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Revista da ABOP

versão impressa ISSN 1414-8889

Rev. ABOP v.2 n.2 Porto Alegre  1998

 

 

Um espaço para repensar sobre a qualidade de vida no trabalho6

 

 

Maria da Graça Corrêa Jacques7

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

As estantes das livrarias estão repletas de livros e revistas com prognósticos sombrios em relação a economia mundial, apontando, principalmente, para a redução do nível produtivo e para o aumento do desemprego. A crise do modelo fordista da produção em série e do modelo de relações de trabalho como as apregoadas por Taylor que proibia seus operários de se reunirem, ao final do expediente, em grupos com mais de 4 pessoas, impôs novos padrões na produção e distribuição de bens e serviços e nas políticas e práticas de gestão de pessoal. É neste contexto que a temática qualidade de vida no trabalho se inscreve como um discurso ‘moderno e politicamente correto’, objeto de fórmulas que se sucedem e se contradizem e que respondem a constatação generalizada da responsabilidade do setor produtivo no aviltamento da qualidade de vida da população em geral.

Para introduzir essa discussão e suas repercussões no cotidiano do orientador profissional cabem, inicialmente, três questões importantes:  por que a atenção à qualidade de vida, por que a atenção à qualidade de vida no trabalho e de que qualidade de vida se está falando?

Pode-se atestar a importância à qualidade de vida referindo que este é o critério internacionalmente aceito para classificar o estágio de desenvolvimento de um país. Pode-se atestar a importância à qualidade de vida no trabalho lembrando, por exemplo, que o ser humano dedica, quando está acordado, aproximadamente 65% de seu tempo ao trabalho. Mas de que qualidade de vida se está falando?

A expressão ou sigla QVT passou a ser empregada indiscriminadamente para se referir a uma variedade de situações, inclusive contraditórias, a partir de uma interpretação parcial e incompleta. Cursos e programas de ‘QVT’ se multiplicaram revelando perspectivas muito diferenciadas sobre o tema, freqüentemente com um referencial assistencialista e/ou propondo mudanças de caráter superficial nas condições de trabalho e nas políticas e ações gerenciais.  Frente a essa diversidade e imprecisão de significados conferidos à expressão qualidade de vida no trabalho, faz-se necessário uma delimitação  e a  abordagem centrada sobre saúde e segurança parece ser uma boa referência . A Organização Mundial de Saúde (O M S) propõe a preservação da integridade física, mental e social - um completo bem-estar biopsicossocial -  dependente das condições de vida e de trabalho a que o indivíduo está exposto como o critério de definição da expressão saúde e não simplesmente a ausência de doença. A expressão QVT designa, portanto, o conjunto de ações de uma empresa que envolva implantação de melhorias e inovações tecnológicas e gerenciais que neutralizem riscos à integridade física, mental e social dos trabalhadores e promovam o seu bem-estar biopsicossocial. Sob esse enfoque a expressão qualidade de vida no trabalho ganha materialidade e permite a análise das situações de trabalho concretas responsáveis pelas alterações nesse bem-estar em suas diferentes dimensões.

Um olhar retrospectivo sobre a história do trabalho humano nos desvela um quadro de descaso absoluto com a qualidade de vida no trabalho. Somente de forma eventual se encontram registros ou denúncias sobre os agravos à saúde determinados pelo exercício laboral. Um exemplo interessante é a observação de Heródoto, no século V  A . C. , sobre a alta incidência de morte por problemas respiratórios entre escravos que trabalhavam com mortalhas cujo tecido era fabricado a partir de uma fibra vegetal, hoje, reconhecida como cancerígena. Quer em sociedades escravistas como o Império Romano da Antiguidade, quer em sociedades pautadas no trabalho livre como a Europa dos séculos XVIII e XIX, o modelo de produção imposto determinava baixa qualidade de vida aos trabalhadores. Falta de higiene, promiscuidade, esgotamento físico, acidentes de trabalho, subalimentação causavam uma alta morbidade e uma longevidade extremamente reduzida entre a classe trabalhadora. É somente no século XIX e a partir da intervenção dos Estados e da reivindicação operária que surgem as primeiras medidas  de minimização da precária  qualidade de vida no trabalho: redução da jornada , limite de idade para o trabalho infantil, proteção ao trabalho feminino, repouso semanal. A preocupação central assenta-se na luta pela sobrevivência da classe trabalhadora e a expressão qualidade de vida se circunscreve neste limite.

Um lugar particular deve ser dedicado a análise da introdução do taylorismo, no início do século XX, que gerou exigências fisiológicas até então desconhecidas, especialmente as exigências de tempo e ritmo de trabalho, e, conseqüências de ordem mental derivadas da separação radical entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Como resultado deste modelo de organização do trabalho, constatou-se:

- alta incidência de acidentes de trabalho;
- alta incidência de acidentes fatais;
- alta incidência de doenças ocupacionais clássicas com baixo número de casos notificados e registrados;
- exposições profissionais a altas concentrações de agentes tóxicos e poluentes;
- perfil de morbilidade caracterizado por doenças infecciosas, parasitárias e desnutrição;
- repercussões psíquicas derivadas da fadiga, da disciplina, controle e vigilância do processo de trabalho e da ausência de relação e significado entre o esforço físico e o produto do trabalho.

O modelo de trabalhador ideal proposto (e bem conhecido pelos Gabinetes de Seleção e Orientação Profissional) seria o trabalhador disciplinado, pouco criativo, com habilidades específicas determinadas pelo posto de trabalho, e ainda, conforme os manuais, ‘adaptável às condições oferecidas’. E quando se sugere esta capacidade de ajustamento, pressupõe-se uma adaptação a situações que lhe causam ausência de bem-estar, portanto, ausência de qualidade de vida no trabalho.

As profundas mudanças observadas no processo de trabalho a partir da segunda metade do século XX, em especial nas últimas décadas, têm suscitado mudanças no perfil de morbidade e mortalidade da classe trabalhadora sem que isso, necessariamente, signifique uma melhora na qualidade de vida no trabalho. Se por um lado há uma melhoria nas condições laborais derivadas de ambientes mais limpos e higienizados, de  instrumentos que exigem menor esforço físico, por outro lado, novas epidemias de doenças ocupacionais têm sido diagnosticadas (como as Lesões por Esforços Repetitivos) e são comuns manifestações de estresse e sofrimento mental decorrentes das novas exigências demandadas pelo processo de trabalho. Alguns exemplos são bastante ilustrativos como o Karoshi japonês, caracterizado por morte súbita decorrente do excesso de trabalho. Ou ainda, a alta incidência de morte rápida e inexplicada entre trabalhadores tailandeses em Singapura que parecem estar relacionadas com o estresse provocado por mudanças bruscas no estilo de vida próprio de culturas milenares para situações altamente competitivas associadas a trabalho intenso. A busca pelo aumento da produtividade, a redução dos custos tão apregoadas pelas ISOs 9000, acompanham-se, geralmente, de redução do número de postos de trabalho e dos critérios de remuneração dos trabalhadores. dos trabalhadores. Freqüentemente o aumento da produtividade é alcançado por uma combinação no aumento do ritmo, diminuição das pausas e acréscimo da carga de responsabilidade dos trabalhadores em todos os níveis hierárquicos.

Alteram-se, portanto, os indicadores derivados da situação de trabalho que repercutem na qualidade de vida. Constata-se:

- baixa incidência de acidentes de trabalho;
- baixa incidência de acidentes fatais;
- exposição à baixa dosagem de agentes tóxicos levando a efeitos crônicos;
- mortalidade e morbidade marcadas por doenças crônico-degenerativas;
- aumento de doenças relacionadas ao trabalho como estresse, hipertensão, LER;
- sofrimento e doença mental associados ao trabalho visto o aumento da exigência de funções psíquicas, de responsabilidade, de insegurança e de competitividade.

Essa nova realidade provoca mudanças na relação do homem com a organização e também nas relações interpessoais pela demanda dos trabalhos em equipe e a necessidade de mais autonomia e responsabilidade dos trabalhadores. Altera-se, portanto, o ‘perfil’ do trabalhador visto as exigências de uma melhor qualificação e escolaridade, polivalência e recuperação da inteligência na produção. Este novo ‘perfil’ vai se refletir no trabalho dos gabinetes de seleção e orientação profissional.

Países como o Brasil, com uma economia periférica, caracterizam-se por apresentarem problemas típicos tanto dos antigos padrões como dos novos padrões do processo de trabalho o que vem problematizar ainda mais a questão quando se fala em qualidade de vida no trabalho e nos desafios para o orientador profissional. Orientar com base em que modelo de profissional? Orientar  para atender a uma demanda de mercado não voltada para a qualidade de vida no trabalho? É raro encontrar-se nas práticas gerenciais metas que envolvam melhorias nos padrões de preservação da saúde física e mental e tecnologias que priorizem a adaptação do trabalho ao homem e não do homem ao trabalho. A noção de ser humano chega a ser ignorada ou percebida como algo inconcreto que vai se ajustar espontaneamente. Essas questões em confronto com esta realidade se colocam no cotidiano do orientador profissional e suas respostas demandam um posicionamento reflexivo, pautado em valores éticos e não a simples reprodução de fórmulas, técnicas e modelos simplistas e superficiais. O quadro atual remete a uma preocupação em relação a qualidade de vida no trabalho em sua dimensão psicológica visto as cargas intelectuais e psicossociais de trabalho, a relação de dependência estimulada pelas organizações, a insegurança e a ameaça de desemprego e a perda de confiança  na capacidade da sociedade industrial de promover bem-estar que se expressam através do sofrimento e da doença mental. É muito representativa desse quadro, uma carta enviada por um trabalhador à empresa em que atuava e que reforça a convicção de que a introdução de mudanças no processo e nas relações produtivas não implicam, necessariamente, na promoção de qualidade de vida no trabalho dentro de uma abordagem fundamentada no conceito de saúde.

Meu nome é...

Quando meu primeiro filho nem havia nascido, bati na porta de uma empresa na qual fora sempre meu sonho trabalhar. Seu nome na época ainda era..., era também uma empresa que sonhava em aumentar seu quadro de funcionários, de trabalho e de vida. Passei nos testes, fui admitido e me entreguei de corpo e alma ao nosso objetivo. Fiz serão, emendei domingos e feriados, arregacei as mangas e segui. Quando meu primeiro filho nasceu me chamaram em casa, porque a minha vida era aqui dentro da empresa.

Quando me falaram que o nosso chão bruto em que espalhávamos serragem para diminuir a umidade de óleo em nossos sapatos ia ser substituído por um piso lisinho e bonito, achei que era sonho. Pois foi muito além disso, ele aos poucos veio progredindo. A fábrica ficou toda com piso branco e as máquinas foram entrando num processo de melhoria, reforma e pintura. Nossa qualidade e produtividade se expandia a cada dia, e eu, feliz com todo esse crescimento, vesti a camisa de minha empresa e levantei sua bandeira. Ajudei com tudo o que pude, vi dezenas de colegas que chegaram e se foram. Vi outros que como eu vestiram a camisa e seguem até hoje. Com meu trabalho, deixei de pagar aluguel, construí minha vida e recebi mais duas visitas da cegonha. Meu primeiro filho? Hoje ele também trabalha na... e assim como ele, minha nora, cunhada, vizinho... E eu que dediquei minha vida inteira ao meu trabalho na empresa, com dedicação e amor. Um amor muitas vezes mal interpretado por alguns que me chamavam de pelego, mas que eu não dei importância, pois só eu sabia avaliar meus sentimentos junto a essa mãe que um dia me pegou no colo, que hora eu a pegava e assim nos revezávamos. Porém, os anos passaram. Hoje estou velho e cansado, aqui deixei todo o vigor da minha saúde e mocidade, e não sei porque foi me abalar logo a mente, esta que tanto pensou, que tanto quis e lutou para ajudar a empresa a chegar aonde chegou. Estou mentalmente doente.

Preciso saber hoje, desses braços que juntos abraçaram tantas causas, se vão poder me abraçar no momento que eu mais preciso, pois enquanto os meus braços foram enfraquecendo com o passar dos anos, os seus foram ficando mais fortes e poderosos, graças a Deus. E é como um filho doente que peço o retorno desta neste momento difícil da minha vida.

Assinado  .....

Um outro problema vem somar-se a esta realidade: a dos trabalhadores sem trabalho, ou dos trabalhadores sem emprego, esta última uma constatação incontestável se mantida a tendência atual. As projeções apontam que no início do próximo século, apenas 25% da população economicamente ativa seria de trabalhadores permanentes, qualificados e protegidos pela legislação; 25% dos trabalhadores estariam nos chamados setores informais, pouco qualificados e desprotegidos e 50% dos trabalhadores estariam desempregados ou subempregados, em trabalhos sanzonais, ocasionais e totalmente desprotegidos. Essas projeções se constituem em um outro desafio ao trabalho do orientador profissional: a preparação para que mundo do trabalho? A alteração da fonte básica da identidade psicológica, da inserção social e da socialização representadas pelo trabalho, que viabiliza o acesso a bens e serviços e o exercício dos direitos da cidadania, produzirá, entre outras conseqüências, novas formas de adoecimento, individual e coletivo e profundas repercussões na vida social.

Considerando que o processo de transformações em curso é irreversível e que tem produzido mudanças radicais em todas as esferas da vida, com impactos positivos e negativos sobre a qualidade de vida dos trabalhadores, é importante o engajamento de toda a sociedade e, portanto, também daqueles que se ocupam da orientação profissional. Há uma distância muito grande entre o discurso e a prática. Filosoficamente, todo o mundo acha importante a qualidade de vida no trabalho, mas na prática prevalece o imediatismo e os investimentos muito mais voltados às condições de trabalho ( ambientes, maquinário, etc,), a performance individual dos trabalhadores ( as ginásticas laborais, por exemplo) e muito menos dirigidos a natureza da organização do trabalho onde a gestão de pessoal ou as relações de trabalho devem incluir essas preocupações. Apesar de fazer parte de qualquer tarefa ou ação gerencial, as questões de saúde, freqüentemente, representam apenas uma questão secundária,  fundamentadas em valores culturais questionáveis sobre o que é ‘sadio’ no trabalho. Por exemplo, a de que trabalhar sempre, sem parar, representa força, dedicação e eficiência e de que o desgaste decorrente deste esforço é o preço necessário a ser pago para alcançar-se a produtividade almejada.

A complexidade da questão determina a construção de mecanismos e estratégias de ação que dêem conta dos novos desafios e demandas do cotidiano laboral e que não se restrigem a um conjunto de regras generalistas aplicáveis a diferentes contextos de trabalho. Se a questão é complexa, exige-se soluções criativas, assentadas em princípios e valores que se poderia classificar como intrinsicamente constitutivos da qualidade de vida: direito universal à atenção, promoção e proteção no trabalho, direito à participação efetiva daqueles que estão diretamente envolvidos no processo de trabalho e decisões e ações norteadas pelos preceitos da solidariedade e da ética. Com base nestes princípios e valores é possível repensar o papel do orientador profissional e seu compromisso na promoção da qualidade de vida no trabalho. 

 

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6 Texto apresentado no III Simpósio Brasileiro de Orientação Vocacional Ocupacional, Ulbra, Canoas de 01 a 04 de outubro de 1997.
7 Psicóloga, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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