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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

     

 

ARTIGOS

 

A virtualidade do dispositivo de trabalho psicanalítico e o atendimento remoto: uma reflexão em três partes

 

The virtual psychoanalytic device and the remote care: a three-part reflection

 

 

Luís Claudio Figueiredo*1

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto contém uma reflexão acerca do dispositivo de trabalho psicanalítico, enfatizando sua dimensão virtual e propondo algumas ideias sobre como a situação analisante é afetada nos atendimentos remotos. Na primeira parte, o foco é no próprio psicanalisar; na segunda, o foco é na constituição do dispositivo a partir da disposição de mente do analista, seu "enquadre interior"; a terceira focaliza as transferências do analisando e suas participações na criação do dispositivo psicanalítico.

Palavras-chave: Dispositivo psicanalítico, Virtualidade, Atendimento remoto, Enquadre interior, Transferências.


ABSTRACT

The text contains a reflection about the psychoanalytic work device, emphasizing its virtual dimension and proposing some ideas about how the analyzing situation is affected in remote care. In the first part, the focus is on the analyzing situation itself; in the second, the focus is on the constitution of the device from the analyst's disposition of mind, its "internal frame"; the third part focuses on the transferences of the patient and their participation in the creation of the psychoanalytic device.

Keywords: Psychoanalytic device, Virtuality, Remote care, Internal frame, Transferences.


 

 

Parte I

Preliminar

Fala-se muito hoje em dia em "atendimentos virtuais" nos campos psi, e o próprio Porta dos Fundos já produziu uma pequena peça sobre o tema ("Terapia a distância") com Gregório Duvivier e Fábio Porchat. Eu mesmo participei de uma live que tratava dessa temática usando a expressão: setting virtual. Creio que o atendimento à distância é algo que realmente precisa ser pensado. No entanto, antes de abordarmos a questão, cabem algumas considerações preliminares.

Vale a pena falarmos em "atendimento virtual" em oposição a "atendimento presencial"? Ou a distinção a ser feita é entre "atendimento presencial" e "atendimento remoto", sendo a virtualidade intrínseca ao dispositivo psicanalítico, tal como inventado por Freud, praticado e, parcialmente, redefinido por todos nós, psicanalistas, até os dias de hoje?

Acho que só a partir de uma apreciação do dispositivo psicanalítico em sua dimensão virtual poderemos enfrentar as questões que emergem nos atendimentos remotos, ou "terapias à distância", como querem os amigos do Porta dos Fundos.

 

1. A elasticidade da técnica e suas razões de ser na história da psicanálise

O recurso aos equipamentos e à tecnologia para os atendimentos à distância nos obrigam a pensar no tema já antigo da elasticidade da técnica, título de importante trabalho de Sándor Ferenczi de 1928 (FERENCZI, 1928). Contudo, quando propôs a elasticidade da técnica, Ferenczi estava levando em consideração as necessidades e sofrimentos dos pacientes precocemente traumatizados, que se sentiam mal quando submetidos à técnica e ao enquadre padrão da psicanálise.

Mais adiante, a questão da elasticidade da técnica retornará nas novas frentes de trabalho do psicanalista, quando ele se descobre fazendo uma espécie de psicanálise, ou "psicoterapia psicanalítica", fora do enquadre clássico; a isso podemos chamar de "psicoterapia psicanalítica" ou, mais apropriadamente, de "psicanálise modificada", termo criado por Donald Winnicott (WINNICOTT, 1962), para nomear o que faz quando, como ele diz com seu gosto pelo paradoxo, "se dá conta de estar trabalhando como um analista ao invés de realizar uma análise padrão". Essa modalidade de clínica evidentemente inclui os pacientes ferenczianos, mas inclui também outros "pacientes", alguns, por exemplo, atendidos completamente fora do enquadramento clássico poltrona-divã.

Há ainda que levar em conta a expansão dos horizontes da atividade psicanalítica que coloca o analista em novas frentes de trabalho em que, mantendo a qualidade e especificidade de sua escuta e de seu pensamento, o psicanalista se vê fazendo "outra coisa", não mais psicanálise no sentido estrito; mas ainda assim faz coisas que apenas um psicanalista poderia fazer bem. Devemos ao mesmo texto de Winnicott (1962) a ideia de que quando não é o caso de fazer psicanálise, o psicanalista pode e precisa fazer "outra coisa". Ele mesmo fazia coisas importantes em suas consultas terapêuticas, mas há muitas outras coisas que podem ser feitas fora mesmo do campo estrito das terapias, como os trabalhos em comunidade.

De todo modo, as necessidades dos pacientes e/ou as surgidas nas novas condições de trabalho é que exigiam tais modificações, tal elasticidade. Algo bem diferente do que estamos vivendo nos tempos da pandemia e do confinamento, quando o recurso ao atendimento remoto veio a se impor por razões, em princípio, muito distintas e independentes do campo psicanalítico e dos desejos e necessidades dos analisandos.

É verdade que antes desse uso geral e obrigatório, os atendimentos à distância já existiam, e isso há muitos anos, quando analisandos se ausentavam por razões de trabalho etc., ou mudavam-se para outras cidades e países, mas desejavam continuar suas análises com o mesmo profissional. Algumas vezes, mas isso era mais raro, algumas análises já começavam à distância. De toda forma, não parece que estes usos esporádicos e circunscritos nos obrigassem a pensar em profundidade sobre o que realmente fazemos quando praticamos a psicanálise pelo Skype, Whatsapp, Facetime ou pelo Zoom. A esse tema retornaremos mais adiante, mas apenas depois de aprofundarmos a compreensão do que nos parece essencial: trata-se de entender a dimensão da virtualidade intrínseca ao dispositivo psicanalítico.

 

2. O que se ganhou no plano conceitual com essa elasticidade, além da ampliação dos horizontes de trabalho do psicanalista?

Evidentemente, a elasticidade da técnica ampliou muito os horizontes e possibilidades de nossas práticas e, assim, nos ofereceu novos desafios que enriqueceram nossas teorias e capacidades de reflexão. No entanto, foi em um plano metateórico que ela nos proporcionou alguns ganhos importantes em termos conceituais, avanços que nos ajudam a entender cada vez melhor o que está em jogo no psicanalisar. Um autor a quem muito devemos nessas reflexões é André Green.

Ele propôs, por exemplo, (GREEN, 2002, 2002a) a distinção, no seio do enquadre, entre a "parte variável" [la fraction variable] - os "estojos de proteção" - e a "parte constante" [la fraction constante] - a "matriz ativa", onde residiria o núcleo do trabalho da psicanálise. A elasticidade da técnica, por qualquer das razões acima elencadas, diria respeito, é claro, à "fração variável".

A distinção sugerida por Green tem valor, mas também sofre, a nosso ver, de alguma insuficiência.

O valor é o de consagrar a elasticidade da técnica sem renunciar à especificidade das práticas psicanalíticas, a ser preservada na "fração constante".

No entanto, os "estojos" não são apenas "protetores", embora essa seja uma função muito importante, como se verá mais à frente; além de protetores da matriz ativa, eles são também delimitadores e configuradores de territórios que funcionam como polos de atração e transferência; são igualmente "caixas de ressonância" do que é atraído para a situação analisante - fantasias, falas, silêncios, defesas e resistências -, dando-lhes mais nitidez e evidência, e "incubadoras de símbolo" (uma feliz expressão cunhada por Raul Hartke), ou seja, promotores de processos de simbolização, funcionando como "aparelhos metaforizantes": tudo o que dentro deles acontece - nesse aqui e agora da sessão ou do "encontro clínico" (no sentido ampliado) - é, ao mesmo tempo, não apenas, mas ao invés disso, outra coisa e alhures, dando ao aqui e agora uma densidade e polissemia ilimitadas, uma essencial ambiguidade (BARANGER, W.; BARANGER, M., 1961-62).

Por outro lado, a "matriz ativa" não é tão unificadamente "constante" e admite, ao menos, a diferença entre o que é próprio ao tratamento psicanalítico dos adoecimentos por ativação - as neuroses, algumas psicoses (as predominantemente paranoides) e a maioria dos casos borderline -, e ao que é próprio aos tratamentos dos adoecimentos por passivação - as outras psicoses (predominantemente esquizoides) e os casos de esquizoidia borderline (cf. FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 20182). As estratégias de cura predominantes não são as mesmas nessas duas modalidades de adoecimento psíquico: continência de angústias e desconstrução de defesas e resistências, no primeiro caso, "reclamações" (ANNE ALVAREZ), sedução e "vitalização" (cf. FIGUEIREDO, 2019) no segundo.

Não obstante, há realmente algo que permanece, apesar das diferenças de estratégia, até mesmo quando o psicanalista está fazendo algo que não é, estritamente falando, psicanálise: é o trabalho de atração de investimentos libidinais e agressivos, e de elaboração, liberação e potencialização dos trabalhos psíquicos no rumo dos processos de representação e simbolização, o que requer um ambiente adequado - algum enquadre; isso envolve a passagem para a consciência, mas não só, nem obrigatoriamente, pois os trabalhos de elaboração das experiências emocionais podem se dar totalmente no plano inconsciente e seus produtos lá permanecerem, propiciando mudanças subjetivas profundas de que o sujeito não se dá plenamente conta de imediato.

Outra decorrência da legitimação da elasticidade da técnica é a ênfase no "enquadre interior" do analista, necessário para instalar o campo de trabalho da "matriz ativa", qualquer que seja ela e em todas as circunstâncias, inclusive no enquadre mais convencional do consultório e com o arranjo poltrona-divã. Não são os móveis nem são as paredes da sala que a convertem em uma sala de análise se faltar o "enquadre interior" do analista. Trata-se da disposição de mente do analista em sua dimensão ética e "técnica" e em sua capacidade de escuta: em outras palavras, é a sua presença implicada e reservada (FIGUEIREDO, 2008), sua "mente própria" (CAPER, 1999), sua atenção flutuante operando em seu mais amplo espectro e englobando todas as modalidades de escuta em análise (FIGUEIREDO, 2014). Mais adiante, iremos aprofundar a compreensão desse "enquadre interior", do que consiste, como se forma e como opera, ou seja, o que é a mente do analista em atividade. O que já podemos adiantar é que esse enquadre interior enraíza-se na transferência do analista com a própria psicanálise, algo a ser cultivado em suas experiências de análise pessoal e prática clínica.

À ênfase no enquadre interior do analista, soma-se a ênfase nas transferências (neuróticas, narcísicas e psicóticas) tais como são evocadas, para não dizer provocadas (LAPLANCHE) ou produzidas (MACALPINE), no paciente, ou nesses outros a quem a escuta analítica é dirigida e por ela são convidados a ser, a falar, a sonhar, a brincar, a alojar-se no espaço de hospitalidade instaurado pela posição do analista: a situação analisante com sua dinâmica sedutora e criativa.

 

Concluindo

Nessa medida, o dispositivo psicanalítico é sempre virtual, seja no atendimento presencial, seja no remoto, e o trabalho do analista - fazendo psicanálise padrão, psicanálise modificada ou essa alguma "outra coisa" que ele faz a partir de sua capacidade de escuta - sempre se dá na virtualidade, pois depende, de um lado, dessa disposição de mente do analista e, do outro lado, da disposição de mente do paciente correlativa à atenção flutuante em seu sentido ampliado (FIGUEIREDO, 20143): a livre associação (verbal, não verbal ou paraverbal, pois alguma associatividade existe mesmo quando não aparece sob a forma das trilhas associativas consideradas por Freud), operando no campo da virtualidade da escuta das transferências, que é onde se encontram as várias camadas dos inconscientes com os horizontes e filtros das consciências de todos os envolvidos. Não à toa, a transferência em análise - e a escuta que a precede, a convoca, provoca e acompanha - dá lugar ao quiproquó, ao quid pro quo, aqui no lugar de lá, agora no lugar de então. É um plano da realidade simultaneamente real e fictício, verdadeiro e ilusório que foi chamado de "espaço potencial" (WINNICOTT, 1971). Aí está a virtualidade que, como analistas, nos cabe instalar e sustentar para que o trabalho da psicanálise aconteça.

A questão relevante se torna então: será possível instalar e sustentar a virtualidade nos atendimentos remotos? E sendo, com que perdas e, eventualmente, com que ganhos? É o que tentaremos considerar a seguir.

 

Parte II

Preliminar

Como já dissemos, o atendimento remoto não é uma novidade no campo da psicanálise, pois há muitos anos vem sendo praticado em algumas situações especiais e com alguns analisandos. No entanto, a coisa muda completamente de figura se a ele precisamos recorrer de uma hora para outra, de forma obrigatória e por razões que nada têm a ver com os processos que estão sendo acompanhados. Não respondem, por exemplo, apenas ao desejo de dar continuidade ou iniciar uma análise nessas condições, pois há fatores externos determinantes. Tentemos então refletir sobre os atendimentos remotos em tempo de pandemia e confinamento usando as ideias até aqui expostas.

Vimos a importância da distinção proposta por Green entre o estojo protetor e a matriz ativa para nos posicionarmos em relação à elasticidade da técnica e dos enquadres. Como estivemos propondo, há nos estojos uma função básica de proteção da chamada "matriz ativa", mas há também outras funções do "estojo" a ressaltar: ele circunscreve um território com certa força magnética, capaz de exercer a atração de conteúdos psíquicos emocionais, ideativos, pulsionais, defensivos e resistenciais (cf. PONTALIS, 1990) - ou seja, produzir e provocar transferências; funciona, ainda, como caixa de ressonância para o que foi atraído, como incubadora de processos de simbolização e como aparelho metaforizante. Cabe-nos agora ver se, e em que medida, o atendimento remoto pode produzir falhas em cascata: falhas na função de proteção, falhas na função de atração, falhas na função de ressonância, na função simbolizante e na função metaforizante. Cabe-nos, igualmente, identificar e avaliar os eventuais problemas na operação da "matriz ativa", cujo funcionamento depende justamente da dimensão virtual do dispositivo psicanalítico, isso é, da situação analisante como espaço potencial.

Antecipando o que será mais detalhado adiante, quando a função de proteção do estojo falha, a realidade externa invade de maneira intensa e perturbadora a situação analisante, destruindo-a parcial ou totalmente de forma que suas outras funções são imediatamente afetadas: nem o estojo consegue mais circunscrever um território magnetizado e capaz de atrair conteúdos psíquicos inconscientes e conscientes, formando um forte campo transferencial-contratransferencial, nem permite as ressonâncias emocionais e cognitivas, nem promove os processos de representação e simbolização, nem exerce pressão metaforizante. Todos esses "desastres em cascata" incidem, em primeiro lugar, sobre as próprias mentes do analista e do analisando que já não conseguirão criar o espaço potencial, isto é, a realidade virtual de que a psicanálise precisa para trabalhar. Veremos em primeiro lugar como a invasão da realidade externa pode prejudicar o enquadre interior do analista para em seguida nos dedicarmos à problemática das transferências.

 

1- O "enquadre interior do analista" e o estabelecimento dos enquadres ad hoc (o estojo protetor sob medida) nos processos do atendimento remoto

Tratemos, então, em primeiro lugar, do enquadre interior do analista: o que é e do que se constitui, como se forma e como opera?

Podemos nos aproximar do enquadre interior por duas vias, ambas interessantes: a primeira é a ideia de que esse enquadre interior se instala a partir da internalização da própria psicanálise como bom objeto interior (CAPER, 1999), o que dá ao psicanalista uma espécie de âncora e de fonte primordial a que se ligam suas duas modalidades de presença - reservada e implicada (FIGUEIREDO, 2008) - e lhe garante uma disposição de mente (a mente própria) capaz de exercer a escuta flutuante, porosa, disponível, mas não fusional. A ideia de uma "psicanálise amada" me parece importante como fundamento de nossa posição, de nossa ética, cuja ênfase não é na regulação e na interdição, mas no vínculo transferencial (amoroso) com o próprio método psicanalítico, uma transformação e ultrapassagem do que era a transferência com o analista.

A outra aproximação recorre a outro conceito do Green: a estrutura enquadrante (GREEN, 1967, 1993). Trata-se também do resultado de um processo de internalização, mas, no lugar do bom objeto interior, o que é acentuado é um vazio interior capaz de recepção e de produção. Ou seja, a presença do objeto bom interior propriamente dito é apagada para deixar em seu lugar uma estrutura enquadrante operativa: um vazio vivo e vitalizado.

Poderíamos, assim, conceber o enquadre interior como, em ambos os roteiros, resultante da transferência com a psicanálise e da introjeção da psicanálise pelo psicanalista. Nos dois casos, não se trataria de processos em que a transferência se dá com a pessoa do seu analista, suas ideias, atitudes, modos de ser, mas da transferência com e introjeção da psicanálise, ela mesma, como método: as escutas em análise e o pensamento clínico psicanalítico. A pura transferência com a pessoa do analista, embora inevitável, poderia gerar uma incorporação do "objeto" e não uma introjeção da função analítica. Nessa medida, a permanência de uma pura transferência com a pessoa do analista (e seus objetos) acabaria se caracterizando como um fenômeno resistencial, o que torna necessária uma "transcendência da transferência", para usarmos um termo de Jean Laplanche, embora em sentido diferente.

Sem um enquadre interior bem instalado, torna-se impossível ocupar e exercer as funções do trabalho psicanalítico em qualquer dos estojos, mesmo no mais convencional - poltrona-divã em uma "sala de análise" - quanto mais nos estojos modificados. Por exemplo, os atendimentos psicanalíticos na Casa do Povo, criados e supervisionados por Tales Ab'Saber, a "Clínica Aberta"4, exigem dos analistas que ali atuam uma disposição de mente difícil de sustentar, um enquadre interior quase impossível de manter. O mesmo acontece com o trabalho capitaneado desde 2003 pela SBPRJ, o projeto TRAVESSIA que vem levando a escuta e o pensamento psicanalítico a diferentes populações do Rio de Janeiro em condições de vulnerabilidade social e psicológica, uma atividade que também está podendo prosseguir e até se ampliar (!) graças aos atendimentos remotos. Nada disso seria possível sem o enquadre interior dos profissionais envolvidos nesses projetos extramuros.

Cabe-nos agora identificar e avaliar as vicissitudes do enquadre interior do analista em tempos de pandemia.

Uma primeira consideração nos sugere que a formação do analista deveria ocorrer, sempre que possível, nas condições mais bem conhecidas e padronizadas para só em seguida ele se aventurar por estojos muito diferentes e menos testados. Isso nem sempre se dá, sabemos, mas o problema pode se tornar especialmente grave quando um analista ainda iniciante precisa começar a atender nestas condições modificadas, principalmente quando ele mesmo não teve uma experiência intensa, longa e rica como analisando em uma psicanálise padrão, que é a principal via para o estabelecimento do enquadre interior.

De toda forma, por mais experimentado que seja o analista, por mais bem formado e mais "transferido" que esteja com o método psicanalítico, ainda vai lhe caber a reconstituição e manutenção de seu "consultório privado". Ou seja, atendendo de onde estiver - quase sempre fora de seu consultório - vão lhe faltar os apoios materiais do enquadre interior com que contava em sua prática costumeira (ver "Terapia a Distância" do Porta dos Fundos). Mesmo quando exercem sua função de escuta e pensamento analítico fora do enquadre padrão, os analistas costumam procurar lugares e momentos em que suas atividades podem ser mais facilmente realizadas e eficazes, ainda que seja no corredor de uma instituição, à beira de um leito hospitalar, com os pais de pacientes infantis em uma UTI pediátrica, ou em um vão de escada.

Às vezes, encontrar um lugar adequado fica muito difícil nesse confinamento: privacidade, constância, conforto etc. precisam ser considerados, pois podem ser importantes - mesmo que nem sempre essenciais - para dar sustentação ao enquadre interior, protegendo a mente do analista de irrupções da realidade externa que comprometeriam suas capacidades de escuta e pensamento, principalmente a "capacidade negativa" de se manter em suspenso, na incerteza e no não-saber (BION, 1970).

Talvez essa seja a parte mais frágil e vulnerável da mente do analista: a disposição de esperar o inesperado, manter-se no vazio, no incerto e no não-saber. É justamente aí que as invasões da realidade são mais nocivas e onde o enquadre interior pode ser mais prejudicado. Não apenas as irrupções da realidade externa poderão inibir, se não extinguir, sua capacidade negativa, como o horizonte de incertezas que nos cercam a todos, analistas e analisandos, produz efeitos muito deletérios sobre nossa capacidade de nos mantermos em suspenso e serenos no campo do incerto e indeterminado, algo essencial para nossa atenção flutuante.

Nos dias de hoje, vai ser inevitavelmente neste campo de turbulências próprias e alheias, um campo com grande potencial para mútuas invasões - moderadas, contudo, pelo enquadre interior do analista - que precisamos encetar as negociações e o estabelecimento dos parâmetros do enquadre remoto ad hoc, ou seja, do enquadre remoto sob medida, montado caso a caso em razão das condições psíquicas, sociais e físicas de cada analisando, mesmo que seu analista tenha encontrado um jeito de criar um espaço bem resguardado para seu consultório privado. Muitas vezes será preciso retomar essas negociações e dar instruções adicionais para que o analisando crie, do seu lado, um lugar para ser atendido.

Todo cuidado será necessário para que operem efetivamente os elementos do enquadre com as funções do estojo protetor, propiciador da "alucinação negativa" outro conceito com largo uso por André Green (1993), sem a qual não se cria o espaço potencial5: é preciso que a realidade externa possa ser atenuada, filtrada, reduzida e mesmo negada para que se abra o território virtual, o território do sonho, do jogo, da associação livre, da escuta flutuante, da criação e, assim, o dos trabalhos psicanalíticos6.

Essa função protetora e propiciadora da alucinação negativa é absolutamente necessária para que os territórios criados pelos estojos protetores operem como "polo de atração", "caixa de ressonância", "incubadora de processos de simbolização" e "aparelho metaforizante"7.

Com isso estamos realçando a importância da "alucinação negativa" como proteção contra o excesso de realidade, para o "sonhar em sessão", o "brincar em sessão". O excesso de realidade externa inibe, obstrui ou impede o acesso às realidades psíquicas, seus personagens, enredos, dinâmica e climas emocionais, em especial, impede o acesso à realidade virtual compartilhada em uma sessão de psicanálise.

E com isso nos deparamos com os problemas na instalação e manutenção do setting em tempos de pandemia: trata-se da invasão da situação analisante pela força de uma realidade all inclusive, algo que não pode ser negado, ou desmentido, mas cujo excesso põe em risco a análise.

É forçoso reconhecer a presença de fatores do medo e da angústia: há perigos reais e incertezas reais - medos e angústias realistas - nos afetando a todos.

A eles precisamos acrescentar a existência de fatores da depressão e as depressões motivadas: refiro-me às perdas reais na vida e na situação analisante, tudo que se perde, já foi perdido e se perderá quando se é privado da liberdade de muitas escolhas, da possibilidade de contatos mais diretos e menos mediados etc. Como fazer o luto dessas perdas tão reais?

Em relação aos fatores reais do medo, da angústia, dos lutos e da depressão, nós psicanalistas pouco podemos fazer, além de reconhecê-los e compartilhá-los, o que não é pouco, até porque também nós, e nossos enquadres interiores, somos afetados por tudo isso. Não é pouco porque assim não adotamos uma política baseada no desmentido e porque não nos colocamos como invulneráveis e onipotentes, assumindo humilde e humanamente nossos medos, nossas perdas e nossa mortalidade, uma condição fundamental para a prática de nosso ofício. Ou seja, no nosso jargão, admitimos que somos "castrados", ou seja, pudemos renunciar, em grande parte, às nossas fantasias de onipotência.

Mas ainda que não seja pouco, também não é tudo o que, como psicanalistas, podemos esperar desses atendimentos remotos. Para termos uma ideia do que mais pode a psicanálise em tempos de pandemia e confinamento, precisamos olhar para a outra ponta da construção do dispositivo virtual, a ponta dos analisandos.

De fato, todos esses fatores que podem gerar um "excesso de realidade" que põe em risco a virtualidade do dispositivo psicanalítico costumam trazer ainda mais problemas para os analisandos, afetando ainda mais intensamente suas transferências e, assim, incidindo sobre as condições do trabalho da psicanálise.

É do que trataremos a seguir.

 

Parte III

Na parte anterior, focalizamos a instalação e manutenção do enquadre interior do analista como condição para todo trabalho de psicanálise, qualquer que seja o enquadre. Vimos também que a função de "estojo protetor" de todos os enquadres, ainda que não seja a única, é indispensável para a alucinação negativa do analista diante dos excessos da realidade: é o que lhe abre o espaço interior do sonho, do jogo, da escuta e do pensamento. É a partir de um enquadre interior com tais propriedades que o analista convida o analisando para a criação conjunta do espaço potencial do encontro analítico. Mas para que o dispositivo psicanalítico seja efetivamente criado em sua virtualidade própria, é necessário que o analisando aceite esse convite implícito no que já denominei de "contratransferência primordial" (FIGUEIREDO, 2005/2009). Todas as extensões da psicanálise apostam na potência do método psicanalítico, mas este só vai operar nessas condições de virtualidade que dependem do analista convidando e do analisando, ou de mais quem, aceitando o convite, puder e estiver disposto a formar com o analista o espaço potencial do sonho e do jogo. Cabe-nos agora apreciar algumas ideias sobre possibilidades e dificuldades para que o convite seja aceito nos atendimentos remotos.

 

A sustentação da virtualidade pelo analisando e seus percalços nos atendimentos remotos

Essa modalidade de "análise mais ou menos modificada", a dos atendimentos remotos, como todas as outras, depende de uma aposta na potência da psicanálise. Mas, como vimos, essa potência não é absoluta, é condicionada.

A principal condição é justamente a capacidade de o enquadre oferecido produzir (MACALPINE) ou provocar (LAPLANCHE) as transferências sobre e para dentro do dispositivo analítico.

Em uma fórmula simplificada e ultrarresumida, nas chamadas transferências o sujeito transfere com força e intensidade elementos psíquicos do(s) passado(s) para o presente, o agora do encontro analítico, e do "dentro" - plano intrapsíquico - para o aqui - o "aqui fora", já no plano intersubjetivo. Nessas transferências para o aqui e agora do encontro, verificam-se as repetições inconscientes das dimensões inconscientes das experiências e das dinâmicas e estruturas da personalidade.

Freud acreditava apenas nas transferências neuróticas das chamadas "neuroses de transferência". Há muitas décadas que se sabe que além das transferências neuróticas, há transferências narcisistas, borderline, psicossomáticas e psicóticas e todas elas podem participar da formação da situação analisante em sua virtualidade - o quid pro quo do campo transferencial. Dessa forma, permite-se o acesso aos inconscientes, às dimensões inconscientes do mundo interno. Sabe-se, porém, que as situações analisantes não serão exatamente as mesmas em função da qualidade das transferências que delas participam. Isso precisa ser levado em conta na avaliação dessa modalidade de análise modificada, o atendimento remoto.

Outra distinção que também devemos a André Green (1984, 2002) é a que existe entre a "Transferência sobre a fala" e a "Transferência sobre o objeto".

Na transferência sobre a fala ocorre a transformação, parcial, do aparelho psíquico em aparelho de linguagem; é uma transferência que se dá fundamentalmente no plano intrapsíquico, é a predominante (mas não exclusiva) nos casos de neurose. Seu modelo é o delineado por Freud em A interpretação dos sonhos (1900) para falar da transferência de elementos do inconsciente reprimido para o pré-consciente e para a consciência, por exemplo, nos trabalhos oníricos ou nas associações livres. No capítulo VII desse livro, lemos:

...a representação inconsciente em si é completamente incapaz de ingressar no pré-consciente e só pode exteriorizar-se aí se entra em conexão com uma representação inofensiva que já pertença ao pré-consciente, transferindo-lhe sua intensidade e que serve para encobri-la. Este é o fato da transferência... (FREUD, 1900, p. 614).

Essa acepção do termo "transferência" é abundante no capítulo VII do livro de 1900, seja para falar da formação dos sonhos, seja para falar dos sintomas neuróticos. A "transferência sobre a fala" segue este modelo, embora não exclua o fato de que essa fala seja endereçada, performática. Mas também os sonhos, em análise, são sonhados para o analista... É evidente que mesmo essas transferências têm um endereço, uma direção que vai além do campo intrapsíquico, embora os destinatários dessas comunicações continuem sendo objetos internos, ou seja, representações do suposto destinatário, no caso, o analista. Nesse sentido, a intersubjetividade já está de certa forma presente como intersubjetividade intrapsíquica (COELHO JUNIOR; FIGUEIREDO, 2003).

Mas mesmo nos casos de neurose, algo não terá nenhum acesso à palavra, não caberá nos domínios da linguagem. A rigor, o inconsciente, propriamente dito, nunca passa direta e completamente às palavras, preservando sua incognoscibilidade e seu caráter não diretamente representável, tal como vimos acima na transcrição do texto de Freud. Nessa medida, ele vai sempre se manifestar também como transferência sobre o objeto, o analista, o que deixou Freud, no início, perplexo e assustado. Mais adiante veremos o que os atendimentos remotos produzem neste campo das transferências sobre a fala.

Antes, porém, é preciso saber do que se trata na transferência sobre os objetos. Em primeiro lugar, cabe assinalar que são transferências, para o aqui e agora do encontro analítico, de elementos psíquicos inconscientes que recaem diretamente sobre as representações ou sobre as apresentações de objetos. Por exemplo, Winnicott (1954) afirma que em certas situações clínicas (de regressão à dependência), o analista não é representado pelo divã e não representa a mãe; o divã é o analista e ele é a mãe. Isso nos ajuda a diferenciar a representação da apresentação, uma diferença muito importante entre as transferências neuróticas sobre os objetos que representam, e as transferências não neuróticas - narcísicas, borderline, psicossomáticas, psicóticas. De todo modo, nas transferências sobre o objeto, representado ou apresentado, passa-se decididamente ao plano intersubjetivo, o das chamadas relações de objeto, o que não exclui que também nelas se dê, no plano intrapsíquico, uma transferência sobre a fala para a qual a escuta do analista precisa estar atenta.

Em acréscimo, quando se fala em "objeto" nas transferências sobre o objeto, é preciso, e nisso estou indo além do que encontro em André Green, entender o termo em um sentido amplo: ele inclui a pessoa do analista ("o médico", como dizia Freud), mas também elementos animados e inanimados do seu entorno, seu ambiente próximo e distante; e pode também incluir partes do próprio analisando, partes de seu corpo, órgãos internos, como no caso de algumas transferências psicossomáticas.

O que é comum a todas as transferências sobre os objetos é que elas transbordam (débordent), vão além dos domínios da linguagem. Nessa medida, elas são predominantes (mas não exclusivas) nos demais adoecimentos, os casos de não neurose, em que abundam experiências emocionais irrepresentáveis e inomináveis. Recentemente Robert Caper (2020) publicou um livro - Bion and thoughts too deep for words - que foca, justamente, essa dimensão do inconsciente que não cabe nos domínios da linguagem, transborda, e vai se manifestar nas transferências sobre o objeto. Na verdade, esse tema do radicalmente irrepresentável e inominável vem ocupando analistas franceses, ingleses e italianos há algum tempo e todos esses elementos too deep for words vão se manifestar em transferências sobre o objeto: fantasias primitivas atuadas, passagens ao ato, enactments, adoecimentos psicossomáticos etc. São as manifestações do Agieren, nas palavras de Freud.

Feita essa distinção fundamental, cabe investigar o impacto dos atendimentos remotos nessas duas modalidades das transferências em análise.

Comecemos tratando das transferências sobre as palavras, suas possibilidades e seus percalços nos atendimentos remotos. De certa forma, para pacientes em que predomina o campo intrapsíquico, e a passagem do inconsciente reprimido para a linguagem é possível e mais fácil - geralmente, neuróticos atendidos no divã - o atendimento remoto com ou, principalmente, sem imagem não traria grandes problemas, desde que encontrem, evidentemente, uma escuta adequada. Estão dadas as condições necessárias e suficientes para o atendimento remoto, e há vantagens de que seja "sem imagem": assim, analista e analisando protegem-se de interferências da realidade que poriam em risco a sustentação do espaço potencial, a virtualidade do dispositivo. Ou seja, o atendimento remoto sem imagem procura se aproximar ao máximo da condição poltrona-divã e aposta todas as fichas na transferência do inconsciente reprimido para a fala, exercendo rigorosamente a função de estojo protetor, guardião da alucinação negativa. A ausência de imagem encarna essa negatividade, criando aquela condição de cegueira artificial preconizada por Freud e endossada por Bion para dar mais sustentação à atenção flutuante. Vale a pena relembramos que Bion cita com total concordância a carta de Freud a Lou Andreas-Salome em que ele advogava a tal "cegueira artificial" para alcançar o estado de mente necessário para afinar a escuta quando o objeto psicanalítico é especialmente obscuro (BION, 1970, p. 43). A propósito, caberia aqui a expressão a beam of intense darkness [Um feixe de luz de intensa escuridão], título dado por Grotstein (2007) a um livro dedicado a essa condição de escurecimento necessária para nos dar acesso às obscuridades do objeto psicanalítico, justamente o que a ausência de imagens nos atendimentos remotos nos ajuda a obter. Na procura dessa cegueira, Bion sugeriu abolir a memória, o desejo, a compreensão prévia e todos os dados da percepção sensorial. No entanto, sabemos que muita gente não suporta essa condição, essa aposta radical na transferência sobre a fala, e não estou me referindo apenas aos analisandos... a turma do lado de cá também tem lá suas questões.

Nos casos dos adoecimentos não neuróticos, o atendimento sem imagem não deveria ser nem cogitado, pois são, em geral, analisandos que precisam ser atendidos frente a frente ou lado a lado, e com o recurso a outras modalidades de comunicação. As dimensões inconscientes envolvidas ultrapassam os domínios da linguagem, pois são experiências emocionais too deep for words [profundas demais para caberem nas palavras], irrepresentáveis e inomináveis.

Mesmo nos casos de atendimentos mais próximos do padrão, contudo, podemos descobrir e ter de levar em consideração o fato de que o predomínio das transferências sobre a fala não exclui transferências sobre o objeto que até agora haviam ficado camufladas. É o caso dos analisandos que dizem sentir saudade dos aspectos materiais do consultório, da visão fugaz da pessoa do analista, antes de se deitarem e ao se despedirem, dos cheiros, cores e luminosidade da sala de análise ou seu entorno etc. Porém, tudo isso ainda pode passar à fala, e ser incluído no campo do espaço potencial em um atendimento sem imagem, quando a transferência sobre a fala predomina.

Parece razoável supor que lá onde predomina a transferência sobre o objeto em suas inúmeras variantes, o atendimento remoto cria mais dificuldades. Nesses casos, tenho sempre preferido manter as imagens no atendimento face a face, o que é necessário, mas traz muitos problemas. Em primeiro lugar, aumenta a incidência de as "realidades micro" se tornarem excessivas no atendimento remoto. Por exemplo, as notificações na tela do celular ou computador, as irrupções de outras pessoas na tela, e as interrupções estarão frequentemente bombardeando nossos estados de mente tão necessários para a sustentação da virtualidade do dispositivo. Em geral, o analista conseguiu montar seu consultório privado para se proteger, mas nem sempre isso foi possível para o analisando, principalmente se for uma criança ou adolescente, vivendo com toda a família. Até mesmo o face a face nos computadores e celulares, como reduz imensamente a distância que costuma ser estabelecida no face a face dentro do consultório, pode acarretar uma invasão recíproca que prejudica tanto a capacidade de o analista escutar e pensar, quanto as possibilidades associativas do analisando.

Além das ameaças que as "realidades micro" trazem ao dispositivo analítico, há que levar em conta as "realidades macro", as realidades all inclusive, atualmente muito excessivas no atendimento remoto em tempos de pandemia. Em primeiro lugar, há a afetação do analista em sua vulnerabilidade e na sua capacidade de renúncia à onipotência, o que poderia me levar a falar em "castração", não fosse minha desconfiança em relação aos jargões psicanalíticos (quando a força de um conceito se perde pela repetição pouco pensada). Como disse antes, os fatores do medo, da angústia, dos lutos e das depressões nos afetam a todos e não podemos negá-los. Contudo, eles precisarão se converter em algo analisável, ou seja, ser trazidos para o campo das fantasias, defesas e resistências, para se transformarem em "objetos psicanalíticos" a serem sonhados e interpretados pela dupla.

Mas antes de nos alongarmos sobre isso, ainda cabe apreciar a existência de realidades em falta, e não apenas das realidades em excesso.

Como já foi antecipado, as cores, os cheiros, a temperatura, a composição do espaço da sala e seu entorno, os ruídos e os ritmos (por exemplo, o ritmo da respiração do analista e do analisando) etc., vale dizer, todo o espectro da sensorialidade fica faltando. Nessa medida, muitos elementos que participam da formação dos climas ou atmosferas emocionais do encontro ficam em grande medida excluídos. Mesmo quando predomina a transferência sobre a fala, eles podem ser mais importantes do que se pensa; mas é indiscutível que quando as palavras não dão conta dos elementos inconscientes cindidos, dissociados, recusados, rejeitados, não representados e inomináveis, exigindo a predominância das transferências sobre o objeto, a situação se agrava. Nem podemos ainda avaliar a falta que os elementos da sensorialidade e da corporalidade dos encontros farão.

De toda sorte, realidades em excesso e realidades em falta, presenças em excesso e presenças em falta sempre produzem efeitos na reedição de traumas antigos, na evocação de fantasias arcaicas e no acionamento de defesas das mais variadas. Ou seja, nossa atenção não deveria se dirigir diretamente a esses elementos, mas aos seus efeitos (subjetivantes ou dessubjetivantes) tais como se mostram no campo da virtualidade do dispositivo psicanalítico. É esse espaço potencial que pode ser capaz, se contar com a escuta e o pensamento do psicanalista, de trazer os elementos da realidade bruta (excessiva ou faltante) para o horizonte de trabalho das matrizes ativas da psicanálise em que as experiências emocionais poderão ser nomeadas, representadas, simbolizadas e transformadas, e em que as posições subjetivas poderão ser alteradas.

 

A psicanálise como pesquisa

Mas tudo isso são apenas hipóteses extraídas de alguma experiência clínica com os atendimentos remotos e, mais ainda, com os presenciais. Minha palavra de despedida é um pedido para que não nos esqueçamos que a psicanálise sempre foi para Freud um instrumento terapêutico tanto quanto de pesquisa, e um não se realiza sem o outro (1923). Tudo o que se pode e o que não se pode na prática psicanalítica nos atendimentos remotos ainda nos é desconhecido e obscuro. Os inúmeros efeitos subjetivantes, na forma da produção de fantasias, sonhos, possibilidades de jogos etc., e os possíveis efeitos dessubjetivantes, produzidos pela reedição dos traumas de excesso ou de falta, ainda precisam ser muito mais investigados. Por exemplo, que defesas e resistências podem estar sendo criadas e acionadas nesses atendimentos? Não sabemos. Nem sabemos quais os limites de um processo de regressão terapêutica em que, como assinalado por Winnicott (1954), o encontro efetivo com o analista, seu divã e seu espaço de acolhimento, não entra no registro da representação: eles são os objetos primários, não os representam. Essa é uma forma extrema de transferência sobre o objeto cuja dinâmica no atendimento remoto ainda nos é uma incógnita. Mas mesmo em formas menos radicais, tudo o que diz respeito às transferências sobre o objeto e é de algum modo afetado pelo atendimento remoto e pela presença reduzida do analista ainda nos é desconhecido.

E não sabemos, principalmente, o que o fim da quarentena e o retorno ao presencial nos reserva.

Para finalizar: essa e muitas outras questões ficam sem resposta. Certamente, o meu maior objetivo ao longo desse texto foi o de estabelecermos algumas ideias básicas sobre o psicanalisar que nos ajudem, pois aí me incluo, a pesquisar o que os atendimentos remotos teriam e ainda terão a nos ensinar.

Hoje praticamos uma psicanálise muito mais complexa, rica e profunda do que aquela a que Freud tinha acesso e sabemos de coisas que ele nem imaginava. Mas só chegamos onde chegamos porque nos mantivemos fiéis à ideia do psicanalisar como pesquisa. Entendemos, também, parafraseando Freud (cf. FREUD, 1914), que tudo o que se faz com base nas noções de inconsciente, sexualidade infantil, repressão (e demais mecanismos de defesa), resistência e transferência "pode se denominar psicanálise, mesmo quando chegue a resultados diferentes dos meus" (cf. FREUD, 1914).

Inclusive, o que fazemos nos atendimentos remotos.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 01/07/2020
Aprovado para publicação em: 06/07/2020

Endereço para correspondência
Luís Claudio Figueiredo
E-mail: lclaudio.tablet@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, SP, Brasil.
1Agradeço a Andréia Rocha de Vasconcellos, Alfredo Naffah Neto, Daniel Kupermann, Mauro Meiches, Octavio Souza e Paulo de Carvalho Ribeiro pela leitura e sugestões a uma versão prévia do texto.
2Nesse livro se explica que, nos primeiros, trata-se da ativação de angústias e defesas mais ou menos invalidantes, enquanto nos segundos predominam as agonias, mortes e congelamentos psíquicos em pacientes traumatizados.
3Nesse artigo elenco uma gama de modalidades de escuta em análise que já não se reduz à escuta das trilhas associativas verbais; sugiro então uma escuta polifônica onde a flutuação se dá entre essas modalidades de contato com os inconscientes: o inconsciente recalcado, o cindido, o pulsional etc. Uma dessas modalidades é a escuta que oferece continência e sustentação a totalidades embrionárias e processos de vir a ser, uma escuta com mais implicação e menos reserva do analista.
4Sobre essa experiência original, Ricardo Cavalcante está realizando sua pesquisa de doutorado na PUC-SP, e Tales Ab'Sáber já produziu um pequeno texto sobre essa prática: A clínica aberta, o analista grupo e suas transferências.
5Embora o conceito de alucinação negativa, criado por Freud, sirva principalmente para a análise de suas formas patológicas, Green o utiliza também para essa condição normal e saudável na criação da estrutura enquadrante e do espaço potencial em análise (GREEN, 2002).
6Mas não só: nenhum jogo pode ser jogado sem as regras constitutivas que delimitem o seu campo, os tipos possíveis e os interditados de movimentação dos jogadores e os valores das jogadas. Ou seja, ainda que a bola seja de couro, as traves de madeira, a rede exista realmente, o gramado feito da mais verdadeira grama e onze marmanjos em cada time, não haverá futebol se não vigorarem as regras que definem o jogo. Pura virtualidade e simbolismo.
7Retomando o exemplo do futebol, desde que as regras do futebol vigorem, a bola pode ser de pano, as traves serem sandálias havaianas e a rede não existir, não haja gramado, etc., mas ainda sim se jogue futebol. Todas as discrepâncias em relação aos objetos são negadas por uma alucinação negativa. E pode até haver plateia e torcida nesses campinhos de várzea.

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