prescindível ou que sua forma clássica deva ser substituída pela brevidade do conto ou do haikai3, pela letra do poema chinês ou pela prosa joyceana. Não nos esqueçamos de que o romance policial mimetiza procedimentos científicos e estes continuam em vigência.
Ademais, a aproximação entre a forma dos casos clínicos e o gênero do romance policial não se limita a uma mera semelhança de estilos. Segundo Dunker et al (2002), ela reside mais substancialmente na estruturação dos lugares narrativos destinados à (a) primazia da estranheza irredutível (os pontos de fuga, dissimulação, defesa ou não-inscrição presentes no discurso) que privilegia o fragmento dissonante, em detrimento da longa descrição, supostamente aproximativa à realidade pela soma de seus atributos, (b) aos fenômenos de autopersuasão e convencimento necessários a um interlocutor, simultaneamente agente do texto e, por fim, (c) ao papel exercido pela falsa-solução ou "função-Watson". Esta pode ser entendida como a inclusão do contra-pensamento ou argumento contrário na constituição metódica de uma verdade com estrutura de ficção a ser suportada não por aquele que adere ao lugar de suposto-saber, mas de quem o testemunha pela escrita do caso clínico (DUNKER et al, 2002, p. 124).
Equívoco análogo é considerar que a escrita de casos seria uma espécie de herança maldita recebida por Freud da medicina. Se Freud dizia que não temos o direito de fazer poesia com nossas análises, isso é transformado em justificativa e advertência aos analistas - que ainda hoje existem - tentados a se tornar escritores de casos. Para este tortuoso raciocínio o "escritor de casos" estaria interessado apenas em transmitir uma verdade, literária ou mítica, ao passo que o psicanalista ambiciona também um "saber que tem uma visada científica".
Sustentamos que Lacan quis uma transmissão da clínica não como Freud, por intermédio da publicação de relatos de casos, mas por meio de seu estilo, justamente mantido em referência à verdade, como escreve "A Psicanálise e seu Ensino" (PORGE, 2009, p. 41).
Ora, a ilação de que se Lacan não escreveu casos clínicos isso representa uma desautorização de tal prática, bem como a inferência de que o estilo é capaz de substituir o relato e ainda de que "o estilo suspende a diferença entre teoria e prática" (PORGE, 2009, p. 258) é textual e epistemologicamente insustentável. Significa confundir a crítica ao realismo ingênuo com a adesão, igualmente ingênua, a um idealismo estetizado. Ambos ignoram a periculosidade política do caso clínico. O contexto, em que a formação de analistas e a transmissão da psicanálise prescindir de casos clínicos, é o contexto no qual os mestres manterão sua autoridade sem que nada na experiência possa questioná-los4.
A objeção de que a prática da vinheta clínica cria uma zona de irrefutabilidade, na qual não se pode criticar o autor do texto, que assim recorreria ao artifício lógico da primazia da proposição particular mínima, pode ser considerada um legado popperiano (POPPER, 1985), relativo aos critérios de demarcação (e valoração) dos saberes científicos sem que isso reflita, necessariamente, numa discussão mais refinada acerca de seu poder de intervenção5. Por meio dele qualquer universal conceitual pode se relacionar com exceções não contraditáveis (GAUFEY, 2007), como se vê, frequentemente, no comentário dos textos lacanianos, no qual uma palavra ou expressão pode justificar qualquer prática ou pensamento. Mas, que esta falta de rigor seja frequente, isso não implica que a suspensão do relato de casos seja uma solução necessária. Não é preciso recusar toda e qualquer referencialidade para garantir que a metalinguagem não seja uma tentação e que a verdade mantenha-se como um semi-dizer.
Muitos psicanalisas argumentam que teríamos mais a ganhar com autênticos espécimes literários como os "casos" de Antígona, Hamlet. Quando se pode dispor de material autobiográfico, jurídico ou epistolar a psicanálise poderia se dedicar ao estudo de "tipos ideais", muito melhor escritos do que nossos próprios arremedos de romances. Tudo se passa como se não houvesse diferença entre um caso construído, segundo o método psicanalítico de investigação e um romance como A consciência de Zeno6. Curiosamente, o argu mento contra a escrita de casos clínicos, organizados ao modo de um romance, retorna a uma antiga objeção enfrentada por Freud:
Sei que há - ao menos nesta cidade - muitos médicos que (coisa bastante repugnante) vão querer ler um caso clínico desta índole como uma novela destinada à sua diversão e não como uma contribuição a psicopatologia das neuroses (FREUD, 1905b/ 1991, p. 8).
É certo que muitos lacanianos duvidam da existência de uma "psicopatologia das neuroses" ou alegam que ela pode prescindir de qualquer raciocínio diagnóstico, mas isso apenas atesta a resistência dos psicanalistas ao caso clínico e que sua existência é igualmente definida por sua recepção. O que Freud não previu é que os próprios psicanalistas se tornassem versões futuras destes psiquiatras repugnantes que imputam maledicências aos escritores de casos clínicos ou como aponta a crítica desferida por Allouch (2015), quanto ao modo de autoafirmação dos próprios analistas e validação imaginária de suas práticas, as quais as vinhetas clínicas foram reduzidas7.
Esta recepção está presumida no sistema de textos formado pelas revistas psicanalíticas, pelas apresentações de pacientes, pelos relatos mais ou menos institucionalizados de experiências clínicas. Este, segundo critério, consegue atravessar a barreira que separa o público do privado; no entanto, a mantém regulada pela ideia de campo psicanalítico, no interior do qual a leitura e interpretação de casos clínicos faz sentido, quer no âmbito da pesquisa, quer no âmbito da formação de novos psicanalistas.
O termo em alemão para novela, neste trecho acima citado, é Schüsselroman, ou seja, literalmente romance chave e não apenas novela (como a tradução espanhola) ou romance (como na brasileira). Além de atual, o argumento freudiano reconhece que o estatuto da escritura do caso depende da vontade do leitor, a vontade repugnante dos médicos de Viena ou a vontade mais pura dos interessados em psicopatologia. Esta observação parece fortuita, mas ela denuncia um problema de base: a escrita do caso clínico depende do destina tário; mas, mesmo assim ela não é independente de propriedades intrínsecas, de táticas expositivas, da temática, da sua estratégia de composição.
Nesse sentido, as aproximações traçadas entre o caso clínico e o romance policial em função de semelhanças estruturais, quanto ao conjunto de suas estratégias aponta um quadro descritivo importante, mas que não esgota a questão. A própria concepção de gênero e sua forte vinculação com o modelo de descrição taxonômica (GREIMAS; COURTÉS, 1986/2008) aponta para uma limitação intrínseca, já que permite uma apresentação extensa de suas propriedades, porém, um menor aprofundamento quanto a sua estrutura epistemológica. Logo, para uma abordagem mais ampla da questão, cabe somar à discussão quanto ao gênero literário - em extensão - também a problemática da forma literária - em intensão - e o que ela implica em termos de uma posição quanto ao campo da linguagem.
III. Caso clínico e forma literária
Seguindo a trilha das críticas acima elencadas, o que aqueles que não conseguem distinguir literatura e "escritores de casos" da forma clínica que, certamente, deles pode se apropriar, como Freud em Delírio e sonho na Gradiva de Jensen é o que Lukáks chamou de forma literária, ou seja, a literatura é uma forma de pensamento, não apenas uma expressão emocional de estados de ânimo ou uma intriga psicológica sobre relações humanas. A literatura, assim como a clínica, mas por outras razões, implica um modo de colocar contradições:
É verdade que estado de ânimo e reflexão são elementos estruturais constitutivos da forma romance. [...] Mas este problema estético é um problema ético em sua raiz última; sua solução artística, portanto, tem como pressuposto - em correspondência com as leis formais do romance - a superação da problemática ética que lhe dá causa (LUKÁKS, 1960/2009, p. 120).
Em franca oposição ao modelo das categorias imutáveis do entendimento em Kant, a concepção de forma literária em Lukáks, ora retomada, implica numa dialética em que as formas "moldam" a realidade e a realidade "molda" as formas, em caráter aberto. Isso seria necessário, para o autor, como fundamento para o estudo das categorias estéticas que permitiram a passagem do gênero épico para a instauração do gênero, no qual surge o romance como imagem de um mundo em desordem; isso porque o mundo havia perdido o sentido e a arte, a sua capacidade de representação do mundo. Ao contrário da concepção de gênero, que aproxima discursos por similaridades em extensão, a forma literária estrutura mundos em intensão. A partir de Lukács, torna-se possível a retomada do gênero também como imposição de uma normativa estética que não é anterior à própria obra, mas que toma as obras como fatos consumados, com a finalidade de aglutinar um determinado efeito. Logo, deduzir um gênero é ir da forma ao conteúdo e, uma vez constatada o que liga a forma à realidade, é função da arte cortar a ligação para que a forma seja propositiva quanto a novas realidades. A forma literária, apesar de se nutrir da realidade, é uma realidade autônoma, cuja força é, diretamente, relativa ao seu poder de estruturação - seu ritmo e seus modos de ligação (LUKÁKS, 1960/2009). Justamente, nesse ponto, a concepção de forma literária em Lukáks permite-nos reposicionar o caso clínico como pertencente a um gênero, porém, como afirmação de uma forma literária de desestabilização do que poderia ser a reificação deste. Logo, o caso clínico tem objetivo semelhante ao encaminhamento epistemológico proposto pelo filósofo Ian Hacking (1983/2012): trata-se de um modo de intervir (dar forma) para delimitar existências. Somemos a isso um componente crucial para a delimitação do gênero literário no qual o caso clínico se inclui e que depõe contra a própria definição do que seria um gênero: o caso clínico se torna tanto mais inócuo e minimiza os efeitos e fenômenos, que visa produzir quanto mais estabiliza pela repetição a estranheza que o move. Para não recair no modelo referencialista proposto por Charcot (DUNKER, 2011) através da reificação da técnica descritiva, o caso clínico deve sustentar seu caráter singular de estranheza como função interna de renovação da forma literária que lhe motiva.8
É curioso que a noção de singularidade, que aparece em Lacan a partir de Hegel (mais especificamente em sua teoria da estética), seja pensada com tamanha simplicidade oposicional entre ciência e literatura, com o patente esquecimento da superfície ética na qual se desenvolvia o antigo e trágico processo da cura. É só na dialética entre universal e particular que se pode localizar o singular (Einzeln). Há um grande equívoco, portanto, na ideia de caso único9, quando este parece dispensar o trabalho da dupla negação determinada entre os particulares, no qual a existência fracassa em ser perfeitamente nomeada, em contraste com o trabalho do universal fraturado do conceito. A singularidade é uma categoria da estética hegeliana, ligada ao tensionamento entre os particulares (diferentes tipos regulares) e o universal (o conceito e sua atualização no tempo)10. Por exemplo, a forma épica, baseada na narrativa, exprime a objetividade que aspira universalidade. Contudo, a partir do século XVI, a epopeia tensiona-se, cada vez mais, com o drama e sua forma lírica, que aspira uma realização contrária, subjetivamente. Desta contradição nasce, no século XVIII, o romance como forma singular (Einzeln). Este singular contém, dentro de si, ainda que ocluído a formas anteriores, negadas na sua aparição, em particular a tragédia. Dentro da forma universal do romance temos seus tipos e séries particulares (romance de formação, romance policial, etc.). É contando com a contradição entre a forma universal e seus tipos particulares que podemos chegar ao romance único (Schlüselroman), como Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe (1774/2010), que inicia uma nova forma particular.
A indicação pode parecer banal, mas ela recupera toda sua força no contexto atual do lacanismo no qual, frequentemente, a produção de casos clínicos reduz-se a vinhetas encadeadas que tudo provam, sem a menor preocupação com a exatidão, verossimilhança ou plausibilidade, mas também sem nenhuma preocupação com a forma literária e suas contradições imanentes. Ao que parece, certos temas como a psicossomática (COPPEDÊ ; DUNKER, 2011) e certos contextos de produção, nos quais a autoridade constituída no interior das Escolas e Associações de Psicanálise é mais forte, contribuem para a confirmação da antiga objeção ao uso de casos clínicos em pesquisa científica, uma vez que neles tudo dependeria da autoridade ou do "falicismo institucional" (DUNKER; KYRILLOS NETO, 2014) de quem os constrói.
IV. Conclusão
No que diz respeito às duras críticas endereçadas, diretamente, à escrita e publicação dos casos clínicos em psicanálise ou, indiretamente, à depreciação da teoria e clínica psicanalítica, sob o mote da desvalorização dos testemunhos de sua experiência, a compreensão do caso clínico, como pertencente a um gênero literário, desautoriza a avaliação de um caso se tomado isoladamente. Sob diferentes motes abordados ao longo do artigo, torna-se claro que o fundamento de tais análises repousa num entendimento limitado a respeito do que venha a ser um gênero discursivo, primando pela tecnicidade da repetição, enquanto campo de prova. Tal abordagem do gênero restringe-o a uma noção metadiscursiva, sem a necessária abordagem da codificação de suas propriedades discursivas (TODOROV, 1991). Em sentido contrário, o estudo mais criterioso a respeito da forma literária inerente ao caso clínico, permite a reafirmação do gênero como um modo de intervenção de grande interesse, justamente por sua capacidade de, a partir de seu caráter implícito de estranheza, desestabilizar reificações estéreis da prática.
Um caso clínico, portanto, não é apenas exemplo ou ilustração. Ele não é mera inclusão de um fato em uma regra pré-constituída ou de uma espécie ao seu gênero. Segundo este modelo, um caso deve abordar, ao menos, um problema interno à condução de um tratamento ou externos a esta condução, de forma que ele represente um acontecimento de saber. O fato de que uma entrada em análise, que a solução de um sintoma ou que um manejo específico de transferência nos chame a atenção e se mostre um obstáculo ou uma anomalia, presume que ele contrarie, particularize ou generalize uma determinada expectativa.
Isso não torna um caso clínico, necessariamente, um fato extraordinário. A singularidade e unicidade de um caso não são independentes de sua própria historicidade. Um caso só faz sentido no interior de uma série de casos. E esta série de casos compõe um gênero que se transforma ele mesmo no tempo. Aquilo que é único hoje, amanhã se tornará a regra, e, aquilo que foi a regra ontem, pode vir a ser a exceção amanhã. Há casos extraordinários e casos ordinários, ambos são importantes para pensar a casuística. Contudo, eventos dependem, tanto de sua nomeação, quanto de seu percurso de verdade (BADIOU, 1988). Isso só será perceptível quando incluímos o caso em um discurso, um sistema de textos, uma investigação e ciência, que muda constantemente seus critérios de evidência e de prova, conforme o problema que ele cria e em função da estabilização da excepcionalidade que se consegue produzir. Portanto, o critério de singularidade não deve ser confundido com a particularidade, nem com a universalidade que esta noção presume, mas pensado como uma noção sumamente temporal.
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Artigo recebido em: 06/12/2016
Aprovado para publicação em: 07/03/2017
Endereço para correspondência
Christian Ingo Lenz Dunker
E-mail: chrisdunker@usp.br
Tiago Ravanello
E-mail: tiagoravanello@yahoo.com.br
*Psicanalista, prof. titular/Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), Livre docente Psicologia Clínica e pós-doutor/Manchester Metropolitan University.
**Prof. adjunto Centro de Ciências Humanas e Sociais/Universidade Federal Mato Grosso do Sul (UFMS), pós-doutorando departamento de Psicologia Clínica/Universidade de São Paulo (USP).
1Posições semelhantes podem ser encontradas em trabalhos igualmente emblemáticos no campo dos estudos literários, como a defesa do gênero literário enquanto a combinação de determinados tipos de forma, conteúdos e modos de composição em Amora (1965) e a aproximação entre gênero e visão de mundo em Staiger (1997).
2Importante ressaltar que tais autores endereçam um conjunto de críticas à psicanálise diversas questões, tais como o abandono de supostas bases biológicas que sustentariam o edifício freudiano (SULLOWAY, 1998), a manipulação de documentos históricos e a criação de um mito inverídico em torno da vida de Freud (BORCH-JACOBSEN; SHAMDASANI, 2014). Não raramente, essas críticas ultrapassam o plano da discussão teórica e recaem no ataque direcionado à vida pessoal de Freud.
3Haikais são poemas curtos que utilizam linguagem sensorial para capturar um sentimento ou uma imagem. Eles normalmente são inspirados por um elemento da natureza, um momento de beleza ou uma experiência comovente.
4Interessante notar a semelhança desta crítica com aquela já anunciada por Beividas (1999) a respeito da submissão pânica à transferência relativa aos grandes nomes do campo psicanalítico e a repetição incessante de seus dixits como obstáculo à construção de novos conceitos e abordagens.
5O termo intervenção é aqui entendido à luz da teoria filosófica de Ian Hacking (1983/2012). Segundo ele, o objetivo mesmo da empiria (concepção tão cara ao demarcacionismo popperiano do qual a crítica se origina) seria o da intervenção para a criação de fenômenos, ou seja, a finalidade da prática experimental seria a de comprovação da existência de entidades através de sua manipulação ao invés da dedução ou instituição da replicabilidade de um experimento.
6Considerado o primeiro romance "psicanalítico", o livro de Ítalo Szvevo, publicado em 1923, e elogiado por James Joyce, descreve memorialisticamente a trajetória de um analisante refazendo os pequenos fracassos de sua vida ao escrever sobre sua própria análise (SZVEVO, 1923/2010).
7"La brièveté de la vignette clinique est telle qu'on ne peut pas l'aborder autrement que ne le fait son auteur. C'est à prendre ou à laisser. Cet auteur la présente généralement comme étant au service de la communication scientifique, dans l'intérêt supérieur de la science. En fait, il s'emploie à mille autres choses : montrer qu'il est un excellent clinicien, faire état de son savoir clinique et théorique, annoncer qu'il reçoit des analysants, montrer qu'il est une bonne personne, etc., tout cela en exploitant (il n'y a pas d'autres mots) certains propos de son analysant." (ALLOUCH, 2015, p. 1).
8Lopes (1997) apresenta um quadro semelhante no teatro de Brecht, nos contos de Cortázar e no romance histórico de Tolstoi, nos quais a estranheza servia a um programa estético transformativo: "O estranhamento tinha, nesses casos, a função de criar a experiência de uma visão original, do encontro com algo que nunca vimos antes nem nunca mais provavelmente tornaremos a ver […]." (p. 203). Podemos considerar este movimento análogo à aproximação proposta por Dunker (2016) entre retórica e estilo na prática analítica.
9"Na verdade apontamos para uma ciência do particular e do singular, e não do universal, posto que o ser do sujeito, seus atributos e particularidades não são dedutíveis do tipo a que ele pertence" (TENDLARZ, 2007, p. 29).
10Hegel, 1973.