Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
A positividade de uma vida em fragmentos
The positivity of a life in fragments
Stephanie Soares Brum*
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
RESUMO
A partir de um recorte sobre a teoria do trauma ferencziano, lançaremos nossas considerações a partir de três pontos: 1) a ideia de um desenvolvimento que se dá em decorrência de um movimento adaptativo à incidência de catástrofes; 2) em seguida adentraremos na teoria do trauma desestruturante proposta por Ferenczi, onde estudaremos de que maneira se dá a fragmentação em decorrência de um evento traumático; 3) por fim nos dedicaremos às considerações de Ferenczi no que tange a uma vida fragmentada. Nosso principal objetivo se funda em tentar apresentar a existência fragmentada como uma forma de organização psíquica distinta da neurose e dotada de positividade.
Palavras-chave: Trauma, Fragmentação, Ferenczi, Catástrofe.
ABSTRACT
Grounded on Ferenczi's trauma theory we will work from three starting points: 1) the idea of a development that occurs as a result of an adaptive movement due to the incidence of catastrophes; 2) then we will study Ferenczi's theory of the destructive trauma, where we will look how fragmentation occurs due to a traumatic event; 3) finally we will look this author's considerations about a fragmented life. Our main goal is based on trying to present the fragmented existence as a form of psychic organization - distinct form neurosis - also endowed with positivity.
Keywords: Trauma, Fragmentation, Ferenczi, Catastrophe.
Introdução
A psicanálise se constitui sobre o terreno do representável, garantindo um lugar e um sentido às formações sintomáticas. Neste contexto, a teoria do trauma surge como uma tentativa de compreender os sintomas histéricos tendo em vista um evento passado. Esta proposição inicial confere ao sintoma uma temporalidade própria, e uma constituição a posteriori de seu evento-fonte. Mesmo após a descrença de Freud em sua neurotica (MASSON, 1986), o pai da psicanálise propõe um modelo de aparelho psíquico no qual o sintoma emerge como fruto de uma trama conflitual, estando assim fantasmaticamente referido a um inconsciente que, em princípio, é atemporal (FREUD, 1900/2006). Esta concepção atrela o sintoma à ideia de uma repetição vinculada à tentativa de satisfação - mesmo que por vias indiretas - de um desejo recalcado (FREUD, 1900/2006). Assim, algo que sofre poucas modificações nos textos freudianos - mesmo diante do abandono da teoria da sedução pela teoria da fantasia - é a ideia de que o sintoma seria provido de sentido, estando referido desta forma à ordem do representável. Em Para além do princípio do prazer (FREUD, 1920/2010) é apresentada uma faceta da expressão sintomática que não se enuncia como repetição promovida pela criação fantasmática do sujeito a partir de um conteúdo desejante inconsciente. As considerações apresentadas neste texto a partir do estudo das neuroses de guerra têm por vista um sintoma que reproduz o evento traumático, dissociado de uma cadeia representacional ou mesmo de uma fantasmática de fundo - que indique o alcance da satisfação de um desejo inconsciente vinculado ao campo do sexual. Neste ponto da obra freudiana podemos reconhecer uma mudança de perspectiva, assumindo uma formação sintomática que, mesmo tendo um lugar na dinâmica psíquica do sujeito, aparece desvinculada de uma cadeia representacional tal como a observada nas neuroses de transferência. Em Construções em análise, Freud (1937/1975) apresenta a função da análise como não apenas referida à interpretação do conteúdo inconsciente, mas, à (re)construção dos fragmentos expressos por meio de lembranças ou mesmo comportamentos do sujeito na situação analítica. Tal afirmativa nos apresenta a problemática da cisão egoica e suas implicações na própria clínica analítica, como um espaço no qual a (re)construção do material decorrente de fragmentos se torna possível. Afinal, esta concepção nos apresenta um psiquismo que persiste, mantendo-se vivo - assim como a seus conteúdos - mesmo diante da destruição (FREUD, 1937/1975).
Adentrando no terreno onde podemos reconhecer a incidência de conteúdos psíquicos desatrelados de uma teia conflitual, assim como a cisão do Eu em fragmentos acessíveis por vias outras que não a associação livre, somos direcionados às considerações de Sándor Ferenczi. Este notável autor húngaro dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo dos ditos "pacientes difíceis", para os quais muitas vezes o dispositivo analítico clássico não era suficiente. A clínica com estes pacientes - que não se enquadravam na dinâmica neurótica - e o reconhecimento de formas de expressão que não seguem os moldes da associação livre (FERENCZI, 1921/2011; 1931a/2011; 1932/2011) levaram Ferenczi a propor uma forma de defesa não referida ao modelo do recalque. Este reconhecido psicanalista húngaro possui como uma de suas mais ricas contribuições - e por muito tempo controversa - a elaboração de complexa teoria do trauma e suas consequências para a constituição do aparelho psíquico. Este ponto de sua teoria se configura como uma fonte valiosa nos dias atuais no que tange ao debate referente a certas formas de adoecimento psíquico assim como ao desenvolvimento da técnica e do enquadre no atendimento clínico destes pacientes.
Ao nos direcionarmos à problemática do trauma proposta por Ferenczi nos deparamos com um ensaio produzido pelo autor em 1924 - reconhecido por Freud em toda sua riqueza no obituário de seu enfant terrible - intitulado: Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (FERENCZI, 1924/2011). Nesse texto, o autor introduz a ideia de que, o desenvolvimento ontológico do sujeito se apresenta como análogo ao desenvolvimento filogenético da espécie. Tal proposição nos leva a reconhecer a própria constituição psíquica como fruto de um processo de desenvolvimento e adaptação que seria desencadeado por catástrofes próprias ao desenvolvimento (que poderiam assumir um caráter estruturante ou desestruturante). Tendo isso em vista, reconhecemos que, aos eventos catastróficos é atribuída importante função na própria constituição do aparelho psíquico. Afinal, é a partir dos movimentos de ruptura que a reconstrução - ou mesmo reorganização - do aparelho é alcançada. Anos mais tarde, em Confusão de línguas entre as crianças e os adultos (FERENCZI, 1932/2011), Ferenczi apresenta os efeitos de um trauma desestruturante para o psiquismo.
A partir do breve panorama traçado no que tange à relação entre sintoma e representação para a psicanálise, assim como ao reconhecimento da problemática do trauma como referida, nesta discussão, a formas de sofrimento relacionadas à categoria do irrepresentável, objetivamos com o presente artigo trabalhar com uma faceta positiva da ocorrência deste evento desestruturante sobre o psiquismo - tendo em vista uma perspectiva ferencziana. Acreditamos que promover um estudo deste movimento destrutivo assim como da vida que persiste por meio de uma existência fragmentada, muito além de um desenvolvimento teórico desta questão, consiste em um posicionamento ético na própria clínica, permitindo lançar sobre estes pacientes um olhar dotado de positividade, adequando o dispositivo analítico às suas necessidades (FERENCZI, 1921/2011; GREEN, 1974/1984). Ou seja, nos possibilita um entendimento da clínica psicanalítica não apenas como uma clínica da interpretação ou mesmo da representação, mas um espaço no qual modalidades muito mais profundas de sofrimento - referidas à própria existência - também podem se expressar, de uma maneira distinta da neurose, mas ainda assim potencialmente rica e viva.
O trauma ferencziano
Tomamos como ponto de partida ao abordarmos a teoria do trauma proposta por Ferenczi as formulações apresentadas em Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (FERENCZI, 1924/2011). Neste texto Ferenczi, inspirado pelas ideias de Charles Robert Darwin (1809-1882), se propõe a traçar paralelos entre a ontogênese e a filogênese da espécie humana. Seguindo as linhas de um desenvolvimento darwiniano, as formulações desenvolvidas por Ferenczi apresentam-se aos moldes de uma odisseia, cuja narrativa se desenvolve lançando grande enfoque sobre a luta pela sobrevivência e o constante movimento adaptativo - e rearranjos sofridos - em decorrência das catástrofes próprias ao desenvolvimento (FERENCZI, 1924/2011). A própria distinção entre os sexos, por exemplo, seria proveniente de uma batalha, na qual o mais forte reivindicaria seu merecido lugar de vitorioso, penetrando o perdedor e assim promovendo a diferenciação entre os dois sexos. Nesse sentido, é atribuída a estes eventos catastróficos uma importante função na própria constituição do aparelho psíquico. Afinal, a partir dos movimentos de ruptura, a reconstrução (ou mesmo reorganização) é alcançada. Ou seja, é em decorrência de uma aproximação entre a história filogenética da espécie e do percurso ontogenético do indivíduo que Ferenczi apresenta a ideia de um desenvolvimento marcado por uma série de catástrofes.
O supracitado paralelo entre a psicanálise e a teoria da evolução de Darwin introduz a concepção de que o próprio desenvolvimento psíquico está sujeito a catástrofes desde seus primórdios. Seguindo as ideias propostas neste ensaio (FERENCZI, 1924/2011), é em virtude dessas catástrofes que se dão os movimentos adaptativos que culminam no desenvolvimento do aparelho psíquico. Ou seja, as ditas catástrofes próprias ao desenvolvimento possibilitam a ocorrência de um movimento adaptativo do aparelho psíquico a partir da reorganização promovida pelo movimento de ruptura e posterior reconstrução/reorganização do modelo anteriormente vigente. Pensando nisso, Knobloch (1998) afirma que a noção de traumático para Ferenczi irá adquirir:
(...) importância fundamental, tanto na clínica quanto na teoria, relativamente à constituição do sujeito. Encontramos em sua obra, como na de Freud, a constituição de uma teoria da subjetividade para dar conta do patológico, mas que ultrapassa a questão da patologia e que aponta para uma concepção do homem em sua relação com a vida (KNOBLOCH, 1998, p. 35).
Vale ressaltar que a proposta introduzida por Ferenczi no que tange à relação entre as catástrofes e o desenvolvimento do sujeito apresenta um lugar de potencialidade que estas podem adquirir. Tendo em vista esse ponto, as próprias relações de prazer e a vivência da angústia seriam experienciadas a partir da incidência de catástrofes. Enquanto a angústia seria proveniente da repetição pelo sujeito das catástrofes sofridas por sua espécie ao longo do desenvolvimento filogenético, o prazer advém justamente do movimento de repetição da sobrevivência àquela catástrofe - a partir da qual uma adaptação à nova forma de vida é requerida do sujeito (FERENCZI, 1924/2011). Ou seja, em Ferenczi podemos pensar em uma angústia muito mais vinculada à destruição iminente do que a uma angústia de castração propriamente dita. Já o prazer estaria relacionado para esse autor a um movimento de vida e sobrevivência, o que, embora enquadre o movimento de descarga, não se restringe a este.
Até esse momento Ferenczi se lança apenas no terreno das ditas catástrofes estruturantes, a partir das quais novas barreiras e organizações surgiriam no psiquismo, se aproximando da imagem darwiniana de um sujeito sobrevivente, fortalecido e adaptado, carregando em seu âmago cicatrizes das batalhas travadas. Em Confusão de línguas entre os adultos e a criança (FERENCZI, 1932/2011), Ferenczi apresenta suas considerações sobre a incidência do trauma desestruturante. Embora sua teoria do trauma se desenvolva a partir do modelo de um abuso sexual (real), suas considerações não se restringem a este campo. Ferenczi propõe uma modalidade de trauma tão visceral que não traria consequências referidas apenas ao evento traumático ou a sua repetição, mas afetaria a própria confiança que o sujeito nutre em relação a suas experiências.
A teoria do trauma ferencziano é então referida à ocorrência de uma situação que não corresponde à antecipação da mesma - forjada pelo indivíduo com base em experiências já vivenciadas - o que o deixa sem referências, devendo se adaptar a esta nova e incompreensível situação (PINHEIRO, 2016). Neste ponto devemos atentar para a importância que o outro adquire no processo de constituição do aparelho psíquico. Para Ferenczi (1909/2011) o sujeito conta com uma figura externa, capaz de atuar como mediadora no contato entre o infante e o mundo, fornecendo a esta subjetividade em formação suas próprias fantasias e percepções do ambiente para que sejam introjetadas juntamente com os sentidos a elas inerentes (PINHEIRO, 1995). Esta relação se mantém até que o sujeito em formação torne-se capaz de introjetar os sentidos dos quais os objetos são dotados por conta própria, como derivados de suas próprias experiências. Desta forma, o desenvolvimento e a constituição psíquica para Ferenczi são provenientes de duas vias, a interna e a externa. Ou seja, por um lado temos um movimento adaptativo interno e as catástrofes próprias ao desenvolvimento; por outro, o encontro com o adulto que atua como mediador do mundo. Tal ponto nos leva a reconhecer que, para este psicanalista húngaro, esse jogo inicial de introjeção é o que possibilita que o sujeito tenha contato com o sentido dos objetos; estes por sua vez providenciam o material necessário para que um tecido fantasmático ou uma cadeia de representações possam se formar, tornando possível para o sujeito "prever" o surgimento de uma gama de situações.
Seguindo estas considerações, o trauma desestruturante seria uma situação na qual a introjeção do evento não é possível, apresentando-o como incompreensível e pondo em xeque a veracidade de todas as representações anteriormente constituídas. Tal ponto lança a teoria do trauma ferencziano no terreno da própria perda de certeza sobre a veracidade da percepção do sujeito sobre o mundo, provocada pela negação do evento traumático - o desmentido - por uma figura de confiança. Dito de outra forma, diante da incompreensão do ocorrido, o sujeito buscaria um outro de confiança - no caso da criança, um adulto -, cujo papel de mediador no processo de introjeção o tornará capaz de ajudar o indivíduo a representar o ocorrido. Não acreditando no ocorrido, este outro o nega, desacreditando a vivência infantil e se excluindo de sua função de objeto da introjeção. Vale destacar que o desmentido (Verleugnung) não precisa ser categórico, pode se expressar no descaso ou descrença no relato infantil por parte do adulto (LEJARRAGA, 2008) que, assim, lança o sujeito em um mar de desconfiança e irrealidade sobre suas experiências, e, consequentemente sobre sua própria existência no mundo (VERZTMAN, 2002), afinal:
(...) são esses adultos que inventam "Sua majestade, o Bebê" - e é dessa invenção que o bebê se apropria e acredita nela. A crença daquele que aposta em Sua majestade, o Bebê é a matéria-prima na constituição da subjetividade da criança e o solo no qual a certeza de si se apoiará. Desse modo, o inventor narcísico torna-se o fiador e será, durante muito tempo, o possibilitador e também a causa do investimento do sujeito no universo da linguagem e da produção de sentidos. Em outras palavras, a certeza de si é a apropriação dessa onipotência; é a partir da onipotência que o outro lhe credita que o sujeito surge afirmativamente; ou seja, com a certeza de si, a invenção narcísica deixa de ser algo passivamente recebido do outro e se torna uma produção do sujeito (PINHEIRO, 2016, p. 140-141).
Verztman (2002) afirma que para que o trauma incida em sua faceta desestruturante não é necessário que o segundo adulto ao qual a criança recorre negue taxativamente a experiência, tampouco que tal vivência traumática se refira apenas à situação de abuso sexual. O autor destaca que para que a experiência adquira o caráter de um trauma desestruturante basta o sujeito se deparar com o não reconhecimento de si mesmo enquanto uma pessoa própria, com necessidades, vivências, e sofrimentos particulares. Diante desta súbita perda de confiança provocada pelo descrédito sobre um sujeito que nutria grande confiança em si e no ambiente - vivendo na ilusão de que tal evento jamais lhe ocorreria (FERENCZI, 1934/2011) - se dá o que Ferenczi chama de comoção psíquica. A comoção psíquica acarreta a perda do sentimento de si e da capacidade do sujeito de reagir visando sua própria defesa, passando a ser moldado pelo meio e não mais seguindo uma espontaneidade que lhe é própria (FERENCZI, 1934/2011). Outro ponto que se instaura em decorrência do desmentido é a incorporação do agressor, e com ele de seu sentimento de culpa (PINHEIRO, 2016).
Diante da incapacidade de fazer valer sua vontade e sair da situação, e completamente submetida aos desejos passionais de um adulto enlouquecido (PINHEIRO, 1995) por uma forma de relação à qual a criança ainda não tem acesso, a única saída desta é submeter-se às vontades do agressor, adivinhando seus desejos. Para tal o infante esquece de si mesmo identificando-se com o adulto. Pinheiro (2016) defende que esta identificação com o agressor se encontra muito mais referida ao modelo de incorporação melancólica do que ao modelo da identificação histérica. Tal distinção se dá na medida em que, enquanto na identificação histérica ocorre a introjeção de traços e sentidos do objeto, na incorporação o objeto recai sobre o Eu em bloco, tornando-se, tal como na melancolia, "posseiro do Eu" (FREUD, [1915]1917/2010).
Por identificação, digamos, por introjeção do agressor, este desaparece enquanto realidade exterior, e torna-se intrapsíquico; (...) a agressão deixa de existir enquanto realidade exterior e estereotipada, e, no decorrer do transe traumático, a criança consegue manter a situação de ternura anterior (FERENCZI, 1932/2011, p. 117).
A citação acima nos leva a questionar o lugar deste movimento de identificação com o agressor, nos fazendo considerar este como um movimento defensivo que preserva a criança da ternura. Ferenczi (1932/2011) propõe uma distinção entre a criança e o adulto no que tange à forma pela qual estes se relacionam. 1) A criança estaria inserida na linguagem da ternura, na qual a sexualidade seria vivenciada de maneira lúdica, e não visando a união genital. 2) O adulto, já inserido na linguagem da paixão recebe as investidas infantis como também referidas à linguagem da paixão, se dando assim a confusão de línguas e o abuso sexual. Além desta distinção de línguas entre as crianças e os adultos, reconhecemos a ternura como forma de expressão do sujeito que ainda não se deparou com a incidência do trauma desestruturante. Deste modo, o estado de ternura representa não apenas a linguagem infantil ainda não inserida em uma sexualidade genital, mas também uma linguagem que permite ao sujeito expressar-se verdadeira e espontaneamente.
É justamente devido ao estado de enlouquecimento ao qual o adulto se vê referido, desencadeando a confusão de línguas, que posteriormente emerge o sentimento de culpa (PINHEIRO, 1995; VERZTMAN, 2002). Assim, juntamente com o agressor introjetado ao qual a criança se encontra identificada vem também o sentimento de culpa do ocorrido, que este desenvolve passado seu estado de enlouquecimento. Em decorrência do trauma sofrido e posterior negação da experiência infantil por um segundo adulto, o sujeito torna-se clivado, ao mesmo tempo inocente e culpado. Contudo, a culpa não é compreensível à criança, afinal esta ainda não tem acesso à ambivalência e à ambiguidade. Devido a isso reconhecemos que o sentimento de culpa se apresenta como um grande mistério para o sujeito traumatizado.
É mais seguro aceitar o sentimento de culpa do que abrir mão do objeto da introjeção. Podemos perceber bem que perder o objeto nesse momento equivale ao risco de aniquilamento, de despedaçamento psíquico. (...) Resta, então, garantir a permanência do objeto a qualquer preço (PINHEIRO, 2016, p. 142).
Diante da impossibilidade de promover uma modificação no mundo, o sujeito realiza em si próprio uma mudança, amputando a criança em frangalhos e preservando-a do ambiente. A esta defesa que consiste na amputação de uma parte de si, denominamos clivagem. O termo clivagem ( Spaltung ) designa cisões no aparelho psíquico, podendo estas ser deveras variadas. No que tange à clivagem em decorrência da incidência do traumático, esta se apresenta como "(...) o selo de uma introjeção impossível" (VERZTMAN, 2002, p. 65) uma vez que se dá em decorrência da impossibilidade de introjeção do evento traumático e sua consequente apropriação pelo sujeito que lhe confere um sentido particular (PINHEIRO, 2016). Tais considerações nos levam à afirmativa de Pinheiro (2016), segundo a qual: "(...) o vivido do trauma é a experiência mais próxima da morte que o sujeito pode sentir sem que haja razões físicas que a justifiquem" (p. 146).
Em decorrência da clivagem de uma parte do Eu, Ferenczi (1932/2011) aponta a ocorrência de um afastamento do próprio potencial espontâneo do sujeito: "Uma parte da personalidade deles, ou o próprio núcleo, permaneceu fixado num certo momento e num certo nível, onde as reações aloplásticas ainda eram impossíveis e onde, por uma espécie de mimetismo, reage-se de maneira autoplástica" (p. 118). Ao que resta do sujeito fica a tentativa de reorganizar-se, constituindo uma personalidade precocemente desenvolvida a partir de um modelo adultificado. A esta frágil estruturação de si em decorrência do trauma chamamos de progressão traumática.
Diferente do movimento regressivo - no qual o sujeito regride a um momento anterior ao trauma na tentativa de torná-lo inexistente - a progressão traumática é um mecanismo que, tal uma "varinha mágica", faz surgir novas faculdades em decorrência do traumatismo. Logo, a criança passa a "(...) manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente pré-formadas nela" (FERENCZI, 1932/2011, p. 119). E assim, qual um fruto bicado, ao perder uma parte de si a criança amadurece antes do previsto desempenhando funções para as quais não se encontra preparada de fato, "(...) essa maturidade adquirida às pressas é devida ao esforço para ultrapassar o sofrimento e a angústia decorrentes do trauma" (PINHEIRO, 2016, p. 157). Juntamente com o amadurecimento precoce surge uma dita sabedoria, da qual o sujeito deve se utilizar a fim de proteger-se, impedindo que o frágil equilíbrio encontrado seja perdido. Ou seja, a supracitada sabedoria adquirida em virtude do trauma promove o cuidado e a proteção que faltaram ao sujeito diante da incidência da catástrofe; protegendo a parte do indivíduo remetida a um estado de ternura, e impedindo possíveis invasões externas no futuro.
Em meio a esta discussão sobre a questão do trauma, não podemos deixar de apresentar a denúncia de Ferenczi no que diz respeito às consequências patológicas que o lugar de neutralidade do analista adquire nesses casos. A dita postura hipócrita do analista consiste em desconsiderar, ou mesmo negar, a realidade de eventos narrados pelo paciente - considerando estes provenientes de uma espessa teia fantasmática -, o que pode acabar provocando uma atualização do evento traumático no tratamento. "A situação analítica, essa fria reserva, a hipocrisia profissional e antipatia a respeito do paciente que se dissimula por trás dela, e que o doente sente com todos os seus membros, não difere essencialmente do estado de coisas que outrora, ou seja, na infância, o fizeram adoecer" (FERENCZI, 1932/2011, p. 114). O autor aponta que seria justamente a capacidade do analista de sair desta postura asséptica de distanciamento do paciente - reconhecendo seus próprios erros, por exemplo - o que possibilita o surgimento de um sentimento de confiança. Este por sua vez seria justamente o sentimento responsável por promover a diferença entre um passado traumático e insuportável e o presente no qual o trauma pode vir à tona, não enquanto reprodução alucinatória, mas enquanto vivido objetivo. Sendo reconhecido em toda a sua realidade e sofrimento, e não desacreditada como uma produção fantasmática a qual deve ser interpretada. Ao conceder um lugar à experiência do sujeito, tomando-a em sua realidade o analista estabelece um "olhar de confiança" (CÂMARA; KLEIN; HERZOG, 2014) a partir do qual um ambiente seguro e confiável pode ser construído; possibilitando a emergência e reconstrução da criança em frangalhos que na ocasião do trauma foi afastada e encoberta. "O paciente sem consciência é afetivamente, em seu transe, como uma criança que não é mais sensível ao raciocínio, mas, no máximo, à benevolência (Freundlichkeit) materna" (FERENCZI, 1932/2011, p. 115). Tal ponto nos leva a considerar que a construção de um enquadramento (GREEN, 1927/2008) no qual o paciente possa ser reconhecido em todas suas mais variáveis formas de expressão e sofrimento, permite a posterior emergência deste fragmento cindido que carrega consigo a ternura e a espontaneidade de outrora.
Refletindo sobre o modelo do trauma apresentado por Ferenczi, percebemos o lugar de destaque que a clivagem do próprio Eu recebe enquanto única defesa possível nestes casos. Uma defesa que se expressa nas linhas de uma afirmação do desprazer (FERENCZI, 1926/2011), à medida que: diante de um grande desprazer, o menos desprazeroso - no caso a amputação de uma parte de si - se enuncia como prazeroso. Afirmar um desprazer diante de um evento traumático não é apenas aceitar a parcela de desprazer à qual o sujeito não pode se furtar - tal qual proposto em Transferência e introjeção (FERENCZI, 1909/2011). No trauma percebemos que: embora uma parte do sujeito seja amputada - clivada -, a vida é preservada e uma nova modalidade do próprio existir torna-se possível. Afinal, a destruição parcial ou mesmo total do Eu precedente torna possível uma neoformação egoica a partir destes fragmentos (FERENCZI, 1990).
Verztman (2002) apresenta um jogo proveniente do lugar de observador e observado decorrente do advento do traumático e da clivagem. O autor afirma que os sujeitos traumatizados não podem ser observados "(...) na medida em que a criança terna sufocada que foram tornou-se radicalmente um outro, passível do olhar apenas por essa característica de identificação com o olhar, e não que o observado ou olhado. Olhar para o que outrora fora seu eu é olhar para o outro, esta é a extensa descontinuidade produzida pela clivagem" (VERZTMAN, 2002, p. 72). Tal ponto nos leva a reconhecer a espontaneidade como referida a esta criança terna, encoberta por uma figura precocemente amadurecida, que carrega em si um agressor introjetado e sua culpa inerente ao ocorrido. Sobre isso Verztman (2002) ainda afirma que "o apego" que o sujeito traumatizado adquire em relação a sua nova posição subjetiva se deve ao fato de ter sido em virtude desta "culpa de ser" que se tornou possível sua separação do outro, construção e assunção da única identidade possível após o evento traumático e o reconhecimento de um desejo que lhe fora dirigido. Contudo, paradoxalmente, ao mesmo tempo que esta "culpa de ser possibilita a manutenção de uma entidade psíquica à qual o sujeito se encontra minimamente referido, também restringe consideravelmente sua sensação de existência. Implicando estes pacientes no lugar de ser observador, no qual, a partir de um lugar de observação constante, se oculta a função de narrador de si. Tendo em vista tais considerações, reafirmamos o lugar desta modalidade drástica de adaptação a um choque inesperado - caráter com o qual o trauma se apresenta - a um movimento de destruição capaz de possibilitar a emergência de uma nova forma de organização psíquica capaz de permitir a manutenção da vida.
Uma existência fragmentada
As considerações expressas em Confusão de línguas entre os adultos e a criança (FERENCZI, 1932/2011) e Reflexões sobre o trauma (FERENCZI, 1934/2011) sobre a teoria ferencziana do trauma seguem a ideia que já havia sido proposta em Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (FERENCZI, 1924/2011) no que tange aos campos da angústia e do prazer. Ou seja, a angústia surge como consequência do traumatismo, desencadeando um desprazer ao qual o sujeito sente-se incapaz de escapar. Esta angústia se encontra referida à própria morte, vinculando-se assim ao irrepresentável. "A morte é, portanto, irrepresentável, inspirando todos os outros irrepresentáveis, sobre os quais se apoiam as crenças, magias e religiões" (KNOBLOCH, 1998, p. 28). Visto isso, percebemos que, diante da morte iminente, a clivagem surge como uma saída vantajosa, se enunciando como um meio eficaz de se furtar ao sofrimento ao invés de permanecer neste desprovido de voz ou controle de sua própria existência (FERENCZI, 1934/2011). Logo, o movimento de autodestruição direcionado a uma parte do próprio Eu surge como uma alternativa à morte psíquica, se apresentando como a expressão de atividade do sujeito ao afirmar um desprazer.
Essa postura ética tomada em prol da manutenção da existência se torna possível graças a um mecanismo psíquico referido por Ferenczi como máquina de calcular, que, a partir de vivências anteriores prevê a saída menos desprazerosa - que, então, será reconhecida como a mais prazerosa (FERENCZI, 1926/2011). No caso de um evento traumático, no qual esta problemática se remete à própria sobrevivência do sujeito, tal mecanismo expressa um papel fundamental uma vez que, além de tornar a escolha possível, também expressa o potencial de direcionamento à manutenção da vida do qual o aparelho psíquico é dotado. Neste ponto devemos nos direcionar à relação entre tendências de vida e morte na obra de Ferenczi.
Assim como Freud (1924/2011) propõe a ideia de que as pulsões de vida e de morte se encontrariam amalgamadas no psiquismo, na obra de Ferenczi também nos deparamos com estreita relação entre as tendências de vida e morte. Segundo Gondar (2017) as tendências de morte também participam do movimento em direção à vida, não lhes sendo assim opostas. A autora ainda completa afirmando não haver diferença de natureza entre Eros e Thanatos, apontando que sua distinção seria proveniente de ritmos distintos inseridos em um movimento vital de maior amplitude. Nesse sentido, reconhecemos que a morte para Ferenczi não termina com o fim da vida. "Todo o universo orgânico e inorgânico tem que ser pensado como uma oscilação perpétua entre tendências no sentido da vida e da morte, em que tanto a vida quanto a morte jamais chegam a estabelecer uma hegemonia. Não existe vida sem participação da tendência de morte" (GONDAR, 2017, p. 171). Contudo, suas considerações divergem da proposta freudiana na medida em que, para Freud Thanatos indicaria um retorno ao inorgânico, enquanto para Ferenczi esse retorno seria impossível uma vez que o elemento primário é a vida - sendo assim o orgânico derivado do inorgânico e não vice-versa (GONDAR, 2017). Apesar deste ponto, na referência de Thanatos a quebra de uma unidade prévia é um ponto em comum na obra dos dois autores. Estas considerações nos colocam diante de uma potência criativa inerente à própria destruição na obra de Ferenczi. Afinal, é a decorrência de um movimento de ruptura com uma unidade anteriormente estabelecida e posterior direcionamento dos fragmentos originados em consequência deste movimento disruptivo a uma nova organização viva.
Se Freud propõe Thanatos como retorno ao inorgânico, em Ferenczi, esse retorno é impossível, já que o elemento primeiro é a vida - é o inorgânico que deriva do orgânico, e não o contrário. (...) Se Thanatos tem relação com a morte, é porque promove a morte de tudo aquilo que é uno: é potência de destruição, impulso de desfazer o instituído - e não retorno ao inanimado. Ferenczi acredita que essas forças destrutivas são imanentes à vida, e imprescindíveis à criação (GONDAR, 2017, p. 171).
Neste sentido, a morte, o movimento de quebra e o próprio trauma são reconhecidos em sua faceta criativa e positiva, participando de uma dinâmica vital mais ampla na qual, da decomposição, resulta uma neocomposição. Logo, o movimento de aniquilação passa a ocupar um lugar de resistência, a partir do qual ocorre a manutenção da vida. Para Ferenczi, o movimento de autodestruição representa uma forma de atividade preferível à submissão total e ao sofrer em silêncio (FERENCZI, 1931b/2011). Tendo em vista as ideias até então apresentadas, somos levados a considerar que a vida para Ferenczi seja dotada de um potencial criativo que busca expressão e almeja reconhecimento, mesmo que para isso a consequência seja a autodestruição. Ou seja, ao reconhecermos o movimento autodestrutivo como um posicionamento ativo do próprio sujeito, este passa a ser a expressão de uma espontaneidade que lhe é própria - capaz de conferir até mesmo ao movimento de autodestruição um colorido particular da existência do sujeito.
O tratamento, para Ferenczi, envolve outra concepção do que seja um sintoma ou um sofrimento. Um sintoma não é o encobrimento de uma falta, a manutenção de um gozo, o indício de que a castração não foi aceita. É o último reduto através do qual o sujeito preserva a sua singularidade, mesmo que para isso não preserve a sua vida. São criações a meio caminho, revoltas que ainda não teriam encontrado suas palavras, protestos que ainda não teriam se transformado, de fato, em afirmação de um modo de viver. Um sintoma psicossomático não é uma encenação ou algo a ser desmascarado, mas, ao contrário, a forma encontrada por aquele sujeito para inventar um corpo em meio às suas dores (GONDAR, 2017, p. 173).
Um ponto do qual não podemos nos abster é a desorientação psíquica promovida pelo desmoronamento da consciência. Esta ideia é trabalhada por Ferenczi em suas Notas e fragmentos (1930-1932/2011) através da afirmação de uma existência que se torna possível a partir dos fragmentos. Deste modo, o autor apresenta a fragmentação como a única saída possível a fim de garantir a continuidade de uma vida psíquica diante dos traumas que trazem consigo a "angústia de morte" (FERENCZI, 1932/2011).
Adentramos aqui nas vantagens da existência fragmentada, que, para este autor seriam: 1) a criação de superfícies de contato maiores a partir da fragmentação, o que possibilita movimentos de descarga mais intensos. 2) Através da fragmentação o sofrimento não se refere mais ao sujeito como um todo, sendo reduzido a apenas uma parcela de si, "(...) faz desaparecer o sofrimento simultâneo de um desprazer de múltiplas faces. Cada fragmento sofre por si mesmo; a unificação insuportável de todas as qualidades e quantidades de sofrimento é eliminada" (FERENCZI, 1930c/2011, p. 282). 3) Devido à quebra de uma vinculação assim como da interdependência dos fragmentos, cada qual torna-se capaz de alcançar uma maior adaptabilidade. 4) Da mesma forma, os fragmentos ganham vida própria, podendo até mesmo adquirir uma "(...) formação nova de realização de desejo a partir dos fragmentos, no nível do princípio do prazer" (FERENCZI, 1934/2011, p. 127).
É justamente em decorrência desta existência tornada possível pelos fragmentos - que apesar de coesos se encontram independentes uns dos outros (FERENCZI, 1932/2011) - que o trabalho associativo não obtém bons resultados com esses pacientes. Do choque não sobrevieram traços mnêmicos capazes de garantir uma memória do ocorrido (FERENCZI, 1934/2011), que apenas pode ser experienciado novamente pela via do afeto que se inscreve na matriz corporal. Pensando nisso, Pinheiro (2016) afirma que "(...) na ausência de uma inscrição psíquica, o corpo guarda em si uma inscrição sensorial. (...) Na abordagem ferencziana, somente o corpo guardou a lembrança do trauma e é ele que se expressa nos silêncios do paciente durante a sessão analítica" (p. 159). Logo, a vivência do traumático passa a expressar-se não mais pelo discurso - ela não se encontra inscrita no aparelho psíquico sob a forma de representação -, mas através de uma linguagem que só pode ser veiculada através do corpo.
Tendo em vista estas questões, Knobloch (1998) reconhece o caráter do traumático justamente nesta impossibilidade de fazer ligações que permitem uma inscrição do evento no sistema psíquico e assim sua representação, o que inscreveria o trauma fora da dinâmica do recalque, referindo-o à ordem da não representação. Ao tecer suas considerações a autora afirma que, para Ferenczi, o não representável se impõe na clínica - já que para este autor nem tudo é recalcado -, devendo o analista assim receber com atenção e reconhecimento esta fala que se expressa não pela via da palavra, mas por meio de uma matriz corporal que tornará o trabalho analítico possível. Por esta via, o analista pode reconstruir o evento traumático, transformando em lembrança o que, em palavras, não pôde ser narrado.
Nesse sentido, reconhecemos que Ferenczi não apresenta a fragmentação como uma destruição do sujeito propriamente dita, mas uma forma de adaptação capaz de garantir a manutenção da vida diante de uma ruptura inesperada. A partir da fragmentação surge não um ser em frangalhos incapaz de existir, mas um indivíduo referido a uma organização outra que não a observada nas neuroses de transferência. Seus escritos abrem caminho para que reconheçamos a reconstrução a partir dos fragmentos como uma forma de existir que não se enuncia como inferior ou superior à organização neurótica; mas, como um modo de sobrevivência distinto que traz consigo as marcas das batalhas travadas e dos desafios superados (FERENCZI, 1930b/2011). Para que seja possível esta concepção o autor propõe uma forma de aglutinação capaz de manter certa coerência entre os fragmentos. Deste modo, a integração subjetiva é descrita como proveniente de um conjunto de forças de autoconservação que promovem a reunião dos fragmentos em uma nova organização (FERENCZI, 1930a/2011), nos levando a considerar um potencial inerente ao próprio Eu para a reorganização de seus fragmentos em uma comunhão que permita a manutenção da vida.
Considerações finais
A partir de um estudo sobre as problemáticas em jogo na trama traumática proposta por Ferenczi, percebemos que, para este autor, as catástrofes marcam um movimento de reorganização do psiquismo em prol da adaptação e consequente conservação da vida. Suas considerações alcançam um refinamento teórico surpreendente ao apresentarem a possibilidade de uma existência que se mantém mesmo diante de uma catástrofe que rompe o sentimento de confiança que o sujeito nutre sobre si mesmo e suas próprias percepções. Um trauma que destrói a capacidade do sujeito de falar sobre si (VERZTMAN, 2002), localizando-se como o resultado de sua história, vivências e percepções, assim como com a capacidade de interpretá-las das mais diversas formas, conferindo-lhes um sentido particular (PINHEIRO, 2016). Além disso, Ferenczi nos leva a reconhecer esta vida que se torna possível por meio de fragmentos como inserida em um lugar de positividade.
A impossibilidade de simbolização da experiência traumática direciona a rememoração do evento traumático a uma linguagem expressa no corpo. Tal ponto nos leva a considerar a importância do estudo da presente temática não apenas ao trabalharmos na clínica com casos em que o viés traumático se expressa com grande complexidade, mas também, em casos mais brandos nos quais a análise clássica em algum momento se mostra insuficiente.
Na psicanálise contemporânea temos encontrado, cada vez mais, a preocupação em entender aquilo cuja representação não se faz evidente. Podemos encontrar, assim, na psicanálise, um espaço em que o irrepresentável encontra uma resistência nem sempre fixa: o irrepresentável estaria do lado do somático ou então do não simbolizável, etc. (KNOBLOCH, 1998, p. 21).
Nesse sentido, conferir um lugar de positividade a esta temática, nos permite um desenvolvimento da própria técnica em prol de adaptá-la às necessidades destes pacientes que não se encontram referidos ao terreno das neuroses de transferência. Colocando-nos em um lugar de implicação no qual se torna possível reconhecer o sofrimento particular destes sujeitos - que denuncia seu próprio despedaçamento - como uma forma de expressão positiva, que carrega as marcas das catástrofes que incidiram sobre eles - das quais não apenas sobreviveram, mas se constituíram em toda sua singularidade e riqueza particular. Este lugar distinto decerto permitirá, em análise, a construção de um meio confiável, no qual se torna possível resgatar, dar corpo, voz e lugar aos fragmentos sufocados e silenciados deste sujeito.
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Artigo recebido em: 02/02/2018
Aprovado para publicação em: 19/04/2018
Endereço para correspondência
Stephanie Soares Brum
E-mail: stephanie-brum@hotmail.com
*Mestranda em Teoria Psicanalítica do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).