Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
Psicanálise: presente e futuro
Psychoanalysis: present and futuro
Urias Arantes*
Université Sorbonne Paris I - França
RESUMO
Fala-se bastante hoje não somente de um novo mal-estar na cultura, mas também da necessidade de uma nova clínica que esteja à altura do novo desafio. O artigo se interroga particularmente sobre a tendência ao abandono da livre associação, posto que os discursos dos analisandos não obedeceriam mais às leis da linguagem e da humanização, e questiona os pressupostos de uma nova economia psíquica.
Palavras-chave: Mal-estar na cultura, Repressão, Recalque, Sublimação, Técnica clínica, Preliminares.
ABSTRACT
Today not only is a new discontent in culture often discussed, but also the necessity for a new clinical practice capable of rising to the challenge. This paper particularly questions the analyst's tendency to abandon free association, reasoning that the discourse of the analysand seems not to obey the laws of language and humanisation. This paper also examines the pressupositions of a new psychic economy.
Keywords: Discontent in culture, Repression, Sublimation, Clinical practice, Preliminary interviews.
deus absconditus1
au commencement était la Perte
et la Perte était avec dieu
et la Perte était dieu
au commencement était le Manque
et le manque était avec dieu
et le Manque était dieu
au commencement était l'Absence
et l'Absence était avec dieu
et l'Absence était dieu
naquit alors le Poêtre
Não parece esgotada a questão de saber se Le malaise dans la culture (FREUD, 1929/1995)2 é ainda, para nós, um texto fundamental para a compreensão da aventura coletiva. As interrogações de Freud são ainda as nossas? As ferramentas conceituais que criou nos são ainda úteis? As respostas elaboradas por Freud ainda alimentam nossa reflexão? E as perguntas levantadas e deixadas sem resposta são enigmas que ainda nos concernem?
Tais perguntas são relevantes apenas se consideramos o Malaise um texto importante do corpus freudiano e não apenas como o passatempo estival de um espírito entediado. E também se pensamos que seu interessse diz respeito aos destinos da psicanálise mais de um século após seu nascimento. Ninguém contestará que a psicanálise não dispõe mais da mesma força provocadora que teve entre as duas guerras mundiais, e sobretudo após a segunda até o fim dos anos 1970, na Europa e nos Estados Unidos. A exceção talvez seja a América Latina, onde a psicanálise parece estar ainda plena de vigor. As possibilidades de renovação dos objetos, problemas e métodos nas ciências ditas humanas que ela inaugurou parecem pelo menos parcialmente esgotadas. Os próprios psicanalistas podem ter contribuido para tanto na medida em que se contentam em gerir as aquisições teóricas e técnicas, imprimindo-lhes às vezes uma coloração pessoal pouco significativa. Consequência inevitável: os colóquios se tornam comemoração ou ritual de culto ao chefe, os seminários se contentam com a ruminação de esquemas sagrados, ausência de debate e de conflito, as escolas se caracterizam pela lei da fidelidade servil, etc. Há no entanto, na França, uma espécie de frente comum (pouco eficaz!) contra os progressos (crescentes!) do comportamentalismo e da medicalização do sofrimento psíquico.
Um tal destino talvez seja inevitável. Significaria então que o projeto freudiano de provocar, graças à descoberta do inconsciente, uma mutação na história humana e em nosso narcisismo não foi nada mais do que a doença infantil da psicanálise? Na França, um fator importante talvez seja o quase monopólio da análise pelos psiquiatras, algo que é favorecido pelo sistema de reembolso das consultas pela Sécurité Sociale que não reconhece a psicanálise.
Totem et tabou e L'homme Moïse et la religion monothéiste são o primeiro e o último de uma série de textos de Freud que E. Jones atribuiu às aplicações não-médicas da psicanálise, como se não fizessem parte da doutrina (JONES, 1961). Uma outra leitura desses textos sugere que eles exploram e discutem hipóteses necessárias ao aprofundamento da natureza e do sentido da descoberta fundamental do inconsciente. Se a psicanálise faz parte da psicologia entendida como "ciência da alma" e é seu fundamento, ela não pode ignorar a dimensão "histórica" da alma humana (a filogênese, nos termos de Freud). Depois de Lacan, a psicanálise é pensada sobretudo em termos de "estrutura" ou de "existenciais". Os textos ditos "culturais" ou "antropológicos" não são simples aplicações, mas explorações que reconsideram a subjetividade à luz da Psicologia Social e vice-versa. Como prova, basta lembrarmos da noção de superego.
Há alguns anos entre psicanalistas fala-se de uma nova economia psíquica3 de novas modalidades de subjetivação e de transmissão ligadas à transformação na estrutura familiar edipiana e ao novo liberalismo no plano econômico, social e político. Os efeitos sobre a linguagem são notáveis e parecem exigir novas técnicas clínicas. Para Freud, o mal-estar resultava do caráter repressivo e sublimador da cultura, tornando impossível o acordo entre o trabalho cultural e o programa do princípio de prazer. Menos afetadas pela repressão e menos aptas à sublimação, as mulheres foram consideradas inimigas da cultura e guardiãs da sexualidade e da família. Uma (pequena) parte da humanidade vive hoje em sociedades cada vez menos repressivas, sem que haja aumento aparente das chances de felicidade. Pelo contrário, os efeitos sobre os indivíduos são mortíferos.
Contradição ou enfoques diferentes? Freud teria se enganado a respeito da relação entre processo cultural, sublimação e repressão? Pode-se pensar, como acontece, que o declínio da repressão e da sublimação corresponde ao declínio do processo cultural, e está nos conduzindo à barbárie? Dito rapidamente: não estamos aí diante de dois enfoques diferentes, o enfoque antropológico (mítico? estrutural?) de Freud centrado sobre a questão da origem da sociedade, e o enfoque sociológico centrado sobre a compreensão do atual à luz de invariantes da condição humana? Se tal é o caso, quais são os pressupostos e quais são as consequências?
A tese liminar do Malaise dans la culture é a afirmação de uma incompatibilidade radical entre processo cultural e felicidade coletiva. O indivíduo pode chegar a um certo equilíbrio entre os dois programas contraditórios de seu aparelho psíquico - o princípio de prazer e o princípio de realidade - um equilíbrio que poderia se chamar felicidade. Mas o trabalho coletivo da cultura implica o sacrifício do princípio de prazer, impondo às pulsões eróticas e agressivas um desvio ou uma inibição quanto à finalidade. O mecanismo em jogo aqui recobre as noções de recalque, de repressão e de sublimação necessárias ao processo cultural em diferentes níveis e momentos4. A cultura - quer dizer, o conjunto de realizações, dispositivos e instituições graças ao qual nos afastamos da condição animal5 - tem uma dupla finalidade: proteger o homem contra a natureza e organizar as relações entre os homens. Embora esteja em jogo a sobrevivência da espécie, a cultura não visa apenas a utilidade, pois o inútil caracteriza vários bens culturais: a beleza, a limpeza, a ordem ou a valorização das atividades psíquicas. A cultura se mede, segundo Freud, pelo critério do modo como se inventam as relações entre os homens enquanto vizinhos, aliados, objetos sexuais, membros de uma família ou de um Estado. Acrescento: e enquanto inimigos.
Deixando de lado o preconceito do progresso (a perfectibilidade das Luzes), Freud vê o processo cultural como o conjunto das modificações impostas às predisposições pulsionais, como o conjunto das renúncias à satisfação, sobretudo nas relações entre os homens, renúncias que provocam hostilidade contra a ação da cultura e que qualquer cultura precisa neutralizar. É a chave do mal-estar, a saber, o modo como a cultura "retira à pulsão sua satisfação" (FREUD, 1929/1995, p. 41). É aí também que Freud compara o processo cultural coletivo e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. A comparação lhe permite descrever o que influenciou o processo cultural na sua origem e que determina seu curso posterior. Esses três aspectos são elaborados por Freud numa perspectiva evolucionista (mítica ou antropológica) e são retomados por Jacques Lacan estruturalmente, dando ao édipo o caráter de um conflito estrutural (LACAN, 1960/2009, p. 56) que falseia radicalmente a sexualidade humana.
Relembremos apenas os momentos fortes da elaboração. No início, o que reune os homens é a necessidade do outro para enfrentar os perigos da natureza e para obter satisfação erótica. A família primitiva está na fronteira da cultura e nela reina um acordo harmonioso entre Eros e Anankê, os dois pilares da cultura humana. A ruptura da harmonia ocorre por razões eróticas, já que os filhos não gozam de uma posição satisfatória.
A etapa seguinte é a sociedade dos irmãos. O laço social que ela engendra é uma função do modo como ela se originou. Na família primitiva o pai tinha o poder ilimitado sobre as mulheres e as crianças, pois é ele quem, conservando perto de si seu objeto sexual, protege igualmente a criança, essa "porção destacável da mulher" (FREUD, 1929/1995, p. 43). Privados de satisfação erótica, os filhos matam o pai, experimentando assim a superioridade da força da união e, prolongando a experiência, impondo-se restrições tais como o tabu (primeira figura do "direito") e a inibição do amor quanto à finalidade (perda da univocidade erótica). A energia do amor inibido é a verdadeira força cultural da união entre os homens, mais potente que a necessidade, que a utilidade ou os interesses, mas é também uma força polivalente. É uma das razões da oposição freudiana (que não pode escapar da critica de "misoginia"!) entre as mulheres e o trabalho cultural que exige dos homens o desvio de boa parte da energia psíquica dirigida às mulheres. A relativa incapacidade feminina para a sublimação deve-se ao fato de que não participaram no drama do parricídio, donde resulta também sua fragilidade moral e um pobre sentimento de justiça. Na família primitiva, as mulheres são passivas (diante do pai) e conservadoras (diante dos filhos). A comunidade dos irmãos é poderosa face a cada indivíduo e o lugar das mulheres é o de objetos proibidos que se tornaram objetos de troca, embora Freud sugira em Totem et tabou a existência histórica do matriarcado após o parricídio, prevalecendo até a criação da família patriarcal (FREUD, 1912/1965, p. 202).
O ideal cultural do amor ao próximo emerge para ocultar a pulsão agressiva e tentar neutralizá-la, pois o outro não é apenas uma ajuda e um objeto sexual possíveis, mas desperta a inclinação à agressão e ao homicídio. A pulsão de morte está presente no âmago do laço social e, para controlá-la, a cultura se dá como ideal ético o mandamento do amor ao próximo, as identificações e as relações amorosas inibidas quanto à finalidade. Daí a restrição da vida sexual, mas também o que impede a dissolução da sociedade. E também o aparecimento de um novo problema para a cultura: como conservar a competição entre os homens sem despertar o ódio? Freud reconhece e recusa três soluções: o comunismo, o bode expiatório e uma política conduzindo à "miséria psicológica das massas", uma espécie de identificaçao horizontal dos membros do grupo que lembra a expressão de Nietzsche: "um só rebanho, nenhum pastor".
De qualquer modo, a restrição da sexualidade e da agressividade tornam incompatíveis felicidade e processo cultural. O leitor pode aqui lembrar o "pessimismo" de Freud quanto ao anseio de felicidade dos homens, mas de modo algum imaginar que Freud está condenando a cultura em nome de uma valorização do pulsional. A cultura é um processo erótico, mas Eros deve se transformar e compor com a pulsão de morte. A determinação fundamental da cultura é o combate entre Eros e Tânatos, razão pela qual Freud afirma que "o desenvolvimento da cultura deve ser mais justamente qualificado de combate vital da espécie humana" (FREUD, 1929/1995, p. 65).
A analogia entre processo cultural e desenvolvimento individual permite a Freud compreender o primeiro como emergência de um superego cultural, correlato ao sentimento de culpa e arma de guerra contra a agressividade que é, então, interiorizada, assumida pelo superego que a exerce contra o ego. O ego obedece à injunção do superego pois teme perder o amor, desenvolvendo assim uma "angústia social" (FREUD, 1929/1995, p. 67). A dificuldade é que a renúncia pulsional não é liberadora, pois na angústia da consciência moral se estabelece uma equivalência entre o ato mau e a intenção má. A consciência moral não se satisfaz com a obediência à autoridade externa e interna, mas exige uma obediência impossível, a obediência a uma injunção não-humana.
Aí aparece a tarefa difícil (e irrealizável em sua plenitude) da sublimação. Kant já falava de uma artimanha da natureza que conduz os homens a forjar a ideia de uma nova natureza inteiramente moral. Como isso é impossível - não se faz nada de direito com uma madeira nodosa - só resta o dever cultural de avançar nesse sentido. O processo inteiro, para Freud, está enraizado na ambivalência dos sentimentos em relação ao pai todo-poderoso, ambivalência que conduz ao parricídio e à identificação com seu poder na figura interiorizada do superego.
Na perspectiva diagnóstica e terapêutica da psicanálise, a analogia entre a cultura e o indivíduo não funciona mais. Freud lembra que é perigoso transferir os conceitos da esfera onde nasceram para uma outra esfera. Lembra também que não há para a cultura uma norma: qual cultura seria normal? Terceiro argumento: não há autoridade capaz de impor uma terapia à massa. Se Freud não exclui que eventualmente seja possível se lançar na empresa de uma terapia cultural, não é certamente essa a sua preocupação. Quis sobretudo elaborar o problema ao qual a cultura deve responder: como controlar a pulsão agressiva e de auto-destruição sem propor um julgamento de valor, sem ser profeta, mas também sem ilusões (quanto ao progresso, por exemplo) e à escuta do desejo profundamente humano de felicidade, com suas ambivalências e contradições?
No Malaise Freud constrói a hipótese metapsicológica da origem e da estrutura do laço social - do que leva os homens a viver juntos, da natureza e da ambiguidade desse laço - sob a forma de um universal (Édipo) que se capta na origem com a ajuda da biologia, da teoria da evolução e da pesquisa antropológica. Uma certa ideia do homem como animal pulsional aparece, mas que Freud não a eleva à altura de uma definição. A "história" dos efeitos provocados pela manifestação das pulsões, ao nível individual e coletivo, é "determinada" pelos mecanismos do jogo pulsional. Apesar da última frase do livro (acrescentada em 1931) o eterno combate de Eros e Tânatos não parece dar lugar a uma vitória final de um sobre o outro, mas oferece o espetáculo de uma alternância. Pois as pulsões - como as paixões dos clássicos - são irredutíveis, o que implica que a estrutura fundadora do laço social não se transforma - trata-se de uma invariante antropológica - apesar do trabalho da repressão, do recalque e da sublimação, apesar das inegáveis aquisições culturais. Só variam as manifestações. Com isso se reforça a tese da ausência de hierarquia entre culturas, pois as dificuldades no caminho da humanização são sempre e essencialmente as mesmas. Nenhuma solução pode pretender à superioridade, o que não quer dizer que as soluções sejam equivalentes ou substituíveis. A estrutura diz as exigências e seus conflitos, mas não as maneiras de satisfazê-las, que são múltiplas.
Num certo sentido, Jean-Pierre Lebrun coloca a questão do declínio do patriarcado nas sociedades contemporâneas nesses mesmos termos, sem nostalgia, sem lamentações, sem propor o retorno da autoridade do Pai. O problema, para ele, é saber como e se nossas sociedades "pós-modernas" respondem ou não às exigências estruturais da subjetivação e da humanização6. Essas exigências são reformuladas em termos de submissão às leis da linguagem, que exige o peso da autoridade paterna, e dos efeitos dessa submissão. Lebrun inscreve-se assim no horizonte aberto por Freud e retomado por Lacan. No entanto, duas diferenças aparecem: Lebrun parece tomar como definitiva e unívoca a tese segundo a qual a submissão às leis da linguagem é a condição da humanidade do humano, uma condição que se torna, assim, uma definição da natureza humana, para além da invariante antropológica ou cultural. No mesmo movimento, o que constitui nossa relação à linguagem é a separação e a insatisfação (impostas pelo pai) na origem do desejo e em oposição aos gozo materno e incestuoso. Qualquer outra exigência da relação à linguagem aparece como signo de uma ocultação ou de um esquecimento da impossibilidade do real. E uma prevalência do feminino ou do materno. Ora, a condição de parlêtre oferece outros horizontes, talvez mais dialéticos, do que uma oposição simples entre separação e confusão que parece se inscrever num projeto global de unificação da experiência - um projeto claramente em falência!
A outra consequência é que Lebrun parece insensível às manifestações de outras formas da terceiridade, quer dizer, da Lei e da autoridade. O declínio inegável da família patriarcal e das autoridades que ela fundava não deixa atrás de si apenas um espaço vazio e inerte, mas implica a emergência de novas figuras da humanização e da subjetivação. O declínio de uma figura da Lei não fecha a dimensão da Lei, que é estrutural. O apagamento progressivo da autoridade paterna levanta novas questões, sem dúvida, mas como não perceber que essas questões nunca cessaram de germinar e de produzir efeitos sobre a vida em comum? Basta não esquecer as diferentes vagas dos feminismos7.
Nossa relação com a linguagem é complexa. Primeiramente, se há alteridade entre locutor e ouvinte, isso não pressupõe necessariamente uma hierarquia, embora essa possibilidade exista. Se a linguagem torna possíveis as palavras do mestre e do tirano, ela torna igualmente possível a igualdade, sem apagamento da singularidade de locutor e do ouvinte. Sem eliminação da diferença. Por exemplo, a palavra entre amigos ou entre analista e analisando. Na relação entre os homens a linguagem é também o lugar de um conflito e há discursos que destroem ou impossibilitam a humanização, o que tende a mostrar que o acesso à linguagem é necessário, mas não suficiente. Para o analista, mesmo a palavra vazia, o moinho de palavras, significa nossa relação com a linguagem, ainda que seja apenas para medir os estragos da subjetivação produzidos pelo discurso social dominante. Pois a separação produzida pela linguagem e constituinte do sujeito é conflitual e dinâmica, seja na constituição da alteridade, seja na constituição do objeto do desejo, implicando o reconhecimento de um objeto perdido para sempre. A necessidade afirmada por Lebrun de uma autoridade encarnada para que a operação seja bem-sucedida ignora as possibilidades múltiplas do exercício da linguagem e pretende unificar sob uma autoridade inquestionável a experiência do parlêtre.
A importância dessas interrogações aparece na clínica.
Abordando esse aspecto fundamental para o psicanalista, Lebrun distingue dois campos: "o campo do viver juntos" e o da "singularidade do sujeito". A distinção enquanto tal não é examinada, o que já é problemático, pois afirmada como uma evidência. Deixo aqui de lado o exame das "pistas a explorar" no primeiro campo para examinar mais de perto o que propõe a nova clínica psicanalítica. Não se trata de receitas, mas de pistas a explorar que tem por objetivo permitir aos indivíduos "a apropriação [...] das exigências de nossa condição de seres falantes" (LEBRUN, 2013, p. 295). Na nova configuração psíquica onde o indivíduo se encontra prisioneiro exclusivo da "competição intrapsíquica entre o gozo e o desejo" (LEBRUN, 2013, p. 295) - pois o discurso social não imprimiu no seu aparelho psíquico a "prevalência do gozo limitado, aquele que é compativel com as exigências da linguagem e da civilização" (LEBRUN, 2013, p. 295) - surge a possibilidde (e a necessidade) de uma clínica que "não será mais estruturada sobre o modelo do sintoma organizado pela palavra" (LEBRUN, 2013, p. 296). Não se trata mais de ir "do Simbólico ao Real, mas do Real ao Simbólico" (LEBRUN, 2013, p. 296). Pois o sujeito, não dispondo mais das palavras, ausente a si mesmo, faz "objeção ao Outro" com seu próprio comportamento, como mostram as adições. Em outras palavras, é melhor abandonar, pelo menos num primeiro momento, a Grundregel da associação livre que não conduz a lugar nenhum pois não há "dizer" da parte do paciente, mas somente o "dito". Como ele não é trabalhado pela linguagem, o paciente oferece comportamentos, sintomas (se o termo ainda é adequado), diretamente ligados ao pulsional. Sem o trabalho castrador e humanizante da linguagem, prevalece o gozo e a desumanização.
O exemplo clínico seguinte é dado por Lebrun: uma jovem apresenta crises de bulimia seguidas de vômito e nada sabe dizer a respeito. Mas fala do conflito com a mãe, que nela batia aliada à avó, sem jamais reconhecer os fatos. O pai ignorava tudo. Até a tentativa de suicídio aos 18 anos, quando a mãe reconheceu ter batido na filha. Durante a primeira consulta o analista não disse quase nada. Na segunda, a jovem reclamou que o analista fosse "reativo", sem o que não poderia haver trabalho. O analista aceitou a demanda de assegurar uma presença para valorizar a ausência, isto é, a demanda de não se colocar no lugar do pai ausente: "isso só poderia transformar a ausência… presente demais, e, portanto, não dialetizável" (LEBRUN, 2013, p. 297).
Não se trata de reinterpretar, mas nesse caso pode-se perguntar: quando o analista cede à demanda da jovem de não assumir o lugar do pai ausente - o lugar do silêncio - ele não está satisfazendo a demanda insatisfeita de amor dirigida ao pai? Se tivesse permanecido insatisfeita talvez a demanda tivesse permitido perceber que o conflito com a mãe era um conflito entre três figuras. Em outras palavras, pode-se considerar que o sintoma "fala", que o corpo "diz" seu sofrimento em relação ao pleno e ao vazio. Não se vê então aqui a razão para abandonar a associação livre que poderia revelar o Simbólico, ou a imposssibilidade de simbolizar, enviando ao Real da bulimia e do vômito. Por falta de elementos e por respeito pela singularidade do caso, não é possível insistir. No entanto, como o trabalho de Lebrun insiste sobre o retorno do matriarcado ou do maternel como efeito do declínio da autoridade paterna, sua interpretação coloca em jogo outras dimensões que é preciso levar em conta.
As questões permanecem e insistem: trata-se de uma "nova clínica" exigindo novas técnicas? As palavras tendem a se reduzir a uma novlingua, como em 1984 de Orwell? Será preciso abandonar, mesmo provisoriamente, a regra fundamental? O discurso do paciente é um discurso vazio, discurso da não-divisão do sujeito, discurso do mesmo e não do Outro: mas são razões suficientes para que ele seja deixado de lado e ignorado para que advenha o discurso que convém à escuta analítica? Há algo que o analista deve fazer antes da análise para que a análise seja possível?
Para Jean-Richard Freymann, discutindo o problema, há um equívoco analítico quando se toma o discurso social dominante como causa dos sintomas, pois "o discurso ambiente [não] passa diretamente na estrutura", ele não é o "discurso do Outro" (FREYMANN, 2013, p. 33). Não parece, no entanto, que tal afirmação possa ser atribuída a Lebrun, o qual analisa longamente o discurso dominante e estabelece uma relação entre ele e as novas patologias. Mas trata-se sobretudo de denunciar o que o discurso dominante oculta sobre os efeitos das transformações de nossa relação com a linguagem. Em outros termos, o discurso social é compreendido como sintoma e, enquanto tal, oculta ao mesmo tempo que revela os processos em curso no laço social com o apagamento da autoridade paterna e a prevalência do materno. Mas não há relação de causa a efeito. Freymann reconhece que a análise só pode existir se o discurso ambiente cede lugar ao discurso Outro, o único no qual o sujeito pode se constituir. E para que esse discurso Outro advenha, "é preciso criar um espaço onde essa análise vai ser possível" (FREYMANN, 2013, p. 33) e é esse o objetivo das consultas preliminares que parecem exigir, hoje, consultas preliminares às consultas preliminares quer dizer, "todo um trabalho pré-analítico que consiste em passar, de um lado, por uma espécie de desobjetalização e, por outro lado, por um abandono da relação ao gozo" (FREYMANN, 2013, p. 33). É apenas nesse momento que a livre associação pode começar.
Nao é dificil perceber em que, do ponto de vista técnico, essa formulação se diferencia da formulação de Lebrun. Mas, nos dois casos, a pergunta é a mesma: o discurso do analisando, no início, é um discurso alienado, desubjetivado, objetalizado, e, para o analista, nenhuma escuta analítica parece possível. É preciso primeiramente se apoiar sobre os comportamentos (Lebrun) ou preparar o advento do verdadeiro discurso do sujeito (Freymann). Nos dois casos, portanto, trata-se de uma preparação à análise.
Mas o discurso alienado não é discurso? Se o rejeitamos para fora da análise, não se exclui ao mesmo tempo o que, nesse discurso, mesmo alienado - e, acrescento, porque alienado - é um apelo a um outro discurso? Não se corre o risco de guiar a escuta pela expectativa do que deve ser o discurso do analisando que, para ser verdadeiramente discurso, deve antes aceder ao discurso tal qual o analista o concebe, pode ou quer escutar? Sem falar do efeito possível de um trabalho infinito de preparação à analise, momento sempre em recuo, e de colocar o "fim" da análise como o que é preciso para que ela comece! Se a associação livre supostamente marca o fim do discurso alienado, uma vez que ela se torna uma possibilidade aberta para o analisando, não é então o momento de "fim" da análise e a "queda" do analista de seu pedestal de Sujet Supposé Savoir? Os analistas, convencidos de que é preciso "preparar" o espaço da análise, não estão procurando retardar o momento dessa "queda", esse momento terrível quando se encontrarão sozinhos no consultório, diante de sua radical inconsistência? Dois pontos de vista técnicos, teóricos e éticos se colocam aqui. O primeiro diz respeito à livre associação: meio ou objetivo da análise? Os dois ao mesmo tempo? O segundo é o de saber se a associação livre concerne apenas ao analisando ou se implica igualmente a livre escuta? Uma pode existir sem a outra?8. Não é, em certa medida, a livre escuta que torna possível a emergência do discurso Outro?
Quanto aos efeitos políticos, sociais e culturais de tais posições, como ignorar que elas pressupõem que o declínio do patriarcado e a ascensão do feminino está colocando em perigo as relações familiares, sociais, políticas, culturais e mesmo a transmissão de nossa humanização. Tais posições facilmente conduzem aos discursos apocalípticos.
A palavra pode não dizer a perda, pode eludir a falta, pode não significar a ausência da coisa, mas talvez não possa verdadeiramente desaparecer. E o "retorno" histórico da palavra feminina justamente o sugere. Exceto quando nenhuma orelha atenta a acolhe. A força da psicanálise é função de sua capacidade de escutar, dar palavra ao que insiste e resiste, apesar e contra tudo, nos discursos sociais e no discurso singular do analisando.
Referências
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Artigo recebido em: 22/05/2018
Aprovado para publicação em: 27/08/2018
Endereço para correspondência
Urias Arantes
E-mail: urias.arantes@gmail.com
*Psicanalista. Doutor em Filosofia pela Université Sorbonne Paris I, Paris, França.
1Esse poema foi escrito por um analisando em terminação de análise. Aceitou que fosse publicado sob reserva de anonimato e sem tradução. O título envia a Isaias 45:15, a forma ao evangelho segundo João, 1:1 e a temática a Pascal.
2Não tenho ao alcance da mão a tradução brasileira, O mal-estar na civilização, e me sirvo então de uma tradução francesa recente, incluida nas Œuvres Complètes de Freud.
3A expressão serve de título ao livro de Charles Melman, La nouvelle economie psychique (2009) que contém, entre outros, os textos de um curso e de uma conferência proferidos no Brasil.
4Desses três termos, o recalque (Verdrängung) é o mais elaborado por Freud. Ele corresponde à primeira descrição do inconsciente freudiano. Em geral, o recalque concerne às representações rejeitadas no inconsciente porque sua manifestação consciente produziria prazer, mas também desprazer para outras exigências. O recalque é, portanto, inconsciente e elimina do consciente as representações conflituais. A repressão (Unterdruckung) é o termo geral que implica, sob a pressão das exigências morais, o desaparecimento de representações que são enviadas ao pré-consciente. A sublimação (Sublimierung) diz respeito à pulsão sexual, particularmente intensa e criativa - ou, mais exatamente, ao grupo de representações que representam a pulsão no domínio da representação - e seu desvio para uma nova finalidade e novos objetos, socialmente valorizados, sem perda da intensidade. A sublimação se apoia sobre a plasticidade da pulsão sexual. Lembre-se aqui que, no falanstério utópico de Charles Fourier, a paixão social por excelência é a Papillonne. Sigo aqui as indicações de Jean Laplanche e Jean-Baptiste Pontalis (1967).
5Seguindo Freud, deixo de lado a distinção entre cultura e civilização e os problemas de tradução implicados. Lembro que Kant, nos meados do século XVIII, se servia da distinção na lingua alemã: "Nós somos civilizados (civilisiert) até a saturação por toda espécie de boas maneiras e decoro social (Artigkeit und Unstandigkeit). Mas falta muito para nos considerarmos moralizados (moralisiert). Se, com efeito, a ideia de moralidade (Moralität) pertence à cultura, o uso, no entanto, dessa ideia que não vai além de uma aparência de moralidade (Sittenähnliche) no amor à honra e no decoro exterior, constitui apenas a civilização (Civilisierung)" (KANT, 1986). Jacques Le Rider propôs que se conserve a distinção para dar conta do "novo" mal-estar, isto é, da tendência para uma cultura mundial sem civilização: "A cultura, enquanto cultura animi e progressão individual para um ideal humanista, a civilização enquanto afirmação dos costumes (mœurs) em direção a um ideal universalista" (LE RIDER, 1998, p. 118).
6Há várias formulações dessa interrogação nos textos de Lebrun, por exemplo, Lebrun, 2008, p. 217 e Lebrun, 2013.
7A esse respeito ver Urias Arantes, 2014, p. 123.
8Ver a esse respeito o belo ensaio de A. Phillips, Poetry and psychoanalysis (2000).