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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

ARTIGOS

 

Os primórdios da psicanálise e a construção da noção de fantasia

 

The beginnings of psychoanalysis and the construction of the phantasy notion

 

 

Renata Dahwache MartinsI*; Ingrid VorsatzI**

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em suas pesquisas etiológicas em relação à clínica das neuroses, mais especificamente a da histeria, Freud se vê diante de um enigma: a problemática da fantasia. Legitima o relato de sedução das histéricas através de uma teoria que abandona em 1897, ao constatar tratar-se de uma cena, atribuindo-lhe realidade psíquica, comparando o seu mecanismo ao da criação literária e alocando seu estatuto entre realidade e ficção. A partir de uma revisão bibliográfica da obra freudiana e recorrendo pontualmente a Lacan e outros autores, pretendemos discutir as proposições iniciais de Freud sobre a fantasia, destacando seu estatuto ficcional e, não obstante, dotado de efetividade, problematizando sua articulação com a realidade psíquica e a criação literária.

Palavras-chave: Psicanálise, Fantasia, Realidade psíquica, Ficção, Criação.


ABSTRACT

In the etiological researches about the clinics of neuroses, in particular, of hysteria, Freud founds himself facing an enigma: the problematic of phantasy. Freud legitimizes the hysterics' discourse through a theory, which is abandoned in 1897. He notes that it is a scene, ascribing it psychic reality and comparing its mechanism to the literary creation - setting the phantasies in face of reality and fiction. Starting from a bibliographic review of the Freudian work, recurring to Lacan and other authors, we intend to discuss Freud's early notions about phantasies, highlighting its fictional statute, and, notwithstanding, granted with effectiveness, in order to problematize the phantasy question in its articulation with the psychic reality and notions of literary creation.

Keywords: Psychoanalysis, Phantasy, Psychic reality, Fiction, Creation.


 

 

Introdução

Em sua Autobiografia Freud (1925/2011) confessa não ter se sentido atraído por nenhuma disciplina médica durante o curso de medicina, a não ser pela psiquiatria. Gradua-se em 1881, quando recebe o título de doutor em ciências médicas. Inicia seu percurso não na prática clínica, mas no laboratório de Ernst Brücke, eminente fisiologista alemão. Apenas um ano mais tarde seu mestre o aconselha abandonar os estudos laboratoriais e teóricos, vista a precariedade de sua situação financeira. Assim, Freud ingressa no Hospital Geral de Viena, onde inicia a prática médica.

Brücke havia lhe sugerido o estudo sobre a medula espinhal de um peixe inferior e Freud inclina-se ao estudo do sistema nervoso central humano. Época florescente para a neurologia, que contava com as recentes descobertas de Fleischl sobre o período de formação das bainhas de mielina, tecido adiposo que envolve as células nervosas e que, por ser um isolante térmico, permite a condução mais rápida e eficiente dos impulsos nervosos através do neurônio. Porém, os estudos sobre anatomia cerebral tampouco permitiam-lhe uma subsistência digna. Freud, então, se volta para o estudo das doenças nervosas (FREUD, 1925/2011).

Segundo seu relato, os doentes dos nervos encontravam-se dispersos pelo Hospital Geral de Viena e sequer havia um mestre que lhe guiasse o caminho. Enquanto isso, na França, o estudo da neuropatologia já rendia ao neurologista Jean-Martin Charcot fama e renome. Decidido a encontrar quem guiasse seus estudos sobre as doenças nervosas, Freud pleiteia uma bolsa de estudos, que lhe é concedida pela Universidade de Viena: passaria mais de quatro meses no Hospital de La Salpètrière, em Paris, e um mês em Berlim, a fim de aprofundar o estudo em neuropatologia (FREUD, 1886/1977). O contato com Charcot alterou substantivamente o rumo de seu trabalho, que se desdobrou em afluentes afastados de suas pesquisas iniciais, estritamente anatômicas, e passou a seguir o curso da investigação clínica.

O encontro com Charcot é um marco na vida profissional de Freud. Em suas aulas demonstrativas, o grande neurologista francês produzia em seus pacientes histéricos paralisias e contraturas através da sugestão hipnótica e, assim, visava provar a autenticidade e a regularidade de uma sintomatologia da histeria - algo que não fora empreendido até então. À época, histeria era o diagnóstico conferido aos pacientes cujos sintomas desafiavam a anatomia e, consequentemente, o próprio saber médico, e seus portadores não eram considerados mais do que simuladores (FREUD, 1888/1977).

Charcot, ao contrário, aposta no fato clínico como fio condutor de suas pesquisas. Sobre isso, há um episódio anedótico que causara forte impressão em Freud: durante uma aula, o médico francês produzira um sintoma que gerara espanto na plateia de estudantes e de médicos presentes, interessados pelo enigma da histeria. Um dos presentes se levantara e objetara com veemência, afirmando que aquele sintoma não correspondia à mais recente teoria sobre a histeria, à época. Charcot lhe respondera: "La théorie, c'est bon, mais ça n'empêche pas d'exister" (A teoria é boa, mas isto não impede que [o fato clínico] exista) (CHARCOT apud FREUD, 1893/1977, p. 23). É a clínica que guia a teoria, e não o inverso - conforme uma máxima da medicina, a clínica é soberana (FOUCAULT, 1977).

É precisamente em razão de sua experiência com a clínica da histeria que Freud atenta para a questão da veracidade do relato dos pacientes. Para a maior parte dos estudiosos e clínicos da época, os sintomas histéricos não constituíam uma questão clínica legítima, eram considerados simulações, devido a sua ocorrência difusa, sem causalidade orgânico-biológica. Freud, sob a influência inicial do método catártico, criado por Joseph Breuer, respeitado clínico judeu vienense, decide escutar o que estes pacientes tinham a dizer sobre sua enfermidade. Ambos procuravam, a partir da sugestão hipnótica, trazer à tona as lembranças supostamente traumáticas que, por esta razão, constituiriam a base etiológica da histeria. Traumático, aqui, entendido como carregadas de afeto desprazeroso, vale dizer, de um quantum energético. Em linhas gerais, o método de Breuer pressupunha a descarga deste afeto através da fala, talking cure, a cura pela palavra, conforme denominado por sua mais conhecida paciente, Anna O., caso clínico paradigmático publicado em Estudos sobre a histeria (BREUER; FREUD, 1895/2016).

Freud abandona gradualmente o uso da hipnose e se afasta por completo do método catártico quando adota a regra fundamental da psicanálise, a associação livre [Einfall], que, por sua vez, pede que o paciente apenas fale, sem preocupar-se com o conteúdo que lhe ocorrerá, ainda que lhe soe estranho ou inadequado (FREUD, 1914/2012). Frente à fala de seus pacientes, Freud se depara com lembranças de conteúdo erótico na quase totalidade dos casos - ponto que marca o afastamento radical do método catártico e de seu outrora par, Breuer, logo após a publicação da referida obra, em coautoria.

Eis que Freud se depara com o enigma da fantasia - teriam estas cenas de fato ocorrido? Em caso negativo, como e a partir do que são formadas? Qual seria sua função? Questões que povoavam seus pensamentos, sobretudo a partir de 1897, ano de sua autoanálise, como pode-se entrever em sua correspondência com o médico otorrinolaringologista alemão, Wilhelm Fliess, seu interlocutor privilegiado à época. Em quase todas as cartas enviadas naquele ano ao amigo, Freud revela suas investidas teóricas acerca daquele fenômeno que observa em seu trabalho clínico. Em 31 de maio de 1897, envia a Fliess um rascunho em anexo à carta em que apresenta uma dessas investidas: a surpreendente afirmação de que "o mecanismo da ficção [Dichtung] é idêntico ao das fantasias histéricas" (FREUD apud MASSON, 1986, p. 252).

É frente ao caráter enigmático desta proposição que pretendemos problematizá-la. Nossa questão norteadora, a qual pretendemos abordar, sem esgotá-la, é investigar o que Freud aponta sobre o funcionamento inconsciente ao fazer esta espécie de equivalência entre o mecanismo da Dichtung, que pode ser traduzido de maneira geral como criação poética ou ainda, literária, e aquele em jogo nas fantasias histéricas. De forma que, de partida, uma questão se coloca: se as fantasias são comparadas à ficção e, ainda assim, repetidamente, Freud lhes confere uma efetividade real, qual seria o estatuto dessa ficção teórico-clínica?

 

A etiologia da histeria e a sexualidade

Em 1894, Freud sistematiza a noção de "neuropsicoses" a partir de seus mecanismos psíquicos de defesa, decorrentes de um trauma psíquico. Remete-se a duas visões correntes à época sobre a questão da divisão da consciência. De um lado, o psicólogo francês Pierre Janet, discípulo de Charcot, trata este fenômeno como sendo um traço primário de alteração mental, como uma deficiência na capacidade de realizar uma "síntese" psíquica, associando-o à degenerescência, em conformidade com os pressupostos vigentes ao final do século XIX. De outro, o clínico vienense Joseph Breuer, com quem Freud já trabalhava na futura publicação dos Estudos sobre a histeria (1895/2016), sustentava que esta divisão seria secundária, decorrente de um primeiro evento caracterizado por uma falha de comunicação entre diferentes estados mentais (estados de consciência e estados hipnoides). Para Breuer, a divisão seria decorrente destes estados hipnoides, nos quais certas representações são excluídas da série associativa, havendo uma divisão da consciência, de caráter patológico.

Freud distancia-se dessas duas concepções. A divisão que sustenta está relacionada ao conteúdo da consciência. Acompanhando sua argumentação, haveria uma força exercida pela consciência a fim de suprimir uma parte do conteúdo de uma lembrança, cuja impressão causada culminaria em um trauma psíquico (FREUD, 1894/1977). Em consonância com os seus achados clínicos, haveria uma incompatibilidade que diria respeito ao conteúdo sexual de uma lembrança que desencadearia o mecanismo de defesa e ocasionaria a divisão psíquica.

Neste ponto, Freud ainda não faz uma afirmação categórica sobre o papel da sexualidade na etiologia da histeria, apesar de assinalar sua importância. É apenas dois anos mais tarde, numa carta a Wilhelm Fliess datada de 1º de janeiro de 1896, mais precisamente no adendo à carta conhecido como Rascunho K, que a sexualidade é identificada como a condição etiológica das neuroses. Na referida carta, trata a hereditariedade como uma precondição adicional, mas retira de cena seu protagonismo como base etiológica das neuroses. A causa do aparecimento de uma neurose se daria a partir de "um dano ao eu", de um trauma psíquico, desde que este satisfizesse duas condições: tivesse natureza sexual e ocorresse antes da maturação sexual propriamente dita, isto é, antes da puberdade.

Naquele mesmo ano, Freud publica um artigo endereçado não apenas a seu interlocutor Fliess, mas à comunidade acadêmica, no qual sustenta que o sexual não é apenas uma influência, mas, sim, a causa específica das neuroses, que "tem como fonte comum a vida sexual do sujeito, quer as modificações patológicas funcionais residam num distúrbio de sua vida sexual contemporânea, quer em fatos importantes de sua vida passada" (FREUD, 1896/1977, p. 88). A experiência sexual desencadeadora de neurose seria traumática, ou seja, uma carga excessiva de afetos penosos estaria fixada à lembrança de um evento ocorrido na vida do paciente, mais precisamente na infância. Ao sustentar a sexualidade como causa das neuroses, Freud rompe radicalmente com as principais teses sobre a etiologia da histeria de sua época.

 

A pesquisa etiológica diante do enigma da histeria: Freud e seus (ím)pares

Após ter sustentado perante a Sociedade de Psiquiatria e Neurologia proposições sobre o fundamento etiológico da sexualidade nas neuroses, Freud envia a Fliess uma carta que marca seu afastamento da comunidade científica, mantendo-se firme em relação a sua descoberta clínica mesmo após a "recepção gélida" por parte de seus pares (FREUD apud MASSON, 1986, p. 185). Dentre estes, se encontrava o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, conhecido por sua publicação Psychopatia Sexualis (obra de referência nos estudos sobre a sexualidade, à época), que afirmou, em tom pejorativo, que os estudos freudianos mais pareciam um "conto de fadas científico" (FREUD apud MASSON, 1986, p. 185).

Paulatinamente, Freud também se afasta de Breuer, com quem havia acabado de publicar os Estudos sobre a histeria em 1895, projeto em que empreenderam um estudo etiológico em conjunto a partir da compilação de casos de histeria, em relação aos quais havia sido utilizado o método catártico para o tratamento dos sintomas dessa afecção. O ponto de disjunção é, justamente, a hipótese freudiana sobre a etiologia sexual das neuroses. Veremos a seguir a construção feita pelos dois médicos a fim de isolar o que fundamenta a chamada "teoria do trauma" e o método terapêutico que lhe corresponde, denominado "catártico".

Em 1895, ambos os médicos procuravam incessantemente pelas cenas traumáticas, pesquisando um lastro de realidade a fim de que, ao emergirem na lembrança de suas pacientes, através da fala, elas se veriam livres de seus sintomas. A descarga motora do afeto ligado à lembrança penosa ou traumática consistia na ab-reação, objetivo do método catártico concebido por Breuer. A busca por um substrato de realidade parecia ser compartilhada por Breuer e Freud. As cenas traumáticas seriam momentos específicos e datáveis, geralmente atribuídos à tenra infância, isto é, a um acontecimento real na história do doente, que teria causado uma grande impressão (carregado de afeto) e que foi esquecido. Freud e Breuer (1893/2016) apontam a relação entre um trauma ocorrido na infância e o sintoma histérico, estabelecendo entre ambos uma relação de causa e efeito - ou seja, uma hipótese etiológica. Reiteram que a causa do trauma não é o fato ou evento em si mesmo, mas o afeto desprazeroso ligado a este, bem como o seu esquecimento, configurando um trauma psíquico.

Ao afirmarem que os histéricos sofrem de reminiscências (BREUER; FREUD, 1893/2016), os autores se afastam da hipótese de Charcot de que o trauma seria decorrente de uma lesão orgânica, e atribuem um valor traumático ao afeto penoso fixado a uma lembrança, até então, esquecida - isto é, ausente da consciência. Assim, há uma mudança de paradigma etiológico no tratamento da histeria. Atribuem a essas descobertas um valor prático, isso porque o trauma não atuava apenas como um agent provocateur, como supôs Charcot, em que, ao desencadear o sintoma, o tornaria independente e permanente. Freud e Breuer (1893/2016) sustentam que a lembrança traumática, embora "esquecida", é um agente atuante no presente. Há um aparente paradoxo: as reminiscências, das quais o histérico sofre, são lembranças que o paciente não se recorda - a causa atua, portanto, em sua condição de ausência (da consciência do doente). O paradoxo é constitutivo da própria hipótese etiológica: na origem da histeria estaria uma lembrança que, precisamente por não poder ser lembrada, atua como causa - digamos, ausente - do sintoma histérico atual. O germe do conceito de Inconsciente (das Unbewusste), formalizado apenas em 1900, está posto.

Faz-se mistér ressaltar esta mudança de paradigma no tratamento da histeria: ao colocar os afetos em palavras através da ab-reação (descarga motora ligada à lembrança traumática), o sujeito histérico se via livre de seus sintomas - ao menos temporariamente. Seu valor prático é notado no método catártico, baseado, como vimos, no pressuposto de que é possível eliminar o afeto ligado à lembrança através da fala: "recordar sem afeto é quase sempre ineficaz; o processo psíquico que ocorreu originalmente deve ser repetido da maneira mais viva possível, levado ao status nascendi, e então 'expresso'" (BREUER; FREUD, 1893/2016, p. 23).

A teoria do trauma, como ficou conhecida, seria sustentada por Freud durante alguns anos, sendo o pilar de sua investigação clínica inicial, no que hoje podemos reconhecer como seus estudos ditos pré-psicanalíticos - isto é, anteriores à formulação do conceito de inconsciente em 1900, considerado como o marco zero da psicanálise. Desde a Comunicação preliminar (1893/2016), ao ter afirmado com Breuer que os histéricos sofrem dessas lembranças que, paradoxalmente, não são recordadas, Freud buscou decantar dos relatos de seus pacientes o lastro de realidade das cenas traumáticas.

 

A teoria da sedução como hipótese etiológica

Conforme deixa claro na carta enviada a Fliess em 30 de maio de 1896, Freud aloca a etiologia da histeria junto a cenas sexuais prematuras ocorridas em tenra infância, antes dos quatro anos de idade, que teriam ocasionado um trauma psíquico que, por sua vez, é revivido na puberdade. Acredita que algo similar aconteceria na neurose obsessiva e na paranoia, apenas com a diferença de que na primeira a cena teria acontecido até os oito anos de idade, enquanto na segunda a cena traumática ocorre tardiamente, próxima à puberdade. Tal teorização já seria uma revisão do que havia exposto a Fliess no Rascunho K. Neste, situa a sexualidade como sendo a causa (etiologia) das neuroses, conforme mencionado anteriormente. Na ocasião, Freud atribuía à atividade (neurose obsessiva) ou ainda à passividade (histeria) do sujeito o caráter traumático da experiência sexual precoce - e não mais à idade em que ocorrera a cena traumática.

Ao final de 1896, em outra carta ao médico alemão, Freud admite a hipótese da sedução por parte do pai como a marca distintiva da etiologia nas neuroses, sendo esta sedução, muitas vezes, a própria cena traumática. A teoria da sedução pretende não apenas isolar o caráter sexual da etiologia das neuroses, mas situar a gênese dos mecanismos de defesa decorrentes da cena de sedução. Nesta cena, o sujeito sofreria passivamente alguma situação de conteúdo sexual, seja por parte de uma criança mais velha, seja por parte de um adulto- em geral, o pai. O trauma, então, ocorreria em dois tempos: no primeiro, a criança é exposta precocemente a uma situação de sedução; em um segundo tempo, após a maturação sexual, o trauma retorna pela via sintomática.

No entanto, em 21 de setembro de 1897, ano em que iniciara sua autoanálise, em carta enviada a Fliess que veio a se tornar paradigmática, Freud trilharia um novo rumo: afirma não mais acreditar em sua neurotica (teoria das neuroses). Ao sustentar sua descrença na teoria de sedução por parte de um adulto, constata a impossibilidade de afirmar que em todos os casos o pai (de seus pacientes, sem excluir o seu próprio) haveria de ser um perverso. Isto seria um contrassenso, tendo em vista que a ocorrência de perversões teria que manifestar-se em maior número em relação à histeria - que dela resultaria. Portanto, a teoria da sedução não era coerente com sua minuciosa observação clínica. Era preciso revê-la.

Além disto, Freud se depara com a falta de indicações de realidade no inconsciente, não sendo possível distinguir a verdade e a ficção. Apesar de se deparar com uma desilusão teórica, caracterizada pelo reconhecimento de não saber onde se situava naquele momento, Freud não deixa de afirmar que o psicológico se mantém um ponto inalterado em sua teoria e que o "livro sobre o sonho" (que seria publicado em 1900 sob o título Traumdeutung) continua sendo válido. Aqui, "inconsciente" é ainda utilizado como adjetivo, característica da não vigília; o Inconsciente, substantivado, estava em vias de ser formulado enquanto conceito, com a publicação do "livro dos sonhos", em 1900. É durante a elaboração da Interpretação de sonhos que esta carta é escrita, apontando que aquilo que dizia respeito ao funcionamento do inconsciente se mantinha íntegro - justamente no ponto de indiferenciação entre realidade interna e externa, isto é, indicando que a realidade psíquica tem efetividade [Wirklichkeit] própria. Abrem-se os caminhos para a investigação de uma realidade outra - a outra cena [eine anderer Schauplatz] inconsciente.

Esta formulação fornece o solo para a elaboração da noção freudiana de fantasia, de que trataremos adiante. Esta carta se mostra paradigmática não apenas por expor o percurso do ávido pesquisador, se deparando com as dificuldades e obstáculos inerentes ao trabalho teórico-conceitual, mas, ainda, por revelar o ponto do qual Freud partira para fundamentar sua criação, a clínica da histeria, afirmando a soberania do fato clínico em relação à teoria.

 

A criação freudiana: o inconsciente

No prefácio à terceira edição inglesa, redigido em 1931, Freud afirma que A interpretação de sonhos trata da "mais valiosa descoberta" que pôde fazer - descoberta tal que só "ocorre uma vez na vida" (FREUD, 1900/2012, p. 13). Mais de trinta anos após a primeira publicação da obra inaugural da psicanálise, sem nunca ter modificado aquilo que sustentara, apenas acrescentando notas e trechos, reconhece o caráter fundamental da conceituação do Inconsciente e a consequente fundação do campo psicanalítico.

O termo inconsciente foi empregado na língua inglesa pela primeira vez em 1751 e, posteriormente, foi difundido na Alemanha, mais especificamente, pelos românticos alemães - "como um reservatório de imagens mentais e uma fonte de paixões, cujo conteúdo escapa à consciência" (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 375). No entanto, o sistema psíquico inconsciente tal como Freud o formula, institui uma concepção inteiramente outra. Conforme reitera Lacan (1964/2008), o inconsciente freudiano difere radicalmente das noções de inconsciente que o precederam e, ainda, "não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante" (LACAN, 1964/2008, p. 31).

Desde o empreendimento em sua autoanálise, no verão de 1897, Freud utilizava o termo "inconsciente", sobretudo em cartas a Fliess. Conforme tratamos acima, na carta de 21 de setembro de 1897, afirma a impossibilidade de distinguir realidade e ficção. Problemática candente que começara a ser tratada desde o Projeto (1895), quando, ainda sem ter formulado o sistema inconsciente, afirma que uma alucinação é percebida tal como uma percepção, não sendo possível diferenciá-las.

O capítulo VII do livro Interpretação de sonhos, no qual o modelo de aparelho psíquico em sistemas ou instâncias será elaborado por Freud, é considerado por Ricoeur como herdeiro do Projeto para uma psicologia científica (RICOEUR apud GARCIA-ROZA, 1994). No referido Projeto, Freud pretendeu sustentar em bases neurofisiológicas e anatômicas o funcionamento de um aparelho psíquico que fosse suficiente para explicar os fenômenos com os quais se deparava na clínica. Garcia-Roza (1994) ressalta diferenças profundas entre o Projeto de 1895 e a Interpretação de sonhos: nesta última não há nenhum referencial ou suporte anatômico e nela Freud não trata mais de uma energia cujo suporte seriam os neurônios, mas sim de representações psíquicas em si mesmas inconscientes, carregadas de desejo (Wunsch).

Fruto de seu trabalho clínico, o Inconsciente (das Unbewusste) é conceituado na Interpretação de sonhos como sendo de ordem tópica. Tópico, aqui, a título de um lugar psíquico que não tem suporte ou correlato anatômico. Freud (1900/2012) assinala que a outra cena psíquica (anderer Schauplatz), desconhecida como é, não pode ser abordada diretamente, "a não ser por representações auxiliares" (FREUD, 1900/2012, p. 564). O aparelho psíquico concebido como sendo composto por sistemas interdependentes, é proposto como um instrumento óptico, em que as diferentes instâncias psíquicas funcionariam como lentes em sua articulação recíproca, conforme ocorre em um telescópio.

A hipótese freudiana é a de que há uma direção no funcionamento do aparelho em que a atividade psíquica, em geral, partiria de estímulos e desembocaria em inervações motoras. Para isto, propõe duas extremidades, uma sensível, que recebe as percepções, e outra motora, que as escoa em motilidade (FREUD, 1900/2012).

Das percepções que chegam à extremidade sensível, restam traços no aparelho psíquico, que Freud denomina traços mnêmicos, aos quais a capacidade rememorativa estaria associada. Apoiado em seu estudo prévio com Breuer, Freud (1900/2012) afirma que conceber um único sistema impõe dificuldades com relação à conservação de modificações em seus elementos e, ainda, manter-se aberto a novas ocasiões de modificação. São concebidos, portanto, dois sistemas: um que não tem capacidade de memória, mas que se mantém aberto a novos estímulos (sistema perceptivo); e outro em que há a capacidade de modificações da percepção em traços (sistema mnêmico). O sistema de percepção/consciência, portanto, se manteria apenas aberto a novas percepções, sem capacidade de memória, enquanto os traços mnêmicos seriam inscritos no sistema Inconsciente.

Para tratar da instância inconsciente, Freud toma o sonho como fenômeno psíquico fundamental. A formação do sonho, que decorre de uma série de processos não arbitrários e determinados, passa por "disfarces" para que seja possível a representação do desejo inconsciente enquanto realizado. Diz Freud que no inconsciente prima o processo primário - sendo o secundário responsável pela censura. Assim, supõe que o processo secundário submete o sonho a uma instância crítica, que se encontra como um anteparo entre a instância criticada e a consciência. Ao substituir os termos de instância crítica pelo modelo de sistemas, Freud chega à hipótese de que esta instância crítica se encontra na extremidade motora, chamada de pré-consciente, indicando que através deste é possível emergir à consciência (FREUD, 1900/2012).

O Inconsciente é, então, o sistema que há "por trás" do pré-consciente, pois não tem acesso à consciência, exceto quando algo irrompe. Este "por trás" não implica uma leitura em que o inconsciente seria, então, uma espécie de subsolo da consciência. O esforço de Freud, pelo contrário, é marcá-lo como outro sistema psíquico, regido por suas próprias leis, que se distingue topicamente dos sistemas consciente e pré-consciente.

Para fundamentar sua hipótese, Freud traz à baila o argumento do filósofo Theodor Lipps (1897), que havia afirmado que a questão do inconsciente não seria uma questão psicológica, mas a questão psicológica propriamente dita. A psicanálise se demarca de outras concepções pela instituição de uma inteiramente nova, afastando-se da ideia filosófica de que o que é psíquico corresponde ao que é consciente - logo, que processos psíquicos inconscientes seriam um contrassenso.

Ao trazer a observação clínica, pilar de sua nova ciência, ratifica a existência e confere efetividade à outra cena, inconsciente:

O inconsciente é o psíquico propriamente real, tão desconhecido para nós segundo sua natureza interna, quanto o real do mundo externo; ele nos é dado pelos dados da consciência de maneira igualmente tão incompleta quanto o mundo externo pelas informações de nossos órgãos sensoriais (FREUD, 1900/2012, p. 640).

Neste trecho Freud aponta para a opacidade do inconsciente, que não emerge à consciência sem passar pelo trabalho do processo secundário de distorção e de censura. Além disto, aponta para a efetividade dos fenômenos do inconsciente: só terão existência se houver um psicanalista a recolher os seus efeitos - diante de uma fala endereçada a ele, sob transferência (FREUD, 1900/2012). Aqui, nos adiantamos.

A psicanálise funda um novo discurso, como uma teoria da clínica que se distingue radicalmente de qualquer outra teoria, ainda que esta possa abordar o inconsciente, como por exemplo, a própria teoria de Lipps. O que marca o inconsciente freudiano é sua conceituação e o reconhecimento da realidade psíquica como uma "forma especial de existência" (FREUD, 1900/2012, p. 648).

 

Fantasia e lembrança

Até a carta enviada a Fliess em 21 de setembro de 1897, quando afirma não acreditar mais em sua neurótica, Freud havia mencionado o papel das fantasias em sua vasta correspondência com o médico alemão. No entanto, não a instituíra como noção central na etiologia das neuroses, mas apresentara sua construção através de um trabalho intenso de pesquisa clínica. Desde suas concepções iniciais, a fantasia se erguera como obstáculo a uma suposta cena real de sedução.

Foi diante do fato de que realidade e ficção não são distinguíveis no funcionamento inconsciente - uma das razões pelas quais se viu impelido a abandonar suas teorias iniciais - que Freud pôde forjar a noção de fantasia e, conforme aponta Strachey (1950/1996), elevá-la a um papel central em relação aos eventos psíquicos. As portas se abrem também para a descoberta da sexualidade infantil e para a conceituação do complexo de Édipo - questão nuclear das neuroses.

Em 6 de abril de 1897, Freud envia a Fliess uma nova elaboração na qual afirma que a solução da histeria residiria nas fantasias histéricas, emergência e produção inconsciente. Noutra carta, datada de 2 de maio do mesmo ano, Freud afirma que uma noção segura sobre a histeria é considerá-la a partir da reprodução de cenas passadas, sendo que algumas poderiam chegar diretamente ao paciente e outras seriam fantasias que "se erguem em frente a elas" (FREUD apud MASSON, 1986, p. 240).

As fantasias, ficções protetoras, remontariam "a coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas" (FREUD apud MASSON, 1986, p. 240, grifo do autor). Como nota Silva (2014), o termo utilizado é nachträglich, traduzido pela expressão latina a posteriori, caracterizando a temporalidade própria da psicanálise. A fantasia, portanto, é significada em um momento posterior. Nota-se, assim, que Freud começa a esboçar que o que está em jogo nas reminiscências ligadas à fantasia, apontando que não se trata apenas de uma rememoração, mas de que há uma construção presente na fantasia e, ainda, que é apenas através desta que é possível alcançar as cenas traumáticas. A fantasia é construída a título de proteção diante da cena sexual primitiva, todavia, não especificada neste momento.

No adendo a esta carta (Rascunho L), Freud (1897) assinala que as fantasias seriam, de uma parte, o caminho pelo qual se trilharia até as cenas primevas e, por outra, as fachadas psíquicas, que obstruem esse caminho. Reafirma que as fantasias são fabricadas de material verdadeiramente vivenciado, sobretudo de "coisas ouvidas" que é rearranjado em "estruturas protetoras", como embelezamentos, com o objetivo de certo alívio por parte do sujeito, pois a realidade lhe seria por demais desprazerosa. Assim, parecem ter dupla função: mantêm as lembranças vivas, ao passo que têm uma característica encobridora, impedindo o acesso às recordações desprazerosas.

No adendo (Rascunho M) à carta de 25 de maio de 1897, Freud envia um breve ensaio a Fliess sobre as fantasias, no qual sustenta que a formação destas se dá por "amalgamação e distorção" (p. 248), numa comparação química, os elementos seriam rearranjados nestas "ficções inconscientes" (p. 248). Esta elaboração coincide com a afirmação que faz na carta subsequente (31 de maio), no Rascunho N: "o mecanismo da ficção [Dichtung] é idêntico ao das fantasias histéricas" (FREUD apud MASSON, 1986, p. 252). Isto é, a Dichtung, criação poética, também resultaria do rearranjo de traços, assim como a fantasia, em relação aos traços mnêmicos e os restos de "coisas ouvidas". A fantasia, portanto, não se confunde com a função da memória: há um rearranjo de traços que, em si mesmos, não têm significado, resultando em uma criação/ficção.

Na carta de 7 de julho de 1898, Freud afirma que a formação das fantasias ocorre por uma reprojeção no passado - de um passado fantasiado que se transforma em um presente profético. Segundo a nota de Masson (1986), Lotie Newman, tradutora para o inglês escolhida por Anna Freud, atenta para o fato de Freud usar a palavra vorgeschoben, colocado à frente, que remete a uma ideia transposta, como em um cenário móvel, para frente de algo, e que, desta forma, fica encoberto. Assim, o presente profetiza aquilo que terá acontecido no passado com o objetivo de encobrir alguma coisa que não pode ser revelada, como Freud já havia notado ao nomear as fantasias como ficções protetoras.

Em 1899, é publicado um artigo no qual Freud aborda certo tipo de lembranças que encontra em sua prática, contribuindo para o entendimento da noção de fantasia. Constata que existem algumas lembranças da mais tenra infância que, apesar de sua aparente banalidade, têm uma descrição vívida no relato do paciente adulto, com riqueza surpreendente de detalhes. Nota que é demasiado comum não se recordar com tanta nitidez dos eventos deste período, ainda que seja incontestável a importância da infância na vida de um sujeito - na maior parte dos casos observados por Freud, as primeiras lembranças remontavam apenas aos seis ou sete anos.

Compara essa amnésia comum em relação aos eventos da infância com aquela que seria patológica, na qual aquilo que é o mais importante - e que supõe que desencadearia os sintomas - é precisamente o que foi esquecido. Freud constata que a amnésia infantil não pode ser explicada em termos biológicos, não pode ser tomada como uma falha na capacidade de memória da criança, uma vez que com quatro ou cinco anos o cérebro já estaria plenamente pronto e capaz para tal tipo de função.

Este tipo de lembrança é denominado "encobridora" de algum conteúdo que foi omitido -tornando-as banais por este motivo, pois o que seria realmente digno de nota teria sido velado pelo encobrimento. A partir desta constatação, Freud (1899/1977) atribui duas forças psíquicas, que não se anulam ou predominam uma sobre a outra, envolvidas na produção deste tipo de lembranças: uma que procura lembrar o evento que as teria ocasionado e outra que institui uma resistência a elas. A lembrança encobridora seria o resultado deste conflito: o que se produz é outra imagem mnêmica, que até certo ponto foi deslocada associativamente daquela que se ocultou, substituindo-a.

Como afirma Freud (1899/1977), a lembrança encobridora é reconstruída a partir de traços mnêmicos rearranjados. Desta maneira, sustenta que as lembranças não advêm da recordação de um fato, mas que são formadas ao serem recordadas, ao serem relatadas. Assim, Freud distingue a memória de uma função de armazenamento, pois o sujeito está ativamente implicado na construção de suas lembranças.

Se por um lado, Freud atribui um lastro de realidade ao conteúdo da lembrança, de outro, também reitera seu papel fictício e encobridor. Mostra-se crucial destacar, na carta de 21 de setembro de 1897, sua afirmação de que o conteúdo psicológico de seus achados se mantinha como um ponto inalterado, precisamente ao admitir não mais acreditar em sua teoria das neuroses. Pois, dentre todo o empreendimento teórico que havia desenvolvido até então, aquilo que dizia respeito ao psíquico, ao funcionamento inconsciente (avant la lettre), se manteve íntegro.

Frente ao fato de que não seria possível distinguir realidade e ficção no inconsciente, Freud não atribui à narrativa de seus pacientes um caráter falseado, ao contrário, constata que a realidade psíquica exigia ser tomada por seu valor de realidade psíquica. Fazê-lo representa uma virada epistemológica de Freud, por assim dizer. Ainda que já fosse concebida como produtora de sintomas na teoria da sedução, como vimos nas cartas a Fliess, é apenas ao conferir à realidade psíquica uma efetividade que Freud pôde atribuir à fantasia um papel central na composição do sintoma neurótico como realização de desejo. De enigma, a fantasia passa a ser considerada por Freud como uma "chave" (MASSON, 1986, p. 341-343), aquela que fornece ao sujeito o acesso à realidade.

 

Brincar, fantasiar, criar

Em 1908, Freud publica um artigo, proveniente de uma conferência realizada ao final do ano anterior, no qual aborda a relação entre fantasia e criação literária. Canônica e equivocadamente traduzido para o português pela Edição Standard Brasileira como "Escritores criativos e devaneios", intitula-se Der Dichter und das phantasieren - literalmente, "O poeta e o fantasiar", conforme a tradução recentemente proposta por Chaves (2015). Comecemos, pois, analisando os termos do próprio título.

Em seu próprio âmago, o substantivo Dichter (poeta/criador) revela a complexa relação entre ficção e realidade. Dichter provém do verbo dichten, que no dialeto alto alemão antigo tinha dois significados principais. Em um primeiro sentido, mais amplo, significava inventar, imaginar, compor. Tais significados tinham conotação negativa, sendo associados ao engano e à ilusão. De outro lado, em um sentido mais específico, o verbo dichten significa conceber/criar um poema ou um texto literário, não mais no sentido de um caráter enganoso. De uma forma geral, podemos traduzir o substantivo Dichter como o poeta, isto é, aquele que cria por meio de palavras (DÉCULTOT, 2014).

Já o termo alemão corrente Phantasie é definido como "imaginação" por Laplanche & Pontalis (1967/2016) no sentido da atividade de criar. Baladier (2014) sublinha que Phantasie significa tanto a fantasia, quanto a atividade criativa. No entanto, o termo é multívoco e ao utilizá-lo, Freud tece uma concepção de fantasia que extrapola uma visão estática; ao contrário, evidencia a dinâmica da criação da fantasia, visto que o termo diz respeito tanto à fantasia neurótica, quanto à atividade criadora em geral. Rivera (1995) destaca que Freud, ao utilizar este termo tanto para tratar da criação literária, quanto da neurose, revela que é na relação com a realidade que ele será problematizado. Postos ambos os termos em evidência, vejamos como Freud desenvolve seu argumento.

Perguntando-se como o Dichter procede em seu processo de criação, Freud (1908/2015) aproxima-o de uma atividade comum na cultura: o brincar infantil. A criança, tal qual o poeta, cria seu mundo e o poeta cria um mundo que leva a sério, investindo grande quantidade de afeto nesta atividade - assim como a criança. Ambos emprestariam à realidade os elementos que a constroem. Assim, o brincar e o fantasiar aproximam-se em sua estrutura. No entanto, observa que o adulto não mais brinca, mas utiliza-se da fantasia - não renunciando ao prazer, tal como era obtido na brincadeira.

Porém, Freud observa que o adulto não revela suas fantasias, as mantém em seu íntimo e envergonha-se com a sua exposição, já que estas têm como fonte um desejo que deveria permanecer oculto - indicando o desejo inconsciente como força impulsionadora da fantasia. O acesso a esta é possível apenas através do trabalho clínico, sobretudo a partir da histeria. O Tagtraum (sonho diurno, devaneio, fantasiar) revela a fantasia, considerada pelo autor como seu sinônimo, sendo análoga ao sonho. Assim como o sonho, a fantasia também articula uma realização de desejo deformada (FREUD, 1908/2015).

Freud afirma que, ao invés de pensá-la como uma construção semelhante a "castelos no ar" (p. 58), assim como os sonhos diurnos, a fantasia traz amarca do tempo. Haveria três tempos em sua criação: o trabalho psíquico partiria do presente, por meio de uma impressão atual que desperta uma lembrança do passado em que o desejo fora realizado e, a partir de então, cria uma situação lançada ao futuro, apresentada como realização de desejo. De forma que, "passado, presente e futuro se alinham como um cordão percorrido pelo desejo" (FREUD, 1908/2015, p. 58).

Mutatis mutandis , assim também seria o processo de criação literária: uma vivência atual desperta no poeta/escritor (Dichter) uma lembrança antiga, da qual partiria o desejo que será realizado através da Dichtung, criação (FREUD, 1908/2015, p. 62). Porém, há a ressalva de que a revelação da fantasia desperta, via de regra, desprazer. No entanto, os leitores de uma obra literária a consideram uma atividade prazerosa: como isto seria possível? Freud (1908/2015) afirma que este êxito prazeroso é tributário da Ars poetica. Há um ganho de prazer estritamente formal, estético, oferecido ao leitor na exposição de suas fantasias com "uma libertação das tensões de nossa psique" (FREUD, 1908/2015, p. 64). Aquele que usufrui do produto da arte poético-literária não há que se haver com a realização de desejo inconsciente articulada pela própria criação literária, uma vez que o poeta (Dichter) tomou para si esta responsabilidade, conforme destacam (VORSATZ; MARTINS, no prelo).

É a propósito da ficção, da criação literária (Dichtung), que Freud equipara o mecanismo das fantasias histéricas. Tal qual observado anteriormente acerca do vocábulo Dichter (poeta/criador), também o substantivo Dichtung é um termo sem tradução precisa para outras línguas, mas que, dentre as suas diferentes acepções, encontramos: "poesia", "criação literária" e, de forma mais ampla, "ficção". A língua alemã dispõe dos substantivos Literatur, Poesie e Fiktion e, ainda que o sentido presente em Dichtung circule entre estes vocábulos, está para além deles. Conforme aponta Décultot (2014), os germânicos tendem a definir Dichtung como uma operação específica de linguagem, que indica a criação através das palavras. O universo criado nesta operação não é sem consequências, não é menos real do que a realidade factual, tal como é concebida no mundo sensível, dos fenômenos-logo, não se opõe a este (DÉCULTOT, 2014).

A autora indica a importância da noção de Dichtung no Romantismo alemão, que ganha peso com a publicação de Dichtung und Wahrheit, usualmente traduzido como Poesia e verdade, de Goethe. Em suas memórias, Goethe indica reiteradamente que não se trata de opor a poesia (Dichtung) à verdade. Isso não passa despercebido a Lacan (1954/1980) que, quando trata da estrutura daquilo que chama de mito individual do neurótico, isto é, daquilo que a fantasia encena como realidade decisiva, não deixa de assinalar que Goethe organiza suas memórias como ficções que intentam preencher as lacunas "que ele não tinha, sem dúvida, o poder de preencher de outro modo" (LACAN, 1954/1980, p. 72).

Ao olhar de Freud isto tampouco escapa quando se remete à noção de lembranças encobridoras para tratar de um fragmento das célebres memórias de Goethe. Ao fazê-lo, destaca uma passagem de autoria do poeta alemão que muito se aproxima do que ele próprio encontra mediante o trabalho clínico: "quando queremos lembrar de algo que nos aconteceu na mais tenra infância, ocorre frequentemente o caso de que aquilo que ouvimos de outros se confunde com o que nós realmente lembramos, visto a partir de nossa própria experiência" (GOETHE apud FREUD, 1917/2015, p. 259). Isto é, de que o trabalho da formação de uma lembrança implica uma construção por parte do sujeito, um rearranjo de traços, de restos de palavras e "coisas ouvidas", conforme assinala Freud (1897).

O que estaria em jogo naquilo que Freud aponta sobre o funcionamento inconsciente ao equiparar o mecanismo da fantasia ao da criação literária ou, ainda, da própria criação? Se não há uma lembrança que está lá e que cabe ao sujeito rememorá-la, é preciso que haja uma construção por parte do sujeito. Nesse sentido, a própria rememoração é um ato de criação de uma realidade não factual, mas, sim, ficcional.

De acordo com Lacan (1954/1980), a fantasia aproxima-se do mito por, ao se articular em palavras, engendrar uma verdade - que tem uma estrutura de ficção. A fala, por sua própria estrutura, não apreende a verdade como objetiva; antes, a exprime de maneira ficcional, mítica. A palavra está fadada a exprimir a verdade (e não a dizê-la toda). A fala é justamente aquilo que não pode ser todo dito enquanto tal - há sempre um resto a ser contornado. Para Lacan, o caráter indubitavelmente ficcional do mito indica haver uma estrutura que o engendra. No que lhe diz respeito, a ficção tem relação com algo para além dela, algo que ela traz -a dimensão da verdade. "A verdade tem uma estrutura, por assim dizer, de ficção" (Lacan, 1956-57/1995, p. 259).

A fantasia, posta por Freud (1897) como uma ficção protetora diante da cena traumática sexual, tal como construída no relato dos pacientes, indica o recobrimento de algo que não diz respeito a uma realidade factual, datável e verificável. A fantasia é a própria realidade, não havendo outra que estaria recoberta, como aponta Jorge (2010); assim, uma suposta realidade objetiva está, de partida, perdida.

Não é sem consequências que Freud (1908/2015) retoma o fantasiar em relação ao fazer literário: anuncia a relação do fantasiar com a realidade e, pari passu, demonstra uma correspondência entre a criação literária e a fantasística. A fantasia revela seu mecanismo equiparável à criação poética (Dichtung) uma vez que, ao se articular em palavras, engendra uma realidade própria, que tem efeitos reais - a fantasia é a realidade psíquica, a realidade decisiva no inconsciente (1917/1977).

Tecida pelo fio do desejo, a fantasia se destaca do mundo externo, conservando-se como uma reserva decorrente do princípio de prazer no momento de instauração do princípio de realidade, isto é, se mantém livre em relação às exigências da vida (Not des Lebens).

 

Considerações finais

Remetemo-nos aos primórdios da psicanálise a fim de investigar o que está posto na construção teórico-conceitual da fantasia inicialmente empreendida por Freud em sua relação com a realidade e a ficção. Pretendemos sustentar que ao conferir à fantasia seu estatuto de realidade psíquica, Freud indica o que está no âmago de sua teoria da clínica: não há distinção entre realidade e ficção no que tange ao inconsciente - a realidade psíquica é a realidade decisiva (FREUD, 1917/1977), visto que tem efetividade própria. A fantasia em sua função de ficção protetora é a própria realidade psíquica, que não recobre a realidade factual, já que esta está, de partida, perdida (JORGE, 2010).

Ao articular o mecanismo da fantasia ao da criação poética (Dichtung), - portanto, linguageira - Freud (1897) assinala que se não há a lembrança de um evento a ser resgatada pela função da memória, é preciso que um sujeito, implicado naquilo que diz, trabalhe. Se a verdade concernente ao desejo não está dada, mas é uma criação na qual o sujeito está implicado, então cabe-lhe responsabilizar-se por esta realidade com estrutura de ficção. Conforme afirma Lacan (1959-60/2008), é no interior do movimento basculante entre realidade e ficção que a experiência freudiana se coloca - esse é o ponto fulcral da experiência analítica, que implica a emergência de uma verdade que concerne ao sujeito. Uma verdade que, em sua estrutura de ficção, só pode se tecer mediante a linguagem. Conforme Freud, a experiência analítica se baseia "no amor pela verdade, isto é, no reconhecimento da realidade, excluindo toda e qualquer aparência e falseamento" (FREUD, 1937/2017, p. 355). O que é produzido através do endereçamento transferencial articula uma verdade, aquela do desejo inconsciente.

 

 

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Artigo recebido em: 10/03/2018
Aprovado para publicação em: 04/09/2018

Endereço para correspondência
Renata Dahwache Martins
E-mail: rdahwache@gmail.com
Ingrid Vorsatz
E-mail: ingrid.vorsatz@uerj.br

 

 

*Graduada em Psicologia/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante da pesquisa Psicanálise e literatura - o campo da palavra e da linguagem como práxis.
**Professora adjunta do Instituto de Psicologia/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do curso de especialização em Psicologia Clínica Institucional - modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Coordenadora da Comissão de Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde (COREMU-UERJ). Coordenadora da pesquisa Psicanálise e literatura - o campo da palavra e da linguagem como práxis.

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