Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
Aparelho psíquico, memória e a noção de tempo nos primeiros textos de Freud: sobre as vicissitudes da linguagem
Psychic apparatus, memory and the notion of time in the first texts of Freud: on the vicissitudes of language
Dayanna Pereira dos Santos*
Instituto Federal de Educação de Goiás - IFG - Brasil
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia - ANPEPP - Brasil
RESUMO
Este trabalho discute as implicações entre aparelho psíquico, memória e tempo nos primeiros textos da psicanálise considerando a noção do a posteriori evocada por Freud (1894) por meio do termo alemão nachträglich. Tal proposição exige uma reflexão sobre a noção de memória desenvolvida na Carta 52 (1896/1996) segundo a qual há diversos registros de memória nos quais um mesmo conteúdo, com o passar do tempo, poderia ser inscrito e transcrito conforme distintos princípios associativos da linguagem. Sob esse prisma, a memória possui como qualidade a não recuperação imediata de seu conteúdo, e disso advém uma apropriada autonomia com relação aos elementos da consciência.
Palavras-chave: Aparelho psíquico, Linguagem, Memória, Tempo.
ABSTRACT
This paper discusses the implications of psychic apparatus, memory and time in early psychoanalysis, considering the notion of a posteriori evoked by Freud (1894) through the German term nachträglich. Such a proposition requires a reflection on the notion of memory developed in the Letter 52 (1896/1996) according to which there are several records of memory in which the same content, over time, could be inscribed and transcribed according to distinct associative principles of language. From this point of view, memory has as its quality the immediate non-recovery of its content, and from that comes an appropriate autonomy with respect to the elements of consciousness.
Keywords: Psychic apparatus, Language, Memory, Time.
Introdução
Em A interpretação das afasias (1891/1977), Freud apresenta um modelo de aparelho de linguagem [Spracheapparat] fundamentado na vinculação entre a representação-palavra e as associações de objeto, cujas consequências teóricas, clínicas e metapsicológicas ecoam ao longo de sua obra. Com essa ideia, avança em suas investigações, delineia a existência de processos funcionais nas operações da linguagem e desenvolve a ideia de uma localização mais ampla decorrente de um processo e não de uma ligação isolada entre os campos cerebrais.
Envolto nessas proposições, Freud (1891/1977) desconstrói a noção clássica de representação como entidade psicológica, consciente, e estabelece uma contraversão na maneira de se entender o físico e o psíquico. O psíquico, para Freud, não é uma "projeção" direta do físico, mas sim um objeto da representação. Nesse caso, entre físico e psíquico não há uma relação unívoca, de modo que um não causa o outro. Essa noção implica a possibilidade de desvincular o conceito de "representação" do conceito de "consciência", consistindo na renúncia da noção de percepção como impressão sensível.
Com efeito, no Projeto para uma psicologia científica (1895/1996) [Entwurf], empenhado em formular uma teoria sobre o psiquismo e seu funcionamento, Freud divide o aparelho neuronal em três sistemas, assim descritos: o sistema de percepção φ [Phi], o sistema de memória ψ [Psi] e o sistema ω [&Ômega], responsável pelo desenvolvimento de qualidades sensoriais. A distinção entre os neurônios realça a impossibilidade de um determinado segmento de neurônios servir à memória e à percepção, ao mesmo tempo. Isso porque, para a efetivação do processo perceptivo, faz-se necessário que o neurônio encontre uma superfície que permaneça inalterada a cada nova concepção e, ao mesmo tempo, que no processo da memória a alteração aconteça de maneira permanente e sucessiva.
Com isso advém a pergunta: Como pensar temporalidades distintas funcionando nas instâncias psíquicas? De que maneira os estudos psicanalíticos podem considerar essa incidência? A tentativa de formular uma resposta leva em consideração o fato de que no sistema ψ, as barreiras de contato oferecem resistência à passagem da excitação. Já o sistema φ, as quantidades, ou melhor, os estímulos intercelulares recebidos, têm intensidade superior à da "resistência das barreiras de contato" (FREUD, 1895/1996, p. 351) e, por isso, nesse sistema tais barreiras estão totalmente facilitadas. A diferença do nível de facilitação entre neurônios permeáveis e impermeáveis possibilita, a constituição da memória pela afirmação de facilitações [Bahnungen] entre os neurônios ψ. Por essa premissa, conclui-se então que "a memória está representada pelas facilitações entre os neurônios ψ" (FREUD, 1895/1996, p. 352, grifo do autor).
Assim, a memória é proposta como a diferença quantitativa entre as facilitações dos neurônios ψ. Destarte, o fato de o sulcamento não ser indiscriminado e apresentar diferentes graus de resistência interroga a noção de traço mnêmico como reprodução e o propõe como diferença que se escreve. Não se trata, porém, de uma diferença pré-estabelecida, mas de diferença que se escreve em complexos trajetos associativos que constituem as representações. Sob esse prisma, o traço mnêmico configura-se como um arranjo específico de facilitações [Bahnungen], e a memória se constitui a partir da inscrição das impressões, como rastros, sulcos, facilitações, numa combinação associativa marcada pela diferença de seus elementos.
Nessa perspectiva, o aparelho psíquico é um aparelho de memória e de linguagem constituído pela existência de traços mnêmicos, os quais adotam a função de memória e de elemento articulador de associações. Nesses termos, a memória que interessa à psicanálise é concebida como um texto escrito a ser decodificado; "é plural, múltipla, registrada sob diversas formas" (LACAN, 1955-1956/2010, p. 212), sendo, pois, uma elaboração feita a partir de algo que escapa à consciência. Essa elaboração, numa relação a posteriori1, faz alusão à presença de um limite no psiquismo que pode ser interpretado como uma lacuna referente aos aspectos impossíveis de serem traduzidos em representações.
Carta 52 (1896): a memória é inconsciente
Na Carta 52, de 1896, Freud amplia a noção de memória desenvolvida no Projeto, de 1895, ao instaurar a ideia de que o aparelho psíquico trabalha como um complexo aparelho de memória caracterizado pelas reorganizações e reescrições dos traços mnêmicos que a constituem. O psicanalista apresenta, em esquema, seu aparelho de memória, o qual, abrangendo toda a estrutura do psíquico, evidencia que consciência e memória se excluem reciprocamente e que a memória ultrapassa aquilo que se compreende usualmente como evocação. Isto é, a memória não se restringe à retomada de uma percepção, pois não se trata do evento de reação à realidade como causa de excitação.
O traço mnêmico, ora apresentado no Projeto, adquire [sobretudo na Carta 52] estatuto de escrita. Para a construção dessa teoria, Freud esquematiza a constituição do aparelho psíquico, colocando em sentidos opostos a percepção (W) e a consciência (Bw). Essa relação de oposição se justifica porque a consciência, segundo Freud, só existe após a junção dos registros perceptivos à representação-palavra do pré-consciente. Nessa perspectiva, a qualidade consciente da percepção está sujeita às retranscrições mnêmicas, por isso tais registros passam por sucessivas elaborações dispostas pelo sistema de memória. A memória não está presente de uma maneira única, mas sim múltipla, depositada em diversas sortes de signos. Entre esses signos, de um para o outro, é preciso um processo de tradução.
Na base dessa teoria, é possível depreender que a significação é causada pelas associações de objeto, e não pelo objeto, que a palavra atua como a possibilidade da passagem, no pré-consciente, dos movimentos do inconsciente. Isso acontece porque no pré-consciente articulam-se as representações-palavra e as representações-objeto. Assim sendo, a articulação entre a função de representar e a maneira dinâmica de associar do aparelho de linguagem/memória faz seu funcionamento ir além de sua função. Sob esse prisma, a partir da consideração freudiana de que a memória é essencialmente inconsciente, falhas na memória, equívocos na tradução, esquecimentos e lapsos na fala não são compreendidos como defeitos do aparelho psíquico, e sim implicações/efeitos desse modo de funcionamento, que não se limita a um centro, a uma intencionalidade, a uma configuração.
Assumindo tal viés, Lacan descreve o que concebe como o aparelho psíquico de Freud:
O aparelho psíquico que ocupa Freud não é um aparelho psíquico tal como o concebe um professor atrás de uma mesa e diante de um quadro-negro, o qual lhes dá modestamente um modelo que, enfim, parece funcionar - isso funciona bem ou isso funciona mal, pouco importa, o importante é ter dito alguma coisa que parece sumariamente se assemelhar ao que se chama realidade. Para Freud, trata-se do aparelho psíquico dos seus doentes, não do indivíduo ideal, e é isso que o introduz nessa fecundidade verdadeiramente fulgurante que se vê, mais ainda do que em qualquer outra parte, nessa famosa carta 52. O que ele procura explicar não é qualquer estado psíquico, mas aquilo que ele partiu porque só há isso que seja acessível e se revela fecundo na experiência da cura - os fenômenos de memória (LACAN, 1955-1956/2010, p. 180).
Segundo essa descrição para pensar a natureza do aparelho psíquico como efeito da teoria inconsciente, Freud parte dos trabalhos sobre representação, memória e sintomas histéricos. Em sua concepção, o psíquico se manifesta sob a forma de uma "imagem mnésica" não relacionada à consciência. Se concebemos que tal imagem não se constitui apenas como consequência de percepções da realidade externa de um "indivíduo ideal", mas que ela traz consigo marcas de diferença, podemos considerar que o processo de formação da representação pode ser pensado como algo distinto e independente daquilo que se experimenta na consciência. Ora, a representação é, antes de tudo, uma construção psíquica, produto de uma sucessiva "recriação" da informação sensorial, segundo princípios associativos. Há nesse processo o predomínio do registro funcional sobre o registro tópico, de modo a considerar que a psique é fundada por linguagem. Sob esse prisma, o discurso dos doentes, tomado como "uma cadeia temporal significante" (LACAN, 1955-1956/2010, p. 183), pode desnudar a tênue fronteira entre o sintoma corporal e a estrutura anatômica, extinguindo a superioridade desta em detrimento do primeiro, de modo a colocá-los numa relação de arbitrariedade.
Nesse âmbito, os restos de linguagem do sujeito, ainda que se apresentem como estranhos, não são indícios de aniquilamento do referido aparelho; são, na verdade, formas autênticas de funcionamento submetidas a leis de outra ordem. Mediante a experiência clínica com os histéricos, Freud reconhece que algo escapa ao sujeito e extrapola a consciência. Assim sendo, na fala do histérico "há, portanto, um saber separado da consciência" (MORAES, 1999, p. 37) que não se associa à lógica da realidade, capaz de validar a ideia de existência de uma memória unicamente consciente. A memória, nesses termos, é autônoma em relação aos feitos da consciência. A ela confere-se o predicado de uma não recuperação pontual.
Desse modo, o traço da memória não se constitui de uma presença recuperável, mas de uma diferença de inscrição em vários registros. Com essa descoberta, Freud mostra que a existência da memória necessita de uma não recuperação, um apagamento das marcas perceptivas. Portanto, sendo consciência e memória excludentes, a percepção não detém estruturas, algo já arranjado, mas marcas primordiais que serão ou não sistematizadas futuramente. Para Moraes (1999), o aparelho de memória concebido como um sistema de escrita apresenta os efeitos ou a impressão [Eindruck] do mundo exterior, assinalados pela reescrita/reescrição [umschrift] do signo/sinal/marca/indício [Zeichen], os quais se transformam em traço de memória [Erinnerungsspur]. Ao que parece, na Carta 52, as noções de signo, traço e impressão caracterizam-se como registros próprios da escrita.
Memória e tradução: efeitos de uma temporalidade psíquica
Nessa perspectiva, a memória é causada mediante um processo de estratificação contínuo. Segundo Freud, esse processo funda camadas que são produzidas por fases, instituindo a organização da memória em subsistemas. Se por um lado a diversidade da memória é conservada pelo registro em diversos signos, por outro, as diferentes transcrições da memória estão vinculadas tanto aos seus respectivos neurônios - não essencialmente numa relação tópica - quanto ao complexo associativo ao qual a memória constantemente se submete.
Nota-se que ao investir na concepção do aparelho psíquico como sistema de inscrições psíquicas, portanto, traços mnêmicos, Freud trata o funcionamento da memória como uma vasta gama de inscrições cujos registros nunca se apagam, mas vão sendo "reestruturados segundo novas configurações" (FREUD, 1895/1996, p. 118). Assim, na concepção freudiana, o funcionamento da memória se dá conforme um processo de estratificação em que "o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição" (FREUD 1896/1996, p. 281, grifo do autor). A esse respeito, Moraes (1999) ressalta que a insistência de Freud em caracterizar o material dos traços de memória como rearranjos tem o objetivo de instituir o inconsciente como sistema de memória, alicerçado na dimensão escrita.
Nesse caso, o processo de estratificação, que corresponde aos traços mnêmicos, é reordenado conforme os novos nexos. Tal processo indica que os arranjos pelos quais os traços mnêmicos estão subordinados não são extintos, uma vez que a cada novo arranjo advêm outros, os quais são gravados, fundando, desse modo, o processo de estratificação. Assim, os traços mnêmicos, principalmente pela simultaneidade de inscrições, correspondem a inscrições dos signos de percepção no inconsciente. Para Freud, na medida em que se institui uma memória (de traços inconscientes), estabelece-se de certo modo a própria estrutura do aparelho, suas balizas, suas partes fundantes e seus princípios de funcionamento.
Com a passagem das fases consecutivas da vida, há a chance de a contingência dos reordenamentos e reescrições dos traços mnêmicos ocorrerem como uma tradução, isto é, como uma reescrição do material psíquico. Nesse caso, a reorganização dos traços mnêmicos e o assentamento dos rearranjos replicam a própria formação do aparelho psíquico, de maneira que o mecanismo psíquico pode ser compreendido como efeito dos múltiplos rearranjos aos quais os traços mnêmicos permanecem submetidos. Todavia, cabe salientar que a referência feita por Freud às etapas da vida não mantém relação com a concepção de evolução, do ponto de vista genético, mas sim com a articulação de passagens no psiquismo. Para Freud, essas passagens, de modo particular, possibilitam que o conteúdo psíquico trabalhe conforme normas peculiares. Nesse processo, o material inconsciente apenas se faz conhecer por meio da tradução.
Conforme expõe Freud (1896/1996), para advir uma tradução, é cogente uma inibição da "inscrição" precedente. Ora, para que o material psíquico seja inscrito no aparelho de memória, carece haver uma inibição no campo funcional anterior equivalente à percepção-consciência, e assim sucessivamente. A tradução do material psíquico é empreendida na passagem de uma época da vida a outra, produzindo assim o desprazer. Com a liberação de desprazer incide o recalcamento, e no recalcamento a tradução do pensamento inconsciente é perturbada, embora a rede associativa mantenha sua continuidade. É, pois, com o processo de tradução que as retranscrições não traduzidas constituirão o recalcado que insiste em se inscrever em outra cadeia de forma dialética e não linear.
Lacan (1955-1956/2010), ao fazer referência à Carta 52 (1896/1996), de Freud a Fliess, busca realçar a composição e a dinâmica do aparelho de memória numa simultaneidade de inscrições [Niederschriften] para a apreensão do modo de funcionamento do aparelho psíquico. Esse é o princípio de uma teoria cuja noção de percepção é o cerne das articulações referentes à complexa inter-relação de percepção, inscrição mnêmica, consciência e inconsciente. Embora esquematicamente não articuladas, paradoxalmente, consciência e percepção estão conectadas.
Desse modo, a consciência pode ser concebida como um órgão sensorial responsável pela percepção de qualidades psíquicas. O sistema perceptivo, além do acesso a quantidades de estímulo próprias do aparelho psíquico, compreende a percepção à luz do conceito de estimulação e de relação causal. Assim, não é a percepção que define o objeto com o qual a palavra poderá sustentar uma relação de associação para adquirir sentido, pois o significado do objeto encontra articulação entre as associações do objeto e da palavra, numa relação com o Outro, estabelecida na e pela linguagem e não a partir da coisa externa.
Com isso, depreende-se que tais registros contínuos simbolizam a realização psíquica de períodos sucessivos da vida, de modo que ocorra uma tradução do material psíquico.
Explico as peculiaridades das psiconeuroses com a suposição de que essa tradução não se fez no caso de uma determinada parte do material, o que provoca determinadas consequências. Pois sustento firmemente a crença numa tendência ao ajustamento quantitativo. Cada transcrição subsequente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Quando falta uma transcrição subsequente, a excitação é manejada segundo as leis psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os "fueros", estamos em presença de "sobrevivências". Uma falha na tradução - isto é o que se conhece clinicamente como "recalcamento" (FREUD, 1896/1996, p. 283).
O curioso é que a inibição vista dessa maneira não é unívoca. Não é uma oposição, uma proibição cronológica de fatos, elementos e descobertas. Considerá-la desse modo pressupõe a anterioridade cronológica como uma imposição lógica. No processo de reflexão sobre os meios de tradução psíquica, o termo inibição é empregado com a conotação específica de um modo de defesa contrário às tendências intensamente investidas via libido sexual. A inibição é tomada, portanto, como um mecanismo de controle e domínio de fontes de desprazer cuja atuação provoca risco a determinada frequência do funcionamento psíquico.
É, pois, com base nesse entendimento que o uso do termo tradução [Übersetzung] é trabalhado por Freud, na Carta 52, para balizar as fases das experiências do sujeito, caracterizadas pela pluralidade das inscrições mnésicas na medida em que elas são ou não traduzidas. A referência feita por Freud (1896/1996) às etapas da vida não mantém relação com a concepção de evolução, do ponto de vista genético, mas sim com a articulação de passagens no psiquismo. Essas passagens, de modo particular, possibilitam que o conteúdo psíquico trabalhe conforme normas peculiares. Nesse processo, o material inconsciente apenas se faz conhecer por meio da tradução realizada na passagem de uma época da vida a outra produzindo, assim, o desprazer. A liberação de desprazer causa o recalcamento, e a dispensa de prazer não inibido pode desencadear uma forma de compulsão. Assim, no recalcamento a tradução do pensamento inconsciente é perturbada, mas a rede associativa tem continuidade.
Desse modo, no processo de tradução as retranscrições não traduzidas constituirão o recalcado. Para Freud, o pensamento recalcado insiste em se inscrever, retorna à consciência e produz novas associações, reorientadas em outra cadeia de ideias, havendo, portanto, sempre um retorno do recalcado. Diante da pergunta: O que é o recalque para o neurótico? Lacan (1955-1956/2010) afirma tratar-se de uma outra língua: "língua que ele [o neurótico] fabrica com seus sintomas, isto é, se é um histérico ou um obsessivo, com a dialética imaginária dele e do outro" (p. 77). Nesse caso, algo de modo dissimulado retorna sempre em outra cadeia de forma dialética e não linear.
O caso Emma: a lógica do "a posteriori" e seus efeitos no psiquismo
A coexistência dos múltiplos registros de memória com modos de organização particulares coloca em evidência um anacronismo próprio ao psiquismo. Nesse sentido, o modo de organização de uma determinada instância da memória mostra-se capaz de realizar uma defesa normal diante do desprazer. No entanto, a falha na tradução desse material implica o processo de recalcamento caracterizado como uma forma de defesa que institui o inconsciente e, ao mesmo tempo, serve de base para a constituição de outros processos de defesa.
Como consequência disso, o material não traduzido de uma determinada época pode permanecer em atividade, contribuindo causalmente para a aparição dos sintomas psiconeuróticos. Isso quer dizer que, pois, há uma sequência de traduções dos traços mnêmicos que permite um rearranjo periódico do material psíquico. Os efeitos da falha de tradução, os restos/resíduos desse processo constituem as inscrições inconscientes no padrão tradutivo do recalcamento. Desse modo, o traço inconsciente não equivale a uma representação registrada, mas a uma espécie de resíduo dos atos de memorização.
Conforme salienta Freud (1896/1996), a lembrança traumática opera de forma retroativa, a posteriori, e "exibe um poder que esteve totalmente ausente do próprio evento. A lembrança atua como se ele fosse um evento contemporâneo. O que acontece é, por assim dizer, a ação póstuma de um trauma sexual" (p. 152, grifo do autor). Nota-se que a partir das situações vivenciadas no cotidiano da clínica, Freud reconhece que essa relação não se faz de modo absolutamente unidimensional, visto que nesse caso aspectos são adicionados ou extraídos dos fatos, durante o ato de recordar. Temos, assim, a estruturação de um tempo de elaboração psíquica que não representa com total fidelidade o fato ocorrido, mas reveste-lhe de detalhes subjetivos em razão da criação de um intervalo entre certo evento de conotação sexual e os aparecimentos do sintoma vinculado à lembrança de tempos ulteriores.
No texto Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar (1893/1996), Freud e Breuer, a partir da observação clínica de pacientes histéricos, expõem o sintoma como efeito de um processo mental passado, decorrente de uma "causa precipitante", identificada por meio do tratamento hipnótico do paciente. O que leva os autores a se preocuparem especificamente com a noção de trauma é o fato de que os eventos relatados pelos pacientes não correspondiam às cenas realmente vivenciadas por eles, mas apenas às lembranças de uma cena, interpretada posteriormente pelo sujeito.
Com essa constatação, posteriormente, Freud (1896/1996) evidencia que o sistema representacional assinala uma flexibilidade e uma motilidade da memória, pois admite a modificação, variação e deformação de seus conteúdos, de modo que a memória possibilite sua atualização, sejam eles reais ou não. Para Lacan (1959-1960/1997), a noção de a posteriori [nachträglich], utilizada por Freud, faz referência a um trabalho discursivo de elaboração, oriundo da articulação entre algo do tempo presente com o conteúdo mnêmico. Freudianamente, após o trauma incide um rearranjo, um efeito de tempo por meio do qual os eventos traumáticos contraem significação para o sujeito, distorcendo o vivido e se desdobrando num evento da realidade psíquica.
Quanto a isso, Laplanche e Pontalis afirmam que não se trata de
[...] nada mais do que da realidade de nossos pensamentos, do nosso mundo pessoal, realidade que equivale à realidade do mundo material e cuja eficácia, no tocante aos fenômenos neuróticos, é determinante. Se está em causa opor à "realidade material", ou a "realidade do pensamento" à "realidade exterior", isso equivale a dizer: nos movemos no imaginário, no subjetivo, mas esse subjetivo é o nosso objeto (1988/1964, p. 20-21).
Os estudos de Laplanche e Pontalis (1988/1964), a respeito da realidade psíquica, vêm ao encontro da assertiva de Freud quanto à alteridade do sintoma histérico, compreendido na perspectiva da diferença simbólica. Essa alteridade é marcada pela fantasia, capaz de exprimir os desejos não conscientes do sujeito, os quais nem sempre mantêm uma relação lógica com a realidade externa concreta. A realidade psíquica se dintingue, se circunscreve, se desdobra e ao mesmo tempo desvela sua gênese. Nesse processo, as lembranças só podem entrar na consciência se forem modificadas, pois a falha de tradução do material psíquico, apresentada no formato de traços mnésicos, é constitutiva do recalcamento.
Ainda segundo a compreensão freudiana, "os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão, mas foram esquecidas (traumas)" (FREUD, 1914/1996, p. 19). Tais cenas podem ter como ponto de origem uma situação de vergonha, dor física, surpresa, medo e angústia. Inicialmente, Freud entende o sintoma como algo que reporta às experiências precoces traumáticas, suscitadas por elementos conflituosos da vida cotidiana do sujeito. Para ele, a formação de um evento traumático acontece em dois tempos distintos, demonstrado por cenas: cena 01 real ou imaginária - de caráter sexual - e cena 02 associada a uma emoção de natureza sexual na adolescência. A fim de exemplificar como ocorre a formação e o recalcamento de um trauma, Freud, na segunda parte do Projeto para uma psicologia científica (1895/1996), retoma o caso Emma.
Durante a análise, a paciente relata a Freud que não conseguia entrar sozinha em nenhum tipo de ambiente comercial e justifica o motivo da fobia com a recordação de uma cena vivida aos doze anos. Na época, ao entrar em uma loja para fazer compras se depara com dois vendedores olhando para ela e sorrindo entre si. Tal situação provoca extremo desconforto na paciente, que sai em pânico da loja por pensar que seus trajes eram a causa da galhofa. Para Freud, a cena descrita pela paciente corresponde ao primeiro tempo do evento traumático - cena 01.
Na continuação da análise, Emma relata outro fato ocorrido com ela aos oito anos de idade. Quando criança, Emma fora a uma confeitaria comprar guloseimas. Ao vê-la, o dono do estabelecimento foi em direção a ela e com um sorriso mordaz no rosto toca-a nas partes íntimas sobre o vestido. Apesar do ocorrido, Emma retorna apenas mais uma vez ao local, sentindo-se atraída. Tal ato causa na paciente grande remorso, pois para ela o retorno colocou em evidência o desejo de provocar a repetição da cena de assédio sexual.
Conforme a análise freudiana, o acontecimento isolado não teve, no momento da cena 01, significado sexual traumático para Emma, porque não havia verbo para tal. Para Laplanche e Pontalis (1988/1964), na ocasião, a criança "não tem à sua disposição nem as condições somáticas da excitação, nem as representações para integrar o evento, de modo que o evento é sexual em si, mas não possui significação sexual para o sujeito" (p. 28) não há, portanto, para Freud simbólico que contemple esse real. No entanto, o episódio ocorrido na loja com os rapazes leva Emma a estabelecer uma associação inconsciente com o gesto sexual do dono da confeitaria, fazendo com que a primeira cena ganhasse valor traumático a ponto de causar na paciente a fobia ao entrar na loja.
De acordo com Freud, o fato descrito na cena 01 desencadeia uma emoção sexual. Nesse sentido, o impulso sexual ligado à adolescência adquire existência e retoma a lembrança do primeiro episódio, assumindo então uma definição traumática de ordem sexual. Isso porque, com a puberdade, "há produção de desprazer e a origem desse desprazer é procurada na lembrança do evento primordial, que veio do exterior convertido em interior, ‘corpo estranho ’ agente ativo internalizado" (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988/1964, p. 30, grifo nosso).
Mediante experiência clínica do método catártico, Freud (1893/1996) apreende que esse corpo estranho devia-se a restos de eventos traumáticos, de modo que as lembranças - instituídas pelas representações interiorizadas do episódio externo do trauma - encontram-se na origem das neuroses. Sendo assim, é a memória que é traumática e opera no sintoma. A neurose caracteriza-se pelo predomínio da realidade psíquica na vida do sujeito. Para Lacan (1955-1956/2010), diferentemente da psicose, na neuroseobserva-se que "é na medida em que a realidade não é plenamente rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior, que há, no sujeito, fuga parcial da realidade, secretamente conservada" (p. 58).
De modo particular, no caso Emma
[...] o elemento que penetra na consciência não é o que desperta (o atentado), mas outro, na qualidade de símbolo (as roupas). Se nos perguntarmos qual seria a causa desse processo patológico interpolado, só poderemos indicar uma - a liberação sexual, da qual também há provas na consciência. Isso está vinculado à lembrança do atentado; mas é altamente digno de nota o fato de que ela [a liberação sexual] não se vinculou ao atentado quando esse foi cometido. Temos aqui um caso em que uma lembrança desperta um afeto que não pôde suscitar quando ocorreu como experiência, porque, nesse entretempo, as mudanças [trazidas] pela puberdade tornaram possível uma compreensão diferente do que era lembrado (FREUD, 1895/1996, p. 410, grifo do autor).
Freud considera que o recalque atua, excepcionalmente, sobre as representações ligadas à sexualidade, as quais são, por sua vez, causadoras de sensações de desprazer. Em seus estudos iniciais, ele trabalha com essa assertiva a respeito da teoria de sedução sexual infantil. No entanto, a partir de 1897 tal postura adquire um novo sentido, necessário e estruturante, sobre o qual o psicanalista reformula sua teoria da sedução. Passa a compreender a sedução sexual infantil como personificação de desejos incestuosos das crianças em relação aos progenitores, e não o contrário. Cabe lembrar com Lacan, (1955-1956/2010) que o sentido na psicanálise vai em direção a uma outra significação "remete a alguma coisa que está adiante ou que volta sobre si mesmo" (p. 163).
Neste contexto, cabe considerar o fato de Freud, na carta a Fliess, de 21 de setembro de 1897, demonstrar certa descrença em relação a sua elaboração sobre a origem traumática das neuroses, defendida por ele nos cinco anos precedentes. Nessa carta, o psicanalista explica os motivos de não mais acreditar na "neurótica" (p. 309, grifo do autor). Segundo Freud (1897/1996), "a ausência de êxitos completos" (p. 310) durante o tratamento analítico de suas pacientes possibilitaram-lhe a constatação de que o inconsciente nem sempre é "domado pelo consciente" (p. 310) e que nele "não há indicações da realidade" (p. 310), pois as histórias relatadas por suas pacientes eram, na verdade, fantasias inconscientes, e não fatos vivenciados na realidade material.
Observa-se que, por mais que seja interessante o estilo com o qual Freud assinala essa mudança de posição, é possível dizer que ela já estava presente desde suas elaborações acerca da teoria da sedução, conforme visto no esquema freudiano referente ao caso Emma. Em tempo, compreende-se, portanto, a teoria do trauma para além dos efeitos de realidade e amplia-se o conceito de lembrança. Para tanto, o psicanalista traz à tona, em 1899, a ideia de "lembrança encobridora", segundo a qual as recordações do conteúdo manifesto, aparentemente insignificantes, apresentam detalhes, sensações precisas, intensas e alucinatórias. Essas lembranças encobridoras resultam de um processo de deslocamento em que algo de mnêmico (que representa um episódio acontecido) e algo de fantasia (vinculado a um desejo recalcado) são ocultados.
Assim, a noção de lembrança encobridora implica o fato de que, "em geral, não há nenhuma garantia quanto aos dados produzidos por nossa memória" (FREUD, 1899/1996, p. 298), isso porque traços de memória que se tornariam conscientes podem ser deslocados pela resistência para outros objetos de menor significação. Por esse motivo, muitas vezes o sujeito relata na clínica uma versão diferente daquilo que realmente aconteceu. Nesse caso, uma cena passada não é em absoluto um sinal mnêmico daquilo que ora foi vivenciado; é, pois, uma elaboração desejante que se organiza conforme as expectativas, as aspirações e fantasias do sujeito. No âmbito dessa discussão, uma lembrança aparentemente irrelevante e recorrente pode não ser uma lembrança, mas sim uma elaboração fantasiosa em que o sintoma traçado pelo inconsciente faz emergir os conteúdos sexuais do sujeito, anteriormente esquecidos e recalcados.
Sob esse prisma, nota-se que a noção a posteriori da lembrança articula-se com a ideia freudiana de retranscrição dos traços de memória descritos na Carta 52 (1896/1996). Após o trauma, incide um rearranjo, um efeito de tempo por meio do qual os eventos traumáticos contraem significação para o sujeito, distorcendo o vivido e se desdobrando num evento da realidade psíquica. Para Lacan (1959-1960/1997), a noção a posteriori [nachträglich], utilizada por Freud, faz referência a um trabalho discursivo de elaboração, oriundo da articulação entre algo do tempo presente com o conteúdo mnêmico. A singularidade da noção de memória formulada por Freud é evidenciada especialmente pela possibilidade de acesso, na contemporaneidade, ao episódio acontecido em outros períodos. Há, aqui, a memória como registro de ordem fundamentalmente inconsciente a qual configura a originalidade do trabalho de Freud.
A teoria freudiana demonstra, em relação à retranscrição dos traços mnêmicos, que o aparelho psíquico é um complexo aparelho de memória. Os traços mnêmicos fazem com que os eventos psíquicos fiquem registrados permanentemente na memória, podendo ser reavivados como resultado do investimento. Esses traços compõem o indicador da alteridade entre os distintos trilhamentos da energia, a primazia de um caminho em detrimento de outro. A esse respeito, Lacan (1955-1956/2010) nos lembra que "os fenômenos de memória pelos quais Freud se interessa são fenômenos de linguagem" (p. 185), pois as funções psíquicas da linguagem originam-se na estruturação de uma memória, inconsciente, cuja presença se manifesta nas falhas, nas linhas de ruptura e não ao acaso.
Nesses termos, a memória é concebida como um texto escrito a ser de cifrado; é, portanto, uma elaboração feita a partir de algo que escapa à consciência. Sob esse prisma, considera-se que as manifestações do inconsciente estão intrinsecamente vinculadas à ideia de um retorno do recalcado e apresentam uma estrutura literal. Elas se constituem como expressão do desejo, tramas produtoras de imagens sonoras ou visuais, operando, especialmente, nos tropeços que fazem o ser na impossibilidade de saber o que se sabe.
A interpretação dos sonhos (1900): as leis da linguagem
Com esse entendimento, a partir de observações clínicas psicanalista, no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, expõe que o Inconsciente (Ics) e o Pré-consciente (Pcs) são dois derradeiros registros mnêmicos do aparelho psíquico. Portanto, os sistemas pré-consciente e inconsciente seriam análogos aos processos primários e os secundários mencionados no Projeto (1895). Diante das relações estabelecidas entre os processos de ordem primária e secundária, Freud desenvolve em sua obra sobre os sonhos a ideia de que, durante a atividade onírica, as excitações circulam pelo aparelho psíquico em sentido "regressivo", isto é, em direção aos próprios elementos mnemônicos e não em direção à terminação motora do aparelho psíquico.
Com isso, o psicanalista propõe a existência de uma ação regressiva responsável pelo registro dos traços da memória no interior do aparelho psíquico. A relevância dessa explicação regressiva do funcionamento psíquico encontra-se em sua proposição temporal, e não na localização espacial dos sistemas, isto é, Freud "introduz a regressão a partir do momento em que o que salienta são fatores temporais" (LACAN, 1954-1955/1985, p. 186). Trata-se, portanto, do estabelecimento de uma lógica de sucessão temporal para os processos psíquicos.
Nessa lógica do funcionamento psíquico, o inconsciente é concebido como instância autônoma cujos conteúdos só podem ser alcançados pela consciência quando submetidos às censuras e transformações impostas pelos sistemas pré-consciente e consciente. Posta para além da ordem, a concepção de inconsciente adquire sentido no que escapa e falha aos humanos, seres de linguagem, isso porque o inconsciente é um conceito forjado e se apresenta naquilo que invalida a sequência lógica dos pensamentos cotidianos como mensagens cifradas contrárias à intenção do sujeito. Por esse prisma, tentar-se-á compreender a existência do inconsciente como um saber distinto daquele produzido pela reflexão consciente.
Destarte, o material que compõe o conteúdo enigmático do sonho, via régia do inconsciente, emana das experiências vividas pela pessoa que sonha. Tais experiências, evidenciadas na memória que se conserva do sonho (narração do sonho), ao mesmo tempo em que ocupam o lugar do único referente do texto psíquico, elaborado no sonho, são também uma espécie de tradução do onírico para o discurso verbal (o alucinado no sonho corresponde a um texto imagético e sensorial - visual/sonoro/tátil etc.). Nesse contexto, a representação é compreendida como um fato de memória que pode ser ou não dotado de consciência. De acordo com os pressupostos de Freud sobre o conteúdo do sonho, a elaboração onírica é a responsável pela deformação dos sonhos. Nesse processo de deformação, os pensamentos latentes são substituídos ou deslocados por um conteúdo aceitável à consciência.
A esse respeito, no texto Situação da psicanálise e a formação do analista (1956/1998), Lacan salienta que a linguagem dos sonhos, como todo evento psíquico, consiste de um discurso sobre determinado, composto por enigmas e símbolos em que cada componente tem igual valor, até mesmo aqueles aparentemente insignificantes ou duvidosos. Isso acontece porque nos sonhos as conjunções são puramente lógicas, as palavras são tratadas como coisas e o estatuto do pensamento inconsciente se faz como enigma a ser decifrado. Essa linguagem onírica, não alfabética, se compara aos hieróglifos do antigo Egito, ao rébus, e apresenta múltipla significação de seus elementos. Nesse aspecto, o autor compreende o sonho como um trabalho de escrita, elaborado à revelia do sonhador, governado pelas leis da linguagem.
À guisa de conclusão
O processo de elaboração de uma escrita é sempre uma viagem enigmática por certo território. Essa viagem, ainda que acompanhada bem de perto, é solitária e inicia-se por uma trilha sinuosa, cheia de obstáculos que aos poucos vão sendo superados. Durante o percurso, ou ao final, confirmamos e negamos algo do que éramos, nos descobrimos no outro, revelamos nossa própria voz e a projetamos no discurso do Outro. Enfim, não somos mais os mesmos de antes da travessia.
Logo, pensando nos caminhos e descaminhos que orientam o trabalho de Freud é interessante observar que sua escrita referente ao funcionamento do aparelho psíquico "testemunha uma mudança discursiva, um giro que inscreve o batimento de outra coisa, giro causado pelo desejo de transmitir o impossível de transmitir" (LEITE, 2009). Isso incide no (im)possível retorno à verdade da letra freudiana: ora, "há um lugar, o inconsciente, em que se enuncia uma verdade que tem a propriedade de nada podermos saber dela" (LACAN, 1968-1969/2008, p. 198). Ora, é possível aprender com a psicanálise que significativa parte do conteúdo da imagem mnêmica nas associações de representação independe da consciência, pois a memória é registrada de diferentes modos, em múltiplos assentamentos, sendo que os arranjos iniciais da memória não são abertos à consciência. Nela há uma verdade intolerável com a qual cada sujeito é convocado a apreender algo.
Assumindo tal viés, entende-se que o psíquico em si mesmo é inconsciente, marcado por forças e representações que agem à revelia da consciência. Ou seja, a atividade inconsciente, embora permaneça excluída dos processos mentais de ordem consciente, comporta-se de forma ativa, sendo capaz de exercer efeitos sobre a consciência. É nesses termos que Freud apresenta o inconsciente, compreendendo que a elaboração onírica implica modificações que ocultam o desejo realizado no sonho e configurações alheias à realidade objetiva.
Referências
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Artigo recebido em: 13/09/2019
Aprovado para publicação em: 04/11/2019
Endereço para correspondência
Dayanna Pereira dos Santos
E-mail: dayannagyn@hotmail.com
*Psicanalista. Mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora do Instituto Federal de Educação de Goiás (IFG), Membro do GT Psicanálise e Educação - ANPEPP. Goiânia, GO, Brasil.
1A noção de a posteriori foi apresentada por Freud no Projeto para uma psicologia científica(1895/1996).