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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

ARTIGOS

 

Alucinações: índice de adoecimento ou fator de estabilização?

 

Hallucinations: illness index or stabilizing factor?

 

 

Deivison Marques de Oliveira*; Ari Alves de Oliveira JuniorI, II**

IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil
IICentro Universitário São Camilo - CUSC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata de um estudo de caso de paciente atendido em um serviço de saúde do município de São Paulo (SP). Considerando que o referencial teórico psicanalítico orientou a prática clínica do processo, abordou-se a psicose em termos de estrutura clínica de linguagem, contrariamente à noção de déficit das funções psíquicas. A partir de Freud e Lacan, e suas contribuições ao estudo das psicoses, buscou-se entender quais situações, contextos e elementos intrapsíquicos se associavam à produção dos fenômenos psicóticos, seus efeitos e sua função para o sujeito, em especial no que tange à alucinação. A partir do fragmento do caso clínico, chegou-se à conclusão de que a alucinação fomenta a produção de um discurso singular, tendo uma lógica própria que se engendra a partir da experiência enigmática da psicose, sendo capaz de conduzir o sujeito à estabilização.

Palavras-chave: Alucinação, Psicanálise, Lacan, Jacques-Marie Émile, Psicose.


ABSTRACT

It is a case study of a patient attended at a health service in the city of São Paulo (SP). Considering that the psychoanalytic theoretical framework guided the clinical practice of the process, the psychosis was approached in terms of a clinical structure of language, contrary to the notion of psychic functions' deficit. Beginning from Freud and Lacan, and their contributions in the study of psychoses, an understanding of which situations, contexts and intrapsychic elements were associated with the production of psychotic phenomena was sought, as well as their effects and their function in relation to the subject, particularly with regard to hallucination. From the clinical case fragment, it was concluded that the hallucination fosters production of a singular discourse, with its own logic generated from the enigmatic experience of psychosis, and capable of leading the subject to stabilization.

Keywords: Hallucination, Psychoanalysis, Lacan, Jacques-Marie Émile, Psychosis.


 

 

Introdução

Em um serviço de saúde localizado no município de São Paulo - SP, foi atendido um paciente homem, de 38 anos, desempregado, com histórico de 12 anos de sofrimento mental. Segundo seu próprio relato, apesar da busca por tratamento em diversos serviços públicos de saúde, nunca havia se submetido a qualquer tipo de terapia psicológica, seja por meio de trabalho individual ou em grupo, ou seja: vinha sendo tratado até então apenas por via farmacológica. Apesar das resistências iniciais, associadas à dimensão estigmatizante das doenças mentais, o trabalho seguiu-se por um ano, com atendimentos semanais de duração de 50 minutos. O relato que será exposto adiante exprime este trabalho de escuta realizado com o paciente.

Considera-se o recurso da escuta clínica, feita de acordo com a técnica psicanalítica, o lugar onde o enfermo é convocado a ocupar uma posição de sujeito, de modo que sua experiência subjetiva seja colocada em primeiro plano. Nesse contexto, tentamos procurar no saber do louco sobre si (GARCIA-ROSA, 2009) os recursos para entender como se constrói o discurso fora do campo da razão. Nosso ponto de partida é a compreensão de que os sintomas clássicos da psicose - delírio e alucinação - são formas de tratar aquilo que não foi simbolizado, retornando no registro do Real sob a forma de sintomas (GUERRA, 2006).

Entende-se, como diz Freud (1911-1913/1996), a partir de seu estudo do caso Schreber, que o produto que se presume ser o fruto do adoecimento é, ao contrário, uma tentativa de estabilização. Assim, ao invés de reservar o discurso do louco ao vazio de sentido, concebemos que é a partir dele que o sujeito pode constituir estratégias singulares, na maioria das vezes não coletivamente compartilhadas, mas que ainda assim são capazes de estabelecer um tipo, mais ou menos tênue, de laço social.

Como na literatura psicanalítica sobre o tema não se encontram referências acessíveis sobre casos de estabilização pela via das alucinações visuais, havendo sempre maior interesse dos psicanalistas pelo tipo paranoide, utilizamos as conhecidas noções lacanianas sobre o tema para ampliar nossa compreensão e potencial de tratamento para o caso. Entretanto, a perspectiva que orienta este trabalho é a de que o estabelecimento de discursos que nomeiam algo do Real da psicose, pelos quais o ser tenta tornar-se sujeito, é sempre singular.

Sabe-se que, diante da realidade dos dispositivos de saúde mental presentes no Brasil, é salutar que se afirmem as alternativas de tratamento tanto à lógica manicomial quanto a tratamentos levados a cabo unicamente pela via farmacológica. Assim, a tentativa de estabilização pela via do manejo da alucinação visual, fenômeno ligado à maior morbidade e aos períodos de surto (FREUD, 1914-1916/1996; CALLIGARIS, 1989; QUINET, 2002), pode ser mais uma das formas de pensar e atestar, não só a singularidade das formas de estabilização, mas também a inserção e a construção de laço social por parte dos psicóticos, levando adiante as compreensões sobre o campo da escuta do dizer fora do campo da razão.

Após a exposição do caso clínico e de uma breve análise sobre a relação da estrutura psicótica com o significante, propõe-se uma discussão que destaca três momentos pelos quais o paciente transita em sua relação com as alucinações: desencadeamento - quando a estrutura da psicose revela-se fenomenicamente; construção psicótica - quando fenômenos elementares vão progressivamente se adensando; e, por último, o momento de resposta à injunção - em que advém um significante que organiza a alucinação como um discurso, tornando o psicótico capaz de estabelecer uma relação com o Outro que não seja apenas de assujeitamento.

 

Caso Clínico

Raul1 chegou encaminhado por um hospital público do estado de São Paulo, onde permaneceu internado por cerca de dois meses devido a uma tentativa de suicídio, ocorrida cerca de cinco meses antes do início do atendimento. Ele afirmou ter sido diagnosticado com esquizofrenia, submetendo-se a tratamento com base em antipsicóticos e antidepressivos, há mais de doze anos, desde a data do seu primeiro surto. Relatou também que as discussões em família, e a insistência do padrasto em chamá-lo de "vagabundo", o teriam deixado cada vez mais deprimido. Assim, em determinado dia, após ocorrer uma discussão entre Raul, sua mãe e seu padrasto, tomou todos os comprimidos que tinha em casa, pensando ser a própria morte a melhor opção para cessar sua angústia.

Nos primeiros atendimentos, ficou patente a expressão de sentimentos melancólicos, ligados a uma ideação suicida, referida pelo próprio paciente, a qual persistiu durante as primeiras sessões. Ao longo dos atendimentos, relatou diversas discussões familiares, não só relacionadas a fatos cotidianos, mas também à dificuldade de lidar e de compreender alguns aspectos do seu sofrimento psíquico.

Raul viveu com o pai até os dez anos de idade, mas, devido ao falecimento deste, veio a morar com a mãe, o padrasto e os irmãos. Posteriormente, ao contrário do que havia dito, refere que o pai apenas faleceu quando o paciente já contava mais de trinta anos. Nesse segundo momento, contou, então, que morava com os avós paternos, mas, devido ao falecimento do avô, quando Raul tinha cerca de 5 anos, e depois o da avó, aos 11, foi morar com a mãe, nunca tendo contato próximo com o pai, apenas indo visitá-lo algumas vezes.

Nas primeiras sessões, quando questionado se algo além da difícil convivência familiar o incomodava, afirmou existirem "algumas coisas" (sic) que não compreende. Após estar mais à vontade, afirmou tratar-se de "coisas" em sua cabeça, que são referidas como: "Sil, vil, for, ce, be, fi, bi" e algumas outras sílabas, sem que seu significado ficasse aparente. Ao falar sobre isso, demonstrou grande sentimento de raiva sobre a incompreensão de tais ditos. A partir desse momento, esmerou-se em terapia a questão do diagnóstico diferencial. Assim, apesar de haver um diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia, trata-se de um diagnóstico fenomenológico e que pouco - ou nada - auxilia no diagnóstico diferencial estrutural psicanalítico feito a partir da posição em que o sujeito se coloca na relação transferencial. Dessa forma, a primeira hipótese diagnóstica que se estabeleceu foi entre uma neurose obsessiva bastante grave, de onde surgiriam tais pensamentos intrusivos, ou de uma psicose, já que o paciente não se implicava diante do próprio relato.

Após algumas sessões, mais colaborativo do que no início do tratamento, ele afirmou ter descoberto que as "coisas" que não compreendia são, na verdade, códigos que serviam para falar com aquilo que refere como "as vozes". Cada código tem um significado diferente, por exemplo, "cê" significa cerveja, "bi" significa birra, "fi" significa filho e "bê" significa bebê. Ao ser perguntado quando essas vozes começaram a lhe falar, disse que foi em 2004, por volta de seus 24 anos. Não detalhou, mas contou que tais vozes pronunciavam, em sua grande maioria, palavras ruins.

No que concerne ao aspecto clínico, é neste momento que fica mais claro tratar-se de uma psicose, posto que, neste caso, ao contrário da neurose, o falante não se reconhece diante dos seus sintomas, atribuindo a um Outro (LACAN, 1988) a realidade daquilo que lhe ocorre, de modo que o analista é colocado no lugar de testemunha de um saber para o qual não há questionamentos, mas certezas. Ademais, os tais códigos demonstram a separação latente entre significado e significante manifestada devido à ausência do ponto-de-basta, em que o vazio de significação predomina. Torna-se ainda instrutivo notar que a significação dos códigos ocorre por meio dos fenômenos elementares, demonstrando a importância do trabalho psicótico como suplente da função ponto-de-basta, induzindo, então, à significação (LACAN, 1988). Soler (2007), utiliza o termo "trabalho psicótico" como oposição ao "trabalho da transferência", ocorrido na neurose. Neste último, há a atualização das imagos parentais na figura do analista, bem como um investimento libidinal, de onde fica suposto em sua figura, o saber que faz parte do inconsciente do analisando (GOBBATO, 2001). Enquanto isso, no "trabalho da psicose" falamos em um exercício que ocorre solitariamente, de forma a suprir os efeitos da foraclusão. Isso implica não só uma mudança radical na direção do tratamento, mas também uma mudança ética: Os então ditos fenômenos elementares não necessariamente devem ser removidos, mas com o devido manejo, podem até ser estimulados, postos para "trabalhar".

A partir do momento em que se concebeu o diagnóstico de psicose, o manejo clínico incorporou as especificidades impostas por tal estrutura, abrindo mão do recurso da interpretação, para que o paciente por si só fomentasse as significações pelas vias particulares de sua estrutura (FINK, 1997). A posição clínica adotada foi então a de "testemunha da relação do sujeito com o Outro" (QUINET, 2011 p. 146), com o objetivo de que o paciente pudesse, assim, nomear algo de seu gozo.

Conforme o decorrer do primeiro período de atendimentos, Raul afirmou gostar de vir às sessões, pois percebeu que pode falar à vontade, dizendo que ali não é visto como louco. Dissipando-se as desconfianças iniciais, a relação transferencial tornou-se cada vez mais harmoniosa. Ele relatou, então, que as vozes com quem fala são, na verdade, de um "amigo", cujo nome não sabe, e por isso o chama de "papai", dizendo ser "como um pai" para ele2. Ele também contou que vê duas crianças, uma loira e uma ruiva, que têm idade por volta dos doze anos, e que nunca lhe dirigem a palavra.

Outro fato relatado por Raul foi o de terem ocorrido dois momentos em que "ficou mal" (sic). A esse respeito, consideramos tratar-se de surtos psicóticos, tendo em vista que nesses períodos não conseguia diferenciar o que era realidade e o que era alucinação, como reconhece no atual momento. Com mais detalhes, contou que, no primeiro surto, no qual se via fora do corpo com frequência e sem controle algum, ouvia constantemente a palavra "morte" e vozes de pessoas que diziam coisas horríveis, sobretudo que iriam matá-lo. Neste tempo, havia começado a frequentar o espiritismo, e esses acontecimentos começaram mais ou menos dois meses depois disso. Pensava tratar-se de algum tipo de mediunidade, mas a visão de seu ex-namorado dizendo que iria destruí-lo o fez perceber que não eram, como pensava, apenas pessoas mortas, mas vivas também, pois este não poderia estar morto, já que havia tido notícias dele poucos meses antes. Procurou, então, auxílio médico, afastando-se do trabalho para realizar o tratamento adequado. Alguns meses depois, suas visões sumiram, e aos poucos Raul voltou à rotina normal.

Após dois anos, voltou a trabalhar, mas os efeitos colaterais dos remédios o atrapalhavam em desempenhar sua função de vendedor. Seus patrões lhe diziam que estava vendendo menos do que antes, e que dessa forma não seria possível mantê-lo empregado. Decidiu parar o tratamento medicamentoso e, ao mesmo tempo em que voltou a desempenhar de modo efetivo suas funções no trabalho, passou a ver seu "amigo", o qual reconhece como sendo diferente de uma pessoa real devido ao fato de ele ser transparente, de forma semelhante à do "Gasparzinho", personagem de desenho animado. Nota-se que Raul dá muita importância a essa analogia, pois foi algumas vezes à sessão com uma camisa preta com uma estampa do Gasparzinho, circundado pelo símbolo dos "Caça-Fantasmas".

A respeito dos episódios relatados pelo paciente, cabe lembrar que os elementos constitutivos de sua psicose o aproximam de um tipo clínico esquizofrênico, em que há predominância dos fenômenos alucinatórios em detrimento da paranoia. Excetuados os poucos períodos de surto, Raul consegue reconhecer que apenas ele é capaz de ver tais elementos, mantendo um contato normal com a realidade, ignorando quando as alucinações aparecem enquanto está fazendo suas atividades do dia a dia ou conversando com alguém. Esses fenômenos encontram-se separados daquilo que é a vida cotidiana na medida em que são compreendidos como fenômenos espirituais.

Raul afirmou que, no início, seu "amigo" apenas comentava sobre seu trabalho. Quando Raul ia bem, comentava coisas como "hoje você arrebentou", "hoje você foi bem", etc. Estas são as frases que Raul profere em sessão, já que seu "amigo" parece se utilizar, muitas vezes, de um palavreado peculiar para estabelecer contato. Por exemplo, ao elogiar Raul, seu "amigo" diz algo como "hoje você reluziu", e o paciente é que é responsável por interpretar sua fala, entendida por ele como "hoje você foi bem".

Com o passar do tempo, seu "amigo" ficou cada vez mais próximo e passou a conversar com ele sobre outras partes de sua vida, como relacionamentos, amigos e família. Nesse tempo, conversava com ele como se estivesse falando com uma pessoa real e, para não ser tachado de louco, perguntou-lhe se não haveria outra forma de estabelecer contato. A resposta obtida foi a de que era necessário apenas pensar para que eles conversassem. E isso Raul disse funcionar como uma espécie de telepatia.

O segundo surto, mais ou menos dois anos após o primeiro, ocorreu quando seu "amigo" apareceu em sua frente, mostrou uma imagem de seu ex-namorado e disse: "fulano mandou te mostrar essa imagem dele". Nesse momento Raul quis saber qual relacionamento existia entre eles dois. "Você sabe o que ele fez comigo?", perguntou ao seu "amigo", querendo também saber um pouco melhor quem ele era, pois, de fato, nunca havia sequer refletido sobre o assunto. Seu "amigo" não respondeu a nenhuma de suas perguntas, e pouco depois tudo voltou a ser igual ao período do primeiro surto, ao mesmo tempo em que qualquer aparição de seu "amigo" lhe causava muito medo, o que o levava a apelar à bebida alcoólica para entorpecer-se. A reestabilização só ocorreu quando o paciente retomou o tratamento medicamentoso.

Com relação à origem de seu "amigo", em outra sessão comentou que, quando estava naquele período, o "amigo" apareceu para ele e disse "eu sou do seu si", o que Raul entendeu significar que ele vinha de seu interior, e dizia coisas relacionadas ao seu subconsciente (sic), não sendo, portanto, razoável fugir dele como estava fazendo na época. Possivelmente, tal fato pode ter efeito estabilizador, na medida em que, por uma maior elaboração elementar, restabelece a harmonia com os conteúdos alucinatórios.

Um outro momento de maior instabilidade ocorreu quando seu "amigo" lhe falou que devia ir para Londrina, pois seria o lugar onde ele iria renascer. O paciente comentou ter pensado muito se deveria ir ou não, posto que renascer significaria abandonar a família, os amigos e criar tudo novamente. Chegou a pesquisar sobre a cidade e lugares em que poderia ficar, mas decidiu não ir, pois entendeu que seria extremamente angustiante renascer e criar uma vida nova. Foi nesse momento que começou a ver bebês loiros e recém-nascidos, de forma que por todos os lados onde ia, esses bebês lá estavam. Relatou que era uma visão horrível, mas que foi desaparecendo na medida em que passou a gostar de vê-los, pois passaram a ser assunto das conversas com seu "amigo".

Dessa forma, do que pôde ser percebido do relato das conversas que o paciente tem com seu alucinado "amigo", este faz um papel de guia para Raul, que, por sua vez, sempre afirma gostar de sua presença, pois ele "elogia quando tem que elogiar e critica quando tem que criticar" (sic). Em alguns momentos o paciente retorna ao ponto em que começou a vê-lo, sempre dizendo que já o havia visto antes do primeiro surto, mas apenas em aparecimentos breves. Primeiro diz que o via desde os quinze anos, quando apareceu e fez revelações de que ele seria um drogado, mas não de cocaína e maconha, como de fato fez uso antes do primeiro surto, mas sim da grande quantidade de fármacos que tomaria no futuro. Posteriormente, diz que já o via desde criança. Sua família, sendo evangélica, parou um dia ao olhar para o céu e pensou: "Tá, se eu for para o inferno, eu tô fodido, então é ruim, e se eu for para o céu, o que será que tem pra fazer lá? Porque só ficar ao lado de Deus deve ser bom, mas é um saco se não tiver nada para fazer, então eu questionei, pra mim mesmo, que não é possível. Então eu comecei a ver, né? A ver esse amigo meu. Pensei, também, será que, tipo, morreu e acabou e não tem mais nada pra fazer? Você vive uma vez só e acabou? Acho o fim sinistro, e aí eu comecei a ver essas coisas assim, naquele período" (sic).

O fato mais interessante dessas memórias é que o paciente relata se lembrar delas apenas posteriormente ao aparecimento de seu "amigo", no período em que abandonou o tratamento medicamentoso, referindo que antes ele havia se esquecido delas, e que seu próprio "amigo" o fez se lembrar. Este fenômeno é semelhante ao que ocorre em relação às "previsões" que a alucinação de seu "amigo" faz. Raul disse que muitas coisas que acontecem de ruim a ele lhe são avisadas antes de ocorrerem. Porém, só consegue se lembrar de que já havia sido avisado depois de elas ocorrerem, sendo mostradas, então, em uma tela à sua frente.

Após um intervalo de férias em que não ocorreram atendimentos, Raul referiu sentir tristeza em relação à morte de uma tia muito querida, ocorrida um mês antes. Relatou que, devido ao abalo emocional, chegou a vê-la depois da morte, junto com seu "amigo". Afirmou tê-la visto sorrindo, o que o deixou tranquilo, porém nem ela nem o seu "amigo" lhe dirigiram a palavra, apenas apareceram visualmente. Cabe lembrar que, durante os atendimentos, a visão de pessoas já mortas foi relatada em diversos momentos.

Em um desses relatos, considerado um dos mais importantes para a compreensão do funcionamento estrutural desse paciente, Raul contou que, após perder a avó paterna, ainda criança, seu "amigo" apareceu e disse "sua avó já reencarnou". Muitos anos depois, ao lembrar3 o ocorrido, resolveu perguntar ao seu "amigo" como ocorreu a situação de seu reencarne, que respondeu: "ela ficou cinco anos comigo". Obtendo a resposta, Raul aproveitou e decidiu perguntar também do pai de uma amiga que havia falecido há pouco tempo, e seu amigo respondeu: "esse aí já está no berço", o que Raul entende significar que ele já teria reencarnado. Relatou também ter perguntado a respeito da filha desse mesmo senhor, que também havia falecido dois anos depois; seu alucinado "amigo" disse: "ela está por aí". Assim, foi perguntado ao paciente o que significava "estar por aí", o que ele afirmou significar que ela está vagando por aqui na terra, mas sem reencarnar. A esse respeito, Raul explicou que ocorrem casos de pessoas que demoram de quinze a vinte anos pra renascer. Afirmou também não conhecer muito sobre este assunto, mas já sabia disso muito tempo antes de frequentar a religião espírita, pois tratava-se de um ensinamento passado a ele pelo "amigo".

Nos últimos atendimentos, Raul fez referências às crianças que vê em suas alucinações; afirmou que o loiro, segundo seu "amigo", é, na verdade, o próprio Raul. O garoto ruivo tratar-se-ia de seu avô, falecido quando ele era pequeno. Comentou que antigamente ficava muito irritado com o fato de seu "amigo" dizer que o garoto loiro era ele mesmo, pois não compreendia como ele poderia ser outro ao mesmo tempo em que era ele mesmo. O garoto ruivo o incomodava também, pois dizia ser estranho ver seu avô em outra forma. Relacionou esse fato do avô com a religião espírita, dizendo que as pessoas mudam de forma depois que morrem. Posteriormente, disse que essas crianças são, na verdade, um adolescente e um adulto. O menino loiro tem por volta dos quatorze a quinze anos, e o ruivo tem por volta dos vinte e cinco anos de idade. Diante da visão de ambos, que aparecem em diversos momentos, mas mais ainda quando está estressado, disse ser melhor ignorá-los.

No caso de Raul, o atendimento foi importante no sentido de poder socializar seu trabalho psicótico, que aparentemente já se encontrava constituído no momento do início do tratamento. É no momento em que Raul endereça sua loucura a outro, que o escuta sem julgá-lo, que se torna capaz de estabelecer relações sociais que não sejam apenas de perseguição. Nesse sentido, afirmou que "aprendeu que deve falar 'dessas coisas' apenas na terapia, e com mais ninguém" (sic). Em vários momentos, nota-se que apenas sua construção psicótica não dá conta de harmonizar sua relação com o Outro, demonstrando o quanto o trabalho clínico de escuta do discurso fora do campo da razão pode ser pertinente para cooperar com o trabalho de reparação ocorrido pela incidência da metáfora no registro do Real. Por fim, grandes ganhos, em termos clínicos, que podem ser muito bem associados a ganhos vivenciais, puderam ser observados durante o atendimento. Dentre esses, o paciente conseguiu o seu primeiro emprego desde o desencadeamento da psicose, 12 anos atrás, quando os relatos do paciente passaram a ser predominantemente a respeito das ocorrências diárias vividas no trabalho, em detrimento do conteúdo das alucinações e das desavenças familiares.

 

Um problema de linguagem

A questão de entender os fenômenos psicóticos como um problema de percepção resultado de falhas orgânicas foi analisada por Lacan (1998) a partir da concepção da fenomenologia de Husserl, segundo a qual não há perceptum, o objeto percebido, sem o percipiens, o sujeito da percepção. Porém, partindo de Freud, Lacan avança em suas formulações ao compreender queo sujeito da percepção, ao invés de unívoco, divide-se entre consciente e inconsciente, sendo estruturado pela linguagem. Segundo Soler (2007, p. 34), isso "implica que a linguagem não é um instrumento do sujeito, mas um operador, no sentido de que produz o próprio sujeito". Há, então, entre o percipiens e o perceptum, uma relação que não é estritamente objetiva: o sujeito, dividido e estruturado pela linguagem, empresta significantes para a atribuição de sentido do objeto percebido.

Porém, sendo a estrutura psicótica uma consequência da foraclusão (LACAN, 1988), existe a possibilidade de que este "empréstimo de significantes" ocorra sem uma articulação em cadeia, "como se faltasse um broche que faz o elo entre intenção subjetiva e sequência significante objetiva" (LUSTOSA; CARDOZO, 2017, p. 138). A falta do significante Nome-do-Pai faz, então, com que o sujeito, que surgiria como um efeito da articulação significante, não possa se situar em relação ao seu discurso. Assim, ao invés da fórmula neurótica, em que o significante representa o sujeito para outro significante, ele representa "algo para alguém, mas não se sabe o quê" (MILLER, 1995, p. 8). Dessa forma, o psicótico não reconhece como suas as produções delirantes e alucinatórias que, quando não provocam perplexidade, são entendidas como inquestionáveis, atribuídas frequentemente a figuras divinas.

A título de elucidar como funciona a formulação de Lacan na prática, nota-se na psicose de Raul grande apelo a elementos espirituais e religiosos. A esse respeito, Koenig (2007) aponta que sua frequência aumenta de forma diretamente proporcional à maior presença de traços religiosos em determinada cultura, podendo variar enormemente entre uma cultura e outra. A consequência geral é que em culturas nas quais há forte experiência religiosa, um diagnóstico de base fenomenológica pode tornar-se mais difícil, uma vez que uma pessoa muito religiosa pode relatar experiências como "ouvir a voz de Deus", da mesma forma que um psicótico. Nesses casos, a diferença reside apenas na relação com o significante: enquanto o religioso se reconhece como agente enunciador, o psicótico pode manifestar a sensação de que é um Outro que lhe fala, de forma que o significante se apresenta sem um sujeito concreto, manifestando uma espécie de linguagem que lhe aparece como exterior.

O que indica se há um delírio psicótico é, na verdade, uma ruptura de sentido, constituindo o que Soler (2007) denomina de experiência enigmática da psicose. O enigma surge quando, na fala, um significante resta vazio de significação, não estando articulado a uma cadeia. No caso de Raul, ainda que exista uma grande quantidade de fenômenos elementares, não é bem isso que atesta a estrutura psicótica, mas sim uma forma de relação bem particular com o significante. Diante disso, os fenômenos da estrutura psicótica podem ser compreendidos como uma enunciação desvinculada de seu enunciador (LUSTOZA; CARDOSO, 2017), o que não significa que, por um efeito de suplência do nome-do-pai, o sujeito não possa implicar-se na enunciação, como será possível verificar conforme avançarmos.

 

Desencadeamento psicótico

Calligaris (1989, p. 20) afirma que "no desencadeamento da crise existe sempre alguma coisa como uma injunção feita ao sujeito psicótico de referir-se a uma amarragem central, paterna". Como no psicótico essa amarração4 não existe, posto que há a foraclusão, inicia-se uma crise que apresenta os fenômenos característicos da psicose já descritos pela psiquiatria clássica. No caso do nosso paciente, parece haver um momento em que ele é convocado a simbolizar acontecimentos que já estavam ali presentes em sua história sem, no entanto, provocar o desencadeamento de uma primeira crise. Assim, sua filiação ao espiritismo seria apenas mais um dos caminhos errantes em que o psicótico pode esbarrar antes do desencadeamento da psicose, se não o convocasse a se referir a uma função simbólica ausente.

A partir do relato de caso e da escuta clínica, é possível verificar que existem elementos da história de vida do paciente que se repetem sob a forma de delírios e alucinações. Assim, ele vê por meio de alucinação visual muitas pessoas que já morreram, tidas por ele como espíritos, ao mesmo tempo em que refere a morte dos avós, que na infância ocupavam as funções materna e paterna. A vinculação ao espiritismo parece ser um momento crucial em que o paciente é convocado a simbolizar esses acontecimentos que, por algum motivo, não haviam ocasionado um desencadeamento quando de sua ocorrência na infância.

A esse respeito, Quinet (2011) afirma que um desencadeamento pode ocorrer devido a diversas situações de vida, por exemplo tornar-se pai, o primeiro contato sexual, quando o sujeito é chamado a exercer a função fálica, a falência de alguém próximo, etc. Porém, o sujeito pode passar por diversas situações como essas em que é convocado referir-se a uma amarração central sem ter sua psicose desencadeada. Isso ocorre porque, nesses momentos, o sujeito permanece munido de "bengalas imaginárias" (QUINET, 2011, p. 54) que lhe dão apoio quando ele tropeça no buraco da significação ausente.

No caso de Raul, pode ser que a falha imaginária aconteça devido ao confronto de crenças em que se encontra quando visita o espiritismo, uma vez que sua família é toda evangélica. O efeito injuntivo ocorre, pois convoca-o a reordenar um saber que faz parte da história dos significantes paternos que, por não possuir uma amarração simbólica, retornam no Real. O próprio relato de Raul indica que esse saber paterno que demanda uma reordenação diz respeito ao tema da morte, que entra em desacordo quando sua crença é defrontada. Isso ocorre, pois, diante da morte, o protestantismo e o espiritismo detêm compreensões completamente diferentes. Assim, em respeito às questões morais, as religiões de base cristã, como o protestantismo e o espiritismo, têm muitos pontos em comum. Porém, quando se trata do pós-vida, que ambas entendem ser possível, ocorrem divergências importantes. De forma resumida, no protestantismo, quem morre deve aguardar o retorno de Jesus e o julgamento final, para ressurgir ou ao lado de Jesus, ou no inferno, expiando seus pecados. No espiritismo, quem morre inevitavelmente torna-se espírito e posteriormente renasce em outro corpo, tendo por objetivo evoluir e buscar o aperfeiçoamento moral (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2001).

É por não haver deslizamento possível da cadeia significante que um confronto de crenças pode ter efeito injuntivo. A ausência do ponto-de-basta na psicose não permite o deslocamento do significado para o qual um significante aponta, que no caso de Raul compreende-se ser o significante "morte". Assim, na tentativa de forçar esse deslocamento, a diluição do imaginário, reduto do significado, advém como consequência.

 

A construção5 psicótica

Lacan (1988) estabelece relação entre a alucinação auditiva e a linguagem. Para ele, não se trata de um distúrbio ligado aos órgãos sensoriais, mas sim de um distúrbio de linguagem; é por ela ser verbal que um psicótico não a confunde com sons que estimulam o aparelho auditivo, ou que um psicótico surdo e mudo pode alucinar. Quinet (2011, p. 16) afirma que na alucinação verbal a "cadeia significante se impõe ao sujeito em sua dimensão de voz, manifestando-se a partir de uma atribuição subjetiva, ou seja, num certo 'eles me dizem que...'". Nesse sentido, ela manifesta-se a partir da posição do Outro, justamente como as formações do inconsciente no neurótico.

Assim, quando um psicótico se depara com uma injunção à qual não pode responder, o que se manifesta pela alucinação verbal são os significantes paternos:

Que haja forclusão do nome-do-pai para um sujeito psicótico não implica que não haja uma história de uma certa forma edípica. O problema é que esta história edípica não produziu uma metáfora de tipo neurótico. Mas os significantes dessa história, os significantes paternos, fazem parte do saber do sujeito, como qualquer outro significante. O que não é simbolizado é a função central desses significantes. É porque esta função central vai ser imposta pela injunção, que esses significantes vão voltar para o sujeito no Real. É muito importante pensar que o que está voltando no Real é alguma coisa da história, do saber do sujeito (CALLIGARIS, 1989, p. 44).

No caso de Raul, a temática da morte, que reaparece por meio das alucinações, faz parte, como vimos, da história dos significantes paternos. É a partir desses significantes que o sujeito pode construir um delírio que pode ou não ser viável, no sentido de levá-lo a uma estabilização6 do quadro clínico, com preponderante remissão sintomática e restabelecimento dos laços sociais. O delírio se constitui como uma defesa e como um orientador de gozo pelo qual o psicótico é invadido pela sua posição em relação ao Outro. A partir disso, concebe-se a metáfora delirante como "uma metáfora parapaterna, pseudopaterna. É uma metáfora paterna, mas delirante, na medida em que a posição paterna fica no Real" (CALLIGARIS, 1989, p. 45).

O delírio - e, neste caso em particular, - a alucinação, têm uma dinâmica, fazem parte de um trabalho de construção a fim de conduzir o gozo do Outro a uma posição viável. Como pode-se ver pelo caso de Raul, existem fases, períodos de maior ou menor estabilização, que visam elaborar delírios e alucinações, levando-os a um estatuto simbólico. Segundo Maleval (1998), que distingue quatro tempos da edificação delirante, a primeira fase corresponde à dissolução imaginária, imediatamente posterior ao desencadeamento, no qual acontecem os fenômenos de despedaçamento do Eu. A segunda fase é correspondente à fixação do gozo do Outro, em que ocorre uma tentativa de localizar o gozo que invade o psicótico no desencadeamento da crise. A partir disso, não seriam mais "as vozes" que lhe falam, mas apenas a voz, em sentido singular. Essa, por si só, ganha um contorno visual, semelhante ao "Gasparzinho", como Raul diz, o que torna mais aceitável a sua presença. A escolha desse significante para representá-lo pode não ser aleatória e parece fazer parte da própria construção e da rede de significantes que é convocada pela injunção. Aliar a figura que vê ao "fantasminha camarada" significa afirmar que ele, como espírito - logo, figura já morta - também representa alguém amistoso e afável.

Tal criação psicótica organiza a rede de significantes que se encontrava desorganizada, dá contorno ao buraco da significação que jazia após a injunção. Seu "amigo", ao qual não aleatoriamente chama de "pai", representa um ente que, metaforizando a função paterna no Real, personifica uma posição de Outro, que é responsável por guiá-lo, dizendo sobre sua vida, ao mesmo tempo mediando e fazendo-se de interlocutor daqueles que morrem. Segundo Maleval (1998), é bastante regular que nessa fase haja um apelo a um princípio paterno, que frequentemente assume as figuras do poder, da lei e do divino. Assim, para Raul, seu "amigo" representa um substituto da Lei, ao qual, por exemplo, no caso Schreber, corresponde a Ordem do Mundo (QUINET, 2011).

Após esse momento de localização do gozo, o terceiro momento do trabalho psicótico consiste em identificar-se com esse ente imaginário substituto da Lei. Vemos que esse trabalho não ocorre sem algum sofrimento por parte de Raul, que entra em surto novamente quando passa a ter medo de seu "amigo", demonstrando que a localização do gozo não o retira de sua posição de objeto. O momento fundamental para a rearmonização com esse Outro ocorre quando seu "amigo" surge e fala "eu sou do seu si", de modo que a própria utilização do pronome pessoal "si" já indica uma ação verbal sobre si mesmo, que, para Raul, tem o efeito de admitir essa presença em sua vida. É a partir desse momento que Raul e seu "amigo" se coadunam e formam uma parceria que Raul diz funcionar muito bem, pois seguir seus conselhos o organiza.

A respeito do tipo clínico esquizofrênico, Calligaris (1989) afirma que é menos frequente que esquizofrênicos consigam constituir um delírio capaz de metaforizar a função paterna no Real. Essa dificuldade atribui-se ao polo eminentemente débil da função paterna que se manifesta nas alucinações auditivas do esquizofrênico, levando a uma preponderância de alucinações não auditivas e ausência de metáfora delirante, culminando em casos que muito raramente encontram um desfecho positivo. Porém, como visto, ainda que no caso estudado exista a preponderância de alucinações visuais, seu "amigo" e as crianças que vê parecem fazer parte do trabalho de simbolização, bem como da constelação de significantes paternos que são evocados a partir de sua ida ao centro espírita. Eles parecem manifestar-se a partir de uma função metafórica para além da pura relação objetal em relação ao Outro. Nesse sentido, pode-se afirmar também que há coerência em relação ao "ver" no sentido alucinatório, pois sua construção leva justamente a elaborar uma posição estritamente simbólica que é a morte. Assim, "ver" significa tratá-los como "espíritos", algo que é evocado a partir de sua ida ao espiritismo, que então se presentificam por meio de alucinação visual.

 

A resposta à injunção

A injunção é sempre uma convocação ao registro Simbólico feita através de significantes que exigem que a cadeia se reordene. Tal convocação é designada como injunção para o psicótico, uma vez que não há apropriação da linguagem como registro do Simbólico, sendo a palavra apreendida de forma literal, possuindo o peso de uma sentença, um mandamento ao qual o psicótico não pode obedecer. A injunção convoca, necessariamente, o sujeito a referir-se a uma função paterna, o que significa, em outras palavras, que ele é convocado a "organizar-­se como sujeito e obter sua significação de sujeito em relação a uma amarragem fixa, central, que organizaria seu saber" (CALLIGARIS, 1989, p. 35). Todo esse trabalho, porém, será feito no Real.

Assim, quando Schreber é nomeado presidente da corte de apelação de Dresden, é a essa ordem da injunção que tem que responder, sendo definida por Lacan em forma de oração como: "tu és aquele que é, ou que, será, pai" (LACAN, 1988, p. 343). Desse modo, é mais ou menos no período entre a nomeação e a posse do cargo em que ocorrem os primeiros sinais que já manifestam o início de uma crise psicótica que eclode após alguns meses ocupando o cargo de presidente.

O delírio de Schreber engloba uma série de significantes que são da ordem de ocupar uma posição metafórica de pai, representada pelo cargo de presidente, buscando, de alguma forma, sem evocar o nome-do-pai foracluído, lucubrar a oração: "tu és aquele que é, ou que, será, pai" (LACAN, 1988, p. 343). Lacan (1988) relaciona o caminho percorrido por Schreber em seu delírio como correlato à aceitação da castração pelo neurótico, afirmando que em ambos deve-se pagar um preço alto, como carregar um fardo pesado. Então, no fim do seu delírio, Schreber deve aceitar sua eviração (QUINET, 2011, p. 22) e, assim, transformar-se em mulher para copular com Deus e gerar uma nova raça de seres Schreberianos. Nota-se que a oração criada, homóloga à metáfora paterna por já possuir ponto-de-basta induzindo à significação, constitui-se mais ou menos como "tu és aquele que... serás mulher de Deus".

Lacan (1988, p. 351) afirma que "não é absolutamente castração", mas a metáfora criada por Schreber o faz situar-se falicamente e, assim, se posicionar como sujeito. Isso ocorre, pois, Schreber, como mulher, ocupa a posição de objeto a de Deus, posto ser seu objeto de desejo: "Enquanto objeto mais-de-gozar, ele é a 'causa de desejo' de Deus que, por seu intermédio, tem acesso a um gozo do corpo humano até então desconhecido" (QUINET, 2011, p. 42).

Já no caso de Raul, é mais insidioso colocar em forma de oração a injunção que o leva ao desencadeamento da psicose, mas é possível apontar, como já feito, que se trata de algum significante que o convoque a simbolizar a condição de ausência daqueles que morrem. Sua ida ao centro espírita, ao que tudo indica, é algo que, confrontando a religião presente na história familiar, faz com que tente responder a essa injunção sem, no entanto, conseguir, devido à foraclusão.

Percebemos que no trabalho psicótico desse paciente não ocorre um delírio de transformação, tão comum nos casos ilustres, de modo que não há uma eviração, como no caso de Schreber, ou uma mudança de nome e estabelecimento de uma missão, como no caso do Profeta Gentileza, que "deita-se na lama para fazer-se um novo homem" (GUERRA, 2006, p. 44). Seus fenômenos são de outra ordem; não se trata de delírios, existindo, em contrapartida, uma construção que apela para as alucinações visuais.

Há, entretanto, um momento em que possivelmente Raul poderia vir a constituir um delírio de transformação, semelhante ao presidente Schreber e ao Profeta Gentileza que, no entanto, não logra devido ao fato de Raul não dar seu consentimento à instância de gozo, que, segundo Maleval (1998), é a quarta e última fase da edificação delirante. Esse é o momento em que seu "amigo" lhe diz que deve ir para Londrina, afirmando que será o lugar onde irá renascer.

Após Raul não aceitar ir, passa a ver bebês loiros em todos os cantos. Nesse ponto, uma questão pode ser colocada: será que o fato de os bebês serem loiros não se relaciona com a criança loira que Raul vê, no sentido de que um delírio de transformação ocorreu, aos moldes de um tipo clínico esquizofrênico, mesmo que de uma forma não "consentida"? Isso fica apenas subliminarmente colocado a partir desse pequeno ponto de coincidência, que é a mesma cor de cabelos que ambas as alucinações têm. Se assim for, fica manifesto que a construção se caracteriza também como algo de uma transformação, não de si mesmo, mas em um outro que é da ordem imaginária, configurando um apelo maior ao recurso da alucinação e culminando no fardo de ter de ver a si mesmo sob outra forma.

Mesmo que não possamos ir tão longe sem esbarrar no terreno da suposição, o significante "renascer" se mostra presente no trabalho psicótico desse paciente. Muitas pessoas já mortas são vistas por ele, principalmente pessoas próximas, familiares e amigos. Assim, se não é possível delimitar corretamente a injunção que desencadeia a psicose de Raul, é possível trilhar os caminhos que foram percorridos a fim de criar uma resposta para ela. Assim, se o significante que responde à injunção falta, a oração que o substitui pode ser da ordem do "tu és aquele que... [renascerá]".

Esse significante, que aparece inúmeras vezes no relato do paciente, não só parece dar o sentido de uma sistematização para os fenômenos, que sempre apontam direta ou indiretamente para ele, mas também se constitui como um significante com o qual o sujeito se localiza em referência ao Outro. Assim, o trabalho psicótico se constitui como invenção de uma nova significação para o sujeito. Ele "funda uma referência em torno da qual o sujeito se localiza no discurso do Outro" (GUERRA, 2010, p. 61). A estabilização, então, advém quando o trabalho psicótico se torna capaz de conceber uma posição que não apenas a de objeto assujeitado ao gozo imperativo do Outro, de forma a reconstruir as bases imaginárias nas quais o sujeito encontrava-se antes da injunção.

Além disso, a estabilização, sendo uma operação correlativa à significantização do gozo (QUINET, 2006), é possibilitada pela entrada em algum tipo de discurso, mesmo que este não seja compartilhável socialmente, nem produzido sob a ótica da razão. Esse discurso, para Raul, permite a vinculação ao laço social e a um estatuto de sujeito, de forma que, para ele, suas alucinações fazem parte do campo da espiritualidade, o qual exercita e mantém o laço frequentando o espiritismo regularmente, ao mesmo tempo em que proporciona uma nova compreensão de si e do mundo, que lhe permite viver com um tipo de gozo "civilizado".

 

Conclusão

Através da apresentação do caso e de sua respectiva discussão a partir do corpo teórico da psicanálise, compreende-se que as alucinações se constituem como um retorno no Real daquilo que não foi simbolizado, existindo ali uma enunciação sem enunciador que atesta uma forma particular de relação do sujeito com a linguagem. Não obstante, a alucinação - ao lado do delírio - pode tanto fazer parte da tentativa de reconstruir as relações imaginárias com o mundo, quanto do próprio processo mórbido quando o psicótico não encontra um significante capaz de suprir a falta do significante nome-do-pai.

Nesse sentido, se a psicanálise aparentemente não produz uma cura no sentido de fazer desaparecer os fenômenos elementares associados à condição do sujeito psicótico, por outro não é sem efeitos que seja a única modalidade das propostas de cuidado que são ofertadas a esses a atribuir um lugar de sujeito mesmo para aqueles que produzem um discurso diferente. Assim, o campo da escuta do saber fora do campo da razão, ao contrário de ser um recurso secundário no tratamento das psicoses, pode permitir a construção de um discurso que, mesmo distante de uma objetividade factual, pode restabelecer a relação do sujeito com o mundo.

Dentro do campo da saúde mental, em perspectiva com as diretrizes que rompem com as práticas asilares, cabe lembrar que dificilmente é possível enquadrar os sujeitos dentro de uma lógica regular, devendo os profissionais muitas vezes acompanhar o enfermo na construção do seu saber singular, convidando-o a expor sua loucura, seja no contexto clínico, seja no artístico. Nesse âmbito, existe ainda, como visto a partir do caso, certo estilo particular do sujeito que excede mesmo as teorizações mais dinâmicas, como no caso da noção de metáfora delirante, que mesmo propondo a compreensão de saídas singulares para os impasses da psicose, esbarra em certo limite conceitual.

 

 

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Artigo recebido em: 28/04/2019
Aprovado para publicação em: 13/09/2019

Endereço para correspondência
Deivison Marques de Oliveira
E-mail: deivisonmo@hotmail.com
Ari Alves de Oliveira Junior
E-mail: ari.oliveirajr@usp.br

 

 

*Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário São Camilo (CUSC). São Paulo, SP, Brasil.
**Psicanalista, psicólogo. Doutorando em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professor e supervisor clínico dos cursos de Psicologia do Centro Universitário São Camilo (CUSC). Tutor acadêmico da Liga de Estudos em Psicanálise e Contemporaneidade do Centro Universitário São Camilo (CUSC). São Paulo, SP, Brasil.
1Nome fictício.
2O paciente se refere a esta alucinação como "amigo" apenas para uma melhor compreensão de sua fala, deixando claro que, quando conversam, ele o chama de "papai".
3Trata-se nesse caso de uma lembrança que vem posteriormente ao primeiro surto, assim como as memórias de quando começou a ver seu "amigo". Essas lembranças parecem fazer parte do próprio trabalho psicótico, no sentido de primeiro, fazerem aceitar melhor a presença de seu amigo e, segundo, colocar a ideia da reencarnação como algo possível. Tais pontos serão discutidos adiante.
4Lacan e seus comentadores sempre aludem na constituição psíquica à necessidade de um nó, algo que amarre os registros Imaginário, Simbólico e Real. Tal amarração é dada pela incidência do significante nome-do-pai no complexo de Édipo.
5Freud (1911-1913/1996) utiliza o termo reconstrução para designar a reparação operada pelo delírio de Schreber. Soler (2007, p. 187) ao falar em "trabalho psicótico", relaciona delírios e alucinações a uma construção, no sentido de que elas são elaboradas pelo sujeito na tentativa de tratar "os retornos no real, de efetuar conversões que civilizem o gozo até torná-lo suportável".
6Compreende-se o uso dos vocábulos "estabilização" e "solução" como qualquer forma de apaziguamento e remissão sintomática, produzindo o restabelecimento das relações com a realidade ao qual o indivíduo é arrancado diante do desencadeamento psicótico. Soler (2007) afirma que o termo "estabilização" é mais usado pois entende-se que ele designa um período curto ou longo, que é antecedido por um período de surto e maior desestabilização, e pode ser sucedido por uma recaída.

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