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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.30 no.1 São Paulo jun. 2010
TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS
A situação das prisões no Brasil e o trabalho dos psicólogos nessas instituições: uma análise a partir de entrevistas com egressos e reincidentes1
The correctional facilities situation in Brazil and the work of psychologists in these institutions: an analysis of the interviews with egresses and reincidents
Alacir Villa Valle Cruces (Laureada pela Academia)2
Secretária da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o trabalho dos psicólogos em instituições penais, baseando-se no papel que lhes é atribuído pela Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984, modificada pela Lei 10.792, de 1º. de dezembro de 2003) e no fato de que esta função vem se restringindo à classificação dos condenados e não ao seu acompanhamento e da respectiva pena. Atividades que poderiam ser oferecidas no sentido de contribuir para que a pessoa presa ressignifique sua vida e seus valores, e se prepare para enfrentar as situações cotidianas não são encontradas na maioria das unidades penais. Entrevistas realizadas com egressos desse sistema, a fim de compreender as influências da pena privativa de liberdade em suas vidas evidenciaram inúmeras dificuldades que encontraram, e continuam encontrando, para manterem-se de modo socialmente aceito e para desvincularem-se das vivências do período de detenção. Concluímos que é imprescindível e urgente modificar o trabalho que vem sendo feito pelos psicólogos no sistema prisional e enfatizar, ainda, a necessidade de se optar por penas e medidas alternativas que efetivamente permitam o amadurecimento, a reflexão e a transformação das pessoas que entraram em conflito com a lei.
Palavras-chave: Psicologia penitenciária; Sistema prisional; Egressos; Lei de Execução Penal.
ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the work of psychologists in correctional facilities, based on the role assigned to them by the Penal Execution Law (Law No. 7210 of 11 July 1984, amended by Law 10,792 of 1 December 2003) and the fact that this function is being restricted to the classification of convicts and not to the accompaniment of their respective sentences. Activities that could be offered to help the person arrested reframe his life and values, to mature and prepare to deal with everyday situations are not found in most criminal units. Interviews with egresses of this system in order to understand the influence of deprivation of liberty in their lives, showed the many difficulties that they encountered, and continue to find, to maintain themselves in a socially accepted way and to withdraw from the experiences of the detention period. In conclusion, with these data, it is imperative and urgent to modify the work being done by psychologists in the prison system and emphasize also the necessity of taking penalties and alternative measures that effectively allow maturation, reflection and transformation of people who came into conflict with the law, its internal and external conditions and the community to which they belong.
Keywords: Prision psychology; Prisional system; Egress; Penal Execution Law.
1. Introdução
A partir das demandas encontradas na Lei de Execução Penal (LEP - Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984, modificada pela Lei 10.792, de 1º. de dezembro de 2003) para o trabalho dos psicólogos no sistema penitenciário, pretendemos analisar como esse trabalho vem sendo realizado em nosso meio.
A LEP dispõe, em seu artigo 1º., que a pena privativa de liberdade tem como meta efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
A mesma Lei, em seu artigo 5º., propõe que os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal e, no artigo 8º., que o condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a essas finalidades.
Em função dessas determinações e do resultado de entrevistas com egressos do sistema prisional, que evidenciaram que eles encontram sérias dificuldades para manterem-se de modo socialmente aceito e para desvincularem-se das vivências do período em que estiveram privados de liberdade, defenderemos a necessidade de trabalhos psicológicos que realizem as avaliações e contribuam para a reinserção da pessoa na sua comunidade.
Na medida em que uma das nossas grandes preocupações se refere à insegurança e ao aumento da violência, esse trabalho parece relevante, científica e socialmente, pois permite refletir sobre as políticas públicas penitenciárias atuais, em especial sobre a pena privativa de liberdade, e sobre as possibilidades de transformação das pessoas condenadas.
2. As prisões
Pedroso (2002), em seu estudo sobre a história das prisões brasileiras, verificou que elas serviram como alojamento de escravos e ex-escravos, como asilo para menores e crianças de rua, como hospício ou abrigo para doentes mentais e também como fortaleza para encarcerar inimigos políticos. Nas prisões materializava-se o poder e, por trás de seus muros, escondia-se uma realidade desconhecida, ao menos parcialmente, pelo restante da população: os maus tratos, a tortura, a promiscuidade e os vícios.
A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, em seu artigo 179, parágrafo XXI (http://www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm), determinava que as prisões deveriam ser seguras, limpas e arejadas, devendo haver número suficiente delas para que os presos fossem separados conforme a natureza do crime cometido. Essas características, porém, não são encontradas nem mesmo nos dias atuais, como se pode verificar pelos dados divulgados por órgãos públicos responsáveis pelas pesquisas e ações (Estado de São Paulo, FUNAP, 2002) e em Cruces (2006).
Pedroso (2002) defende, em função desses elementos, que o estudo do sistema carcerário deve ter como base seu aspecto de instituição estruturada a partir do poder punitivo e excludente do Estado. Apesar de terem surgido como tentativa de humanizar a punição aplicada àqueles que se desviassem das regras estabelecidas, um grande número de indivíduos é separado da sociedade por considerável período de tempo, tendo uma vida limitada e formalmente administrada (Goffman, 1974).
No século XIX, o avanço das ciências permitiu tomar como objeto de estudo o homem criminoso, a fim de corrigi-lo e transformá-lo. Foi o início do domínio das ciências no planejamento e estabelecimento de práticas penitenciárias criminológicas. A impossibilidade de comunicação entre os presos, com exercícios que os levassem a desenvolver bons hábitos sociais; o isolamento absoluto para que o encarcerado recorresse a sua consciência, se interrogasse e refletisse sobre o crime que havia cometido, começaram a surgir como práticas de ressocialização, e não apenas de punição.
Lemgruber (1999) mostra que, ao longo do século XIX, a pena privativa de liberdade passou a ser o principal instrumento de controle e de ressocialização de condenados. Em 1935, o Código Penitenciário da República previa que o Estado, além de ser responsável pelo cumprimento da pena, deveria também trabalhar para a regeneração do apenado, porém, mesmo depois de passados tantos anos dessa determinação, não existem notícias de prisões que tenham atingido esse objetivo.
Segundo Foucault (2001), a prisão assumiu, desde o início, a dupla função de privar o indivíduo de sua liberdade para transformá-lo. Ele considera que a prisão fabrica delinquentes, justamente pelas limitações violentas, impostas aos presos por meio de leis que, muitas vezes, revelam abuso de poder e contribuem para a formação de organizações espúrias. Por meio dessas organizações, que também se estruturam de modo rígido e hierárquico, os delinquentes condenados pela primeira vez são envolvidos.
Foucault (2001) também assinala que a prisão é terrivelmente eficaz na fabricação da delinquência, pois é um sistema que se sobrepõe à privação jurídica da liberdade e compreende regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que a solidificam (p. 225). Em função desses elementos, ele questiona se o fracasso não seria parte do próprio funcionamento da prisão.
Ainda segundo Foucault (2001), há sete máximas universais que regem as penitenciárias: 1) a detenção tem por objetivo principal a recuperação do condenado e a sua reclassificação social; 2) os criminosos devem ser separados, levando-se em consideração o crime cometido, a quantidade de anos a cumprir, a idade, o sexo, a personalidade, e as técnicas de correção que serão usadas; 3) as penas devem ser modificadas individualmente, no decorrer do seu cumprimento e de acordo com os progressos ou recaídas ocorridos; 4) o trabalho penal deve ser obrigatório, visando à transformação e socialização progressiva dos detentos; 5) deve ser oferecida educação ao detento, para dar-lhe instrução geral e profissional; 6) a prisão deve ter trabalhadores que possuam capacidades morais e técnicas; 7) o sistema deve, após a saída do preso, não apenas vigiálo, mas prestar-lhe assistência. Como se constata facilmente que esses propósitos não são atingidos, ele conclui que deveríamos assinar um atestado de fracasso.
Parece, no entanto, que o fracasso já fazia parte dos objetivos do sistema carcerário e que existe uma utilidade para ele. Pode-se supor que nas prisões
os castigos, não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles...O fracasso da prisão pode, sem dúvida, ser compreendido a partir daí. (Foucault, p. 229)
O mesmo autor (2001) alerta também para o fato de que devemos reconhecer que a prisão foi feita para as classes mais numerosas e menos esclarecidas.
Percorrei os locais onde se julga, se prende, se mata... Um fato nos chama a atenção sempre; em toda parte vedes duas classes bem distintas de homens, dos quais uns se encontram sempre nos assentos dos acusadores e dos juízes, e os outros nos bancos dos réus e dos acusados (p. 229)
Diniz (2005) considera que o sistema prisional brasileiro não tem conseguido oferecer aos condenados os meios indispensáveis à reintegração social. Dentro do sistema carcerário, o que se encontra é um ambiente de degradação, marcado pela superlotação, pela ociosidade e pela violência. Esse ambiente estigmatiza o egresso, abala sua integridade física, psíquica e moral, dificultando sua reconstrução. Lemgruber (1999) acrescenta que é absolutamente contraditório esperar que alguém aprenda, de fato, a viver em liberdade, estando privado de liberdade (p. 149)
Segundo o Relatório: Situação do Sistema Prisional Brasileiro (Câmara dos Deputados/Comissão de Direitos Humanos e Minorias, 2006, http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm/RelatSitSistPrisBras.html), apenas no Estado de São Paulo havia um total de 92.865 mil vagas para 125.804 presos efetivos distribuídos num total de 144 unidades prisionais. Na apresentação desse documento, o Sr. Luiz Eduardo Greenhalgh (2006), Presidente da referida Comissão, considerou que o quadro resultante, absolutamente crítico, exige respostas imediatas na forma de políticas públicas que envolvam todas as instituições responsáveis e a sociedade civil (p. 4). Cardoso (2006), então presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, registrou, no mesmo documento, que
os dados e informações apresentadas favorecem o questionamento da validade das políticas adotadas pelo Poder Executivo do Estado de São Paulo, vez que este não cumpre seu papel de garantidor dos direitos do recluso, tais como a dignidade e o valor inerente ao ser humano (p.34).
Em relação ao Estado de São Paulo, os principais problemas apontados no documento foram a superlotação; o desconhecimento, por parte dos presos, dos benefícios que podem ter durante o cumprimento da pena; agressões, torturas e práticas congêneres por agentes do Estado e impunidade dos acusados dessas práticas; inadequação ou carência de tratamento médico; falta de assistência jurídica.
A Lei de Execução Penal (LEP) nº. 7.210, de 11 de julho de 1984, prevê, em seu artigo 10º., que a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Em seu artigo 11º., prevê aos encarcerados assistência: I - material; II - à saúde; III - jurídica; IV - educacional; V - social; VI - religiosa. O que se verifica, no entanto, é que, quando encarcerado, o preso deixa de ser cidadão, perde o direito de ir e vir, de votar, de manifestar publicamente suas opiniões e desconhece ou, se conhece, não consegue garantir seus direitos.
Tal situação é um tanto quanto contraditória, pois, após infligir sofrimento ao presidiário para que ele sirva de exemplo e para evitar que cometa novos crimes, não o prepara para retornar à sociedade. Quanto a isso Thompson (1993) declara:
Punir e reformar pessoas na mesma operação é, exatamente, o mesmo que tomar um homem sofrendo de pneumonia e tentar combinar tratamento punitivo e curativo. Argumentando que um homem com pneumonia é um perigo para a comunidade e que ele não precisaria ter contraído a doença se houvesse tomado adequado cuidado com sua saúde, você resolve que ele deve receber uma severa lição, tanto para puni-lo por sua negligência e sua fraqueza pulmonar, quanto para dissuadir outros de seguirem seu exemplo. Por isso, você o deixa nu e, nesse estado, o faz ficar em pé a noite inteira na neve. Mas, como admite o dever de restabelecer sua saúde, se possível, e soltá-lo com pulmões sadios, você contrata um médico para superintender a punição e administrar pastilhas contra tosse, com o sabor mais desagradável possível para não mimar o culpado (p. 67)
A intimidade do apenado é outro ponto delicado. Em relação a ele Bitencourt (1993) destaca que
1º) durante o processo de admissão, todos os dados relativos ao interno, bem como sua conduta passada, especialmente os aspectos desabonatórios são recolhidos e registrados em arquivos especiais àdisposição da administração penitenciária. A instituição total invade todo o universo íntimo do recluso, sejam de caráter psíquico, pessoal ou de qualquer natureza, desde que possa significar algum descrédito. 2º) Também se anula a intimidade pela falta de privacidade com que se desenvolve a vida diária do interno. Ele nunca está só. Tem que se manter obrigatoriamente na companhia de pessoas que nem sempre são suas amigas. A obrigatoriedade de estar permanentemente com outras pessoas pode ser tão angustiante quanto o isolamento permanente. O mais grave desta situação é a impossibilidade de evasão da instituição total, como ocorre na sociedade civil. Esse desrespeito à intimidade da pessoa verificase, até mesmo, nos locais reservados a satisfações fisiológicas, como dormitórios coletivos e latrinas abertas (p. 83)
Durante todo o tempo de reclusão, através das situações descritas acima, os presos sofrem o que estudiosos chamam de "prisionalização". Trata-se de um processo de dessocialização que leva a pessoa a absorver para si a cultura prisional. Mais um fator que dificulta sua volta efetiva à sociedade.
Ainda há carência de estudos, em nosso país, sobre os efeitos psíquicos da detenção e da privação de liberdade sobre a pessoa, porém os mais comuns e observáveis são quadros paranóides e depressivos. Fora da prisão é possível notar que alguns presos se tornam indiferentes à sociedade, apresentam inibição ou desinteresse. Fato é que, independentemente do tempo de pena, todos os detentos estão propensos a algum tipo de reação carcerária.
3. O psicólogo no sistema penitenciário
O psicólogo vem trabalhando oficialmente no sistema penitenciário brasileiro desde a década de setenta do século XX. Suas atividades sempre estiveram ligadas à realização de exames e laudos criminológicos em sentenciados, com a finalidade de compor e instruir pedidos que são, em grande parte, de benefícios.
A Lei de Execução Penal (LEP), em 1984, ratificou a importância da psicologia e do psicólogo para o sistema penitenciário ao determinar a avaliação psicológica das condições pessoais dos sentenciados e seu acompanhamento durante o cumprimento da pena. Ela especificava, no artigo 6º., que a classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação (CTC) que elaborará programa individualizador e acompanhará a execução das penas privativa de liberdade e restritiva de direitos, devendo propor à autoridade competente, as progressões dos regimes, bem como as conversões das penas. No artigo 112º. prevê, ainda, que a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar progressão. E conclui, em Parágrafo Único, que a decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação (CTC) e do exame criminológico, quando necessário.
Essas determinações fizeram com que o número de psicólogos, atuando nas unidades prisionais paulistas, aumentasse significativamente. Isso ocorreu principalmente na década de noventa, quando as desigualdades econômicas da população foram sendo cada vez mais criminalizadas, as práticas cotidianas das classes menos favorecidas constantemente judicializadas e a solução assumida foi a construção de prisões, a fim de que a prática da detenção de pessoas continuasse a ocorrer.
O Relatório: Situação do Sistema Prisional (Câmara dos Deputados/ Comissão de Direitos Humanos e Minorias, 2006, (http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm/RelatSitSistPrisBras.html) mostra que as prisões continuam superlotadas, confirmando que construí-las indiscriminadamente e sem trabalhos preventivos não traz as soluções esperadas; não atende às necessidades da pessoa detida e nem às da população, que continua sentindo-se ameaçada.
Por outro lado, o psicólogo assumiu papel de avaliador das condições psicossociais da pessoa detida. Ele era chamado para compor a Comissão Técnica de Classificação (CTC) e dar seu parecer sobre a possibilidade ou não de o apenado obter a almejada progressão de regime. As demais exigências da LEP, tais como a realização do Exame Criminológico e a classificação do preso, a fim de subsidiar a elaboração do programa individualizador e o acompanhamento do sentenciado em sua pena, também responsabilidade dos membros da CTC, nunca puderam ser completamente executadas.
O Exame Criminológico tornou-se prática única e cotidiana dos psicólogos. Estes eram convocados pelos juízes das Varas de Execuções Criminais a responderem se uma determinada pessoa tinha ou não condições de continuar cumprindo sua pena em um regime mais brando, se as causas que a levaram a cometer o delito haviam sido extintas ou se sua periculosidade havia diminuído. Porém esses exames eram realizados quando as pessoas já estavam detidas há algum tempo, portanto submetidas ao processo de prisionalização já mencionado; não tinham sido acompanhadas em nenhum momento de sua pena; viviam, muitas vezes, em condições subumanas e, também, não tinham desenvolvido atividades recreativas, produtivas ou intelectuais nas unidades prisionais pelas quais passavam.
Como se pode depreender desses pedidos, a concepção de homem que fundamenta a criminologia moderna faz uma dicotomia entre indivíduo e sociedade. A constituição do indivíduo é compreendida independentemente das condições concretas nas quais está inserido e, ao negar o aspecto sócio-histórico dessa constituição, o psicólogo que adota seus princípios contribui para sedimentar explicações que buscam na personalidade do preso, nas suas características orgânicas, em suas motivações inconscientes ou patológicas, as causas do crime.
Em acordo com Vygotsky (1989), acreditamos, no entanto, que a realidade social é construída pelas relações concretas que o indivíduo estabelece em seu ambiente e por determinismos de ordem socioeconômica, fato que nos permite concluir que a criminalidade e o indivíduo criminoso são construídos.
O autor desenvolveu uma estrutura teórica para a Psicologia, pela qual se pode afirmar que o homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a natureza, com seus recursos simbólicos e com seus instrumentos; que a mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de vida e que não é a consciência do homem que determina as formas de vida, mas esta determinará sua consciência. Essa estrutura teórica demonstra, ainda, que não existe natureza humana, mas condição humana e que devemos, portanto, privilegiá-la como nosso objeto de estudo. A partir dessas concepções, propomos que algumas perguntas sejam objeto de nossos estudos:
1. Podemos afirmar que há um criminoso nato?
2. Será cabível supor que o ambiente em que o criminoso viveu pode ser responsabilizado pelo seu crime, mas o ambiente prisional não?
3. Será possível acreditar que a periculosidade pode cessar ou que as possibilidades para conviver em sociedade podem melhorar se as pessoas estiverem vivendo em condições adversas?
4. Temos elementos que nos permitam supor que uma pessoa não se mantém por meios socialmente aceitos simplesmente porque não quer e, em caso afirmativo, que sua vontade modificar-se-ia sem que nada de mais atraente, produtivo e rendoso lhe seja ensinado?
Ainda guiados pelos ensinamentos de Vygotsky, sabemos que o homem, ao nascer, é apenas candidato à humanidade. Sua efetiva humanização dar-seá no processo de apropriação do mundo, por meio do qual converterá o meio externo em interno e desenvolverá, de forma singular, sua individualidade. É nas relações sociais que estabelece e nas atividades que desenvolve que esse processo ocorrerá, cabendo, portanto, ao psicólogo e aos demais trabalhadores do sistema prisional a responsabilidade de criar as condições necessárias para que a construção de novas significações seja possível. Para que essas pessoas possam efetivamente viver, fazer suas escolhas, analisar e prever as consequências de seus atos, trabalhar e participar da construção deste mundo, sentindo-se parte integrante dele, é preciso que sejam preparadas.
O trabalho do psicólogo nas prisões, no entanto, não tem atingido essa abrangência. Não só porque ele está inserido em um sistema que historicamente vem demonstrando sua inabilidade em ressocializar; mas também porque esse sistema está subordinado a um mais amplo, que pode gerar pobreza, desigualdades e impossibilidades de construção da humanidade pela via da educação formal e do trabalho.
Em função dessas características, os profissionais, isoladamente ou em equipe, têm tido inúmeras dificuldades para conseguir transformações. Mas, além disso, eles parecem não terem dado conta da grandeza de seu papel e têm-se limitado, em grande parte, a avaliar e produzir laudos de qualidade questionável, com poucos subsídios para que as transformações das pessoas presas, das instituições penais ou desse sistema social injusto possam ocorrer.
Atividades profissionais que poderiam provocar amadurecimento e capacidade de análise, avaliações que levariam à reflexão e à tomada de consciência sobre o papel das subjetividades na construção deste mundo, estudos sobre as condições socioeconômicas e suas implicações para o psiquismo humano vêm sendo utilizadas apenas para fins judiciais.
Relatórios produzidos única e exclusivamente com o objetivo de responder a quesitos judiciais, de modo mecânico, com fundamentação técnica e ética discutível, passaram a ser criticados pelos juízes que os haviam pedido e pelas próprias pessoas avaliadas. Esses fatos contribuíram para que em 1º. de dezembro de 2003 fosse editada a Lei nº. 10.792/03, que modificou a Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984, principalmente no que se refere a não obrigatoriedade do exame criminológico e do parecer da Comissão Técnica de Classificação (CTC) para a concessão de benefícios.
O fim do exame criminológico, definido pela reforma da LEP, e o papel dos psicólogos no sistema prisional têm sido uma preocupação do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) que, com o apoio do Conselho Federal de Psicologia (CFP), produziu as Diretrizes para atuação e formação dos psicólogos do sistema prisional brasileiro (Ministério da Justiça, DEPEN, 2007). Em matéria publicada no Jornal do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2005, dezembro) lê-se:
As instituições penais têm alcançado, nos últimos anos, os holofotes da imprensa. O destaque dado pelos noticiários (rebeliões, fugas, motins e tentativas de resgates) não é animador. Não se fala, por exemplo, em projetos de reabilitação para os sujeitos encarcerados, mas sabe-se de uma grande quantidade de pessoas que, ao receberem benefícios da justiça ou ao terminarem de cumprir integralmente suas penas, voltam a reincidir no crime. (p. 10)
O trabalho do psicólogo dentro do sistema penitenciário brasileiro tem sua história relativamente recente e, apesar das alterações ocorridas na LEP, permaneceu praticamente inalterado.
As atividades realizadas pelos psicólogos e sua participação em equipe técnica ao longo desses anos, deveriam ter permitido o acúmulo de informações sobre as pessoas atendidas nos presídios, o que não parece ter acontecido, pois os trabalhos publicados não são muitos. Esse talvez seja um dos motivos que explica, ao menos parcialmente, a baixa qualidade técnica dos laudos produzidos, mas pode também revelar pouco interesse dos profissionais em realizar pesquisas e estudos mais criteriosos que permitam desenvolvimento sustentável da área.
4. Egressos do sistema penitenciário: uma pesquisa de campo
Entende-se por egresso do sistema penitenciário, de acordo com o Artigo 26 da LEP, aquele que estava preso e foi solto definitivamente, ou aquele liberado por um ano ou ainda o liberado condicional durante um período de prova.
O Artigo 25 da Lei nº. 7.210/84 prevê assistência ao egresso do sistema prisional, por meio de orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade. Deve-se conceder-lhe alojamento e alimentação, em caso de necessidade, pelo prazo de dois meses, podendo esse período ser prorrogado uma vez, em caso de demonstração de empenho por busca de trabalho, comprovado por um assistente social.
O Programa de Atenção ao Egresso e Família, da Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) do Estado de São Paulo, tem por finalidade prestar assistência direta ao egresso e à família, visando possibilitar autonomia e postura cidadã para que ele possa retomar o convívio social mais amplo. Sua base é facilitar o estreitamento dos vínculos familiares, com ajuda de uma rede de apoio, parcerias com órgãos governamentais e não governamentais. Seu foco está dividido em cinco âmbitos: social, educacional, trabalho, saúde e jurídico, além de contemplar projetos que visem à capacitação profissional e geração de renda do egresso e de sua família.
Existem dezesseis Centrais de Atendimento ao Egresso e Família (CAEFs) distribuídas pelo Estado de São Paulo. Cada uma possui um responsável técnico, assistente social ou psicólogo, que, em conjunto com estagiários, oferece serviços de acolhimento, orientação e encaminhamento de demandas objetivas e subjetivas; inserção em Programas de Capacitação Profissional e Geração de Renda; avaliação e orientação para inclusão em Programas Sociais Municipais, Estaduais ou Federais; assistência para obtenção de Benefícios Sociais, de Saúde e Trabalhistas; auxílio na aquisição ou regulamentação de documentos pessoais; orientação jurídica; encaminhamento à rede de saúde e auxílio na retomada do processo de escolarização a egressos, pré-egressos, familiares de egressos e presos.
Barreto (2006) considera que a vivência que o preso tem no complexo carcerário traz consequências irreparáveis para sua vida, e elas são levadas para fora dos muros da prisão. A pessoa presa assimila a cultura prisional, que é muito diferente daquela adotada pelas que estão em liberdade.
Esse fator, acrescido da ausência de acompanhamento e de um trabalho que promova conscientização e transformação nas condições de vida das pessoas presas contribui para que elas continuem sendo discriminadas pela sociedade. Antes de serem detidas, elas provavelmente já eram vítimas de preconceitos, já não se identificavam com os valores morais da classe dominante. Depois da reclusão, a discriminação e a exclusão se mantêm, mas fortalecidas pelo atestado de antecedentes criminais (Tavares & Menandro, 2004). Esse atestado piora a situação do indivíduo, pois lhe traz o estigma de criminoso, impede sua inserção no mercado de trabalho e na vida social, e o torna alvo fácil de vigilância discriminatória de policiais. Em outras palavras, é como se a prisão oficializasse a exclusão (Tavares & Menandro, 2004).
A fim de avaliar a extensão dessa exclusão e as dificuldades vividas por egressos do sistema penitenciário, foram entrevistadas 09 pessoas que já haviam cumprido pena privativa de liberdade e se encontravam em liberdade e 08 pessoas que também já haviam cumprido pena, tinham experimentado a liberdade e, na ocasião da entrevista, estavam detidas novamente. Todas pertenciam ao sexo masculino e residiam no Estado de São Paulo.
As entrevistas com as pessoas que se encontravam em liberdade foram realizadas em suas próprias residências ou em uma sala de uma igreja cedida para essa finalidade. As demais entrevistas foram realizadas em uma sala do Departamento de Reintegração e Atendimentos à Saúde da unidade na qual os participantes se encontravam detidos. Todas foram realizadas em ambiente restrito e sem interferências externas. Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme determinam as diretrizes e as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos (Conselho Nacional de Saúde, Resolução 196/1996).
As dificuldades para encontrar participantes foram inúmeras. Há várias hipóteses: a condição de egresso do sistema penitenciário provoca vergonha e tendência à reclusão e criam novos problemas; os órgãos oficiais ou entidades que deveriam agregá-los para o acompanhamento são poucos e os que existem ainda não conseguiram atingir esses objetivos e ainda por existirem entraves administrativos complexos que demoram a chegar à resolução da pena e, portanto, para a efetivação da presente pesquisa.
Em função desses entraves, uma das possibilidades encontradas foi a de tentar localizar pessoas que já tivessem cumprido pena privativa de liberdade por meio da ajuda de amigos. De posse dessas informações, entramos em contato para convidá-las a participar deste estudo.
Entre as pessoas que estavam em liberdade, 30 foram convidadas e 09 aceitaram. Muitas revelaram medo de se expor. Entre as pessoas que estavam detidas, 08 foram convidadas e todas aceitaram participar.
Para a coleta de dados, optou-se pela realização de entrevistas semiestruturadas, seguindo roteiro previamente elaborado, tendo em vista que este instrumento permite certo aprofundamento, bem como relativa flexibilidade, necessários às características e aos objetivos desta pesquisa.
As pessoas entrevistadas encontravam-se entre 23 e 53 anos de idade, sendo a média de 32 anos. Dentre os 17 entrevistados, 09 são solteiros, 06 são casados e 02 divorciados.
Com relação ao tempo que estiveram presos, antes da última liberdade (no caso dos reincidentes), ele variou entre 2 meses e 8 anos e 5 meses, sendo a média de 3 anos e 2 meses. À pergunta se recebia visitas enquanto esteve detido, 14 responderam que sim e 3 responderam que não.
Em relação ao amor, todos o consideravam importante e acreditavam no amor da família. A maioria dos entrevistados acreditava na importância do amor antes de serem presos, continuaram acreditando enquanto presos e em liberdade. Alguns, no entanto, relataram histórias de desavenças e discórdias com esposas ou companheiras que fizeram com que passassem a acreditar apenas no amor da família de origem.
A maioria dos participantes não acredita e nunca acreditou que pudessem existir amizades verdadeiras. Todos os que acreditavam na amizade antes de serem presos, após o período de reclusão ficaram descrentes em relação a ela. Apenas um dos entrevistados passou a acreditar na amizade após a liberdade.
Quase todos os participantes, em suas entrevistas, relataram situações de discriminação e de humilhação ao tentarem obter trabalho formal, após a liberdade, por causa de seus antecedentes criminais. Todos demonstraram interesse em trabalhar e acreditavam na sua importância, acreditavam também que o trabalho tem um grande significado para a vida das pessoas. Em seus relatos, ficou evidente um grande sentimento de inferioridade, que começou a tomar forma na prisão, local onde já ficavam imaginando que teriam dificuldade para driblar o preconceito e conseguir emprego. Esse sentimento permaneceu durante o período em que foi considerado egresso e os acompanha até os dias atuais. Eles reclamaram da falta de oportunidade de trabalho formal e sabem que ela tem relação com seus antecedentes criminais, que funciona como uma "firma reconhecida", de acordo com Tavares & Menandro (2004). Esses dados permitem concluir que se trata de uma mudança permanente, se esse tipo de preconceito se mantiver.
A maioria dos que estavam livres na ocasião da pesquisa não considerava importante estudar. Durante a reclusão, a grande parte deles começou a reconhecer esta importância e, quando teve oportunidade, estudou. Em liberdade a maioria continuou a considerar que estudar é importante. Entre os reincidentes, grande parte considerou importante e demonstrou pretensão de continuar a estudar.
Os entrevistados relataram que não tinham planos para o futuro ou quando os tinham estavam relacionados à aquisição de bens materiais, antes de serem detidos. Em liberdade, os planos que a maioria fazia relacionavam-se à busca de bem-estar pessoal e da família, além de um futuro longe da prisão. Nesse sentido, pudemos verificar que as perspectivas para o futuro foram modificadas, assim como a forma como essas pessoas veem a vida e o que passaram a valorizar.
Em relação às pessoas presas, existe um misto de opiniões. Enquanto a maioria acha que são como quaisquer outras, presas ou não, há também relatos de preconceito entre os próprios internos, que se consideram "lixo" ou que não prestam, revelando que existe um estigma enraizado.
A maioria se arrepende de muitos de seus atos e avalia que deixou muita coisa para trás, enquanto estavam em liberdade ou durante a reclusão. Demonstravam arrependimento pelos atos criminosos e, pela culpa manifestada, podemos concluir que esses sentimentos trazem efeitos muito negativos na maneira como se posicionam, nas relações que estabelecem e na própria subjetividade. Relataram, ainda, que passaram por muitos sofrimentos e que dão mais valor à vida e à liberdade por conta disso.
A maioria, antes de ser presa, considerava-se despreparada para a vida. Eles hesitavam em falar de si mesmos. Muitos ficavam em silêncio, pensativos e, às vezes, perguntavam o que exatamente queríamos saber com a pergunta relativa a seus sentimentos. Alguns diziam que era difícil falar de si, o que nos levou a concluir que viviam como se tivessem sido desconfigurados como seres humanos. Assim como enfatizou Barreto (2006), o processo de institucionalização, pelo qual os presos perdem muitos direitos, inclusive o de sentir, parece tê-los afetado a ponto de não saberem mais quem são e do que gostam.
Em relação à justiça, verificamos que a maioria dos participantes não acreditava nela. Muitos já opinavam assim antes de serem presos e os que acreditavam passaram a não acreditar em função das experiências vividas com a detenção. De acordo com Foucault (2001), eles experimentam esse sentimento de injustiça por conta da exposição a sofrimentos que a lei não ordenou. Apenas dois participantes acreditavam e continuavam a acreditar na justiça, o que pode ser explicado por Lemgruber (1999) que observou que, com o passar do tempo, os presos passam a considerar os castigos justos, perdem a noção de justiça real.
A maioria dos entrevistados que estava em liberdade sentia-se de alguma maneira estigmatizada, seja pelo tratamento recebido na prisão, seja porque não conseguia trabalho formal ou porque se sentia constantemente perseguido pela polícia. Alguns relataram que a polícia não age corretamente e tem receio do que lhes pode acontecer, pois sabem que quando acontece algum crime no bairro, quem esteve preso torna-se o primeiro suspeito. Evitavam, por isso, levantar qualquer tipo de suspeita sobre si, para não serem incriminados.
O sentimento de perseguição, assim como elucidou Foucault (2001), parece ter ultrapassado as grades da prisão e os acompanha por muitos anos, mesmo em liberdade. Isso ficou evidente nos relatos da maioria dos entrevistados, mas, evidenciou-se, principalmente, pelas atitudes e falas dos que se negaram a dar entrevista, que alegavam medo da polícia e das facções criminosas.
Temos elementos, aqui, para relacionar o sentimento de perseguição que experimentavam e que a avaliação de que a justiça é apenas para alguns, como bem assinalou Foucault (2001). Notamos que sentimentos e avaliações como essas permanecem, mesmo naqueles que já passaram pelo período de egressos, permitindo-nos concluir que uma mudança permanente em seus pensamentos e em seus sentimentos ocorreu.
Ressaltamos que a violência sofrida na prisão faz com que o medo de voltar para lá permaneça, assim como relatou um dos entrevistados: na prisão é o inferno, não dá pra ficar lá, é tudo errado, é gente morrendo todo dia. Ao mesmo tempo em que notamos o medo da cultura prisional e de seus valores, como o da violência, notamos a interiorização dessa mesma cultura por meio do linguajar, da visão sobre a criminalidade que muitos expressam e pela dificuldade em buscar caminhos lícitos. Esses fatores aparecem em suas histórias de vida, exatamente como Foucault (2001) mostrou, há tantos anos.
5. Considerações finais
Embora os entrevistados para este estudo pertençam à classe social baixa, muitos exerciam trabalho formal antes de serem presos. Tinham, também, uma família que aguardava sua liberdade fazendo-lhes visitas e fornecendo-lhe todo o apoio possível. Em função disso, consideravam a família e o trabalho como fundamentais para suas vidas e para eles direcionavam seus planos futuros.
Ficou evidente, pelos dados obtidos, pelos gestos e expressões dos entrevistados, que quem passa pelo sistema prisional tem seus sentimentos e pensamentos modificados e, ao que tudo indica, por longa duração. Muitas das experiências ali vividas afetaram a qualidade de vida dessas pessoas. Eles perderam a crença no amor e na amizade, restringindo a vida afetiva apenas à família, sentem-se injustiçados e perseguidos constantemente, têm medo e mantêm-se excluídos pelo estigma que colocam sobre si mesmos.
Dentro desse panorama, notamos, primeiramente, que a pena à qual a pessoa é condenada é aplicada de maneira cruel, o que contradiz o Código Penal e a Lei de Execução Penal, que prevê a ressocialização e a reintegração da pessoa encarcerada. Notamos, também, que praticamente os egressos estudados saíram fragilizados, seu corpo e sua subjetividade não são os mesmos, foram institucionalizados, adquiriram padrões de comportamento diferentes daqueles exigidos na vida em liberdade e precisam reaprender a viver.
Pode-se constatar que essas pessoas já eram discriminadas pela sociedade, seja pela classe social a que pertencem, pela sua cor, pelo seu poder aquisitivo ou por inúmeros outros fatores. Desse modo, nunca foram inteiramente socializadas. Na verdade, para socializar-se é necessário seguir os padrões previstos pela classe dominante, com suas ideologias e valores.
Apesar de a lei ser uma só e definir direitos e deveres, vemos que quem cuida do cumprimento das leis está também na classe das pessoas favorecidas e que, consequentemente, tem muitos direitos, enquanto que os outros têm poucos direitos e muitos deveres.
Consideramos que não é possível falar em ressocialização ou reintegração à sociedade de pessoas presas, quando se trata daqueles que foram transformados em delinquentes por essa mesma sociedade da qual pode ser que já estivessem à margem. Na melhor das hipóteses, reintegrá-las seria devolvê-las ao lugar de onde vieram, e colocá-las na mesma situação em que estavam antes de serem presas, pois este era seu lugar na sociedade, na margem. Mas nem isso acontece, a pessoa sai em piores condições emocionais, econômicas e sociais, sem possibilidade de conseguir emprego formal, inferiorizada, perseguida, com sonhos, mas sem credibilidade e segurança para concretizá-los, reconhecidamente estigmatizada.
Notamos que as visitas e o apoio da família foram importantes para os entrevistados, no entanto parece que não são suficientes para a transformação da condição de delinquentes que lhes foi imposta. Parece ser necessária modificação estrutural na sociedade, com mais justiça e oportunidades para uma efetiva integração social.
Ao realizar este trabalho, pôde-se confirmar e sentir de perto o estigma vivenciado por essas pessoas. Elas, quando contatadas, e para as quais perguntávamos se conheciam alguém que já tivesse ficado detida, faziam comentários que evidenciavam críticas ao trabalho que estava sendo realizado e à tendência a discriminar qualquer pessoa presa. E esses comentários não foram feitos apenas por pessoas pertencentes a classes menos favorecidas, mas, também, por estudantes de Psicologia e por funcionários da própria administração penitenciária.
Isso tudo permite concluir que o estigma de ex-presidiário que eles carregam não vai desaparecer de suas vidas tão facilmente.
Relatos como o de uma pessoa que afirmou que se amarrava às grades da cela para dormir em pé, levam-nos a questionar sobre a dignidade e o respeito à pessoa. Chama-nos a atenção, também, o desconhecimento da maior parte da sociedade sobre esses fatos. As pessoas parecem preocupar-se, somente, com o encarceramento e com a punição. No entanto, em função de suas concepções e de seu desconhecimento, não se mostram capazes de avaliar que, se submetido a essas condições, se nada tiver sido oferecido à pessoa detida para que melhore a si mesmo e a sua vida, ao conseguir a liberdade, torna-se muito alta a probabilidade de reincidência.
Segundo dados divulgados por Barreto (2006), a reincidência de pessoas que cumpriram pena em regime fechado é de 70%, em acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (INALUD).
Foucault (2001) assinalou que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade, podem até aumentá-la, não só em quantidade como em qualidade de crimes e de criminosos.
De acordo com Barreto (2009), os presos aprendem uns com os outros sobre a criminalidade e, quando saem das prisões, a falta de oportunidade de trabalho e o estigma de criminoso ajudam-no a colocar em prática o que aprenderam quando detidos. Na prisão o interno mais desenvolverá a tendência criminosa do que a anulará ou suavizará (p. 586).
Foucault (2001) assinalou que entre os fatores de reincidência mais frequentes estão a impossibilidade de encontrar trabalho, a vadiagem e a quebra de banimento, pois, quando em liberdade, os egressos ficam constantemente sob a vigilância da polícia e têm diversas limitações advindas de seus antecedentes criminais. O depoimento de uma pessoa detida em um presídio do Rio de Janeiro, obtido por Lemgruber (1999, p. 151) evidencia esse fato com clareza: Isso aqui é uma escola de marginalização integral. Tudo que eu não sabia fazer lá fora, aprendi aqui.
Ramalho (1979) também confirma que uma pessoa que passou pela prisão será vista sempre pelos policiais como pertencente ao mundo do crime, e essa perseguição é um fator de grande peso no aumento da reincidência criminal. Tavares & Menandro (2004) mostram que é de se imaginar que o apenado vê-se aprisionado por uma malha invisível de relações de poder, da qual não pode fugir e que não cessa mesmo quando a pena já foi cumprida. (p. 11)
O papel do psicólogo, portanto, em conjunto com todos os demais profissionais desse sistema, é de fundamental importância em diversas frentes.
Primeiramente é necessário acompanhar a pessoa durante todo o período de detenção, para que, além de minimizar os efeitos da prisão e da exclusão a que são submetidas, ela possa se fortalecer e preparar-se para o enfrentamento das suas condições de vida. Isso pode ser feito trabalhando-se com seus recursos internos e possibilitando o autoconhecimento; pesquisando-se habilidades e competências já desenvolvidas ou a serem desenvolvidas; planejando e propondo atividades que permitam a evolução do raciocínio científico; contribuindo para a melhoria do nível e da qualidade de escolarização, que permitirá a busca de soluções mais criativas e eficazes no confronto com o cotidiano; atuando como mediador para que a pessoa se aproprie de instrumentos e ferramentas diferentes das que já conhece, podendo, com elas, ressignificar e reavaliar sua vida, sua comunidade e seu papel nela; desenvolvendo trabalhos que a levem a questionar, refletir e proporcionar recursos que lhe permitam avaliar criticamente seus comportamentos e os dos demais.
Num segundo plano e levando-se em conta as condições das prisões, é fundamental que o psicólogo promova discussões e reflexões sobre os males, os custos e a impossibilidade de que nelas se socialize ou ressocialize. Desse modo, podem-se buscar penas, não apenas punitivas, mas retributivas, que levem ao amadurecimento das pessoas e da sociedade no caminho da verdadeira democracia.
Ainda nessa mesma vertente, é de fundamental importância trabalhar no sentido de abrir e de desvelar o mundo das prisões em toda a sua realidade, para que a sociedade em geral tome consciência de suas mazelas e de sua inutilidade exigindo, assim, novas formas de investimento e de tratamento para os crimes e para os criminosos.
Numa quarta vertente, consideramos imprescindível buscar soluções preventivas para os crimes. Essas soluções estão extremamente relacionadas à superação das condições de pobreza, a escolarização de qualidade, ao tratamento digno e humano às minorias, à valorização e à ampliação de formas produtivas alternativas e de cooperação, educação para a paz e para uma sociedade verdadeiramente democrática, guiada por princípios e valores diferentes dos apregoados pelo consumismo.
Tenta-se abrandar os problemas citados construindo mais prisões, criando ou modificando leis, diminuindo a maioridade penal, etc., sem efetivamente conseguir chegar à raiz do problema que é a falta de oportunidade para todos.
Deixamos então novas perguntas para que possamos, aos poucos, respondê-las e, ao fazê-lo, transformar-nos e à nossa sociedade: 1) Até quando nossas ações limitar-se-ão a minimizar sintomas e não a eliminar as causas? 2) Enquanto não conseguimos chegar às causas, porque não conseguimos minimizar os sintomas trabalhando com as pessoas durante o período em que cumprem pena? Anos de investimento e de sofrimento, que nada trazem de benefício, precisam ser modificados.
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Recebido em: 23/02/2010
Aceito em: 15/04/2010
1 Este trabalho teve a colaboração dos concluintes do Curso de formação de psicólogos do Centro Universitário Anhanguera de Santo André – UNIA – Danilo Belchior e Raquel de Freitas Silva Cardim que, sob orientação da autora, realizaram seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre o tema.
2 Profª. Dra. do Centro Universitário Anhanguera de Santo André e Psicóloga da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Representante da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP) para o Brasil – Biênio 2009/2011. Contato: Rua Plutarco, 30 – ap. 111 – Ed. Toulouse – Jd. Stella – Santo André, SP. – Brasil - CEP 09185-710. Tel. (11) 4426-8931. E-mail: alacircruces@gmail.com.