Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
A função do consumo na constituição do sujeito e sua relação com as compulsões: de Freud à atualidade
The function of the consumption in the constitution of the subject and its relation with the compulsions: from Freud to nowadays
Rogerio Robbe QuintellaI*; Rebeca Espinosa Cruz AmaralI**; Tainá Batista de SouzaI***; Fernanda Monteiro Ribeiro HenriqueI****
IUniversidade Federal Fluminense - UFF - Brasil
RESUMO
O presente artigo evidencia a função do consumo na constituição do sujeito, para pensar as compulsões contemporâneas. Partindo de Freud e dos avanços de Lacan, demonstra-se, de início, a relação entre consumo, identificação e ideal do eu. Posteriormente, destacamos algumas formas de compulsão em Freud, demonstrando a intrínseca relação destas com o ideal do eu. Hoje, a evanescência dos ideais e a falência dos modelos identificatórios promovem um empuxo ao consumo do objeto real, na forma da compulsão às drogas, aos alimentos, às compras, ao corpo, etc. Se, antes o supereu massacrava o eu em função do ideal, hoje, aquele se dirige ao objeto real. Com efeito, quanto mais o sujeito tenta consumir o objeto real, mais o supereu o exige.
Palavras-chave: Consumo, Compulsão, Ideal do eu, Supereu, Sujeito contemporâneo.
ABSTRACT
The present article highlights the role of consumption in the subject's constitution, to think the contemporary compulsions. From Freud and Lacan advances, it demonstrates, initially, the relation between consumption, identification and ego ideal. Posteriorly, we highlight some forms of compulsion in Freud, demonstrating their intrinsic relation with the ego ideal. Today, the evanescence of the ideals and the collapse of the identificatory models promote a push to the consumption of the real object, such as the compulsion of drugs, food, buying, body, etc. Before, the superego massacred the ego in function of the ideal, today it addresses the real object . Therefore, the more the subject tries to consume the real object, the more the superego demands it.
Keywords: Consumption, Compulsion, Ego ideal, Superego, Contemporary subject.
Introdução
Em sua obra, Freud deixou importantes indicações teóricas que buscaremos, nesta exposição, colocar em evidência: a função do consumo na vida psíquica. O objetivo do estudo aqui efetuado é o de dar destaque a essa questão do consumo - tema pouco abordado até hoje no campo psicanalítico - para pensar as compulsões contemporâneas (compulsão às drogas, aos alimentos, ao sexo, à compra etc.), guardadas as devidas especificidades de cada uma delas. De acordo com a reflexão teórica que será aqui discutida, as compulsões contemporâneas se acham, intrinsecamente, ligadas a essa função do consumo. Tal problemática passa, necessariamente, como veremos, pela análise dos conceitos de ideal do eu e supereu, no circuito identificatório.
Para esta análise, partiremos de um apanhado teórico na obra freudiana, procurando demonstrar, nos primeiros itens deste artigo, a relação intrínseca entre a constituição do sujeito e a experiência do consumo na obra de Freud e de Lacan, com referência também a alguns autores freudo-lacanianos. Na sequência, vamos nos dirigir aos problemas que surgem, na atualidade, em torno da temática da compulsão. Este estudo visa propor novos aportes teóricos que podem nos ajudar a dar encaminhamento a alguns fatores psicopatológicos intrínsecos à constituição do sujeito na atualidade.
O papel do consumo na constituição do sujeito
Freud já considerava, desde o início, o caráter constitutivo do estádio oral canibalístico, intrínseco ao circuito pulsional, que aparece, por exemplo, no estudo do caso do Homem dos Lobos, tal como aponta James Strachey (1969) em nota:
Ainda mais importante foi o esclarecimento dado pela presente análise sobre a primitiva organização oral da libido, […] Parece provável que o material 'canibalístico' revelado nessa análise tenha desempenhado um papel importante na preparação do caminho para algumas das mais significativas das teorias de que Freud se ocupava nesse período: as interconexões entre incorporação, identificação, a formação de um ideal do ego, o sentimento de culpa e os estados patológicos de depressão (STRACHEY, 1969; FREUD, 1918[1914]/ 1996, p. 17-18).
Freud se refere a essa questão quando aponta que: "A identificação tem sido comparada, não inadequadamente, com a incorporação oral, canibalística, da outra pessoa" (1933[1932]/1996, p. 68). Nisto, é importante relacionar a identificação com a introjeção. Férenczi (1912, p.181) descreve a introjeção como "a extensão ao mundo externo do interesse, auto-erótico na origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego". Para ele, um sentido só pode ser apropriado pelo sujeito através da introjeção, sendo as representações psíquicas formações oriundas do processo de introjeção no aparelho psíquico.
Ferenczi também afirma que a introjeção é o que funda o aparelho psíquico por ser o mais primário movimento. Para Ferenczi, lido por Pinheiro (1995), o primeiro objeto introjetado é a raiz da experiência do prazer e do desprazer. Este processo permite a estruturação narcísica do sujeito.
Pinheiro salienta que a introjeção é um processo defensivo contra o desamparo e a castração que enriquece o mundo das representações.
Podemos ler a postulação da introjeção como funcionamento defensivo diante da castração, contra o desamparo. Representar, fantasiar, identificar-se seriam os dispositivos de que dispomos para tapar a falta e o desamparo. Troca-se a coisa pela representação, o horror do desamparo pela quimera. Esse aparelho psíquico, de Ferenczi, instaura-se na ordem da sexualidade, mas, antes de tudo, como dispositivo para se arcar com a castração (PINHEIRO, 1995, p. 50).
A introjeção é, também, responsável pela entrada do sujeito na cadeia associativa. Neste processo, a apropriação de um sentido dado pelo outro pode acontecer através da identificação. Colocar o outro para dentro implica o processo identificatório. É nesse sentido que a identificação, como construção do sentido de existência de si, é mediada, necessariamente, pela introjeção. Não há identificação sem a presença do processo introjetivo, motivo pelo qual Freud, no desenvolvimento de sua teoria da identificação, se apropria do conceito ferencziano para dar estofo teórico sobre a assimilação canibalesca do objeto.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905/1996), Freud começara a estruturar sua teoria sobre a constituição do sujeito a partir das experiências iniciais de satisfação da criança. Trata-se de um processo de construção, pois a criança, a princípio, não tem condição de sobreviver sozinha, necessitando, sumariamente, do outro para fazer face ao seu desamparo fundamental. As primeiras relações libidinais com aquele que assume a posição de cuidá-la é o que dá base à sua constituição enquanto sujeito. Um exemplo dessa relação fundante é o encontro com seio materno. Aqui, para além de uma determinação biológica, instaura-se uma relação em que a mãe investe libidinalmente a criança. Esse encontro enseja a primeira organização sexual da criança, conhecida como estádio oral ou canibalesco.
Nele, a atividade sexual ainda não se separou da nutrição, nem tampouco se diferenciaram correntes opostas em seu interior. O objeto de uma atividade e também o da outra, e o alvo sexual consiste na incorporação do objeto - modelo do que mais tarde irá desempenhar, sob a forma da identificação, um papel psíquico tão importante (FREUD, 1905/1996, p. 187).
De acordo com Freud, em O ego e o id (FREUD, 1923/1996), as primeiras identificações, principalmente a identificação da criança ao pai, serão as mais importantes. Vale destacar, que a identificação é considerada pela psicanálise, como diz Freud em Psicologia das massas e análise do ego (FREUD, 1921/1996), como a forma mais antiga de laço emocional entre as pessoas. A identificação com o ideal é, em virtude disso, o anseio de ocupar o lugar desse ideal.
A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal. O canibal, como sabemos, permaneceu nessa etapa; ele tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta (FREUD, 1921/1996, p. 109).
Em Totem e tabu (1913[1912-13]/1996), o processo de introjeção pode ser observado a partir da identificação dos membros do clã com seu totem, assim como Freud observa a identificação ao pai nos complexos familiares de seus pacientes neuróticos.
A atitude emocional ambivalente que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta frequência persiste na vida adulta, parece estender-se ao seu animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai (FREUD, 1913[1912- 13]/1996, p. 134).
Fica clara a função do consumo em todo esse processo, pois os membros do clã participariam da morte do animal sagrado partilhando a culpa para que "a substância sagrada pudesse ser produzida e consumida pelos membros do clã, garantindo assim sua identidade uns com os outros e com a divindade" (FREUD, 1913[1912-13]/1996, p. 147). O consumo era, portanto, garantia de que os integrantes do clã renovassem e assegurassem sua semelhança com o deus primitivo.
Freud salienta que , quando os membros do clã destroem o totem-pai a fim de ingeri-lo, ao se identificarem com ele para adquirirem seus atributos, surge um sentimento de ambivalência e o totem-pai, morto, se torna ainda mais forte, na medida em que é internalizado como símbolo de uma lei. Esta lei inscreve no simbólico a impossibilidade de acesso ao gozo absoluto, mediante a entrada no sistema significante, conforme desenvolveu Lacan em sua teoria do sujeito. A perda oriunda da inscrição no simbólico será a mola do desejo visto que mantém aberta uma fenda que o sujeito tentará, constantemente, tamponar na tentativa de dar conta de sua falta-a-ser e se estabelecer na cultura como um sujeito inscrito no regime da castração, barrado do acesso ao gozo. É importante, assim, destacar a condição mítica que a figuração do pai da horda engendra, dado que, à exceção do mito, todo sujeito se acha submetido à castração. Esta análise se acha referida, diretamente, à questão da identificação, da entrada do sujeito na cultura.
A identificação aparece no pensamento de Freud e Lacan como um importante elo na constituição subjetiva mediante o investimento primário, atravessado pelos significantes do Outro; será apoiada neles que a criança se apropriará de seu sentido de existência, mediante as nomeações advindas do Outro, como num processo mesmo de ingestão canibalística.
O denominado grande. Outro, definido como sistema, que funda o simbólico de onde se articula o campo da fala e da linguagem (LACAN, 2016) é o lugar para onde se dirige o desejo da mãe. O alvo idealizado do sujeito será precisamente, então, aquele a partir do qual se engendra o desejo do Outro. Nesse sentido, podemos dizer que o sujeito, na mira do desejo do Outro, visa um ideal através da identificação, na tentativa de recuperar a condição narcísica que ancorava a megalomania infantil e a posição primária de objeto do desejo da mãe.
O Complexo de Édipo, do qual Freud alude ao mito grego, expressa as questões em torno dessa relação triangular, em que o eu quer ser como o pai, tomar o seu posto simbólico, colocando-o no lugar do ideal. A criança procura o pai, inicialmente, para dar um sentido, um nome ao desejo da mãe e depois como uma figura identificatória, norteando seu ideal de eu e buscando uma forma sólida de ser. Como se acha interditada de assumir o lugar do Outro que nomeia o desejo da mãe, a criança introjeta traços e valores para sustentar o ideal buscado pelo eu. O sujeito só pode se organizar a partir do que o Outro organiza nele. É abrindo mão do seu objeto primário, que pode inscrever-se na cultura.
Avançando na questão da identificação, baseada em Jacques Lacan, Maria das Graças Leite Villela Dias (2009), na obra Identificação e enlaçamento social, a importância do fator libidinal, assume o objetivo definir a identificação como papel primordial no estabelecimento e regulação do circuito pulsional.
Trata-se de algo fundante, originário, pois é a partir dela que surge o sujeito. É também, a partir da identificação que se formam e se diferenciam as instâncias do aparelho psíquico. Além disso, os laços que unem os membros de um grupo decorrem da identificação (DIAS, 2009, p. 27).
Apoiada no pensamento de Lacan, Dias (2009) salienta que a identificação apresenta três fontes: o ideal, o significante (traço unário) e o desejo. Oriundos da função simbólica que se articula no campo do Outro, estas fontes são introjetadas no momento inaugural do laço com o objeto, dando origem ao processo de identificação.
De acordo com Freud, esse momento está associado ao recalque primário e ao fantasma original; é o momento da identificação primária e, ainda de acordo com Lacan, momento inaugural do sujeito. "A identificação primária, associada às fantasias primárias, constitui a matriz estrutural do inconsciente, matriz simbólica do sujeito do inconsciente e matriz das futuras identificações" (DIAS, 2009, p. 31).
Lacan demonstra, em seu ensino, que a identificação ao traço unário é fundante e se desdobra nas outras duas, já que desejo e ideal são efeitos do significante. Por outro lado, o traço só pode ser apreendido via desejo, a posteriori, assim como é o ideal do eu que permite que o sujeito encontre uma saída perante a captura do gozo do Outro (DIAS, 2009).1
Sendo essa identificação a "introjeção do significante, inscrito pelo Outro sob a forma de um traço unário (ein einziger Zug), marca do simbólico" (DIAS, 2009, p. 36), é, portanto, esta identificação ao traço unário, que marcará a entrada do sujeito no simbólico, nascendo este da inscrição simbólica da falta, doravante a perda do objeto. Todos os significantes possuem esse traço em comum e se apoiam em sua repetição; mas, apesar dessa repetição visar um retorno do recalcado, esse só se dá enquanto um retorno na repetição da diferença (DIAS, 2009).
O que está em jogo no declínio do complexo de Édipo é, assim, uma dessexualização que, após ter se constituído na relação com os objetos, volta a libido para o próprio eu devido a identificação.
Segundo o próprio Freud, como vimos, o canibalismo da pré-história da humanidade e da fase oral primitiva é um protótipo da identificação, uma tentativa de garantir a identificação ao ideal. Sendo assim, podemos afirmar que, no cerne da identificação e da constituição do ideal do eu, está a experiência do consumo. Entendemos, portanto, que ideal do eu e consumo, no sentido do canibalismo infantil, caminham juntos na constituição do sujeito. A presença vigente do ato de consumir, como um dos fundamentos da experiência psíquica humana, assume para o sujeito do inconsciente um aspecto crucial e nos coloca questões teórico-clínicas, sobretudo quando buscamos lançar luz sobre as experiências de excesso (compulsões), tão marcantes na contemporaneidade. Veremos que este problema se acha subsumido à própria relação do sujeito com o ideal do eu, nos dias de hoje, marcando-se um diferencial entre o sujeito da época de Freud e o sujeito contemporâneo. Para avançar sobre esta questão, e pensar a relação disso com as compulsões atuais, faremos um apanhado das principais concepções de compulsão na obra de Freud e a forma como isso se inscreve na cultura.
Mal-estar, compulsão e cultura
Feita esta análise sobre a questão do consumo, visaremos à obra de Freud para revisitar suas considerações sobre as compulsões, com fins de demonstrar a estreita ligação entre estas e o ideal do eu.
Em O mal-estar na civilização (FREUD, 1930[1929]/1996), Freud afirma que a cultura é ancorada numa renúncia pulsional, na restrição à vida sexual humana. A civilização visa unir os membros da comunidade também sob os aportes da libido. Mas, a civilização exige sacrifícios além do da satisfação sexual. Para Freud, os homens possuem uma poderosa quota de agressividade, o que faz com que eles enxerguem o seu próximo, não apenas como bons ajudantes para o trabalho ou objetos sexuais, mas também como outro que pode satisfazer sua agressividade, sendo dela um objeto. Essa inclinação à agressividade é um percalço para o relacionamento com o próximo, o que força a civilização a um alto gasto de energia, por se ver constantemente ameaçada. Tem que se esforçar para estabelecer limites para os impulsos agressivos e assim manter suas manifestações sob controle, através de formações reativas superegóicas. Assim, o meio utilizado pela civilização para inibir essa agressividade que a ameaça é introjetá-la, internalizá-la, fazendo-a retornar para dentro. Com efeito, a agressividade passa assim a ser dirigida contra o próprio ego, em função da identificação ao ideal do eu.
Portanto, a agressividade dirigida à autoridade, tal como aborda Freud (1930[1929]/1996), é internalizada através do estabelecimento de um supereu que, em função do ideal, atormenta o ego pecador com um sentimento de culpa, ficando à espera de oportunidades para fazer com que esse ego seja punido pelo mundo externo. Consumido pelo supereu - efeito mesmo da identificação e da pulsão canibalística, o eu se acha na iminência constante de sua própria subjugação moral, evidenciando-se, muitas vezes, a chamada "necessidade de punição" (FREUD, 1924/1996).
Esse é o primeiro sentido dado por Freud ao supereu, como uma instância psíquica, herdeira do complexo de Édipo. Para se sustentar na cultura, o sujeito exige de si o alcance de seu próprio ideal de eu. Sobre isso, Freud nos dizia que a intensificação identificatória das crianças com seus pais se dá como uma forma de compensação pela perda de objetos, ocasionada pela necessidade de renunciar aos investimentos objetais primários, dirigidos à imago parental. É precisamente isso o que engendra a compulsão ao trabalho e a preservação do objeto amado. Em Mal-estar na civilização (FREUD, 1930[1929]/1996), retomando Totem e tabu (FREUD, 1913[1912-13]/1996), Freud afirma:
A cultura totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro 'direito' ou 'lei'. A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual - a mulher - e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada - seu filho. Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana (FREUD, 1930[1929]/1996, p. 106).
Para Freud, a compulsão ao trabalho é um dos fundamentos para a vida comunitária dos seres humanos, criada pela necessidade externa (Ananke), que se torna um dos pilares da civilização humana. Note-se que a compulsão ao trabalho se acha voltada, terminantemente, para a formação do ideal, à medida que a renúncia, em torno do parricídio e da inscrição da lei, exige do sujeito a necessidade de se auto prover, respeitando-se os ideais civilizatórios. Com efeito, perante o Pai morto, o sujeito materializa sua dívida, entregando-se sumariamente ao trabalho, subjugado ao estabelecimento do ideal.
Assim, enquanto o eu vai se ligar a um ideal em busca de identificações, o supereu mede o eu através do ideal ali instalado, apoiando-se nas forças pulsionais, ao mesmo tempo em que aparece como uma formação reativa a elas. Note-se que apesar de Freud tomar como indistintos, inicialmente, ideal do eu e supereu, a própria teoria freudiana nos leva à diferenciação dessas duas instâncias. O supereu exige aquilo que o eu deveria ser perante seu próprio ideal (FREUD, 1933[1932]/1996). Deste modo, consumido pela exigência do supereu, o eu se vê, muitas vezes, massacrado e aniquilado, em função do ideal do eu.2 Esta relação entre sujeito e consumo se dá na dupla via do circuito pulsional: o eu que consome na identificação é, no cerne mesmo desta dualidade, um eu consumido pelo supereu na dinâmica pulsional.3
Na época de Freud era em função deste ideal do eu que as compulsões se engendravam, bem como as exigências do supereu. A compulsão ao trabalho, por exemplo, aparece como uma delas, deflagrando o circuito neurótico, em torno da exigência superegóica na própria organização civilizatória.
Ao longo de sua obra, Freud realizou relatos e observações sobre diversos tipos de compulsão. O estudo das compulsões na psicanálise contemporânea requer uma investigação mais aprofundada sobre os tipos de compulsão, na obra de Freud. Destacaremos, além da já citada compulsão ao trabalho, algumas outras: a compulsão obsessiva, a compulsão religiosa e a compulsão à repetição.
Sobre a compulsão obsessiva, Freud considera que "os cerimoniais neuróticos consistem em pequenas alterações em certos atos cotidianos, em pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre realizados numa mesma ordem, ou com variações regulares" (FREUD, 1907/1996, p. 109) como se obedecesse a uma lei inquestionável. Outra característica da compulsão obsessiva apontada por Freud é que ela possui uma significação, sendo singular a cada sujeito e assumindo um sentido passível de interpretação histórica ou simbólica.
Para Freud os atos obsessivos são semelhantes aos rituais religiosos, tanto em sua aparência, quanto em sua representação. Constituem-se pela obediência a leis e regras, assemelhando-se a "escrúpulos de consciência que a negligência dos mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na proibição de interrupções) e na extrema consciência com que são executados em todas as minúcias" (FREUD, 1907/1996, p. 110). Uma diferença citada por Freud refere-se ao caráter pouco original e estereotipado das práticas religiosas, em relação a grande diversidade e particularidade dos atos obsessivos. Aparentemente, os atos obsessivos podem tornar-se tolos ou cômicos comparados às práticas religiosas; entretanto, Freud prossegue afirmando que essa diferença se dilui quando analisamos o verdadeiro significado de cada um.
Sob esse aspecto a neurose obsessiva parece uma caricatura, ao mesmo tempo cômica e triste, de uma religião particular, mas é justamente essa diferença decisiva entre o cerimonial neurótico e o religioso que desaparece quando penetramos, com o auxílio da técnica psicanalítica de investigação, no verdadeiro significado dos atos obsessivos (FREUD, 1907/1996, p. 111).
Percorrendo, na análise da neurose obsessiva, Freud relata que se torna mais claro entender o mecanismo dos cerimoniais obsessivos, bem como religiosos, quando se leva em consideração que, em parte, a formação desses cerimoniais é uma medida reativa a uma parte da pulsão que fora recalcada. Porém, segundo Freud, o recalque que acarreta a neurose obsessiva só funciona parcialmente, estando constantemente sob a ameaça de fracassar; sendo então necessário, ao neurótico obsessivo, construir um ritual como uma forma de se proteger dos objetos ligados à pulsão ali reapresentada.
Diante desses paralelos e analogias podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva com o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal. A semelhança fundamental residiria na renúncia implícita à ativação dos instintos constitucionalmente presentes (FREUD, 1907/1996, p. 116).
Observe-se que estas referências de Freud sobre a compulsão obsessiva/ religiosa também se manifestam em função do ideal do eu, base mesma da necessidade de aceder à condição da perfeição como fundamento da renúncia, exigida pelo supereu.
A neurose obsessiva apresenta, no cerne mesmo de sua organização inconsciente, a formação do sintoma como uma "obediência à compulsão", ou uma espécie de "compulsão moral". Nas referências de Freud ao sujeito neurótico, nota-se que a condição dessa estrutura é o recalque, mecanismo que rechaça a parte da pulsão constitutiva do sujeito, geradora de conflito entre as instâncias psíquicas. O conteúdo recalcado, inconsciente, retorna, em uma de suas formas, como um sintoma.
Esta questão fica clara em O sentido dos sintomas, quando Freud (1917[1916-17]/1996), aborda o caso de uma de suas pacientes em que a compulsão representava, no inconsciente, a noite de núpcias. Esse exemplo esclarece que as compulsões obsessivas, assim como os sintomas, são representações inconscientes, que se impõem à vida de vigília, tendo a função de representar um ato regressivamente. Assim, a compulsão é uma forma de recordar e elaborar cenas do passado, ela é uma tentativa de compensação e de correção (FREUD, 1917[1916-17]/1996). Além disso, as compulsões encobrem uma ansiedade, impulsionadas pelo sentimento de culpa que acomete o sujeito, em torno do ideal. Neste caso, a paciente evoca a falha do marido em posição de grande Outro, tentando corrigir a cena, de modo que seu ideal se mantenha sustentado, através do sintoma compulsivo. A compulsão obsessiva, concebida como um sintoma, pode, portanto, ser entendida como uma medida protetora às constantes ameaças de punição provenientes do supereu, em função do ideal do eu.
O último tipo de compulsão em Freud, a ser aqui destacado, é a compulsão à repetição. Citada por ele já em Recordar, repetir e elaborar (FREUD, 1913[1912-13]/1996), será retomada em Além do principio do prazer (FREUD, 1920/1996). A partir das observações das brincadeiras infantis e da escuta de sonhos traumáticos, ela será entendida como o que há de mais radical na pulsão, sua repetição, que não é o resultado de um conflito e sim uma característica fundamental da própria pulsão. A compulsão à repetição é um fenômeno derivado da natureza mais íntima das pulsões, que ultrapassa o princípio do prazer. Em suas construções a respeito da compulsão à repetição fica como marco de um avanço em sua teoria, o fato de que a compulsão à repetição não traz ao sujeito nenhuma fonte de prazer e está ligada, de alguma maneira, à pulsão de morte. Este tipo de compulsão não aparece ligado à instalação do ideal do eu como nos demais tipos de compulsão aqui trabalhados; trata-se de algo mais primário, ligado à pulsão de morte (FREUD, 1920/1996).
Note-se, portanto, que, nos diversos tipos de compulsão aqui destacados, o ideal do eu aparece como uma marca essencial para a formação, seja dos ritos religiosos/obsessivos, seja da força para o trabalho, seja para a formação de um sintoma. Com exceção da compulsão à repetição, via radical da pressão pulsional, as compulsões pensadas por Freud, ligadas à neurose, tinham como aporte fundamental o ideal do eu. Como vimos, o ideal do eu é uma das mais importantes bases do jogo identificatório, achando-se, diretamente, ligado à função do consumo na experiência psíquica. Veremos que isso não representa algo trivial e que há significativas mudanças na constituição do sujeito contemporâneo, com respeito específico a esta questão do ideal. Adiante, apontaremos a existência de uma queda vertiginosa dos modelos ideais na atualidade, o que engendra outras maneiras do sujeito lidar com a questão do consumo.
Esta discussão, sobre o declínio dos ideais, aparece em diversos autores como Miller (2005), Briman (1999), Herzog (2004), Quintella (2014), Machado (2005) e outros. As compulsões atuais, mencionadas no início deste trabalho, são marcas pregnantes da problemática teórico-clínica, que se engendra em torno do sofrimento hoje. Dito de outra forma, a referência de Freud ao ideal do eu, base mesma da experiência do consumo no jogo identificatório, data de um momento em que a cultura se fiava na autoridade sustentada pela imago paterna, fundamento primordial de toda relação com o ideal. É neste ponto que salientamos uma diferença na relação do sujeito com o ideal do eu, o que implica novas formas de responder ao mal-estar na cultura perante a pressão para o consumo, conforme aqui destacamos.
Compulsão, consumo e o sujeito contemporâneo
Posto isso, partiremos para as questões que giram em torno da psicanálise contemporânea, especialmente no que diz respeito à experiência psíquica do consumo a ser aqui retomada no contexto da falência dos ideais e da forma como as compulsões se organizam hoje.
Lacan distinguiu, de maneira mais rigorosa, o ideal do eu de supereu, destacando a dimensão pulsional, excessiva e obscena da força superegóica. Esta distinção é imprescindível para pensar o sujeito contemporâneo. Enquanto o ideal do eu é o ponto de enlace do sujeito com a identificação secundária dirigida à imago paterna, que norteia a busca por um objeto substitutivo na cultura, o supereu é força que irrompe na direção do gozo absoluto, além do princípio do prazer, marcando ali, ao mesmo tempo, sua impossibilidade e proibição. (Lacan, 1972-1973/1993).
Lacan vai dizer, então, que o ideal do eu é o ponto de identificação com o pai, enquanto o supereu é imperativo de gozo, que em última análise é o gozo do pai, um lugar de exceção à lei e à castração. Com isso, podemos entender que, em Freud, é em função do ideal do eu que o supereu opera seu massacre sobre o eu, engendrado pela culpa e a angústia da qual a compulsão neurótica se origina como defesa ou mesmo como sintoma. Hoje, o que se evidencia, em muitos casos, entretanto, é um desatrelamento radical entre supereu e ideal do eu.
Ao falar sobre o sujeito contemporâneo Miller (2005) aponta a existência de um "desbussolamento" do sujeito na relação com o desejo e o gozo.4 O autor afirma a falta de um norteamento para a ancoragem desejante a partir das determinações do ideal. Trata-se, hoje, de um sujeito desbussolado, que encontra maiores dificuldades de ancoramento no ideal para buscar uma forma de dar destino às forças do desejo. Esta concepção caracteriza as peculiaridades do sujeito, frente à organização psíquica do tempo de Freud e, de uma forma mais radical, dos dias de hoje.
Segundo Miller, trata-se da contestação ao ideal como pivô da neurose, resultado do declínio do poder da Igreja e do discurso da ciência, que atingiu o patriarcado e a família no seu epicentro. Hoje, os modelos ideais perdem cada vez mais seu valor, fazendo-se intensificar o sentimento de desamparo (QUINTELLA, 2014). Se em Freud o que se constatava era a instauração "bem definida" do ideal, como marca da prevalência de uma imago "assimétrica" que sustentava a coesão, tanto grupal, quanto psíquica - o líder, o padre, o juiz, o presidente, o professor, o hipnotizador, etc. (FREUD, 1923b), hoje, os modelos de cultura que, na modernidade, encontravam sustentação no ideal do eu, perdem lugar de maneira radical, desvanecem, ou não assumem valor, instaurando, mais intensamente, o sentimento de desamparo.
Nesse cenário, o ideal do eu é evanescente, implicando uma forma peculiar de relação com o gozo e seus imperativos. Trata-se de uma fugacidade na identificação secundária edipiana, que não implica o pai como sustentáculo dessa identificação, na trama familiar de hoje. Nessa conjuntura, a imago paterna não é captada como ponto de identificação ao ideal do eu, achando-se sob falência.
A questão da falência da imago paterna tem sido, intensamente, discutida no seio da psicanálise hoje. Salientamos aqui que, quando falamos em declínio ou falência, referimo-nos à imago paterna, não à lei simbólica. Lacan (1957-1958/1999), distingue o pai simbólico do pai imaginário, ligando este último à constituição do ideal do eu. Enquanto a lei simbólica se inscreve num primeiro tempo do complexo de Édipo, situando ali a neurose, a psicose ou a perversão, o ideal do eu se constitui na passagem do segundo para o terceiro tempo, conforme salientava Lacan (1957-1958/1999). Nossa apreensão se dirige à concepção de que, inscrito na lei simbólica, o sujeito neurótico se furta, nesses casos, a identificar-se ao pai imaginário, fazendo de sua imago um ponto de evanescência e fugacidade na relação ao ideal do eu (QUINTELLA, 2014). Isto se situa num modo de funcionamento psíquico, em que a relação com o ideal do eu assinala uma condição peculiar frente a essa evanescência identificatória.
Neste contexto, faz-se necessário pensar algumas modificações importantes, intrínsecas à falência da autoridade paterna e à queda dos modelos ideais que a cultura engendra hoje. Tal é a importância de se refletir sobre as compulsões contemporâneas que se apresentam na clínica atual.
Como vimos, na constituição do ideal do eu, o sujeito devora o pai afastando-se do gozo absoluto e buscando modelos sólidos de identificação, modelos de ser na cultura. Hoje, o que se manifesta como efeito da falência da imago paterna e da evanescência do ideal do eu é um imperativo de gozo superegóico impossível de cumprir (ZIZEK, 2001), que aparece, muitas vezes, na forma de uma busca pela "felicidade absoluta". Como aponta Miller, o ideal do sujeito desbussolado se trona um ideal de gozo do objeto (MILLER, 2005).
Cumpre acrescentar que tentar a todo custo gozar do objeto é, muitas vezes, o que resta ao sujeito como forma idealização na contemporaneidade. Tais experiências de gozo do objeto são também extremamente evanescentes e fugazes. Essa queda das referências ideais na atualidade produz, então, efeitos substanciais na forma como o supereu se manifesta nessas modalidades de sofrimento. Se antes o supereu massacrava o eu em função do ideal do eu, produzindo a compulsão moral, tal como salientamos anteriormente; hoje o que se constata é um supereu que, muitas vezes desatrelado do ideal do eu, dirige sua força ao chamado objeto real.
O objeto real é definido por Lacan (1956-1957/1995), em sua teoria, das três formas de falta de objeto5, como objeto da urgência infantil (Dringlichkeit) que, impreterível, se torna a referência fundamental para o gozo. Diz Lacan:
Cada vez que há uma frustração de amor, esta é compensada pela satisfação da necessidade. [...] um objeto real [seio, chupeta] assume sua função como parte do objeto de amor, e a pulsão se dirige ao objeto real como parte do objeto simbólico, este se torna, como objeto real, uma parte do objeto simbólico (LACAN, 1956-1957/1995, p. 178).6
O pensador situa a distinção entre a necessidade e o desejo a partir da relação entre o objeto real, visado pela pulsão e sua possibilidade de substituição com base no significante da falta.
Para este mesmo objeto real, Lacan (1956-1957/1995) afirmava ser análogo ao próprio supereu diante da frustração de amor: "Na medida em que a regressão ao objeto oral primitivo de devoração vem compensar a frustração de amor, essa reação de incorporação [...] é a incorporação de certas palavras que está na origem da formação precoce daquilo a que se chama o supereu" (LACAN, 1956-1957/1995, p. 178).
Com efeito, em função de uma peculiaridade na relação entre o sujeito e o objeto real, isto assume relevância crucial na presente exposição. Eis aí o ponto em que se situa o problema das compulsões contemporâneas.
Como salientamos, na época de Freud a renúncia reforçava a exigência do supereu sobre o eu, que imprimia seu sadismo e exigia, paradoxalmente, o alvo de ocupar o lugar do ideal. Em outras palavras, trata-se do lugar interditado do pai junto ao desejo da mãe. Quanto mais o sujeito renuncia, mais o supereu exige a renúncia, obrigando o gozo pela via do masoquismo moral. Ali, como vimos, as compulsões se organizavam em torno do ideal do eu alicerçado na imago paterna. O alvo do supereu tinha como base a identificação ao pai imaginário, aquele mesmo que funcionava como agente da privação na dinâmica edipiana e na referência do ideal do eu (LACAN, 1957-1958/1999).
Hoje, diante de uma imago paterna que não funciona como âncora do ideal, o imperativo de gozo se dá menos em torno do eu e da renúncia pulsional e mais em torno do objeto real, na forma de um empuxo compulsivo dirigido a este objeto real. A agressividade culposa a que Freud (1930[1929]/1996) se refere, na relação à autoridade e na constituição da exigência superegóica, passa a ser dirigida menos ao eu e mais intensamente dirigida para objetos externos, ao nível da compulsão, numa tentativa desesperada de introjeção no lugar da identificação ao ideal do eu. Cabe ainda registrar que, no lugar da identificação ao ideal do eu calcado na imago paterna, aparece na contemporaneidade um ideal fugaz de "felicidade absoluta" impossível de alcançar, conforme salienta Zizek (2001). Ao invés de buscar modelos identificatórios o sujeito se atira a um ideal fugaz de felicidade extrema, sempre fracassado.7
Tal condição coloca a experiência do consumo, base da constituição psíquica, como o cerne das patologias atuais, em que a compulsão a ingerir, consumir, engolir, (a droga, o alimento, a mercadoria, o corpo, etc.) fica cada vez mais evidente. Tais patologias vêm responder ao imperativo de gozo do supereu - ou ao que se manifesta na forma deste ideal fugaz de "felicidade absoluta" do sujeito contemporâneo.
A compulsão moral agressiva contra o eu parece, portanto, ser substituída (ou reatualizada na contemporaneidade) por uma compulsão ao objeto real. Isto porque, em muitos casos, o ideal do eu não é mais a referência do imperativo superegoico. O objeto real, análogo ao supereu (LACAN, 1956-1957/1995), se torna seu alvo. Com efeito, quanto mais o sujeito tenta '"engolir" o objeto real, compulsivamente, mais o supereu o exige.
Cabe frisar, nessa direção, que se trata de um circuito pulsional para o consumo muito mais referido à compulsão à repetição do que à identificação ao ideal do eu. Nessa condição, a relação ao objeto simbólico fica reduzida a uma compulsão ao objeto real, permanecendo o sujeito atado a uma relação direta com a urgência infantil. Trata-se da sobrepujança da pulsão de domínio, atrelada à pulsão de morte, num jogo de forças, em que o dominador se confunde com o dominado, posto a "se fazer" dominar. Nesses termos, trata-se de pensar um imperativo de gozo que se manifesta através dessas categorias de compulsão, em que o ideal do eu se acha evanescente, falido e fugaz.
Cabe salientar, ainda, que se trata efetivamente, nessas compulsões, de uma pressão para o consumo, que tenta engolir o objeto a todo custo como tentativa de resposta ao imperativo de gozo impossível de cumprir. Gondar (2001) salienta que se trata, aí, de uma tentativa de responder e fazer obstáculo a tal imperativo de gozo impossível. A compulsão contemporânea é, complementando, uma pressão para o consumo do denominado objeto real exigido pelo supereu, cujo movimento evidencia a relação entre o imperativo de um gozo impossível de cumprir e seu ponto de basta. Ou seja, o sujeito se atira ao objeto real, obedecendo ao imperativo superegóico, visando, em última análise, dar um basta a esta exigência impossível de cumprir. Tal visada, evidentemente, fracassa, à medida que o supereu infligirá nova exigência. Diante do esfacelamento atual dos modelos identificatórios calcados na imago paterna, o sujeito se acha, portanto, cada vez mais exposto à figura tirânica do supereu, exortando-se à aniquilação do desejo.
Essas considerações trazem importantes consequências à psicanálise contemporânea, que se vê cada vez mais convocada a responder pelas questões, que giram em torno de formas distintas do sujeito se defender da castração. O que visamos aqui é o avanço das considerações sobre o supereu diante destas conjunturas clínicas atuais, delineadas como experiências críticas em que o excesso desponta. O supereu continua infringindo seu excesso, expondo o sujeito ao desamparo; continua sendo, ao mesmo tempo, o resultado da condição desamparada do sujeito na relação ao Outro e a fonte de seu sentimento ulterior. Contudo, hoje, ele se afasta das referências ideais mediante as quais promovia seu massacre sobre o eu, empurrando seu excesso desmedido e seu imperativo de gozo ("aceda ao lugar do pai da horda") em direção à captação do objeto real (a droga, o alimento, o corpo, a compra).
De fato, a discussão sobre a falência de modelos ideais, nos quais o sujeito busca ancoragem para sua condição desejante não é sem efeitos, especialmente quando o que está em questão é o supereu e a relação do sujeito com o objeto. Dado que a força para consumir é prerrogativa para a sustentação subjetiva no campo do Outro, como salientamos nesta exposição, faz-se necessário questionar a teoria psicanalítica no que concerne aos seus conceitos mais fundamentais, de maneira que possamos repensar a metapsicologia perante o sofrimento psíquico humano.
Conclusão
Pensar o sujeito contemporâneo exige, assim, que coloquemos em evidência, de um lado, o caráter fundante da experiência de consumo e, de outro lado, as respostas compulsivas, em torno da função do consumo, perante a queda das referências ideais. Sendo assim, podemos concluir com a seguinte proposição:
Identificação ao ideal do eu
↓
consumo alicerçado no processo de introjeção
↓
compulsão moral em função do ideal
***
Falência dos modelos ideais
↓
consumo do objeto real
↓
compulsões contemporâneas
A função do consumo permanece, assim, um ponto de enlace do sujeito com o objeto, seja em sua dimensão imaginária, simbólica ou real. A presente exposição se concentrou em discutir sobre a relação entre consumo e compulsão. Quanto à questão do consumo, é evidente que se trata, aqui, de um movimento teórico em direção a questões mais amplas, que exigem maiores cuidados. Neste quesito, o avanço do pensamento de Jacques Lacan (1972/2016) abre caminho para uma investigação apurada sobre a relação com determinadas formas de laço social, na organização cultural do século XX e XXI, com relação à dimensão do consumo na subjetividade de nossa época. Esta questão merece consideração futura, específica ao traçado e ao avanço de nossas investigações, as quais se pautam, a partir dos estudos efetuados até aqui, a pensar a relação entre a evanescência do ideal do eu, o consumo e o laço social na contemporaneidade. Pensar os destinos disso, na sociedade atual, é tarefa à qual não devemos recuar, num movimento necessário de investigação, que nos permita avançar sobre as questões que a clínica psicanalítica, intrínseca à constituição da cultura, nos coloca.
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Artigo recebido em: 09/08/2016
Aprovado para publicação em: 18/01/2017
Endereço para correspondência
Rogerio Robbe Quintella
E-mail: rrquintella@hotmail.com
Rebeca Espinosa Cruz Amaral
E-mail: rebequinhaespinosa@hotmail.com
Tainá Batista de Souza
E-mail: taina.b.souza@hotmail.com
Fernanda Monteiro Ribeiro Henrique
E-mail: nanda_henrique@hotmail.com
*Psicanalista, prof, adjunto Departamento de Psicologia/ Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo (NEPESC/UFF).
**Graduanda Psicologia/Universidade Federal Fluminense (UFF), membro Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo (NEPESC/UFF).
***Graduanda Psicologia/Universidade Federal Fluminense (UFF), membro Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo (NEPESC/UFF).
***Graduanda Psicologia/Universidade Federal Fluminense (UFF), membro Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo (NEPESC/UFF).
1O ideal do eu assume importante aspecto no presente artigo, o que será retomado posteriormente.
2Jacques Lacan aprofunda a distinção entre ideal do eu e supereu, o que assume grande relevância em nosso trabalho. Voltaremos a isso posteriormente.
3Esta assertiva se baseia tanto em Freud como em Lacan. Para Freud, em As pulsões e suas vicissitudes (FREUD, 1915/1996), a criança se vê num jogo dual em que a posições ativa e passiva se mesclam na ordem primária da relação de objeto, se confundem. Retomando a questão colocada por Freud sobre a voz ativa, passiva e reflexiva - devorar, ser devorado e devorar-se -, o autor consagra a esta última o ponto nodal da posição do sujeito no que diz respeito a esta última - a voz reflexiva. Lacan (1964/2008) salienta que o "devorar-se" da voz reflexiva deve ser lido como um "se fazer devorar", em que a posição ativa e passiva não se reduz a uma condição absoluta.
4Miller situa o início desse "desbussolamento" na passagem do sistema de produção agrícola para o industrial. No primeiro, o homem era regido por parâmetros naturais bem definidos, no segundo, abre-se a uma inquietação sobre as variações daquilo que é ofertado pela produção industrial como objeto de consumo. (MILLER, 2004).
5Lacan (1956-1957/1995) faz uma rica análise sobre as três formas de falta do objeto - castração, privação, frustração - possibilitando novos avanços. A castração, sendo simbólica, é referida a um objeto imaginário - o pênis - à medida que a ameaça da perda se inscreve para a criança ensejando a saída do complexo edipiano. A privação é real, na medida em que solapa o sujeito frente à falta do objeto simbólico (o falo) como insígnia da própria castração. A frustração se refere a um objeto real - seio, chupeta, etc. - na medida em que a relação com a mãe, mediada pelo significante da falta, enseja um empuxo dirigido ao objeto real. Isso se destaca aqui para analisarmos a redução do objeto simbólico à urgência primária nessas compulsões contemporâneas.
6O denominado "objeto real" trabalhado no seminário 4 se distingue do objeto a na teoria de Lacan. O primeiro se refere a uma urgência em agarrar o seio para materializar a satisfação diante da frustração do amor, como se a criança pudesse fazê-lo em torno daquilo que falta na mãe: o falo. Ao mesmo tempo, mediante esta frustração, o objeto real se torna uma parte do objeto simbólico, servindo de esteio à pulsão. O objeto a, por outro lado, se refere, mais precisamente, à extração do objeto na relação imaginária como efeito do deslizamento significante no Outro. Produz-se como perda e causa de desejo na estrutura do fantasma. Lacan percorre a trilha do objeto real, discutida por ele no seminário 4, para desenvolver sua teoria do próprio registro do real, na medida mesma do avanço de seu pensamento sobre o real.
7Não é por mero acaso que a depressão se manifesta, hoje, com maior frequência, na clínica psicanalítica, conforme salientamos alhures (QUINTELLA, 2012).