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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

 ISSN 1415-711X

     

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

O resgate da ilusão via narrativa simbólica: um estudo de caso de síndrome do pânico após assédio moral1

 

The rescue of illusion through symbolic narrative: a case study of panic disorder after mobbing

 

 

Vilma Moreira dos Santos2; Vera Barros de OliveiraI,3

Universidade Metodista de São Paulo
I(Cad. 35)

 

 


RESUMO

Este estudo acompanha a evolução de caso clínico prolongado junto a uma paciente com síndrome do pânico após sofrer dano moral. Baseia-se em Winnicott, buscando o resgate de sua ilusão, condição de sua inserção na realidade. Utiliza-se de narrativas simbólicas, como fábulas como "A carroça vazia", "O bambu chinês" e filmes, como o "Click" e o "Chocolate", associados a técnicas de relaxamento. Ambos, fábulas e filmes, apresentando temáticas apropriadas ao momento da evolução do caso. Verifica a progressiva diminuição das crises de pânico. A associação de técnicas de relaxamento a narrativas mostra-se adequada, permitindo à paciente lidar com seus núcleos narcísicos e fóbicos de forma menos sofrida. A conquista do self permite-lhe uma retomada de suas atividades pessoais e profissionais, usufruindo de lazer e confiança em si.

Palavras-chave: Resgate da ilusão; Narrativa simbólica; Síndrome do pânico; Assédio moral; Winnicott.


ABSTRACT

This study focuses on the evolution of an extended clinical case with a depression and panic disorder patient after suffering the action of mobbing. It is based on Winnicott, seeking to rescue her illusion, condition for being reinserted into reality. Symbolic narratives are used, such as fables like "The empty carriage", The chinese bamboo" and films, like "Click" and "Chocolate", associated with relaxation techniques. Both fables and films presenting appropriate thematics in accordance with the moment of the case evolution. A progressive reduction of depression and panic attacks is verified. The combination of relaxation techniques and narratives proved to be adequate, allowing the patient to deal with his narcissistic and phobic cores with less suffering. The conquest of her self allows the patient to return to her personal and professional activities, enjoying leisure and self confidence.

Keywords: Rescue of illusion; Symbolic narrative; Panic disorder; Mobbing; Winnicott.


 

 

1. Introdução

O Assédio Moral é hoje em dia uma preocupação internacional, sendo que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem publicado resultados alarmantes sobre os danos e agravos que provoca, prejudicando a saúde e acarretando distúrbios emocionais e vivências depressivas (Machado, 2009).

Assédio Moral, Mobbing ou Terror Psicológico, para Guedes (2003), são sinônimos e definem a violência pessoal, moral e psicológica. Não é vivenciada só no mundo do trabalho, mas também na escola e na família. O assediador sempre busca encontrar defeitos ou deslizes no outro e, mesmo na presença de outras pessoas, faz questão de humilhar o assediado.

Do ponto de vista legal, o Dano Moral, como é denominado, caracteriza-se pela privação de bens de valor humano, como a paz, a tranquilidade de espírito, a liberdade e integridade individuais e a honra. Sua reparação também é prevista: Assim, da responsabilidade civil do agente resulta para o ofendido o direito à indenização do dano (sentido genérico) que se resolve pelo ressarcimento do dano patrimonial ou pela reparação do dano moral. (Gomes, Santos & Santos, 1998, p.44), no que é confirmado por Cahali (2005).

Estudos recentes consideram ser um problema de ordem social e não somente individual, uma vez que suas manifestações nas organizações crescem proporcionalmente ao aumento da submissão coletiva, construída e alicerçada no medo do desemprego (Yokoyama, 2005; Ramos, 2005).

O assédio moral pode gerar danos físicos e psíquicos, com a combinação de quadros depressivos e ansiosos, inclusive com a Síndrome do Pânico, como é o caso clínico apresentado a seguir. Baseado em abordagem winnicottiana, considera que a pessoa do assediado sofre um processo dramático de desilusão frente à vida e necessita de apoio psicológico para resgatar este comportamento. As narrativas têm neste estudo o caráter de espaços transicionais, nos quais o chegar perto da realidade sofrida encontra na linguagem dos símbolos uma trilha mais amena e segura, que lhe permite fortalecer seu self. Sua utilização associada a técnicas de relaxamento tem sido vivenciada na experiência clínica da primeira autora, a qual tem observado uma redução da ansiedade e resistência dos pacientes a aproximar-se dos temas centrais da terapia.

1.1 - O Assédio Moral

Em sua Cartilha do Assédio Moral no Trabalho, Ramos (2005) comenta que pessoas com poder econômico ou com superioridade hierárquica, pensam ter o direito de impor aos subordinados comportamentos imperativos, fato que vem se repetindo e adquirindo variadas formas no mercado de trabalho, sendo, as mulheres, as maiores vítimas. A princípio, mostra-se inofensivo e sutil; mas, aos poucos compromete o estado emocional e físico do assediado, podendo levá-lo a um processo degradante de sua dignidade e ao sofrimento com perda da própria identidade.

As pessoas mais atingidas pelo Assédio Moral são, em geral, as mais produtivas e motivadas, ficando sujeitas a depressões e distúrbios psicossomáticos, às vezes, irreversíveis. Com frequência sofrem prejuízo na capacidade de pensar, de concentrar-se e tomar decisões; têm pensamentos de morte e tentam suicídio, quando a ideia de morrer parece ser melhor do que viver assim (Hirigoyen, 1998; Coutinho, 2004).

1.2 - O Transtorno de Pânico

O Transtorno de Pânico (TP) também denominado ansiedade paroxística episódica, é uma das formas de apresentação dos Transtornos de Ansiedade (TA), definidos como estados emocionais repetitivos ou persistentes. Designado pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais IV, como terror extremo e súbito, geralmente irracional e muitas vezes de caráter coletivo, tem ocupado um lugar central em recentes classificações, uma vez que a agorafobia e diversos sintomas fóbicos são vistos como complicações daquele quadro clínico. Segundo Keller (1997); Magalhães & Loureiro (2005), sua manifestação é intensa e desproporcional ao estímulo que a originou. Gera sintomas físicos e psíquicos, que comprometem o desempenho e o bem-estar da pessoa acometida, como sensações de choque, tontura e sentimento de irrealidade (despersonalização ou desrealização) e um crescimento de medos e sintomas autonômicos. Para Bauer (2001), o principal fator desencadeante da síndrome é psicológico, em geral como reação a estresse profissional, afetivo ou financeiro.

O perfil da pessoa que sofre a Síndrome do Pânico (TP) pode, em grandes linhas, ser comparado ao da que sofre assédio moral, ambos apresentando: perfeccionismo; seriedade; sentimento de desproteção; preocupação com o amanhã; sensação de pressão sobre si; presença de um dos pais autoritário ou perfeccionista.

Sua prevalência é maior em mulheres. A cada cinco pacientes com TP que procuram tratamento, apenas alguns recebem o adequado devido à semelhança com doenças de natureza física. Sua etiologia envolve fatores biológicos (genéticos e orgânicos); psicológicos (interelacionais e intrapsíquicos) e sociais estressantes, tendo como desencadeamento o excesso da competitividade e o consumismo. Seu tratamento exige intervenções multidisciplinares. Em tratamento psiquiátrico são utilizados psicofármacos para restabelecer o equilíbrio bioquímico do cérebro e antidepressivos atuando como coadjuvantes dos ansiolíticos. São também indicados relaxamentos, alimentação balanceada, atividade física e de lazer.

1.3 - Winnicott e o resgate da ilusão

A clínica winnicotiana incorpora sofrimentos diferentes da neurose. Ao adotar a problemática do "Ser" na psicanálise, abre novas perspectivas ao problema do sofrimento humano, sensíveis a maneiras mais ou menos acentuadas de despersonalização e falta de realização (Vaisberg, 2006).

No processo analítico, é fundamental passar por uma experiência terapêutica com um analista, que busca promover a evolução psíquica do paciente e ajudá-lo a se estruturar (Hisada, 1998).

O psicanalista, segundo Winnicott (1971/2005), não pode deixar de perceber o forte contraste entre as pessoas que são livres para aproveitar a vida criativamente e as que não o são, por estarem o tempo todo lidando com a ameaça da ansiedade ou de um distúrbio comportamental. Pessoas que acreditam que não podem alcançar um bom nível de saúde, porque se vierem a ser saudáveis e felizes serão destruídas, tal é a quantidade de ressentimentos acumulados e culpa por se sentir bem, acreditando, muitas vezes, que os que estão bem, são os que contam com bens materiais. Assim o Ter é visto como mais positivo do que o Ser.

A disponibilidade do analista para brincar pode construir a passagem entre ele e seu paciente, passagem esta que é um espaço de ilusão, de encontros e de novos acontecimentos, e que desempenha particular importância na análise de adultos. Esta ponte de mão dupla possibilita criar uma realidade significativa; parte da vida de cada um, paciente e analista, de seus respectivos selfs. É necessário, contudo, que a ilusão ocorra para que nasça ali um psiquismo capaz de evoluir suas potencialidades e possibilidades. No viver na terapia a ilusão é condição de sobreviver à desilusão que a sucede, ou seja, do conviver bem com a realidade (Winnicott, 1971/2005).

Ainda segundo o autor, é somente no brincar que é possível a comunicação subjetiva. Daí enfatizar a conveniência de que o terapeuta permita que a capacidade de brincar, ser e criar do paciente possa ser manifestada no trabalho analítico, uma vez que é por meio da percepção criativa que o indivíduo sente e percebe que a vida é digna de ser vivida.

É preciso, portanto, que o terapeuta saiba caminhar com tranquilidade, segurança e alegria no campo da ilusão, uma vez que este tem sempre a importância do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais. A precariedade da magia, que se origina na intimidade, digna de confiança do setting terapêutico, possibilita a construção de uma nova área de "experiência compartilhada" que permite tirar proveito da separação saudável (Winnicott, 1972/2001).

Aprender a tecer os fios que nos ligam aos outros de forma saudável e duradoura, mantendo a flexibilidade de ambos os lados não é nada fácil. (...) O brincar ocorre no plano da imaginação, no domínio simbólico. Nele casam-se a espontaneidade e a criatividade com a progressiva aceitação das regras sociais e morais. (Oliveira, 1998).

O estudo de caso, abaixo apresentado, fundamenta-se na visão winnicottiana da busca do resgate da ilusão em paciente vítima de Assédio Moral e acometida de Síndrome do Pânico.

 

2. Método

Estudo de caso evolutivo prolongado, realizado por meio de investigação exploratório-descritiva de caráter qualitativo.

2.1 - Participante

Sara (nome fictício), 37 anos, de classe socioeconômica média, casada, sem filhos, cursa a Faculdade de Direito e trabalha em um Banco. Faz psicoterapia e tomou medicação antidepressiva e ansiolítica: Pondera, Noctal e Lexotan no início do tratamento.

2.2 - Ambiente

O consultório da terapeuta (1ª. autora)

2.3 - Material e instrumentos

- Narrativas simbólicas, como fábulas e sugestão de filmes a serem assistidos. Segundo Corso, D.L. & Corso, M. (2006), a psicanálise utiliza-se de narrativas por, justamente considerar a vida como uma história, e o que dela narramos, ser uma ficção. Para Nogueira (2006), as fábulas comunicam aspectos nossos difíceis de serem percebidos racionalmente, daí, em sua linguagem simbólica, traduzir esses aspectos em contextos imaginários. O importante é que a história contenha elementos de angústia, fantasia e defesa do paciente e utilizada em momento específico do processo terapêutico, para que este possa utilizá-las para ampliar sua consciência, por meio de uma situação imaginária (Hisada, 1998). Exemplos de Fábulas empregadas: "A Carroça Vazia", "O Bambu Chinês" e "O Menino, o Avô e o Burro". Filmes com temática relativa ao momento da evolução do caso, como por exemplo, "Click" que expõe o estresse do dia a dia, a falta do lazer e o distanciamento em relação às pessoas que se quer bem; "Chocolate", onde a simbiose materna compromete o processo de desilusão e o choque da realidade; "O Diabo veste Prada", que narra justamente um caso de assédio moral, no qual a assediada não se deixa dominar.

- Técnicas de relaxamento, de Schultz (1964/1985) e Jacobson (Sandor, 1982), utilizadas de forma alternada e complementar, com o objetivo de rebaixar o campo da consciência e da atividade racional, a fim de permitir a escuta da linguagem metafórica contida nas fábulas e filmes. Para Galvão (2003), o relaxamento tem como função diminuir significativamente a atividade de origem orgânica ou do pensar. A opção por uma das técnicas dependeu do momento da terapia. O relaxamento de Schultz possibilita, dentro de um enquadre ritualístico, entrar em contato com fantasias positivas, por meio de uma atividade mental; enquanto que Relaxação Progressiva de Jacobson é uma técnica de relaxamento físico provocado pela contração e relaxação máxima dos músculos.

2.4 - Procedimento:

A pesquisa teve seu começo após período inicial de atendimento da paciente, com sua aquiescência, a qual assinou o Termo de Livre e Esclarecido Consentimento (TLEC), que lhe assegurou absoluto sigilo e anonimato dos dados. Assim obteve seu consentimento para uma possível liberação do estudo para fins exclusivamente científicos. Teve parecer consubstanciado aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo – CEP-UMESP, em 29/06/2006, protocolo n°. 265616-06, do qual constou o TLEC.

O atendimento ocorreu uma vez por semana, com utilização de narrativas simbólicas associadas ou não a relaxamento, dependendo da sessão.

 

3. Resultados e discussão

No primeiro momento, Sara mostra-se muito deprimida e ansiosa, com medos generalizados. Diz ter procurado terapia por estar se sentindo muito mal, tendo calafrios, tontura, taquicardia, dormência em partes do corpo, falta de ar.

O perfil de Sara, aos poucos, delineia-se como o da pessoa que sofre a Síndrome do Pânico, com crises sucessivas de medo intenso, desproporcionais às situações do momento. Apresenta-se perfeccionista; desprotegida; preocupada com o futuro; sofrendo a sensação de pressão sobre si. Demonstra insegurança, agressividade elevada para com os outros, dificuldade de comunicação, aparentando por vezes estar solta e desconexa da realidade, com tendência à regressão. Dados estes que confirmam estudos (Keller, 1997; Boccalandro, 2003; Magalhães & Loureiro, 2005).

Apesar da depressão manifesta, consegue, já nas primeiras sessões, estabelecer um vínculo positivo com a terapeuta, reagindo de forma favorável ao ambiente facilitador do setting terapêutico, que busca lhe dar sustentação emocional.

A relação do paciente com seu analista repete, de certa forma, a experiência do viver junto, experimentada com a mãe. Da mesma forma que a "mãe boa", o terapeuta, ao se mostrar acolhedor, tolerante e maduro, pode conseguir estabelecer uma determinada relação com a paciente, o que significa ela estar vinculada a um objeto externo ao self, ou seja, com a realidade vivida, conforme menciona Winnicott (1972/2001).

Sara tenta deixar claro que não tem problemas no relacionamento com seu marido. Está casada há quinze anos e não tem filhos. Fala do seu cachorro, como se fosse um filho. Cursa a Faculdade de Direito e trabalha em banco.

Relata que seu mal-estar aumentou muito ao ser transferida de agência bancária, apesar de já não se sentir muito bem antes, pois onde trabalhava, o gerente também era autoritário, arrogante e demonstrava prazer em humilhar seus colegas. Ao iniciar na nova agência, conta ter interagido bem com seus companheiros, mas que logo o novo gerente também começou a incomodá-la e sua presença já era o suficiente para que tivesse descontrole emocional. Sentiase perseguida, pressionada e agredida verbalmente. Diz acreditar que por ser "certinha" (sic) e nunca dizer não, quase todos os dias seu gerente exigia que ficasse no trabalho até mais tarde e, com isso, chegava atrasada à faculdade. Parecia-lhe que sempre estava disposto a relembrar seus erros e falhas e, em nenhum momento, discorria sobre suas conquistas e vitórias. Relata ainda que a mandava para o cofre e lá lhe fazia perguntas, que descreve como obscenas, sobre sua vida sexual com seu marido, o que a fazia sentir-se muito mal, com tontura e enjôo. Observa-se que o sofrimento do Assédio Moral estava na base das crises de Pânico e da depressão.

Esses dados confirmam os de Bauer (2001), para quem, o principal fator desencadeante da síndrome é psicológico, em geral como reação a estresse profissional, afetivo ou financeiro.

Segundo Zimermman (2004), a pressão elevada do superego é a grande responsável pelos quadros obsessivos, graves e melancólicos, sendo que o sentimento de culpa predomina sempre. Uma fonte do ideal do ego se observa nos estados narcisistas e fóbicos (p. 124). A paciente informa [...] E eu deverei ser assim, senão... No caso, o sentimento que predomina é o da culpa por ter "fracassado" e acima de tudo, também o de um estado de "vergonha".

Sara expressa toda a sua raiva para com o chefe atual. Para Newman (2003), dois são os significados da agressividade, uma reação à frustração, mas também, uma importante fonte de energia. Neste caso, a frustração consome sua energia. A psicoterapeuta, ao escutá-la e dar mostras de permanecer inteira e saudável, desempenha o papel de ego auxiliar, sinalizando a presença de uma realidade consistente.

Neste momento psicoterapêutico, é narrada a fábula da "Carroça Vazia", que, quando se desloca, range e faz barulho. Narrar essa fábula teve a intenção de despertar em Sara a capacidade de perceber o assediador como vazio, apesar de fazer tanto barulho. Assim, a terapeuta suporta o que está difícil para seu paciente enfrentar e busca proporcionar sua sustentação emocional, o Holding, do qual fala Winnicott (1972/2001), em ambiente acolhedor e afetivo, proporcionando ao paciente a possibilidade de voltar a confiar no outro, tão associado ao resgate da ilusão.

Já nesse momento, observa-se como o contar/ouvir narrativas amplia o espaço de intimidade, aconchego e confiança entre o analista e a paciente, em que a temática das narrativas sendo simbólica, afasta o medo da pressão da realidade e, consequentemente, permite o mergulho no imaginário, sentindo a presença do analista como aquele que assegura o voltar à realidade. Esse rebaixamento do campo da consciência permite a compreensão da mensagem da narrativa, a possível identificação com um ou mais de seus personagens, e o viver a história plenamente. Daí a importância da escolha da narrativa para o momento certo.

A terapia, por meio da fábula, cria condições favoráveis a que a criatividade da paciente se restabeleça e, assim, resgate sua ilusão. A terapeuta usa sua criatividade ao buscar a fábula que melhor se relacione ao momento terapêutico e procura narrá-la com vida e espontaneidade, enquanto que o paciente, ao escutá-la, vive um momento de aproximação com o outro, em um universo lúdico, onde predomina o prazer sobre o desprazer, o relaxamento sobre a tensão.

A narrativa por meio da fábula converte-se em um fenômeno transicional, quando Sara transforma a mensagem contida nela em algo seu, conseguindo aproximar-se dos elementos de conflito e dor ali expressos simbolicamente. Para Hisada (1998), o paciente precisa ter uma experiência significativa com o analista na relação humana, para que evolua psiquicamente. A interpretação transicional não corre o risco de ser rígida, categórica, invasiva, mas, ao contrário, promove a integração com naturalidade e aproxima o paciente de seus núcleos de angústia, na medida em que pode dar conta.

A psicanálise, contudo, além de ser um processo doloroso em si mesmo não altera o fato de que a vida é difícil (Shepherd, Johns & Robinson, 1997). Em uma das sessões, Sara relata que em uma reunião no trabalho, sentiu-se tão angustiada que desmaiou. Demonstra ainda muita tensão, ansiedade e angústia. É sugerido o relaxamento de Jacobson (Sandor, 1982), com a intenção de ajudála a sentir o desconforto da tensão (movimento para dentro), sentir o bem-estar do relaxamento (movimento para fora). Sara consegue relaxar e diz sentir-se melhor. O trabalho corporal dá sinais de estar contribuindo para a evolução do caso.

Em sessões seguintes, começa a expressar seu medo de decepcionar o marido e vir a ser abandonada. Usa sua fragilidade e doença para retê-lo, mas ainda não se apercebe disso. Tal atitude parece ser semelhante ao que apresenta no trabalho, pois lá, acredita que ao se impor corre o risco de ser despedida e assim se sentir inútil perante as pessoas. Deste modo, a seu ver, a solução "é adoecer, uma fuga que lhe possibilita desligar-se da realidade opressora e sofrer menos".

Zimermman (2004) comenta o risco de o indivíduo se queixar, mas, no fundo, estar acomodado com a situação, quando o analista pode buscar transformar sua egossintonia em egodistonia, levando-o a sentir angústia com a situação real. Em Sara, o foco da atenção desloca-se lentamente do assédio no trabalho para sua casa. Sua angústia aumenta ao passo que sua consciência se amplia. A acomodação em casa passa a incomodá-la.

A terapia busca neste momento ampliar o contexto, tirando o foco do momento presente. Sugere um relaxamento de Schultz (1964/1985), durante o qual é solicitado que tente se lembrar de quando era criança. Sara reage bem, consegue se soltar e comenta que é como se tivesse voltado ao passado. O ingresso no campo da ilusão começa a ser trilhado, o que se evidencia quando rebaixa seu campo da consciência ao relaxar ou ao dormir, dando vazão a lembranças muito suas, cheias de sentimentos e emoções positivas, pois, a partir desta sessão, Sara começa a sonhar com amigos, com uma amiga em particular, antigos namorados e parentes que não encontrava há muito tempo.

Nesta fase, lhe é dito que poderia, se quisesse, trazer alguém consigo. Sara traz seu marido. Comenta depois ter-se sentido muito só, sem ninguém para levar, e que, com muito custo, convencera o marido a acompanhá-la. Este se mostra muito frio e superior.

O assédio, que não ocorria apenas na área profissional, mas em casa também, era totalmente ignorado. A partir desta data, Sara começa a relatar uma realidade diferente, na qual, segundo suas palavras, o marido se mostrara sempre como dono da verdade e o pior é que ela sempre acreditava nele com todas as suas forças. Relata que a chamava de louca e a ameaçava de internação. Ao mesmo tempo em que começa a se dar conta do assédio em casa, o marido se distancia cada vez mais, saindo com os pais dela de férias, sem levá-la e "esquecendo-se" do seu aniversário. Essa situação culmina com o pedido dele de separação, o que contribui para que as crises de pânico se intensifiquem, provocando a necessidade de um afastamento do trabalho. Continua, contudo, indo à Faculdade, onde diz sentir-se bem, pois lá, uma amiga a escuta e conforta.

Para Sara, seu casamento era perfeito até então e só neste momento se dá conta de quanto era precário no sentido da comunicação, do lazer e do sexo, e se pergunta angustiada porque não percebia nada. Sua fala é frágil e regredida, mas também cheia de ódio. Diz achar que não vai conseguir sobreviver, que se sente como se fosse morrer. É aplicado o relaxamento de Schultz e quando a paciente está totalmente relaxada, inicia-se a narração da fábula da Borboleta, a qual simboliza a importância da introspecção, da ausência ao mundo externo, da presença do sofrimento provisório, possibilitando a transformação e, consequentemente, a mudança. O entrar mais em contato com a realidade que não queria enxergar é como que um parto, com suas dores de contração e expulsão.

A regressão é uma tentativa de usar comportamentos anteriores, normais ou anormais, como defesa frente a um conflito presente. Por seu lado, a depressão traz dentro de si a possibilidade da recuperação. Ela vem vinculada ao sentimento de culpa e, à capacidade de sentir culpa já é um sinal de desenvolvimento saudável. Pode-se ajudar uma pessoa deprimida quando se tolera sua depressão até que ela acabe naturalmente, sendo que apenas a recuperação espontânea pode ser importante para o indivíduo (Winnicott, 1971/ 2005).

Sara desloca sua energia para o plano intelectual e passa a querer saber mais sobre o assédio moral, tornando-o tema de seu trabalho de conclusão de curso (TCC), na Faculdade de Direito. Comenta que isso a ajuda a pesquisar e a entender um pouco mais sobre esse mal, que se não for tratado pode levar à morte rapidamente: "Nossa! Agora foi que percebi que estava morrendo e não percebia" (sic).

Algumas sessões adiante é sugerido o filme "Doce Novembro", pois traz nas entrelinhas a mensagem de que é preciso ter coragem para quebrar a rotina e viver diferentes momentos. Afastada do trabalho, Sara também começa a rever sua história pessoal, sua infância. Conta que a mãe não permitia que brincasse com outras crianças e, por ser a mais velha, precisava ajudar nos afazeres domésticos. Winnicott (1971/1984) relata que, às vezes, a irmã mais velha ainda criança assume o papel de responsabilidades de mãe, o que pode contribuir para prejudicar sua espontaneidade e direitos de seu self.

Sara começa a perceber que agora também a vida social, o prazer do lazer, o sonhar, não faziam parte de sua vida e lhe é sugerido assistir ao filme "Click", o qual passa uma mensagem sobre a importância de equilibrar a vida pessoal, a profissional e a familiar.

A terapia deste caso mantém o cuidado de não aconselhar, pois não cabe resolver problemas da vida de nossos pacientes, sendo que a busca do self só se torna possível graças ao resgate da ilusão, ao brincar, ocasião em que o homem descobre o seu eu (self), torna-se criativo e encontra condições para tal, como escreve Winnicott (1971/2005). O brincar, em seu sentido mais amplo, de predomínio do prazer sobre o desprazer, sobre a tensão do relaxamento, atividade intrinsecamente humana, na qual espontaneidade e criatividade estão presentes, e como a arte, tem uma finalidade em si, não fazia, portanto, parte de sua vida.

Esse período do tratamento foi marcado pela retomada espontânea das lembranças da infância. Sara permite-se liberar da pressão do momento presente e resgatar sua história. Lembra-se da vontade que sentia, quando criança e jovem, de sair com os amigos, de brincar, mas que os pais e ,principalmente, a mãe não permitiam. Vê a mãe como muito submissa e o pai, autoritário. Conta cenas que presenciou de ele beber e quebrar tudo. Essas lembranças lhe causam sofrimento e, por vezes, diz sentir tontura, pressão dentro do peito, falta de ar e solidão. A imagem da mãe ainda lhe é muito presente e ela, sem perceber, espelha e reproduz em seu comportamento muito do que racionalmente condena, possibilidade esta já descrita por Winnicott (1971/1984). Diante disso, é sugerido o filme "Chocolate", que retrata a repetição de situações do passado associadas à imagem materna, ainda presente e controladora. No filme, quando a filha, já adulta, consegue se desfazer das cinzas da mãe é que consegue mudar sua vida.

O falar do passado, em ambiente que lhe dá suporte, além de ver na narrativa do filme, uma analogia a si, contribui para seu equilíbrio e Sara passa a demonstrar mais tranquilidade e falar dos seus progressos. Relata que resolveu pintar sua casa e que está limpando e organizando seu guarda- roupa, mas que sabe que, mesmo tendo pintado a casa na cor rosa, os problemas iriam continuar aparecendo, mas que ela teria sustentação para enfrentá-los à sua maneira.

Por esta ocasião, é narrada a ela a fábula do "Bambu Chinês", a qual fala sobre a sua paciência em esperar e saber lidar com o tempo, para se enraizar, fortalecer-se e crescer, sendo que o heróis da história não se quebra com a ventania, mas se torna flexível o suficiente para sobreviver a ela, sempre forte e vivo.

A fábula tem como função esclarecer sobre si mesmo e favorecer o desenvolvimento psíquico. Seu significado mais profundo diverge de pessoa para pessoa, assim como, para a mesma pessoa, em diversos momentos de sua vida, dependendo de suas necessidades e interesses na ocasião, de como está lidando com seus conflitos, decepções, dilemas, dependências. A fábula contribui para a elaboração interna de situações mal resolvidas e para desenvolver a habilidade necessária para lidar com a realidade (Bettelheim, 1980/1998).

Sara volta a falar do marido e relata que, no início da separação, tudo o que queria ouvir era que ele iria se arrepender e voltar; que esperava que a terapeuta fizesse mágica nesse sentido e se sentiu frustrada e que a única certeza que tinha no meio daquela avalanche é que a terapeuta sabia o que iria acontecer e que a estava preparando para enfrentar o que viesse. Vê-se como, ao se defrontar com uma grande perda (a separação), em sua transferência, mantém um pensamento mágico muito regredido e confere poderes extraordináriosà terapeuta, que sente como seu eixo e porto seguro, eximindo-se de agir por conta própria. O ego-auxiliar da terapeuta ainda se faz muito necessário.

Por outro lado, nessa ocasião, já tolera que as janelas da sala de atendimento fiquem abertas e não reclama de contingências, como ruídos ou mudanças de temperatura. Já conhece e pratica o relaxamento com naturalidade, sentindo-se bem após. Pouco a pouco, mostra-se menos deprimida. Relata que seus pais já não criticam tanto a desordem e limpeza de sua casa, por mais limpo que tudo estivesse anteriormente, comentários que a deixavam com muita raiva. Também está mais próxima da sua irmã, que, segundo ela, também a criticava. Até o cachorro, que estava constantemente doente, agora está saudável e aparentemente mais feliz, como relata.

Seus estados de humor ainda variam, mas já mantém por mais tempo o bem-estar e a alegria, sem temer ficar sozinha, após a separação, como comenta. Tem muitas coisas para contar de seu dia a dia atual, inclusive o sair com rapazes. Parece estar-se tornando mais livre para fazer suas escolhas e encontrando forças para tal. Contudo, ainda tem resquícios de um ideal de ego distante da realidade e infantilizado. Comenta que quando criança sempre quis ser a "Mulher maravilha".

Em seu processo terapêutico ondulatório, com aberturas e fechamentos alternados, por conservar um ideal de ego ainda alto, em sua insegurança, vêse, por vezes, centro das atenções. Sara ainda está em busca de seu self e precisa da aprovação do outro. Comenta que algumas pessoas a criticam e colocam defeitos no que faz. Sente também que alguns a invejam. Mecanismos narcísicos e persecutórios ainda se fazem presentes.

Por esta época, é narrada a ela a história "O avô, o menino e o burro", na intenção de ilustrar que não há possibilidade de agradar a todo mundo ao mesmo tempo, mas que o que importa é estar bem consigo mesmo, o que contribui para que nos demos bem com os outros.

Aos poucos, consegue desligar-se do medo da opinião alheia e prestar mais atenção em si mesma, a se cuidar e a se respeitar. Parece estar tomando consciência de sua força, de sua beleza física, pois é realmente uma moça muito bonita, inclusive se preparando para quando sentir necessidade de se defender, com espontaneidade e firmeza. Demonstra também menor ansiedade em saber o que vai acontecer em seu futuro, assumindo sua responsabilidade por suas escolhas, sem se sentir tanto vítima dos outros.

Nesse período, é comum narrar seus sonhos. O rebaixamento das defesas favorece o contato com o simbolismo do inconsciente. Em um deles, com forte significado de cura, Sara se vê passando por um túnel todo escuro, avistando uma luz ao fundo e, ao sair, depara-se com um lindo jardim, com muitas flores. Relata que apesar da passagem apertada, gostou muito da claridade, ao final. A terapeuta faz a analogia do simbolismo do sonho com o nascimento, com a separação saudável da mãe, com ela se encontrar e ter vida própria.

Nesse período do tratamento, o INSS já a liberou, mas ainda está de licença médica do trabalho. No momento, trabalha por conta própria com venda de roupas e bijuterias e está conseguindo enfrentar e resolver seus problemas com mais facilidade e sente prazer nessa nova atividade. As crises de pânico diminuíram muito sua intensidade e frequência.

Com a boa evolução da terapia, é notificada sobre o gradual espaçamento das sessões em psicoterapia e diante da perspectiva de ruptura do tratamento, Sara regride temporariamente, queixando-se de mal-estar e tristeza. Contudo, consegue enfrentar esta nova realidade em poucas semanas, o que lhe dá mais confiança em si. As crises de pânico desaparecem. Forma-se na Faculdade de Direito, volta a trabalhar na agência bancária, assumindo inclusive o cargo de gerente administrativa de pessoa física, o que supõe um conhecimento das relações humanas.

 

4. Considerações gerais

A evolução do caso apresentado permite constatar como a associação de estratégias corporais relaxantes a narrativas imaginárias, pertinentes ao momento do processo psicoterapêutico, colabora para seu bom andamento. Observa-se como a ampliação da consciência e o poder aproximar-se do núcleo do sofrimento são suavizados e facilitados por meio do ambiente lúdico das representações simbólicas, contidas nas fábulas e nos filmes.

Retomando esse processo em suas grandes linhas, vemos como, no primeiro momento psicoterapêutico, Sara apresentava estrutura depressiva e Síndrome do Pânico. Com pensamento simbólico prejudicado, tinha dificuldade para sair do mundo real e se permitir entrar no imaginário, assim como, de forma complementar e inversa, não conseguia pisar com segurança no chão, cuidar de si mesma e relaxar. Tornava também visível sua incapacidade para estabelecer vínculos afetivos com as pessoas, ao mesmo tempo em que evidenciava pouco ou nenhum recurso para colocar limites aos outros, sofrendo assédio moral no trabalho e em casa.

Observa-se, portanto, nesse momento, como a debilidade e rigidez de seu self a aprisionavam e a puxavam para baixo. A terapia caminhou no sentido de restabelecer sua capacidade criativa, resgatando sua ilusão, a partir de um setting acolhedor. Por seu lado, a narrativa das fábulas atuou como um fenômeno transicional, por proporcionar o resgate do poder imaginativo, permitindo ao paciente sair de sua realidade, por mais desconfortável que fosse, no momento, e se transportar para o universo simbólico e lúdico da narrativa.

Gradativamente, Sara demonstra compreender melhor o que se passa consigo, para o que contribuem os relaxamentos, que lhe restituem uma sensação de bem-estar e ampliam sua consciência corporal, base da simbólica. Desta maneira, são aos poucos restabelecidas suas possibilidades de pensar com maior coerência, resgatando sua subjetividade, o que produz resultados positivos para sua vida pessoal e profissional. Sua saúde física e emocional se estabilizam e, ao melhorar sua autoestima, resgata aos poucos sua autoconfiança, apresentando mais alegria, ânimo e motivação na execução de atividades novas e rotineiras. Volta a enfrentar o ambiente de trabalho que tanto a fizera sofrer, agora de forma saudável. Sua postura mais confiante e segura, assim como a conquista de seu grau universitário em Direito, angariam-lhe uma promoção e passa a ocupar o cargo de gerente administrativo do departamento de recursos humanos, o que, certamente, vai exigir de si muita flexibilidade, compreensão do outro e criatividade para lidar com os possíveis conflitos e desafios do cargo.

 

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Recebido em: 15/02/2010
Aceito em: 15/04/2010

 

 

1 Trabalho derivado da Dissertação de Mestrado da primeira autora, orientada pela segunda.
2 Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo. Contato: Rua Dom Duarte Leopoldo e Silva 27, s/82 - Santo André, SP. – Brasil – CEP 09015-560. Tels.: 3438-7996 / 8303-5412. E-mail: vilma.ms@uol.com.br
3 Professora Titular do programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de S.Paulo. Contato: Rua Prof. Arhur Ramos 178 ap. 42 Sirius – São Paulo, SP. – Brasil - CEP 01454-010. E-mail: vera.barros.oliveira@terra.com.br