Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
Da droga do sujeito ao sujeito da droga: no meio da clínica havia um sujeito
From the drug of the subject to the subject of the drug: in the middle of the clinic was a subject
André de Paulo DuarteI*; Elizabeth Cristina Landi de Lima e SouzaI, II, III, IV**
ICorpo Freudiano Escola de Psicanálise - Brasil
IIUniversidade de Brasília - UNB - Brasil
IIIPontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-GO - Brasil
IVUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil
RESUMO
Este artigo propõe o aprofundamento teórico e clínico em psicanálise sobre o sujeito e a sua relação com a droga, a partir de levantamento bibliográfico e atendimentos realizados em um Centro de Estudos. Abordando um ponto de vista ético sobre a toxicomania, considerou-se a fantasia como um freio às repetições relativas à pulsão de morte e ao gozo referente ao uso repetitivo e ritualizado de drogas. Assim, a direção do tratamento baseou-se na possibilidade de que o paciente costurasse fantasias inconscientes referentes à sua história, a partir da associação livre e do investimento libidinal na figura do analista, enquanto objeto na transferência.
Palavras-chave: Clínica psicanalítica, Toxicomania, Drogas, Fantasia, Sujeito.
ABSTRACT
This article proposes theoretical and clinical deepening in psychoanalysis about the subject and its relationship to the drug from literature and treatments done at a Study Center. From an ethical point of view of drug addiction, the fantasy was considered as a brake to the repetitions relative to the drive of death and the enjoyment related to repetitive and ritualized drug use. Thus, the direction of the treatment was based on the possibility that the patient sewed unconscious fantasies related to its history from the free association, and the libidinal investment in the analyst's figure as an object in the transference.
Keywords: Psychoanalytical clinic, Addiction, Drugs, Fantasy, Subject.
Da droga do sujeito ao sujeito da droga: no meio da clínica havia um sujeito
O significado dicionaresco hegemônico da palavra droga, como se tem fácil acesso atualmente em dicionários brasileiros, tem em seu bojo inúmeras influências de línguas e, consequentemente, culturas estrangeiras, carregando em si uma carga de equívocos. Grosso modo - tanto com caráter formal quanto informal -, refere-se a substâncias ilícitas, que têm a capacidade de alterar o funcionamento bioquímico de quem delas faz uso. O que demonstra que o significado etimológico da palavra droga perdeu espaço na linguagem corrente para sentidos empobrecidos carregados de pré-conceitos fortemente influenciados pelas abordagens médicas e jurídicas, o que, com efeito, embasa o modo de aproximar-se do assunto de forma geral.
Esse contexto de significação nos é importante porque indica que o uso corrente da palavra droga está relacionado à hegemonia de um campo de saber substancialista, onde a ênfase é dada às substâncias em si, enquanto produtoras de efeitos específicos e, na maioria das vezes, nocivos. O que negligencia um campo ético, no qual não se considera o simples uso de substâncias ilícitas e/ou nocivas como a fonte dos problemas relacionados às drogas, mas sim a relação de sentido que o sujeito estabelece com o objeto droga do qual faz uso, e também, o lugar que este objeto ocupa na economia psíquica de cada sujeito (SANTIAGO, 2001).
Vale dizer que o sentido da palavra droga, como o conhecemos hoje, só tem a sua existência possível com o advento da ciência moderna enquanto discurso, pelo qual, diga-se de passagem, ele próprio foi forjado. É a partir dos pressupostos científicos, que abordam a droga enquanto substância tóxica nociva e com mecanismos de ação específicos e pertinentes a disciplinas como física, química e biologia, melhor dizendo, no campo das ciências naturais, que o uso de drogas será atrelado à visão substancialista, que implica o não uso de simbolismos referentes ao efeito phármakon como em contextos anteriores, como, por exemplo, na era da alquimia. Destarte, o uso de drogas - e a ética a isso relacionada - também só é possível aos sujeitos deste mesmo contexto histórico. O que quer dizer que a toxicomania só pode ser concebida uma vez que o discurso científico se apropria do efeito phármakon rompendo toda a historicidade e sentidos próprios atribuídos a ele antes da era da ciência (SANTIAGO, 2001).
Portanto, existe para o sujeito da ciência, em relação ao sujeito do saber alquímico, a queda do efeito de sentido no que concerne ao efeito phármakon. É como se, hipoteticamente, fizéssemos uma equação onde diminuíssemos o efeito phármakon da teia de sentido alquímico atrelado a ele e chegássemos às substâncias tóxicas da era da ciência, o que implicaria em um produto totalmente novo: a droga. "Trata-se da oferta de um novo produto, tanto no mercado dos bens capitalistas, quanto no mercado do gozo" (SANTIAGO, 2001, p. 59).
O mais importante disso tudo é entender qual é o lugar desse novo produto na economia psíquica do sujeito que dele faz uso, visto que, normalmente, o sujeito utiliza a droga como uma espécie de prótese química e artificial, em relação à construção do parceiro sexual. Ou seja, o sujeito utiliza a droga de forma repetitiva e ritualizada, de modo a causar um curto-circuito no sexual, a fim de diminuir a angústia relativa à diferença entre os sexos e o que isso remete à castração e as intervenções do Outro (SANTIAGO, 2001).
A visão de Santiago (2001) sobre o recurso do sujeito à droga tem pontos de intersecção, com a perspectiva de Freud (1930/1996), que diz que a vida tal como compete ao homem é demasiado difícil de suportar, por ter relacionada a si, diversos tipos de frustrações, e que o sofrer ameaça-nos por três lados: "(...) de nosso próprio corpo, condenado a decadência e à dissolução, (...) do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas", e "finalmente de nosso relacionamento com os outros homens." (p. 85). Sendo este último, o sofrimento mais penoso, por se já se tratar, de certa forma, de um movimento civilizado. E que frente a essas ameaças, não poderíamos viver sem nos valer de alguma medida paliativa ou construção auxiliar, enumerando também três delas: poderosas diversões, gratificações substitutivas e, a que mais nos interessa, o uso de substâncias inebriantes, que é considerado por ele o método mais grosseiro e também mais eficaz, tendo como vantagem, não só a produção imediata de prazer, mas certa independência do mundo externo.
Destarte, onde, em Freud (1930/1996), diz-se produção imediata de prazer e certa independência do mundo externo, pode-se ler, em Santiago (2001), gozo cínico relacionado ao corpo e tentativa de prescindir do Outro e suas intervenções, respectivamente. Mas, entre essas duas perspectivas inter-relacionadas existem, ainda, dois conceitos fundamentais que nos permitirão aprofundar o raciocínio para além do ponto de vista substancialista, tanto em Freud como em Santiago. A saber: pulsão de morte e fantasia.
Segundo Freud (1920/1996), não é correto afirmar que o princípio do prazer domina todo o curso dos processos psíquicos, o que explicita a importância do princípio de realidade e dos conflitos existentes no interior do aparelho psíquico. De qualquer forma, nesse contexto, a série prazer-desprazer está relacionada à consciência, mais especificamente, à parte consciente do Eu. Acontece que, buscando explicações às neuroses de guerra, Freud (1920/1996) perceberá que nem sempre o sujeito está buscando o prazer ligado ao princípio do prazer, e, portanto, ao Eu e que existe algo para mais além. Fazendo um paralelo entre os sonhos traumáticos e a brincadeira do Fort-da, diz que a repetição pode proporcionar um prazer de outro tipo, neste caso, diretamente ligado ao Id. Freud lança mão então, do conceito de compulsão à repetição, e se valendo de seus casos clínicos diz que, neste contexto o paciente "é antes levado a repetir o reprimido como vivência atual, em vez de, como preferiria o médico, recordá-lo como parte do passado" (p. 177). Postula que o prazer da repetição (de algum material recalcado, até então não elaborado) seria prazer para uma instância (Id) e desprazer para outra (Eu). Por conseguinte, afirma existir na vida psíquica, uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio do prazer. Este traço demoníaco tem a ver com a satisfação da pulsão em sua face mais primitiva, mais primordial e elementar, que o princípio do prazer: a pulsão de morte.
É nesse sentido que Freud (1920/1996) diz que a tendência dominante do aparelho psíquico é a de reduzir ao máximo - ou manter constante - todas as tensões no seu interior. Ou seja, é o chamado princípio de nirvana, o qual faz Freud suspeitar da existência das pulsões de morte. O que é retomado por Lacan (apud JORGE, 2010), quando diz toda pulsão é pulsão de morte, uma vez que se trata de uma força constante que exige satisfação e não abriria mão de uma satisfação absoluta, caso fosse possível. A pulsão de morte visa o retorno ao inorgânico, o retorno ao não ser, ao estado inanimado. É a tendência que tem a pulsão de buscar um estado, onde o nível de excitação no aparelho psíquico seja igual a zero.
Melhor dizendo, a satisfação absoluta buscada pela pulsão é impossível, uma vez que o objeto que possibilitaria isso se trata de um objeto suposto, que não existe. É o que Freud chama de das Ding - a Coisa. Nesse sentido, toda pulsão busca o suposto objeto que lhe traria a satisfação absoluta. Só que, para Freud, essa Coisa que a pulsão procura - das Ding - é a morte. Essa descida rumo à morte, buscada pela pulsão, remete ao conceito lacaniano de gozo (JORGE, 2010).
É nesse sentido que todo sujeito é movido pela busca de das Ding e toda pulsão é pulsão de morte. Mas, é evidente que existe algo no funcionamento psíquico do sujeito que freia esse empuxo à morte, ou empuxo-ao-gozo. Esse freio é a fantasia, que funciona como um filtro que aponta aquilo que falta ao sujeito. Ou seja, é através da fantasia que na neurose é possível, grosso modo, que a pulsão busque das Ding, mas receba outros objetos, que lhe permitam um gozo parcial e limitado (JORGE, 2010)
A entrada na fantasia permite que a pulsão de morte seja sexualizada e o sujeito, que busca um gozo absoluto, entre, através da fantasia, na busca por um gozo limitado: o gozo fálico, que é, essencialmente, atravessado por linguagem e instaurado por meio do agente paterno. Através do gozo fálico, que é regido pela fantasia, o sujeito tem o gozo destrutivo da pulsão de morte parcializado em diferentes pulsões sexuais. Passa-se do sujeito do gozo, para o sujeito barrado. O sujeito passa a ter prazer em diferentes zonas do corpo (JORGE, 2010).
O que acontece com o toxicômano, segundo Jorge (2010) é que o campo da fantasia vai se "rarefazendo" (p. 150). Sem a fantasia, o gozo relacionado ao recurso à droga é o gozo destrutivo e mortífero da pulsão de morte. Tudo o que se oferece ao toxicômano relacionado ao gozo fálico é recusado, uma vez que o campo da fantasia, que é responsável por enquadrar o desejo, está rarefeito. Assim, uma das possibilidades para a análise dos toxicômanos é que o sujeito consiga reconstruir um mínimo de fantasia, a fim de que o desejo possa ser contornado e o gozo fálico seja novamente possível. Melhor dizendo, que a pulsão de morte, possa ser gradativamente sexualizada. Isso tem como complicador o fato de que o recurso à droga proporciona ao toxicômano uma maior aproximação deste objeto mítico, ao invés de um mero objeto. É o que diz Jorge (2010), valendo-se do filme Transpointting:
No filme, o tesão sexual só surge quando os jovens viciados estão num período de abstinência. Fica bem claro que a droga mata o desejo amoroso, ela compete com ele de forma desleal: ela oferece ao sujeito, no lugar de um mero objeto, a Coisa. (...) Mais do que isso, a droga anula todos os objetos e, desse modo, rarefaz o campo da fantasia (p. 151).
Soma-se a isso, uma dificuldade outra, que diz respeito à marca fortemente característica da compulsão à repetição na clínica dos toxicômanos, atrelada à pulsão de morte como mencionada por Freud (1920/1996), quando diz que aquilo que não consegue ser simbolizado, é antes repetido pelo sujeito. Ou seja, quando a experiência da droga está relacionada com o empuxo-ao-gozo, com o gozo mortífero e destrutivo da pulsão de morte, existe a tendência de que o sujeito procure repetir essa satisfação, porque a morte e o gozo absoluto não são inscritos no aparelho psíquico e, portanto, mais difíceis de serem simbolizados de alguma forma.
No que foi dito até aqui, e em relação à demanda espontânea surgida nos atendimentos clínicos e específicos de um paciente no Centro de Estudos, Pesquisas e Práticas Psicológicas (CEPSI), o presente trabalho caminhou sob a égide de um ponto de vista ético, em relação ao uso de drogas e teve o intuito mesmo de esboçar o que foi o atendimento clínico psicanalítico de um sujeito imerso em um gozo repetitivo e ritualizado da droga.
Os caminhos da Escuta Clínica
Márcia, sexo feminino, solteira, ensino superior completo, costureira. Procurou atendimento psicológico por achar que tinha TDAH, o que, segundo ela, prejudicava-a nos relacionamentos com outras pessoas, nos estudos e no trabalho, por não conseguir prestar atenção. Já havia consultado um psiquiatra, que não lhe deu este diagnóstico e indicou-lhe um tratamento psicológico.
As primeiras sessões foram dedicadas às entrevistas preliminares, que, segundo Quinet (2013), têm três funções: a de que o paciente fale de sua demanda; a de fazer um diagnóstico diferencial no que tange a estrutura de personalidade (no sentido de dar direcionamento aos atendimentos) e ao estabelecimento de um vínculo transferencial do paciente em relação ao analista. Para Freud (1913/1996), essas entrevistas já devem fazer parte do início de um tratamento propriamente analítico e, para tanto, seguir a regra fundamental da psicanálise: a associação livre. Em contrapartida a essa regra ao paciente, o analista deve fazer uso da atenção flutuante, que consiste em ouvir tudo o que lhe for dito, sem dar atenção pormenorizada a fatos em especial (FREUD, 1912/1996).
Márcia apresentou dificuldades para associar livremente, uma vez que sua dificuldade para falar fazia parte da queixa que a trazia à clínica. Já, nas entrevistas preliminares, disse do seu uso de maconha e álcool e como isso a ajudava a estar ao lado das pessoas, visto que como não era de falar muito, estar sob efeito de substâncias ajudava a diminuir a sua responsabilidade de estabelecer algum diálogo. A princípio, em sua fala, a droga estava presente em todas as situações de sua vida como um meio de apaziguamento das pressões cotidianas.
Assim que começou a recordar, a considerar o seu uso de drogas como consequência de situações de sofrimento do passado e sua dificuldade para falar, como sendo relativa à falta de interesse do seu pai pelas coisas que ela dizia na infância e adolescência. Márcia foi convidada a deitar-se no divã. Mas, especialmente porque direcionou o seu sintoma na transferência ao analista, que se não perguntasse nada a ela, recebia a posição que ela dava ao pai: a de desinteressado - isso, segundo as palavras da própria paciente, relativa a essas ocasiões: "às vezes parece que quando estou aqui, estou dentro do carro com o meu pai". Divã que, segundo Quinet (2013), é justamente um lugar de relato e despertar. É onde a pregnância do imaginário, na transferência é substituída pela ênfase na emergência de significantes pela fala, é um lugar que privilegia a fala ao invés da imagem, dando ao analista o lugar da invisibilidade e oportunidade de que os significantes do paciente sejam trazidos para a esfera do simbólico.
No decorrer dos atendimentos clínicos, o levantamento bibliográfico acerca do tema toxicomania mostrou-se insuficiente para lidar com as demandas carregadas por questões transferenciais e, propriamente clínicas, que eram trazidas por Márcia. Iniciou-se assim, de forma concomitante ao estudo das toxicomanias, um estudo sobre a clínica psicanalítica, pautando-se, principalmente, nas obras completas de Freud, mas também em Antônio Quinet (2013) e Marco Antônio Jorge (2010).
Da queixa ao vislumbre de um Sintoma
O silêncio
O único silêncio que perturba é aquele que fala. E fala alto. É
quando ninguém bate a nossa porta, não há recados na secretária
eletrônica e mesmo assim você entende a mensagem
(Marta Medeiros).
Márcia chegou ao consultório com a ressalva de ter enorme dificuldade para falar, principalmente em situações em que isso lhe fosse exigido, nas quais sentia mal-estar e vontade de vomitar. Sabia que em um consultório de psicologia teria que falar em algum momento e, apesar da ressalva inicial, não se intimidou em se comprometer com um tratamento por via da fala. No fundo, ela parecia querer que alguém a ouvisse, que alguém quisesse saber dela.
Nas primeiras sessões, falava - não sem muita dificuldade - sobre sua semana. Contou-me do seu uso de maconha e álcool, como estes eram importantes em sua vida para ajudá-la a suportar o dia-a-dia e que tudo o que esperava era de um dia ir para sua casa, beber, fumar e ouvir música. Mas, incrivelmente para ela, mesmo que começasse a falar de qualquer coisa, sempre acabava falando de sua família, ainda que parecesse evitar o assunto. Nessas ocasiões, as sessões ficavam mais travadas e Márcia mais tensa e desconfortável por ter de lidar com a enorme dificuldade para falar, somada aos sofrimentos relativos à família. Dada a situação, decidi que, como cuidado transferencial preliminar, evitaria um silêncio prolongado e lhe faria perguntas me esforçando a fazê-la falar frases maiores. Perguntava sobre assuntos que ela havia me falado até então na sessão e, aos poucos, ela ia se soltando e falando por mais tempo, até que se sensibilizasse ao falar da família e parasse novamente. Repetíamos esse processo várias vezes durante a mesma sessão.
Eram duas sessões por semana, que exigiam esforço mútuo no sentido de que elas continuassem acontecendo. Todas elas tinham ares de última e, ao final do primeiro mês de atendimento, Márcia disse: "É o fim". Justificou-se alegando que só procurava a confirmação do diagnóstico de TDAH e, por conseguinte, um remédio, o que não havia conseguido ali. E mais, que essa história de ficar se lembrando das coisas a estava fazendo sofrer e chorar mais que o habitual.
Atentei para ela que a análise era diferente do tratamento medicamentoso e que ao contrário de oferecer-lhe um remédio para que ela guardasse mais alguma coisa dentro de si, como já fazia com o álcool, a maconha, o sofrimento e as memórias, oferecia-lhe um lugar para que colocasse as coisas para fora, falasse, chorasse e vomitasse, caso preciso. Disse que percebia que ela estava sofrendo e que ter alguém para acompanhá-la em seu sofrimento poderia ajudar. E ainda, que se falar sobre o seu passado a estava fazendo chorar, alguma coisa relativa ao seu sofrimento do presente poderia se esconder por lá. Sugeri que, ao invés de um fim, fizesse um novo começo e propus que, no lugar de não vir mais, viesse mais uma vez por semana. Ela ficou de pensar e avisar se retornaria.
Márcia retornou e, na sessão subsequente, conseguiu falar mais do que o habitual. Contou-me de sua infância, como o sofrimento que carregava daquela época a atrapalhava no presente e que, inclusive, havia pensado em dar um fim nos atendimentos porque, por vezes, quando ficávamos em silêncio no consultório, associava a situação com uma memória ruim: a de que sentia que seu pai não tinha interesse por sua vida e que, na adolescência, quando andavam de carro juntos, só os dois - trinta minutos todos os dias para ir à escola, que era em outra cidade -, o silêncio imperava.
Pautando-me em Quinet (2013), decidi que era hora de começar a substituir a pregnância do imaginário na transferência pela ênfase na emergência de significantes pelo simbólico: era hora do divã.
Do divã, falou-me que, quando criança, seu pai a ignorava se ela tentasse estabelecer algum tipo de diálogo: "Ele fingia que não me ouvia e só continuava a fazer o que estava fazendo". Disse que isso a fazia se sentir um lixo, alguém sem importância e sem assuntos interessantes ou relevantes. Nessas ocasiões, sentia uma pressão para falar qualquer coisa que fosse relevante o suficiente para começar uma conversa, mas nada lhe surgia à mente e ela ficava enjoada e com mal-estar.
Apesar de falar mais durante as sessões, ainda existiam as mais complicadas em que ela não conseguia e chorava baixinho ou ficava extremamente inquieta no divã. Como já mencionado, eu havia adotado um cuidado transferencial preliminar de não deixar o silêncio perdurar, mas como havia descoberto, há pouco, que o silêncio dizia de algo sobre a história de Márcia e que ela o havia implicado na transferência, em certa ocasião, me vali de Freud (1915/1996), quando ele fala sobre o tratamento analítico ser levado a cabo na abstinência e deixei o silêncio ecoar. Minutos depois, Márcia pediu para sair do consultório porque o ambiente a estava sufocando - tal como no carro com o pai -, e ela estava prestes a vomitar - tal como na infância, quando se sentia pressionada a falar e não conseguia.
Na sessão posterior, Márcia me informou que, após aquele atendimento, teve de fumar maconha, imediatamente, para se acalmar e diminuir o enjoo e relacionou o fato com outra lembrança. Quando criança, vomitava várias vezes por dia e, por isso, vivia de hospital em hospital já que os vômitos só cessavam após ser devidamente medicada.
Até aqui podemos perceber que Márcia havia começado o tratamento por via de repetições e que algumas, inclusive, permeavam aquilo que ela trazia enquanto queixa (a dificuldade para falar, os enjoos, a irritação com o meu silêncio, a necessidade de ser medicada). Para Freud (1914/1996), a repetição é uma maneira de recordar algo que se encontra recalcado, o paciente repete, espontaneamente, em ação sem saber que está repetindo ou que se trata de uma repetição; e o manejo transferencial é o principal caminho para que se trabalhe a compulsão do paciente à repetição, já que, pela via da transferência, o paciente pode perceber o que está repetindo e colocar isso na esfera psíquica para que haja a construção de novas significações às repetições.
Sobre esse aspecto, há de se notar que, em Márcia, a compulsão à repetição se mostrava mais forte do que a capacidade de levá-la à esfera psíquica, mesmo que ela já estivesse repetindo inclusive na transferência. De acordo com Lacan (apud JORGE, 2010), a repetição é valorizada por se tratar de algo da ordem de um gozo e em Márcia isso aparecia em sua dificuldade para simbolizar o que lhe ocorria. Ela havia encontrado na maconha e no álcool um modo de satisfação que parecia ter alguma coisa a ver com a sua dificuldade para falar e, por conseguinte, em achar metáforas ou duplos sentidos. Em suas próprias palavras, o uso dessas drogas funcionava "como uma desculpa, porque aí se eu não conseguisse falar nada a pessoa ia saber que era porque eu estava alterada". Destarte, a princípio, usava as drogas para se encontrar com as outras pessoas e remediar a sua dificuldade para falar, não no sentido de conseguir falar mais, mas sim no sentido de justificar o seu silêncio e, com o tempo, passou a usar para não pensar em qualquer coisa que a fizesse sofrer - por exemplo, seu passado e história familiar. Não demorou muito para que, segundo ela, passasse a usar o tempo todo e, sem o uso, não conseguisse fazer mais nada: "Acho que sem beber ou fumar, eu não teria aguentado viver".
O recurso a substâncias tóxicas, que, segundo Freud (1930/1996), é o método paliativo mais grosseiro e eficaz para lidar com as renúncias pulsionais exigidas em uma vida em civilização, passou a ser usado por Márcia para suportar as mazelas do seu dia-a-dia, mas, particularmente, para silenciar aquilo a que o seu silêncio estava relacionado. Ela trocava o silêncio carregado de sentido e relacionado à sua história e sofreres, por um silêncio esvaziado de sentido e que anestesiava o seu sofrimento. Trocava o silêncio que lhe dizia, em última análise, do sentimento de abandono em relação ao desejo do Outro, pelo silêncio da droga que não tinha nada a dizer e sim o intuito mesmo de calar.
O abandono
O que mata um jardim não é o abandono. O que mata um jardim
é esse olhar de quem por ele passa indiferente (Mário Quintana).
Recordando e falando aos poucos de sua história, Márcia contou de quando cursava o primário e ficava na porta da sala de aula sozinha, durante o recreio por não ser bonita ou interessante o suficiente para ter amigos com quem brincar. E que, em uma dessas ocasiões, a irmã chamou-lhe a atenção dizendo que era feio ficar chorando à vista de todos. A partir desse dia, Márcia se trancava no banheiro para chorar durante o recreio. Chorava também ao final das aulas, enquanto esperava o transporte escolar sozinha e observava, à distância, as outras crianças brincarem juntas. Com o tempo, sentia que ninguém a notava mais, que havia sido esquecida ou ignorada pelos outros.
Falou também sobre sua adolescência e como ficava sozinha em casa com frequência, porque seus pais e sua irmã saíam juntos e a deixavam com a avó, que, segundo ela, "era como se não fosse ninguém, porque não falava nada". Mas, mesmo quando seus pais estavam em casa, ficava trancada no quarto por não ser de falar muito e, por isso, ainda assim sentia-se deixada para trás e na mesma posição da avó perante ela: a de ninguém. O que nutria sua desconfiança em ser adotada, "na verdade isso explicaria tudo" - em suas próprias palavras -, já que suas características físicas eram drasticamente diferentes das de sua irmã, que era "alta, magra e do cabelo bom", enquanto ela própria era "gorda, baixa e do cabelo ruim", e que achava que o tratamento recebido pelas duas também era diferente - "eles gostavam mais dela, conversavam mais com ela".
Já, na idade adulta - durante o período dos atendimentos -, Márcia dizia preferir passar seus dias sozinha em casa e estabelecer o mínimo contato possível com quaisquer outras pessoas, a fim de que sobrasse mais tempo para beber e fumar. Ademais, alegava que a maioria das pessoas é chata e desinteressante e que se relacionar dá muito trabalho. Ainda assim, dizia esperar que alguém aparecesse em sua vida para fazê-la se sentir bem e, segundo ela, "enquanto isso não acontece, eu prefiro ficar com a maconha". Mas, não poderia ser qualquer alguém, tinha que ser: "um homem" que a deixasse "segura", "confortável" e que a "fizesse sorrir". Tal como em algumas oportunidades, dizia se sentir quando começou a usar a droga. Características que, aliás, eram o inverso das que Márcia atribuía à sua família, que, em geral, deixava-a "insegura", "desconfortável" e a "fazia chorar".
Com esse resgate de sua história e impressões, Márcia dizia que sempre se sentiu sozinha, ou melhor: "abandonada" - em suas palavras. Na infância, foi abandonada no banheiro da escola, na adolescência, no quarto da casa dos pais e na vida adulta, em sua própria casa - porquanto, alguém não aparece para resgatá-la. Nessas situações, sempre tinha que lidar com uma angústia perturbadora, que a fazia, inclusive, considerar a morte como uma possibilidade. E, quanto mais se sentia angustiada por se declarar abandonada e não desejada, mais depositava expectativa na chegada de alguém que pudesse acabar com a sua angústia. Segundo ela, queria sentir-se desejada por alguém, assim como julgava sua irmã ter sido por sua família.
Certa feita, depois de ter começado a falar melhor de seu abandono, perguntei-lhe se era a droga quem ela havia elegido para lhe resgatar daquele banheiro da escola, do quarto da casa dos pais e da própria vida que levava morando sozinha. E ela se recordou de algo que pensava ainda quando criança, mas que mantinha como uma espécie de segredo até a vida adulta: já que suspeitava ser adotada, vivia a esperar que sua família verdadeira a viesse buscar. Nesta sessão, Márcia confessou começar a considerar que talvez eles nunca viessem e que talvez ela tivesse que lidar sozinha com as suas coisas.
É importante notar que, frente à sua falta de companhia que dizia de uma história de sentimento de abandono, ela escolhia a companhia da droga. Ou seja, algo de sua história de abandono dizia da sua fantasia da construção de um parceiro sexual e a droga tamponava essa questão. Neste contexto - tal como fazia com o silêncio - Márcia utilizava a maconha e o álcool para remediar uma angústia relativa às suas questões e sempre que destrinchava, por meio da fala, os conteúdos daquilo que a fazia sofrer se esbarrava em sua maneira de utilizar a droga como uma alternativa de escape.
A pergunta que surgia até então era: Seria o caso de Márcia uma toxicomania?
Toxicomania?
Márcia apresentava, na clínica, algumas características que possibilitaram pensar em uma toxicomania. A primeira e mais evidente delas tratava-se da repetição ritualizada que ela apresentava ao fazer da maconha e do álcool recursos para lidar com seu sofrimento psíquico -, como visto nos tópicos anteriores "silêncio" e "abandono". Outra característica, não tão evidente a princípio e que se relacionava com a primeira, dizia respeito ao campo da fantasia, que, em Márcia, se encontrava rarefeito - já que a droga anulava a possibilidade dela se ligar a outros objetos. Isso significa dizer que, no decorrer dos atendimentos clínicos, ela parecia permanecer, na maior parte do tempo, sob forte domínio de uma espécie de empuxo-ao-gozo - que a impelia àquelas repetições -, porquanto, a fantasia parecia não estar fazendo frente ao gozo mortífero da pulsão de morte.
É justamente o que indica Jorge (2010) sobre as toxicomanias, quando diz que a psicanálise chama de toxicômano o sujeito que utiliza a droga em busca de uma satisfação ligada à pulsão de morte e não em benefício do sexual. Essa foi uma das primeiras dúvidas relacionadas à forma de utilização das drogas por Márcia, haja vista que, a princípio, ela também as utilizava para se relacionar com as outras pessoas. Mas, com o tempo, foi possível perceber que as drogas não eram usadas para facilitar o encontro com as outras pessoas, na medida em que curto-circuitava o sexual, diminuindo a angústia relativa à diferença entre os sexos, no que isso remete à castração e as intervenções do Outro. Ou seja, ia de encontro com o que Santiago (2001) dizia ser uma das principais das toxicomanias: usar a droga como uma prótese química para evitar o contato com o Outro.
Lacan, (apud JORGE, 2010), diz que, em última análise, estamos em busca de das Ding - a Coisa - o objeto da pulsão de morte, aquilo que traria a satisfação absoluta à pulsão e que, portanto, seria a própria morte. Assim, toda pulsão almeja das Ding, toda pulsão almeja a morte. E para tanto, todo sujeito é movido por um vetor mortífero, um empuxo-ao-gozo:
O empuxo-ao-gozo é precisamente o sentido desse vetor na direção da morte, concebida por Freud como a anulação radical das tensões internas experimentadas pelo organismo vivo e pelo aparelho psíquico. Esse empuxo-ao-gozo é um empuxo à morte, aquela tendência do princípio do Nirvana de zerar as tensões internas de forma absoluta (JORGE, 2010, p. 140).
É também o que parece dizer Freud (1920/1996), no texto Além do princípio do prazer:
A tendência dominante da vida mental e, talvez, da vida nervosa em geral, é o esforço para reduzir, para manter constante ou para remover a tensão interna devida aos estímulos, (...) tendência que encontra expressão no princípio do prazer, e o reconhecimento desse fato constitui uma de nossas mais fortes razões para acreditar na existência dos instintos de morte (p. 64).
E era com questões como estas que Márcia se esbarrava durante os atendimentos. A tendência do aparelho psíquico a ser regido pela pulsão de morte, somada à compulsão à repetição, relacionada a esse empuxo-ao-gozo, faziam com que ela se sentisse cada vez mais presa e cada vez mais sem saída em uma forma de satisfação, que visava mais do que lhe dar prazer, uma descida à morte e, por isso, esta última era uma questão recorrente em suas falas. Ela chegava a dizer que tinha vontade de querer mais do que fumar e beber; mas, por algum motivo, não conseguia e acabava querendo e escolhendo aquelas atividades que visavam reduzir, ao máximo, qualquer tensão ou trabalho e, que no fundo, sabia que a traziam certa medida de sofrimento.
Mas, se todo sujeito é movido por esse empuxo-ao-gozo e busca, em última análise, como disse Freud, a morte, o que exatamente faz com que não alcancemos êxito? A fantasia, justamente o campo que parecia enfraquecido no caso de Márcia.
A fantasia serve como uma tela protetora do sujeito em relação ao Real. O Real é aquilo da ordem do inominável, fugidio ao sentido, impossível de ser simbolizado. A função da fantasia, nessa definição, é de afunilar o gozo ilimitado do real da pulsão de morte e possibilitar que a pulsão que almeja das Ding, encontre um objeto com o qual se satisfaça de maneira parcial e assim possibilite ao sujeito a continuação da vida. Melhor dizendo, possibilita que, ao invés de uma contínua descida à morte até alcançá-la, a pulsão busque objetos com os quais possa se satisfazer parcialmente em vida. A fantasia é, então, o freio a esse empuxo-ao-gozo na medida em que, através dela, o sujeito consegue fazer frente ao gozo mortífero da pulsão de morte, com o gozo parcial da pulsão sexual (JORGE, 2010).
Segundo Lacan, (apud JORGE, 2010), toda fantasia é fantasia de relação sexual. Isso quer dizer que a fantasia inconsciente serve para fazer com que o sujeito neurótico consiga se relacionar com a realidade objetiva e, nesse contexto, especialmente com as outras pessoas, através de uma realidade psíquica que preencha as lacunas deixadas pelo real, que não pode ser simbolizado. Ou seja, em relação as outras pessoas, a fantasia serve para construir uma espécie de resposta ao real da diferença sexual, uma resposta ao impasse do que está em jogo na castração. Para Jorge (2010), quando Lacan diz do impossível da relação sexual, ele quer dizer da impossibilidade do mito do um, da impossibilidade de que algo ou alguém preencha o sujeito a ponto de colocá-lo frente à completude.
Completude que era, exatamente, o que Márcia parecia buscar no seu consumo repetido e ritualizado de drogas ou esperar que alguém pudesse proporcioná-la.
No que foi dito até aqui, todos os indícios apontavam para um quadro psicopatológico de toxicomania. Mas, por outro lado, Márcia chegou à clínica com algumas demandas definidas - Tinha TDAH, não conseguia conversar normalmente, tinha enjoos, desconfortos estomacais e tonturas - e direcionou-as a mim na expectativa de que eu pudesse curá-la ou lhe oferecesse algum tipo de alívio. Assim, apesar de mostrar certo enrijecimento na tentativa de distanciamento das demandas do Outro, principalmente no que tange ao seu sofrimento relativo às palavras que lhe foram dadas sobre si na infância, mais especificamente em um contexto familiar, Márcia não mostrou dificuldades para estabelecer vínculo transferencial. Chegou, inclusive, a comparecer quatro vezes por semana e pontualmente nos atendimentos - como já mencionado há pouco -, fazer uso de construções e interpretações dadas por mim como uma espécie de auxílio simbólico - na tentativa de abrir uma brecha nas repetições ritualizadas -, e por último, atendendo a um pedido meu, não utilizar nenhum tipo de droga por no mínimo quatro horas antes dos atendimentos.
Destarte, ela havia contraído uma dívida, uma espécie de troca simbólica, sob a égide da transferência, cujo pano de fundo era o encontro com o Outro. Encontro que, em última análise, segundo Santiago (2001), trata-se de algo da ordem da gestação e construção do parceiro sexual, que acontece de maneira estrita no campo da fantasia. E que é uma das principais dificuldades no início do tratamento dos toxicômanos, já que estes usam a droga como uma espécie de prótese química e artificial justamente neste lugar.
E não era isso que Márcia dizia? Sobre as características de seu parceiro ideal serem as mesmas da droga? Alguém que a deixasse segura, confortável e que a fizesse sorrir? Sim! Mas ainda assim - e isso faz toda a diferença -, Márcia o idealizava e o esperava, o que mostra que não estava totalmente enrijecida no uso dessa prótese química para evitar o encontro com o outro sexo e com as intervenções do Outro em sua vida e que, apesar de rarefeito e enfraquecido, ainda existia fantasia. Haja vista que se ela estivesse completamente satisfeita com a sua ligação com a droga e o gozo relacionado a ela, não teria procurado ajuda.
Tanto que, no decurso dos atendimentos clínicos, chegou a diminuir drasticamente o uso das drogas em um período de dois meses, usando só a maconha duas ou três vezes ao dia e, em uma situação de exceção, ficou sem usar maconha por uma semana - período em que, pela primeira vez, chegou sorrindo ao consultório, dizendo estar feliz por ter conseguido um novo emprego e que estava empolgada com as novas possibilidades de criação que lhe seriam dadas. Ela, que era costureira e fazia trabalhos repetitivos, passaria a costurar fantasias para um grupo de teatro. Vale lembrar que os pais de Márcia moravam em outra cidade e, quando ela ia passar alguns dias com eles, não usava nenhum tipo de droga. Dizia que ficava louca para voltar para fumar, mas que segurava bem a onda por lá.
E isso me levou a pensar, em um segundo momento, que não se tratava necessariamente de encaixá-la em um quadro de toxicomania, que existia algo além - já que Márcia não se encontrava totalmente assujeitada às drogas, porque existia uma faísca de desejo e se desejo então sujeito e que, portanto, existia um caminho clínico a ser seguido. E foi ela quem me disse qual era esse caminho, quando o rumo a ser seguido me estava ofuscado: era hora de costurar fantasias.
Costurando fantasias
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio
do caminho Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
(Carlos Drummond de Andrade).
A questão que surgiu a partir destas constatações foi: como costurar fantasias se a droga diminuía à Márcia a possibilidade de investir em outros objetos? A resposta já estava dada e, novamente, por ela: a partir da transferência. Ou seja, pelo lugar que Márcia já havia me colocado na transferência. Esse é, inclusive, o caminho apontado por Jorge (2010): o analista deve entrar nesse circuito como um objeto a ser investido para que o sujeito possa reconstruir um mínimo de fantasia, a fim de que assim possa se frear aquele empuxo-ao-gozo e as repetições ritualizadas sejam enfraquecidas.
Apesar disso, este caminho não se mostrou menos obscuro e trabalhoso, uma vez que ela resistia nos atendimentos com muito silêncio e, por vezes, chegava a dizer não querer mais direcionar atenção para o que sempre acabava aparecendo em sua fala - seu passado e história familiar. Tudo o que eu lhe pedia era que falasse mais e continuasse tendo coragem para enfrentar as resistências, alegando que, se existia dificuldade para abordar o assunto, é porque havia algo importante a ser elaborado. De acordo com Freud (1914/1996), a resistência pode ser ela mesma uma repetição e o primeiro passo para que elas sejam superadas em análise, é que o analista as indique para o paciente, a fim de que ele as reconheça e se familiarize com elas. Dito isto, certa feita, em uma dessas situações, perguntei-lhe se o ato de não querer direcionar atenção àquelas coisas e o silêncio não eram, em si, um modo de repetir o seu passado e ela respondeu dizendo estar imersa em um mundo de repetições, desde os mínimos detalhes aos acontecimentos mais importantes de sua vida.
No final do atendimento em questão, sugestionado por Márcia, não pude deixar de notar quão mecanizados eram seus movimentos, desde só se levantar do divã, depois de eu levantar de minha cadeira, mesmo já tendo interrompido a sessão, a esperar que eu abrisse a porta para que ela saísse. Não pude deixar de notar também como ela me implicava nessas repetições e como essas coisas se repetiram em todas as sessões subsequentes.
Posteriormente, ainda sob a minha insistência de que ela falasse mais, Márcia pode dizer melhor sobre a escolha de seus parceiros sexuais e amorosos. Disse esperar que homem aparecesse em sua vida para lhe fazer se sentir bem, segura e se divertir. Deveria ser um rapaz que não a tratasse como qualquer uma, como dizia que os rapazes que ela se relacionava faziam. Perguntei-lhe por que ela se relacionava com rapazes que a tratavam como qualquer um e ela me disse que não sabia o porquê, mas eram os que ela achava mais interessantes. Aprofundando nesses dizeres, Márcia descobriu que ignorava todos os outros rapazes que se mostrassem muito "pegajosos" e "ficassem muito no seu pé", porque preferia ser ela a decidir quando iria ou não se encontrar com homens e assim acabava escolhendo os que a ignoravam. Descobriu também que os rapazes escolhidos tinham as mesmas características físicas, falavam pouco, eram secos e ainda tinham algo mais importante em comum: uma namorada "magra, bonita e do cabelo bom". Disse que, no fundo, nutria a esperança de que eles largassem de suas namoradas para ficar com ela e que, no fundo, isso era tudo o que ela queria com eles.
Indaguei-lhe se existia ou havia existido outra situação em sua vida em que ela gostaria de ter sido escolhida por algum rapaz com aquelas características físicas, que a ignorasse, falasse pouco e fosse seco, no lugar de uma menina magra, bonita e do cabelo bom - para usar os seus significantes. E ela respondeu: "Meu pai. Meu pai e minha irmã".
Em outra sessão, Márcia disse estar muito preocupada com algo que lhe havia acontecido, a energia de sua casa havia sido cortada por um problema do dono do imóvel com a distribuidora de energia. Todos os outros moradores do local - eram várias casas no mesmo lote - já haviam se mudado, mas ela, uma semana após o corte, insistia em esperar que o "homem resolvesse o problema e viesse religar a sua luz" - em suas palavras -, mesmo ele não atendendo mais as suas ligações. No final desta sessão, já na porta para ir embora, Márcia perguntou-me "E então? O que você acha que eu deva fazer?", respondi, de pronto, sem muito pensar "Você deseja que eu te dê uma luz?", ela disse "Humm" e ficou pensativa, olhando para a maçaneta da porta, esperando que eu a abrisse para que ela fosse embora. Perguntei-lhe: "Você deseja que eu abra a porta pra você?". Ela abriu a porta pela primeira vez, disse "Tchau" e saiu.
Estávamos, enfim, costurando fantasias, que era o que realmente Márcia parecia ter procurado ali, desde o começo. Ela queria costurar a sua história, remendar a sua história, mesmo que isto não lhe fosse consciente.
Mas isso tudo só começou a ser possível a partir de uma grande virada, no que tange à minha percepção do caso, que foi proporcionada justamente pela necessidade - que, diga-se de passagem, foi escancarada por Márcia - de colocar o meu saber sobre a psicopatologia das toxicomanias em segundo plano e deixar emergir o seu saber relativo às suas próprias questões, e, portanto, recolher-me à posição que me era pertinente, desde o princípio dos atendimentos clínicos: a de objeto.
Assim, pude enfim perceber que os significantes que me rondavam em relação ao caso de Márcia estavam me atentando a algo importante. Com o poema "No meio do caminho" de Carlos Drummond de Andrade, que não saia de minha cabeça sempre que eu a atendia, eu estava me fazendo uma pergunta: "Cadê o sujeito que deveria estar aqui?". Que fazia referência especificamente à característica gramatical peculiar do poema de não possuir sujeito: "Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra". O meu espanto revelado com esse trecho, se tratava de um deslocamento, e que, portanto, era de outro lugar: Cadê o sujeito (Márcia) que deveria estar aqui (na clínica)? O que me levou a fazer das palavras do poeta, as minhas, mas parafraseadas deste modo: Nunca me esquecerei desse acontecimento.
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei de que no meio da clínica
Havia um sujeito
Havia um sujeito no meio da clínica
No meio da clínica havia um sujeito.
Alguns poderão dizer que era óbvio que Márcia era um sujeito desde o início, quando bateu à minha porta. Poderão dizer também que era óbvio que se sujeito, então inconsciente, e então desejo, e então fantasia, e que isso tudo me estava sendo evidenciado, desde o início, por via da transferência. Ou que, mais óbvio ainda, é que isso tudo eu já deveria saber, uma vez que me propus a estudar psicanálise e a fazer um estágio final de curso nesta ênfase. Acontece que - e só depois deste percurso pude enfim perceber - que uma coisa é um saber teórico sobre o inconsciente, saber que, aliás, encontra-se aos montes nos mais variados livros e artigos, mas que outra coisa totalmente diferente e carregada de um espanto quase indizível - talvez, por isso, menos mencionado naqueles mesmos livros e artigos - é se deparar com o inconsciente na clínica, é se deparar com o sujeito na clínica, é se deparar com o desejo, com a fantasia e com a transferência, frente a frente.
Portanto, havia um sujeito no meio da clínica e a princípio eu não a via; mas, uma vez que em movimento pelo tripé que sustenta a formação do analista, como mencionado por Freud (1919/1996), comecei a vê-la e este é o primeiro acontecimento mais importante que me foi proporcionado por este trabalho clínico e o que nunca - como parafraseei de Drummond - me esquecerei.
Em sua última sessão, Márcia disse do ódio que sentia pelo pai por todas as coisas que ele havia feito a ela na vida e se lembrou da vontade que sentia, quando criança, em matá-lo. Falou que não teria coragem de fazer uma coisa dessas e que se sentia envergonhada por isso, mas que sempre ficava atenta às notícias na televisão de filhos que matavam o pai, especialmente nas que os filhos haviam se drogado para ter coragem de levar a cabo o ato. Perguntei-lhe se essa lembrança, por algum motivo, estava relacionada ao seu uso de drogas e ela disse "não, tenho quase certeza que não". No final desta sessão, Márcia abriu a porta, saiu e não voltou, até então.
Considerações finais
Em última análise, as drogas eram usadas por Márcia como um recurso para suportar o insuportável do seu dia-a-dia, tanto de acordo com Freud (1930/1996) - como uma medida paliativa mais eficaz e mais grosseira para lidar com as renúncias pulsionais exigidas pela vida em civilização -, quanto de acordo com Santiago (2001) - como uma prótese química para lidar com a castração, a divisão subjetiva e as exigências do Outro.
Isso era presentificado em seus significantes com tudo o que se relacionava ao silêncio e ao abandono relativos à sua história. O que a levava a dizer que as drogas eram usadas como remédios para os seus sofreres e que sem eles não aguentaria viver.
Mas, o uso repetitivo e ritualizado da droga a enrijecia em uma descida para a morte, na medida em que dificultava o investimento em outros objetos, já que, para Jorge (2010), o que dá suporte ao desejo e barra o empuxo-ao-gozo é a fantasia, cujo campo em Márcia se encontrava rarefeito ou enfraquecido. Assim, uma das saídas imagináveis era permitir que Márcia pudesse investir em minha figura enquanto objeto na transferência, para que lhe fosse possível costurar ou reconstruir um mínimo de fantasia que, por conseguinte, lhe permitisse falar mais sobre suas questões e, quem sabe, no futuro, que caminhássemos para uma análise.
Referências
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FREUD, S. (1913). Sobre o início do tratamento. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 139-158. (ESB, 12). [ Links ]
FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 163-171. (ESB, 12). [ Links ]
FREUD, S. (1915). Observações sobre o amor transferencial. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 177-188. (ESB, 12). [ Links ]
FREUD, S. (1919). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 185-187. (ESB, 17). [ Links ]
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FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 73-151. (ESB, 21). [ Links ]
JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, volume 2: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. [ Links ]
QUINET, A. As 4+1 condições de análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. [ Links ]
SANTIAGO, J. A droga do toxicômano: uma parceria clínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. [ Links ]
Artigo recebido em: 17/04/2017
Aprovado para publicação em: 07/11/2017
Endereço para correspondência
André de Paulo Duarte
E-mail: andreduartepsi@gmail.com
Elizabeth Cristina Landi de Lima e Souza
E-mail: elizabethclandi@gmail.com
*Psicólogo/Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC--GO), membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - Seção Goiânia, na condição de participante da formação básica.
**Graduação e mestrado em Psicologia/Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), doutoranda/Universidade de Brasília (UNB), professora na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e na Universidade Federal de Goiás (UFG), membro do colegiado e da formação permanente do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - Seção Goiânia.