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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

 ISSN 1415-711X

     

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

Notas clínicas sobre a insônia simples

 

Clinical notes on common insomnia

 

 

Walter Trinca1

Cad. nº 40, “Walther Barioni”
Universidade de São Paulo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 


RESUMO

A insônia simples geralmente se associa à pulsão de morte, que afasta a experiência amorosa da pessoa consigo própria. Disso decorre o distanciamento de contato com o ser interior, especialmente sob a forma de dificuldades na experiência de existência própria. Assim, agitação e ruídos ocupam o self, como produtos relativamente autônomos, causando dispersões e vazios. A insônia simples liga-se, portanto, à fragilidade do self, que torna a pessoa um campo de pouso a objetos que se alojam, quando falta verdadeiro contato consigo própria.

Palavras-chaves: Insônia; Teoria psicanalítica; Psicanálise contemporânea.


ABSTRACT

Insomnia is usually associated with simple death drive, which moves away the loving experience of the person with its own self. In sequence, the departure of contact with the inner being follows, especially in the form of difficulties in the experience of existence itself. Thus, agitation and noise occupy the self as relatively autonomous products, causing dispersion and emptiness. Common insomnia is linked, therefore, to the fragility of the self, which turns the person into an airfield to accommodate objects, when the real contact with its own self is missing.

Keywords: Insomnia; Psychoanalytic theory; Contemporary psychoanalysis.


 

 

1. Introdução

Trata-se aqui da insônia que se deve às insuficiências do sono, sem causas orgânicas e sem relação com outros distúrbios físicos ou psíquicos. A Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, da Organização Mundial de Saúde, diz que insônia é uma condição de quantidade e/ou qualidade insatisfatória de sono, a qual persiste durante um período considerável de tempo.

A insônia simples refere-se tanto à dificuldade de adormecer quanto ao precoce despertar e constitui-se no motivo principal da consulta. Uma de suas manifestações consiste em a vida mental ser enredada por memórias de partes ou segmentos do acontecer na vigília numa espécie de tagarelice e de agitação, geralmente envolvendo prazer ou medo. Ou seja, uma predisposição à excitação mental, cujos conteúdos variam em conformidade com a estimulação e com as circunstâncias anteriores. Pode existir uma torrente de memórias e associações ou um redemoinho mental difícil de ser controlado, que entretém o paciente ou lhe dá a convicção de haver algo importante, desviando-o do sono. Em certos casos, o sono é extremamente superficial, com ou sem pensamentos, emoções e imagens, dificultando o repouso. Mais geral, porém, é a constatação de que uma variada gama de estímulos, que se pode chamar de ruídos, vêm ocupar o lugar que seria próprio à experiência da pessoa com seu próprio ser; normalmente, isso se passa de modo inadvertido ao paciente. Assim, a insônia de que tratamos é uma atividade que se dá no plano interno, próxima à hiperatividade que se encontra no plano externo do comportamento, tendo a ver com o distanciamento de contato com o ser interior.

 

2. O distanciamento de contato

O que acontece no distanciamento de contato relativo à insônia? Um jogo interior e um monólogo alexitímico cujos sentidos escapam, pois ocorrem na ausência da fala do ser. Quando há palavras, elas têm o gosto metálico das construções sem sujeito e, por isso, são desprovidas de ressonâncias. Os ruídos dão-se no vácuo, no entretenimento ou na angústia, uma região em que o sujeito submerso não sente sua própria ausência; esta parece tão natural que quase não se nota.

A consciência fixa-se no objeto, quando o sujeito lhe escapa. Objeto de prazer ou de medo, é sempre o objeto que toma o cenário da insônia. Haveria para aquele paciente algo pior do que perder o centro de referências e ser objeto de estimulações como um barquinho de papel que vaga ao sabor da correnteza? A insônia é parte desse afastamento das fontes profundas, desse desvinculamento da vida de sonhos. Na separação, em graus, de si próprio, o paciente é um campo de pouso a objetos que nele se alojam e que o tornam, também, um objeto.

 

3. A função do vazio

Qual é a natureza desse objeto? Como vemos, o paciente põe o foco da mente naquilo que essencialmente lhe é exterior, sendo tomado por isso. Há uma intensa atividade de partículas que aparecem e desaparecem, impondo-se à consciência desperta. Mas se trata, antes, de uma consciência vagante, dominada por ondas de associações desprovidas de escolha. Distingue-se claramente da consciência de existência própria, em que a presença do sujeito é dada pelo ser profundo.

O paciente perde a voz de comando do próprio ser, com cujo contato, se estivesse presente, o faria dormir. Não há dúvida a respeito da proximidade da insônia com as dispersões. Ela torna a mente um armazém de coisas dispersivas. Estas só em aparência guardam um sentido porque, em vista da verdadeira realização, o sentido não está presente. Nas dispersões há, portanto, uma distinção, para não dizer uma oposição, entre a mente superficial e exterior e aquela produzida por verdadeiro contato. Distante de si próprio, o paciente produz um campo interno que tende a manifestar a função do vazio. O que causa a insônia é a condição elementar de vazio, dada pela dificuldade de presença essencial do ser, que pode ou não se expressar com angústia.

 

4. Caso ilustrativo

David é um empresário do ramo de construções que tem preocupações exageradas com o trabalho. Procurou atendimento por causa da insônia, que geralmente ocorre de madrugada por longos períodos. Tem pouco mais de 50 anos de idade, estando divorciado. É um paciente com grande capacidade de auto-observação e de autopercepção. Ao acordar à noite, sente-se tomado por pensamentos e emoções a respeito de suas atividades empresariais, além de lembranças do dia, de assuntos a cuidar e de problemas a resolver. Diz que sua mente é um armazém de coisas, por onde passam, horas a fio, sensações, preocupações, imagens e memórias, com seus desdobramentos e produtos infindáveis.

Ele se sente assediado por esse universo que lhe parece familiar, mas o atrapalha. A cabeça é um depósito de coisas, quinquilharias e problemas de que não consegue se livrar. Têm vida própria, como um cavalo desembestado, cujo cavaleiro perdeu o domínio do animal. Na análise, ele descobriu que isso se deve a uma confusão interior, que ocorre quando ele não tem claras noções do que fazer, por não saber verdadeiramente quem ele é, o que realmente quer e para onde deveria ir. Já pensou em vender sua participação na empresa de que é sócio, porque imagina que esse trabalho lhe cria obstáculos à fruição da vida. As dificuldades que enfrenta no trabalho, diz ele, fazem-no enfraquecer-se. Confessou que na insônia sente-se muito dispersivo: um rebuliço na mente e pensamentos variados uns atrás dos outros, os quais, no dia seguinte, parecemlhe insignificantes.

No momento em que ocorrem, causam a impressão de algo importante somente porque sente-se fraco e incapaz de resolver as dificuldades. Na verdade, os pensamentos que vêm aos borbotões na insônia estão repletos de dúvidas do paciente a seu próprio respeito, inclusive a dúvida mais comum sobre sua capacidade de voltar a dormir.

Acaba por criar descréditos não só em relação à retomada do sono, como também perante outras situações de sua vida: por exemplo, o trabalho. É como se estivesse hipnotizado por uma força paralisante muito mais poderosa do que ele e que o faz sentir-se impotente. Compara a ação dessa força a um pesadelo, em que ele grita e sua voz não é ouvida; quando acorda, sobrevém-lhe uma terrível sensação de vazio. Vimos juntos que essa força o domina somente quando não consegue despertar sua própria força. Já ocorreu de ele enfrentar “essa coisa” ( sic): é quando consegue pôr em ordem os assuntos de sua vida, em vez de sucumbir à angústia. Desse modo não se sente inoperante, nem impotente. Na análise, percebe a desconexão com seu verdadeiro ser. Começa a fazer lentamente a distinção entre o que é ele próprio e a ação “dessa coisa” que o toma de assalto. Nos momentos em que se aproxima mais de si mesmo, tem uma forte experiência de vontade própria e os principais assuntos de sua vida entram emocionalmente no devido lugar. Nisso se inclui a questão de vender suas cotas de participação na empresa: percebe que deseja livrar-se da confusão mental, não da empresa. Ou seja, em vez de criar problemas sem solução por causa dos sentimentos de impotência, ele busca recursos e descobre suas forças interiores. A solução consiste em sentir que detém o comando de si mesmo.

 

5. A pulsão de morte

O paciente menciona explicitamente uma força poderosa que, na vida diária, tenta submetê-lo por meio de dúvidas e descréditos. Essa força, que tenho chamado de constelação do inimigo interno (Trinca, 2007), é ligada à pulsão de morte. Ela exerce uma ação importante para ocasionar o distanciamento de contato responsável pela insônia, embora sua responsabilidade não seja exclusiva.

Mesmo que se trate de estágio inicial da constelação, é certo que sua atuação se torna altamente eficaz e corrosiva. Especialmente porque já no estágio de dúvidas e descréditos se acha em atividade a ansiedade de fracasso, em que a crença antecipatória de não conseguir realizar algo chega a determinar o fracasso de sua realização futura, alimentando um círculo vicioso.

A constelação age de modo a afastar a experiência amorosa de si mesmo, abrindo espaço à tendência ao vazio. No caso, um vazio constitutivo da fragilidade do self.

Tenho observado, em inúmeros casos atendidos e supervisionados, que a insônia simples é um produto do distanciamento de contato, que se manifesta em graus no estado inconsciente como uma forma de vazio ligada à fragilidade do self, sendo ou não originária dos ataques da constelação. A fragilidade ocorre, aqui, sob a modalidade de enfraquecimento, no qual há desconexão com alguns elementos nucleares da vida psíquica. Por isso, os pacientes apresentam tendência a experimentar dispersão, desvitalização e vazio. Essa tendência pode afetar sensivelmente a mobilidade psíquica em razão dos obstáculos ao livre fluxo da energia vital.

 

6. O estado do self

A insônia simples é mais um exemplo da importância de diferenciar-se, em psicanálise, o ser interior relativamente do self. Sabemos que a insuficiente influência do primeiro sobre o segundo é responsável por graus de funcionamento independente deste, sob a ação emergente de produtos variados, cuja origem certamente não é o ser profundo. A atividade mental que descreve é característica da insônia, em especial os ruídos; ocupa o self em nível próprio, quando há distanciamento de contato com o ser interior. O nível de ocupação determina a natureza e a qualidade das partículas em ação. Ainda que sejam vividas com prazer, distingue-se do prazer oriundo da experiência de existência própria, por serem produtos relativamente autônomos instalados no self e, como tais, francamente conflitivos. O paciente não dorme porque a agitação da ocupação assume o lugar do sono.

Como na vigília, o self impregnado de partículas tem ocasião de se impor no sono, mas o faz de maneira equivocada, porque o paciente necessita de descanso – um descanso que depende do estado do contato. Pela constância das manifestações do self em relação tanto ao sono quanto à vigília, fica difícil separar nitidamente o que ocorre na insônia do que ocorre na vida desperta. Pela análise dos pacientes, é possível descobrir o nível de ocupação do self pela fragilidade que se reflete coerentemente em ambas as situações, mesmo que, estritamente, os conteúdos variem. Então, a vida noturna constitui um prolongamento da diurna e vice-versa. Nesse caso, a terapêutica da insônia implica forçosamente uma abordagem de conjunto.

 

7. Conclusões: uma psicanálise compreensiva

Para uma psicanálise compreensiva (Trinca, 2007), importa a percepção global do paciente sobre o que se passa. Havendo conflitos inconscientes, eles necessitam tornar-se conscientes para a diminuição do sofrimento. A retomada de contato com o ser interior, quando há distanciamento, é a questão fundamental.

A porta de entrada dessa retomada pode ser a experiência consciente de o paciente sentir o próprio corpo: as pernas, o tronco, os braços, a cabeça e, culminando, o corpo inteiro. Quando isso é possível, abre espaço à sensação de presença interna, em que o corpo inteiro é experienciado como vivo, presente e existente. Não se trata, porém, de exercícios físicos e, sim, de compreensão de um processo de contato consciente com a existência pessoal e de uma decisão de enfrentamento da situação psíquica causadora de sofrimento.

Para uma compreensão sustentada pela análise dos conflitos e dos problemas, o paciente deve estar em condição psíquica de focalizar o encontro com seu próprio ser através da experiência com seu próprio corpo. Essa experiência lhe diz: “este aqui sou eu”, referindo-se ao ser que está presente, inteiro, no corpo. Verifica-se, assim, que não há dissociação entre corpo e mente. Na insônia, o paciente se retoma respondendo à questão: “onde estou?” Ao lhe aparecer como resposta a experiência de existência própria, ele passa a ter condições de dormir. Mas para isso sua mente não deve continuar vagando ou divagando; ela deve estar concentrada na sensação de presença que é dada por “eu estou aqui”. Nisso, a análise dos conflitos e das turbulências é decisiva, porque ajuda certamente a localizar e a decantar a ação dos ruídos, da onda de associações e das demais interferências de alçada do self.

O paciente necessita, pois, recusar tudo o que não seja a concentração na experiência de inteireza, dada originalmente pela sensação de presença de seu corpo inteiro. Isso significa não permitir que a mente seja tomada por qualquer tipo de pensamento, emoção, imagem etc. que não seja a focalização principal. Esse princípio é válido mesmo nos casos em que os ruídos envolvam muito prazer. A partir da consciência de ser, o paciente discrimina passo a passo a torrente de memórias, a tagarelice e o redemoinho mental que o perpassam, assediam ou invadem, tomando a decisão consciente e deliberada de afastá-los um a um em benefício de sua saúde mental. Se ele retém na consciência apenas a experiência de existência própria, é provável que consiga dormir.

 

Referências Bibliográficas

• Organização Mundial da Saúde (Org.) (1993) - Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre (RGS): Artes Médicas.        [ Links ]

• Trinca, W. (2007) - O ser interior na psicanálise: fundamentos, modelos e processos . São Paulo (SP): Vetor Psico-Pedagógica.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/01/2009
Aceito em: 27/02/2009

 

 

1 Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Membro Efetivo da Sociedade Bras. de Psicanálise de São Paulo. Contato: R. João Moura, 627 – Conj. 61 - CEP 05412-001 - São Paulo, SP. Tel.: (11) 3085-9176. E-mail: wtrinca@usp.br

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