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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

 ISSN 1415-711X

     

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

A formação do mercado das psicoterapias nos Estados Unidos da América e no Brasil: Psicanálise, Psicologia clínica e Psicoterapias1

 

The formation of market psychotherapies in the United States and Brazil: Psychoanalysis, Clinical psychology and Psychotherapies

 

 

Marcelo Morais Nicaretta2

Universidade de Brasília - UnB

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por finalidade geral esclarecer a construção do mercado das psicoterapias nos Estados Unidos da América, no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Para tanto, seu objetivo principal é aprofundar uma questão essencial para a compreensão deste acontecimento, que foi a transformação do psicólogo clínico em psicoterapeuta, discutindo sobre as relações constituídas, neste período, entre a Psicanálise Médica Europeia e a Psicologia Clínica Americana, com sua importância para a construção deste mercado. Por fim, a partir do cenário estadunidense, discute-se a construção do mercado de psicoterapias no Brasil.

Palavras-chaves: Psicoterapia, Psicanálise, Psicologia clínica, Psicoterapia.


ABSTRACT

The main objective of this work is to clarify about the construction of the Psychotherapy market in the United States, after World War II. Therefore, its aim is deepen into the essential understanding about the transformation of a clinical psychologist into a psychotherapist and also discuss the relationship between the European Psychoanalysis and the American Clinical Psychology in this period, as well as its importance to this field (market). To conclude, this work discusses the construction of the Brazilian Psychotherapy Market in regards to the American scene.

Keywords: Psychotherapy, Psychoanalysis, Clinical psychology, Psychotherapy.


 

 

1. As bases da formação do Mercado

Freud (1905a, p. 151) dizia que os chistes, assim como os sonhos, expressavam desejos reprimidos, sendo que ambos cumpririam uma função reguladora para o aparelho psíquico. Na contramão da célebre frase de Wittgenstein (1921/2001, p.121); o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar, para Freud, aquilo que não pode ser dito pode virar piada. Nessa visão, nossos comentários irônicos devem ser entendidos como críticas veladas, e não como meras brincadeiras. Mas se o chiste manifesta o reprimido, ele também indica sua importância. O que não faz diferença não precisa ser escondido. Sendo assim, as piadas acerca de psicólogos clínicos podem indicar, em relação a estes profissionais, ambas as condições atribuídas aos chistes; à importância adquirida por eles, em especial ao longo da segunda metade do século XX, e, também, os conflitos acerca do seu valor. Contudo, essa não é uma questão que interessa apenas àqueles que fazem piadas, ou que, porventura, acabaram ou acabarão nas mãos de um psicólogo qualquer.

O fato fundamental é que, na história do homem, muitas práticas clínicas gozaram de certo prestígio e aceitação, mas foram posteriormente abandonadas por se mostrarem completamente ineficazes ou até mesmo absurdas. Um bom exemplo é a famosa lobotomia transorbital, um procedimento cirúrgico no qual uma parte do cérebro era extirpada. Este procedimento surgiu em 1946, advindo do trabalho dos médicos estadunidenses: Walter Freeman e James Watt (Gooldwin, 2005). Essa técnica, considerada uma revolução nos tratamentos para pacientes agressivos, consistia na utilização de um instrumento semelhante a um quebrador de gelo para separar os lobos frontais e pré-frontais do conjunto do encéfalo. Ela permitia uma ampliação da ablação realizada nas fibras cerebrais pelo método tradicional, assim como facilitava o procedimento cirúrgico, o que, teoricamente, serviria para aumentar a efetividade do procedimento em questão. A lobotomia típica foi desenvolvida em 1936 pelo médico português Moniz (Gooldwin, 2005). Pelo desenvolvimento desta técnica ele foi agraciado com um Nobel em 1946. O procedimento foi desenvolvido a partir da pesquisa dos cientistas norte-americanos, Carlyle Jacobsen e John Fulton, que afirmavam que certos danos cirúrgicos, nos lobos frontais e pré-frontais de chimpanzés com comportamentos agressivos, diminuíam significativamente tais comportamentos sem alterar as demais funções mentais. De fato, os chimpanzés ficavam menos agitados, mas a consequência de tal procedimento para os seres humanos se mostrou desastrosa: ela não apenas produzia verdadeiros zumbis emocionais, mas também modificava de modo significativo a personalidade dos que a ela se submetiam (Goodwin, 2005, p. 454). Contudo, antes que este dano pudesse ser comprovado, tornando a lobotomia um procedimento inusual, mais de 18 mil pessoas já haviam sido submetidas a essa cirurgia revolucionária.

Visto desse modo, duvidar do funcionamento das psicoterapias pode ser visto como algo natural. Para não ser motivo de piada, o psicoterapeuta precisa dar garantias de que o seu tratamento será benéfico. Entretanto, desde 1952, quando Eysenck (1952) questionou a efetividade das psicoterapias, a condução da discussão tem seguido outro rumo. Defensores (Seligman, 1995; Beutler, 1991; Persons, 1991), e críticos (Szasz, 1978; Eysenck, 1952; Eysenck, 1953) apareceram de ambos os lados – aqueles que defendiam que as psicoterapias eram efetivas e aqueles que duvidavam. Essa discussão se arrastou pelo tempo, sem que qualquer resultado definitivo pudesse ser alcançado até os dias atuais. De modo contundente, nesse mesmo período, entre os anos 50 e 60, ocorreu uma expansão abrupta das psicoterapias nos Estados Unidos. A despeito das críticas quanto a sua efetividade, impulsionadas pelo crescimento da Psicologia Clínica patrocinada pelo governo estadunidense, elas se tornaram uma das principais profissões da área da saúde, atingindo uma enorme popularização. Como consequência, surgiu nos Estados Unidos um amplo mercado de tratamentos psicoterápicos, o mercado das psicoterapias (Nicaretta, 2004). Esse mercado, por sua vez, representa a origem do que hoje chamamos de campo das psicoterapias.

A história não começa nos dias atuais. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que toda e qualquer psicoterapia baseia-se na suposição de que certas ações humanas, sejam elas psicológicas, como a fala, ou concretas, como um comprimido, podem exercer certa influência visando cuidar, tratar ou curar o psiquismo humano. No dicionário Houaiss (2009, on-line) essas três intenções destacam os diversos usos que o termo terapia, advindo do latim, possui na sua origem, therapeía como cuidado e therapeúó como tratamento ou busca de cura. Na atualidade, existem, basicamente, dois grupos de profissionais que acreditam que suas práticas exercem tais efeitos psicoterapêuticos. O primeiro grupo corresponde àqueles cujas atividades usam meios não psicológicos como instrumento de intervenção, tais como fármacos (Psiquiatria, Homeopatia), alimentos (Naturopatia, Nutrição) ou vitaminas e minerais (medicina Ortomolecular), aplicação de agulhas (Acupuntura), massagens, óleos ou ervas (medicina Chinesa e medicina Ayurvédica). No segundo grupo, estão as práticas que utilizam meios psicológicos como instrumento de ação. Neste grupo estão as rezas, as práticas meditativas, as consultas terapêuticas (tarô terapêutico, místicos em geral, astrologia, aconselhamento religioso), as pedagogias (pedagogia Waldorf, Alcoólicos Anônimos), as Filosofias terapêuticas e as psicoterapias propriamente ditas (psicanálises, Humanismos e práticas comportamentais). Todas estas práticas são comumente oferecidas como recursos que propiciam melhorias de certas condições psicológicas ou que permitem evitar condições psicológicas indesejáveis. Os membros associados ao grupo de alcoólicos anônimos acreditam que seguir os doze passos e frequentar as reuniões semanais do grupo pode evitar a situação indesejável da ingestão compulsiva de álcool; Nosso propósito primordial é mantermo-nos sóbrios e ajudar outros alcoólicos a alcançar a sobriedade (Alcoólicos Anônimos, 2009, site oficial). Os professores de uma escola Waldorf acreditam que a alfabetização feita num momento inapropriado de acordo com a Antroposofia (Lanz, 2000), antes dos sete anos de idade, pode ocasionar uma desvitalização na criança, associada a sintomas físicos e emocionais futuros. Algumas destas práticas definem tipologias como a psicologia, no caso do estudo da personalidade, e da psiquiatria, com a construção do DSM. Outras, como as rezas e os aconselhamentos religiosos, tratam dos males da alma. Contudo, todas elas acreditam no seu potencial psicoterapêutico. Não há aqui a intenção de discutir o caráter científico dessas práticas.

A história que se segue não pretende determinar a verdadeira psicoterapia, ou defender o domínio dos psicólogos sobre o campo, ou mesmo a razão científica como uma referência para o seu valor. Ela pretende descrever o momento histórico a partir do qual a psicoterapia se tornou uma prática popular, para revelar as transformações, ocorridas na Psicologia, que estão na base da formação de sua versão moderna. A popularização das psicoterapias transformou, de modo decisivo, a identidade dos psicólogos estadunidenses, que passaram a se autodenominar psicoterapeutas. E, mais que isso, passaram a se comportar como médicos ou, dito de um modo mais preciso, como médicos-psicanalistas. De onde partiram para construir um imenso universo de práticas, que se tornaram reconhecidas publicamente como psicoterapias ou abordagens de psicoterapia.

O fato concreto é que, nos anos 1940, o psicólogo clínico adquiriu uma nova identidade. Ele se tornou um profissional liberal, alugou uma sala e começou a cobrar por consulta. Deixou de trabalhar como um consultor em empresas (Consulting Psychology), aconselhador em escolas e igrejas (Counseling Psychology), e de trabalhar como pedagogo em hospitais – como se via na primeira metade do século XX – para trabalhar como um clínico, nos moldes médicos. Antes da Segunda Grande Guerra, o psicólogo clínico era confundido com o Optometrista (Poffenberger, 1938) e não com o psiquiatra. O médicopsicanalista foi tomado como modelo de profissional liberal, emprestou seu modo de sobreviver aos psicólogos clínicos, que se tornaram profissionais autônomos, donos do seu próprio negócio. Como psicoterapeuta, o trabalho do psicólogo clínico tornou-se, de fato, uma mercadoria, um toma-lá-dá-cá. O objetivo do presente artigo é contar a história deste acontecimento, para mostrar que, nos Estados Unidos, a fusão da psicoterapia psicanalítica com a psicologia clínica produziu uma nova noção de psicoterapia e uma mudança no status da psicologia estadunidense, bem como na sua relação com o campo da saúde mental.

 

2. A emergência da profissão de psicoterapeuta

Embora os psicólogos clínicos tenham influído de modo decisivo para a sua popularização, a emergência da psicoterapia profissional deve sua origem à psicoterapia psicanalítica. Freud foi, inquestionavelmente, o inventor da profissão de psicoterapeuta. Foi o primeiro médico a oferecer um método psicológico estruturado como modo de intervenção para certas condições de sofrimento psicológico e, como este profissional, a cobrar por isso. Consta que Freud atendia rigorosamente oito pacientes todos os dias, de segunda a sexta-feira. Com Freud a psicoterapia ganhou um método que justificava o uso de um instrumento psicológico, a fala, como forma de tratamento. A função do analista era saber o que dizer para ajudar o paciente a falar, associando livremente, e saber ouvir, para trazer à consciência os conteúdos esquecidos. O esconderijo já não era o corpo, como na crença de um médico do século XIX, mas a psique, somente acessível, indiretamente, por meio das suas representações: linguagem, atos falhos, chistes, sonhos etc. Segundo Strachey (1950), Freud utilizava o termo Psyche — psychisch para se referir ao aparato psíquico, como sinônimo de Seele (ou Seelenleben), alma em grego. O analista, como um arqueólogo, comparou Freud (1937), escava as profundezas da alma humana em busca de vestígios de acontecimentos afastados da consciência, soterrados pelo tempo, mas em melhores condições que este, pois seu objeto se encontra vivo.

Freud, contudo, não foi o primeiro médico a propor uma psicoterapia. Em 1853, na Inglaterra Walter Cooper Dendy (1794 – 1871) médico inglês, procurou demonstrar a possibilidade de prevenção e tratamento de certas doenças através da influência psíquica, em um artigo intitulado Psychoterapeia, or the remedial influence of mind (Kaplan, 1991). Com intento semelhante, Münsterberg, em 1909, estava preocupado com a aplicação da Psicologia Científica (Donley, 1910). Com essa finalidade, ele usou o termo psicoterapia para se referir à possibilidade de estruturação de uma prática científica também baseada em influência psicológica, voltada para ajudar pessoas doentes. De um ponto de vista conceitual, as concepções de Münsterberg (Donley, 1910) e de Freud (1905b), quanto ao problema da psicoterapia, eram muito próximas. Ambos acreditavam num paralelismo psicofísico, em que processos orgânicos estariam sendo determinados, em parte, por fatores psicológicos. A psicoterapia seria uma habilidade humana muito antiga, passível de ser compreendida e dominada por meio de melhor compreensão do funcionamento da psique. A diferença estava no fato de que Münsterberg buscava uma compreensão estritamente científica do assunto, direcionando sua atenção para os fenômenos do subconsciente, que lhe pareciam mais adequados ao estudo objetivo da mente (Donley, 1910). Ao passo que Freud, devido ao seu interesse clínico, enfocou sua atenção nos aspectos inconscientes do psiquismo, devido, em grande parte, às suas experiências com as pacientes histéricas (Freud, 1905b). Certamente a grande diferença entre os dois está no fato de que Münsterberg era um eminente cientista de Harvard, sendo um dos fundadores da Psicologia Aplicada, sua intenção era aplicar os conhecimentos desse saber científico para demonstrar a sua utilidade. E o interesse de Freud, como médico, não era o de propor uma psicoterapia, mas explicar o funcionamento daquela que, de certo modo, ela já havia construído.

Não obstante este fato, a origem da psicoterapia nos Estados Unidos, como uma prática, não descende nem da psiquiatria e nem da psicanálise. No final do séc. XIX, já havia, em território estadunidense, um movimento híbrido de psicoterapia, influenciado pela Psicologia Experimental Francesa do subconsciente (Taylor, 2000) conhecido como movimento de Boston, que foi a principal influência nas ideias de Münsterberg. Entre 1880 e 1900, um conjunto de médicos estadunidenses e doutores em psicologia – entre eles Wiliam James, James Putnam, Henry Bowdith, Morton Price, Boris Sidis, Richard Cabot, Ida Cannon e Elwood Worcester – estava diretamente envolvido com assuntos tais como histeria (James, 1894a), sugestão (Baldwin, 1894a) e estados dissociativos (Prince, 1906). Neste período muitos outros doutores em psicologia e médicos nos Estados Unidos também estavam engajados na psicoterapia, muitos deles ao lado de Smith Ely Jellife, na cidade de Nova York, ou ao lado de William Allanson White, no Hospital de St. Elizabeth, em Washinton DC; nenhum deles estava associado diretamente com a psicanálise (Taylor, 2000, p. 1029). Em torno deste grupo em 1906, Morton Prince fundou o periódico Abnormal Psychology, inaugurando um campo expressivo dentro da APA, que abriu portas para o fortalecimento das psicologias aplicadas. O volume inaugural continha quatro artigos: o principal, de Pierre Janet (1906), debatia a patogênese dos impulsos nervosos; os demais artigos discutiam a teoria de Freud (Putnam, 1906), a Psicologia da Religião (Morton, 1906) e o último, de Bechterew (Bechterew, 1906), discutia o hipnotismo.

O movimento de Boston fundou o campo da Psicologia Anormal Americana, podendo ser considerado o principal expoente da psicoterapia estadunidense na primeira metade do século XX. (Taylor, 2000, p. 1029) Contudo, neste período, o campo da psicologia ainda estava se estruturando, com a formação paralela da identidade do psicólogo como um cientista e do espaço do psicólogo clínico como um psicólogo aplicado. Além disso, havia a chegada da psicanálise aos Estados Unidos como um movimento de psicologia concorrente. Todos esses fatos, ocorrendo ao mesmo tempo, ocasionaram uma série de confusões acerca das relações entre a psicologia clínica e a psicoterapia psicanalítica. Apesar do pensamento de Freud ter influenciado as discussões em torno do grupo de Boston, a principal perspectiva entre os psicólogos permanecia ligada ao pensamento de Janet, e o foco manteve-se voltado para as pesquisas sobre o subconsciente. Na prática, Janet e os demais psicoterapeutas estadunidenses em quase nada se diferenciavam dos médicos tradicionais, quanto aos seus métodos.

A psicanálise, propriamente dita, foi introduzida nos Estados Unidos ainda no século XIX, por Wiliam James, que participava indiretamente do grupo de Boston. Num texto curto de apenas dezesseis linhas, publicado na sessão destinada à literatura sobre psicologia, James (1894b) fez um relato sobre o texto de Freud e Breuer ( Ueber den Psychischen Mechanismus Hysterischer Phanomene), que tratava dos mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos. Sua intenção era discutir a relação entre a histeria e os estados hipnoides, tema subjacente às pesquisas por ele desenvolvidas acerca do subconsciente. Uma primeira tentativa de difusão do pensamento de Freud, em território americano, só aconteceu em 1906, quando o médico James Putnam reuniu-se com o Bispo da igreja de Boston, Elwood Worcester, para proferir uma série de palestras sobre o seu trabalho. Essa iniciativa ficou conhecida como Movimento de Emmanuel, devido ao fato de os encontros acontecerem na sacristia da catedral de Boston, que se chamava Igreja de Emmanuel, onde Worcester era ministro. Ainda em 1906, Putnam (1906) publicou um artigo no número inaugural do periódico Abnormal Psychology, que foi a primeira publicação estadunidense sobre o tratamento psicanalítico: Recentes experiências no estudo e tratamento da histeria no hospital geral de Massachusetts; com observações sobre o método de tratamento de Freud pela “psico-análise” (Putnam, 1906). Este movimento tem sido considerado, por muitos historiadores como a primeira tentativa de popularização da psicoterapia psicanalítica nos Estados Unidos (Caplan, 1998, p. 289; Cunningham, 1962).

Olhando para o seu sucesso inicial, curiosamente, o movimento de Emmanuel teve vida curta. Logo depois de criado, sua difusão no meio religioso ocorreu rapidamente. A identificação deste público com as ideias psicanalíticas passou a ser um problema. Ela ameaçava os médicos ao lado de Putnam, que detestavam a possibilidade de associarem um tratamento médico a um contexto de cura religiosa. Em apenas três anos, Putnam já havia perdido completamente o controle sobre a novidade, a ponto de declarar publicamente a renúncia de seu apoio ao movimento (Caplan, 1998). Do mesmo modo, Worcester também passou a ser duramente atacado pelos clérigos mais influentes, que questionaram o viés científico das ideias de Freud. Em poucos anos, o movimento havia sido extinto. Sem a força popular, as ideias de Freud continuaram a expandirse, em território americano, num ritmo mais lento. Em 1912, Smith Ely Jellife e William Alanson criaram a primeira revista americana dedicada ao assunto, a Psychoalanlitic Review. Em 1914, Putnam fundou a primeira Sociedade de Psicanálise Americana, em Boston. No período entre as guerras, houve uma certa estagnação no movimento psicanalítico estadunidense, que voltou a aquecer-se com a imigração dos psicanalistas europeus, no final dos anos 30. Durante todo esse período, os psicólogos clínicos não trabalharam como psicanalistas, a psicanálise americana era quase exclusivamente praticada por médicos (Chemouni, 1990, p. 42). Fazer psicoterapia, para eles, significava aplicar testes ou utilizar, pedagogicamente, técnicas psicológicas para corrigir problemas escolares e de adaptação. Para fazê-lo, não havia um método estruturado, sendo que as ideias psicanalíticas ainda não eram referência para o campo, que possuía um cunho fortemente experimentalista (Routh, 1996).

Nesse mesmo período, a Psicologia nos Estados Unidos da América estava em pleno desenvolvimento. Já em 1906, a Associação de Psicologia Americana (APA) comemorava seu 14 o aniversário e pouco ou nenhum espaço estava dedicado à psicoterapia, além das atividades do grupo de psicologia anormal, que incluía personagens como Janet, um concorrente direto das ideias de Freud. As preocupações da maioria dos psicólogos estavam divididas entre assuntos psicofísicos, religiosos e metafísicos. Seus esforços objetivavam diferenciar a psicologia da teologia, da sociologia e, principalmente, da filosofia, com quem a psicologia desde o início manteve uma relação profunda (Baldwin, 1894b) Essa aproximação gerou conflitos até mesmo quanto à natureza dos trabalhos apresentados nos congressos. Em 1897, Witmer propôs que apenas trabalhos que discutissem assuntos psicológicos fossem aceitos (Farrand, 1897). Esses questionamentos levaram à constituição de dois movimentos independentes. Em 1900, havia claramente duas vertentes nos congressos da APA, uma que discutia assuntos psicológicos e que tratava de temas psicofísicos, como o papel do lóbulo frontal na atenção e memória (Farrand, 1901); e a outra, que discutia assuntos filosóficos, tais como o conceito de moral no pensamento de Nietzsche (Farrand, 1901).

É bem verdade que, nos seus primeiros anos, a APA possuía um caráter mais acadêmico do que profissional. Entre os 31 membros fundadores havia dois psiquiatras, quatro filósofos, dois pedagogos e 23 experimentalistas. Nessa época, entretanto, as diferenças entre as disciplinas ainda não estavam tão bem demarcadas: muitos psicólogos que se denominavam experimentalistas possuíam uma formação anterior que influenciava decisivamente seus interesses. Os casos mais significativos são William James e Wilhelm Wundt; ambos haviam recebido treinamento em medicina, antes de se tornarem experimentalistas. Até mesmo os tópicos dos artigos apresentados na reunião anual não servem de base para a classificação dos profissionais, pois psicólogos, tais como Cristine Ladd-Franklin e J. Mark Baldwin, frequentemente apresentavam trabalhos de cunho claramente filosófico (Pate, 2000, p. 1139). O fato é que, na sua origem, a APA estava formada por representantes de outras disciplinas, em geral médicos e filósofos, que se reuniram em torno da aplicação do método experimental à psicologia. Como forma de resolver essa multiplicidade, no congresso de 1898, E. C. Sanford propôs ao Conselho Institucional da associação que fosse criada uma seção de filosofia para a APA. Embora a seção indicada não tenha sido criada, em primeiro de janeiro de 1900, integrantes da APA fundaram, na cidade do Kansas, Estado do Missouri, a Sociedade de Filosofia do Oeste ( Western Philosophical Society), que deu origem à Associação Americana de Filosofia ( American Philosophical Association), fundada em 31 de março 1902.

No início da sua história, estas duas instituições, American Psychological Association e American Philosophical Association, mantiveram profícuas relações, frequentemente realizando congressos e reuniões científicas conjuntamente. A proximidade desta relação tornava comum a participação mútua de alguns membros em ambas as instituições (Pate, 2000). Mary Whinton Calkins foi a primeira mulher a presidir a APA, em 1905, sendo a 14ª. presidente da Associação e também foi a presidente da Associação Americana de Filosofia, em 1918. O mesmo aconteceu com William James, que presidiu a American Psychological Association, em 1894 e a American Philosophical Association, em 1904 e 1906.

Não é, portanto, difícil observar que, enquanto Putnam estava promovendo a psicanálise em território estadunidense, os demais interessados na psicologia estavam buscando meios científicos para diferenciar-se da filosofia. A preocupação com a psicoterapia psicanalítica era marginal; o interesse dos psicólogos estava direcionado a demonstrar que a psicologia havia conseguido se tornar uma ciência. A Psicologia, na verdade, desde sua declaração de independência, está ansiosa para descobrir e coletar um conjunto de fatos especiais, fugindo da tradicional influência da filosofia metafísica (Münsterberg, 1899, p. 1). Por conseguinte, a distância entre os interesses da psicologia clínica estadunidense e os da psicoterapia psicanalítica eram tão grandes, que nem mesmo Witmer, fundador da primeira clínica de psicologia nos EUA, interessouse a fundo pelo trabalho de Freud. Witmer encorajava seus alunos a lerem os textos de Freud por eles mesmos, e preferia não fazer comentários sobre as leituras. (Routh, 1996, p. 246). Na famosa foto de 1909, tirada na universidade de Clark, onde Freud aparece ao lado de grandes nomes da psicologia acadêmica americana, Witmer não estava presente.

Visto deste modo, se a profissão de psicoterapeuta atual tem suas raízes no modelo desenvolvido por Freud, é possível afirmar que, antes da Segunda Grande Guerra, o psicólogo clínico jamais poderia ser confundido com um psicanalista. Entretanto, depois da guerra essa realidade mudou drasticamente. A Segunda Guerra Mundial transformou o status dos psicólogos clínicos: de assistentes de psiquiatras, limitados basicamente a aplicar testes psicológicos, passaram a profissionais altamente treinados para diagnosticar e tratar todos os distúrbios mentais e comportamentais. (Goodwin, 2005, p. 447).

 

3. A popularização da psicoterapia em território estadunidense e a consequente mudança no status do psicólogo clínico

Viu-se, após o término da Segunda Guerra Mundial, um acontecimento inusitado nos Estados Unidos, uma espécie de fusão entre a psicologia clínica e a psicoterapia psicanalítica. Elas já estavam ali, convivendo, desde o início do século XX, mas em momento algum a condição profissional do médico, ou do psicólogo como um auxiliar deste, foi posta em questão. O grupo da Psicologia Anormal, que estava associado à APA e praticava psicoterapia, era composto basicamente por médicos, e os que não eram médicos, como Münsterberg e Witmer, utilizavam técnicas pedagógicas e não propriamente clínicas. Em 1937, na inauguração do periódico de psicologia aplicada, Journal of Consulting and Clinical Psychology, Woodworth (1937) destaca a inadequação do uso do termo clínica para se referir à atividade do psicólogo clínico, destacando que este termo tem uma representação que não corresponde a sua prática, mas à do médico:

O Nome, Psicologia Clínica, não é afortunado. Literalmente, ele significa a cabeceira da psicologia. A profissão médica estendeu o uso do termo clínica para incluir os serviços ambulatoriais, e, por analogia, é razoável falar em uma psicologia clínica, embora os indivíduos que procurem aconselhamento nem sempre estejam acamados ou doentes num sentido usual. Além disso, o uso de termos como “clínica” e “diagnóstico” carrega mais ainda a atmosfera médica. Isso sugere que a psicologia está tentando entrar na prática da medicina. Psicologia Consultiva (Consultoria em Psicologia) é melhor, mas não é perfeito. Uma incômoda, mas verdadeira descrição seria Serviço Pessoal de Psicologia. Tal termo tem amplo sentido e contempla a assistência aos indivíduos na solução de problemas educacionais e vocacionais, de ajustamento social e familiar, condições de trabalho e outros aspectos da vida (Woodworth, 1937, p. 5)

Deste modo fica claro que, antes da guerra, os psicólogos que possuíam formação em filosofia desempenhavam atividades, inclusive em hospitais, que não eram médicas – incluindo a psicanálise, que era considerada até então uma prática exercida apenas por médicos. Mas algo aconteceu, de modo inusitado: a psicoterapia psicanalítica e a psicologia clínica estadunidense, que antes estavam separadas, juntaram-se, originando um amplo mercado de serviços de psicoterapia, que incluía ainda parte da psiquiatria e o aconselhamento psicológico-religioso. A aglomeração destas práticas deu-se em função de um conjunto de fatores que estão diretamente associados ao cenário econômico e político do pós-guerra, nos EUA.

O mercado das psicoterapias foi, em grande parte, uma consequência de um projeto de Estado que visava corrigir certas condições sociais, deflagradas pela guerra. Por um lado, a doença mental no adulto se tornou uma prioridade de ação. Milhões de americanos retornaram da guerra com necessidades de ajustamento, por problemas psiquiátricos, ou com outras necessidades clínicas. Por outro lado, o aprendizado com a Alemanha, conduzida à guerra pelo ódio étnico, levou o governo estadunidense a investir, pesadamente, em políticas públicas voltadas às minorias étnico-raciais. A psicologia estava pronta para atender aos dois papéis. Para atender ao primeiro problema, o governo investiu, entre 1948 e 1960, mais de 250 milhões de dólares em treinamento e pesquisa na área da psicologia clínica. A psicologia não foi a única a ser beneficiada. Entretanto, até o início dos anos sessenta, 60% da verba destinada ao campo da saúde mental era direcionado a ela. Nesse período, mais de 20 mil psicólogos clínicos foram treinados pelos programas subsidiados pelo Estado (Pickren, 2007). Quanto ao segundo problema, o governo incentivou o ingresso de negros, índios e mexicanos em cursos de graduação em psicologia. Duas mudanças ocorreram como consequência direta desse processo. Primeiramente, houve um aumento significativo no interesse dos alunos pela psicologia. Em 1925, apenas 1,3% dos interessados em ingressar numa faculdade escolhiam psicologia; em 1944, este número alcançou 13,1% (Fischer, 1946). Paralelamente, houve também uma migração maciça de psicólogos de outras áreas para a psicologia aplicada e, em especial, para a psicologia clínica (F. H. Finch, & Odoroff, M. E., 1939).

A APA já mostrava, ao longo de toda a primeira metade do século XX, uma tendência de crescimento das psicologias aplicadas, incluindo a psicologia clínica. Até os anos quarenta, a psicologia aplicada crescia como um todo, nas suas principais áreas de atuação; o hospital, a indústria, a escola e os tribunais (Woodworth, 1937). Entre 1931 e 1940, enquanto a psicologia clínica havia crescido 186%, a psicologia escolar cresceu 324%, e a psicologia de aconselhamento, ligada ao trabalho vocacional e também às agências sociais do governo, cresceu 750% (Finch, 1941). Essa tendência, por sua vez, não era exclusiva da psicologia, mas acompanhava o crescimento geral das ciências aplicadas (Fischer, 1946). Entretanto, a partir de 1948, quando o primeiro fundo de veteranos foi criado, a psicologia clínica se destacou das demais, atingindo um crescimento surpreendente. Essa mudança afetou principalmente os psicólogos mais novos. Em 1953, segundo Rogers (1953), enquanto a aceitação da psicoterapia, entre os psicólogos com mais de 50 anos, era de apenas 14%, entre os mais novos, que tinham por volta dos vinte anos, sua aceitação era de 30%. Esse dado já era indicativo do que viria a acontecer. Em pouco tempo, os psicólogos clínicos, que agora possuíam status de médicos, tornaram-se maioria entre os membros da APA, e formaram associações criando uma estrutura própria com seus periódicos específicos, modificando definitivamente o status da psicologia estadunidense (Andrews, 1948). O psicólogo deixou de ser associado à figura do cientista com um jaleco branco, para ser visto como alguém que ajuda a quem tem problemas (Pickren, 2007).

Entretanto, apesar do maciço investimento do governo, o treinamento oferecido não era capaz de suprir as demandas reais do mercado. O problema estava na ênfase acadêmica do treinamento. Entre 1948 e 1953, apesar de um aumento no número de teses em psicologia, houve uma diminuição do número de trabalhos sobre psicoterapia (Rabin, 1954). Isto indica que, apesar de o governo incentivar a formação de psicólogos clínicos em alto nível, seu interesse continuava voltado para as questões da psicologia científica. Por essa razão, o pensamento psicanalítico, a partir dos anos 40, passou a se disseminar fortemente entre os psicólogos clínicos que buscaram, fora das universidades, um treinamento específico, que lhes permitisse atuar, de fato, como interventores (Bordin, 1956). Havia um quadro muito favorável para isso, um grande número de eminentes psicanalistas havia imigrado para os EUA. Entre eles, Rank, Reick, Alexander, Bornstein, Fenichel, Reich, E. Fromm, Fromm-reichmann, Hitschmann, Jekels, Loewenstein, Lorand, Numberg, Beata Rank, Reich, Reld, Simel, Hartmann, Spitz e Sterba (Chemouni, 1990, p. 43). Esses analistas criaram uma cultura de treinamento nos Estados Unidos que ficou conhecida como formação em psicoterapia. Contudo, o que eles ensinavam não era apenas psicanálise, mas clínica médico-psicanalítica. Neste momento, os psicólogos passaram a praticar a psicoterapia e a receber por isso, nas mesmas condições que o médico.

Contudo, as críticas acerca da efetividade da psicoterapia psicanalítica criaram uma necessidade de mudanças na sua estrutura, que era muito demorada, dispendiosa e pouco efetiva (Eysenck, 1952). Como consequência, durante os anos cinquenta, surgiram movimentos que propunham novas terapias como alternativas ao modelo psicanalítico, principalmente as terapias comportamentais e humanistas, mas que preservavam a estrutura médico-clínica adquirida com a psicanálise. Esses movimentos passaram a ser chamados de abordagens de psicoterapia, todos eles diretamente associados à psicologia clínica americana. No final dos anos sessenta, o dinheiro investido na psicologia mudou de rumo. Passou a ser direcionado para a psiquiatria e para a produção de fármacos. A influência psicanalítica sobre os psicólogos clínicos diminuiu e as novas práticas se estabeleceram, formando associações, congressos e convenções próprias (Garfield, 1981). A tormenta havia passado, mas não sem deixar vestígios. Uma nova psicoterapia havia surgido, baseada na psicologia clínica e não mais na medicina, e que já não dependia da psicanálise para se justificar.

Este acontecimento mudou consideravelmente toda a estrutura da saúde mental americana. O psicólogo clínico passou a dominar o mercado, assumindo a posição que antes era do médico, absorvendo inclusive suas atribuições legais, com o papel de determinar quem poderia praticar a psicoterapia. A resposta dos médicos veio com a elaboração do DSM, em 1952, que propunha uma estrutura diagnóstica que associava noções de Kraepelin com conceitos psicanalíticos. O DSM foi uma tentativa de manter o domínio sobre o trabalho de diagnóstico, já que os psicólogos haviam dominado a prática da psicoterapia. Ainda nos anos sessenta, com o desenvolvimento de novas drogas, como o Haloperidol, desenvolvido em 1957 e liberado para uso pela FDA em 1967, que eram mais efetivas e possuíam menos efeitos colaterais, aos poucos os psiquiatras foram adquirindo uma identidade novamente farmacoterapêutica, associada ao trabalho com psicóticos. Nos anos oitenta, com o advento do DSM III, e o surgimento de drogas antidepressivas como o “Prozac”, o médico retomou uma boa parte do espaço que perdera, passando a tratar de modo independente todos os tipos de neuróticos.

 

4. Conclusão

A proposta deste artigo é ajudar os psicólogos a entenderem uma parte importante da história de sua prática. Mostrar como o investimento público foi determinante sobre a sua cultura e o seu destino. O que já não é novidade desde Marx, que possibilitou entender que as forças materiais determinam a realidade psicológica. Mas aqui também pretende-se mostrar como essa realidade tem sido cruel com o psicólogo que se envereda pelo caminho da psicoterapia. Hoje, o valor do clínico, seja ele qual for, é determinado pelos planos de saúde, que, no Brasil, pagam em média entre 20 e 60 reais por consulta, o que equivale a 8,6 e 26,8 dólares (22/03/09). Para o médico, foi possível se adaptar razoavelmente a essa condição, diminuindo o tempo dos atendimentos e aumentando a quantidade de pacientes por hora, prejudicando, consequentemente, a qualidade de seu trabalho. Para os psicoterapeutas brasileiros, esse esquema foi mortal, praticamente impedindo seu acesso ao sistema geral de saúde. Hoje, existe uma resolução (ANS: 167/07) da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que obriga os planos de saúde no Brasil a oferecerem serviços de psicoterapia, mas limita o número de sessões anuais e condiciona a liberação do atendimento a um pedido médico.

Este cenário teve sua origem nos anos 80, quando o mercado estadunidense de psicoterapias sofreu uma queda drástica, que ecoou pelo mundo. Durante o governo de Ronald Reagan, houve um investimento maciço nas ciências biomédicas e o quase esgotamento dos fundos que sustentavam as pesquisas e o treinamento em psicologia clínica. Em uma crítica lição à Associação de Psicologia Americana (APA), os psicólogos descobriram que estavam pobremente preparados para uma competição efetiva, paralisando suas mudanças (Pickren, 2007, p. 284). No Brasil, como consequência deste quadro, dada à dificuldade dos psicólogos de se inserirem no sistema geral de saúde, tornou-se mais difícil para os terapeutas sobreviverem a partir de um trabalho clínico autônomo, como os médicos. Isso se deu por consequência da estruturação do campo da saúde em torno dos planos de assistência médica, que excluía os psicólogos da sua cobertura, por não contemplar as suas especificidades e por não reconhecer seus serviços como parte do campo médico maior.

É bem verdade que a lógica estadunidense é muito diferente da brasileira. Antes do mercado das psicoterapias surgir nos EUA, já existia lá uma imensa estrutura solidamente construída dentro das suas maiores universidades, um patrimônio herdado da psicologia experimental. Fora isso, a Associação de Psicologia Americana (APA) se tornou, ao longo do século XX, uma das maiores corporações científicas do mundo. Desse modo, quando ocorreu o enxugamento do mercado, seus efeitos foram mais proeminentes na sua parte comercial, fora das universidades. Dentro delas a psicologia clínica estadunidense continuou a crescer e a se estruturar de modo significativo. Esse crescimento é refletido nas publicações da área. No banco de dados da APA, inserido no editor on-line OVIDSP, que congrega todo o conjunto de publicações desta instituição desde o seu periódico original, Psychological Review (1894), constatou-se que apenas nos últimos nove anos foram publicados, nos Estados Unidos, mais de 18 mil artigos que discutiam, de um modo direto ou indireto, questões relativas às psicoterapias. Dentre estes, 1.669 possuíam o termo psicoterapia (psychotherapy) no título. É o dobro do número total das publicações estadunidenses sobre psicoterapia, entre 1895 e 1970. Nos Estados Unidos, a psicologia clínica se adaptou à crise. Os psicólogos clínicos adquiriram uma nova identidade como terapeutas, menos plural, associada às vertentes cognitivocomportamentais e às pesquisas baseadas em evidências, sem perderem sua força. Por lá, há até quem defenda o direito para os psicólogos clínicos de prescrever medicações, desde que com um treinamento adequado (Klein, 1996).

No Brasil, o que aconteceu foi exatamente o contrário. Os médicos passaram a buscar leis para forçar os psicólogos clínicos a retornarem à sua condição de “optometristas”. Aqui, o campo da psicoterapia se estruturou de um modo muito diferente do norte-americano, crítico ao academicismo. Como consequência, com o declínio do mercado, a estrutura comercial das formações em psicoterapia adoeceu. Por um lado, tornou-se autofágica, servindo como fonte de novos pacientes para os didatas, dado que a cultura do treinamento em psicoterapia exigia, ainda como herança do modelo médico-psicanalítico, que o aspirante a psicoterapeuta se submetesse pessoalmente ao processo. Treinar terapeutas retroalimentava os consultórios. Neste sentido, os cursos de formação em psicoterapia se tornaram um bom negócio para os clínicos. O que, aos poucos, fez com que o nível do treinamento oferecido fosse perdendo sua qualidade. Onde antes se exigia 5 anos de estudo passaram a ser exigidos 4, 3, 2 anos. Aos poucos, o psicoterapeuta foi-se tornando, de fato, um técnico.

Por outro lado, não houve um trabalho de sedimentação da estrutura comercial no Brasil, como foi feito pela APA. O modelo de Conselhos, adotado aqui, não foi capaz de reunir os psicoterapeutas para fortalecer sua identidade como psicólogos clínicos. Pelo contrário, o que se viu foi uma constante disputa por território entre os grupos de psicoterapia, que não trouxe quaisquer benefícios políticos para eles, mas gerou uma imensa confusão no imaginário da população, que se tornou incapaz de diferenciar o psicólogo clínico do psicoterapeuta, do psiquiatra e do psicanalista. Sobre este assunto, os mais esclarecidos respondem, com convicção, quando perguntados sobre a diferença entre estas atividades: o psiquiatra é médico!

Um bom caminho para compreender a realidade da psicoterapia no Brasil é examinar as suas relações com o movimento estadunidense, para entender que uma das grandes diferenças entre essas duas realidades é que, por aqui, o dinheiro sempre foi escasso. Lá, era possível aquecer o mercado com muitos produtos, novas técnicas revolucionárias, porque havia dinheiro suficiente para sustentar a diversidade. Esse cenário era parte da realidade nos EUA, uma realidade dourada. Nesse período, por lá, vendia-se de tudo.

Comerciais de cigarro mostravam crianças que incentivavam suas mães a fumar, para se sentirem mais felizes com os seus filhos (Heimann, 2002). Quando essa realidade foi importada para o Brasil, ela encontrou aqui um cenário diferente. Uma população com poder aquisitivo menor, ausência de incentivos do Estado, uma psicologia clínica ainda em estruturação e a ausência do cenário de guerra. Onde estavam os loucos e os mutilados? Com isso, ao invés de os psicoterapeutas construírem uma identidade de classe, como psicólogos clínicos, construíram identidades de grupo como gestaltistas, psicanalistas, reichianos, humanistas, comportamentalistas; isso, apesar de receberem, na graduação, treinamento científico como psicólogos. Olhar para o mercado não é um ato de bravura, mas de ética com o próprio psicólogo, que cultiva, em seus sonhos, o desejo de ser respeitado como um profissional, assim como o médico, e ser bem remunerado por isso. Para tanto, é inútil saber definir o que é uma psicoterapia, ou o que pode ser reconhecido como tal, ou mesmo proclamar o direito de dizer quem pode ser um psicoterapeuta. No que diz respeito ao mercado, como diria Dorival Caymmi, “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”. Caso contrário, os psicólogos correm o risco, como o doutor Frankenstein, de serem vítimas daquilo que criaram, entrando para a História como a grande piada do século XX. Pois como diz a sabedoria do povo: “Pior do que roubar é roubar e não poder carregar”.

 

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Recebido em: 12/01/2009
Aceito em: 16/02/2009

 

 

1 Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida no Instituto de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília, sob orientação do Prof. Dr. Norberto A. S Neto, com o seguinte título: A emergência de uma Nova Psicoterapia na Era de Ouro Estadunidense.
2 Psicólogo Clínico, Doutorando em Psicologia Clínica (Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Inst.Psicologia Clínica: UnB). Contato: Condomínio Mansões Entrelagos, Etapa 2, Conj.T, casa 24 – Sobradinho, Brasília, DF. CEP 73255-901.E-mail: marcelo.nica@uol.com.br

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