Boletim - Academia Paulista de Psicologia
ISSN 1415-711X
RESENHAS DE LIVROS
Sacks, O. (2013). A mente assombrada1. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 287p.
Everton de Oliveira Maraldi2
Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo - USP
Durante muitos anos, os profissionais de saúde mental viram nas alucinações um sinal praticamente inequívoco de psicose. Parecia inadmissível, dadas as convenções diagnósticas prevalecentes, que alguém pudesse regularmente ver coisas que ninguém mais vê, ou ouvir coisas que ninguém mais ouve, e não se encaixar no perfil de um esquizofrênico ou de um paranoico. Talvez um dos exemplos mais marcantes nesse sentido em toda a história da psicologia seja o famoso experimento de Rosenhan (1973). Ele e seus colaboradores (todos previamente avaliados como mentalmente saudáveis) haviam se apresentado a diferentes hospitais dos Estados Unidos fingindo sintomas de distúrbio psicológico. Suas queixas fictícias se resumiam a uma breve alucinação auditiva, uma voz não muito clara, que supostamente lhes dizia palavras como "vazio", "oco" e "baque". Se questionados quanto ao sentido das vozes, deveriam responder com frases do tipo "minha vida é vazia e oca". Apesar de não apresentarem outro sintoma além desse, e a despeito de seu comportamento permanecer normal sob outros aspectos, Rosenhan e os demais foram internados com o diagnóstico de esquizofrenia (exceto um deles, diagnosticado com "psicose maníaco-depressiva"). A partir daí, qualquer atitude que tivessem durante sua internação, mesmo a mais banal, seria fatalmente interpretada pela equipe de profissionais de saúde como uma confirmação do diagnóstico previamente estabelecido. Os pesquisadores chegaram inclusive a anotar suas experiências; de início, faziam-no escondido, mas, ao perceberem que ninguém parecia se incomodar, passaram a fazê-lo abertamente. Tal atitude, ao invés de suscitar desconfiança, levou uma enfermeira a assinalar no prontuário de um deles o estranho "comportamento de escrita" do "paciente". Curiosamente, os internos (isto é, os verdadeiros pacientes do hospital) foram mais sagazes, e manifestaram aos pesquisadores sua impressão de que eles pudessem ser "jornalistas" ou "professores" averiguando o local. Embora os médicos e outros profissionais concordassem que o comportamento dos pseudopacientes era "amigável" e também "cooperativo", em nenhum momento a farsa foi descoberta. Remédios foram prescritos – os quais, todavia, os pesquisadores furtivamente não engoliram (eles vieram a ter conhecimento de que os doentes do hospital faziam o mesmo). Apesar do estresse e nervosismo pelo qual passaram, expostos ao confinamento psiquiátrico, os pesquisadores mantiveram estabilidade psíquica o suficiente para convencerem o staff dos hospitais de que estavam melhores, e já não ouviam as vozes. Pelas regras do experimento, cada qual teria de sair das instituições em que estava por seus próprios meios. Após um período de internação que variava, em cada caso, de sete dias a aproximadamente dois meses, os pesquisadores eram liberados com um prontuário em que se podia ler "esquizofrenia em remissão".
Essa impressionante experiência gerou grande controvérsia e levou alguns a pensarem que aquilo que chamamos de 'doença mental' não existiria de fato, sendo tão somente a expressão de categorizações arbitrárias e impositivas. Essa conclusão, porém, é extremada, conquanto o estudo citado tenha servido para mostrar que os critérios diagnósticos existentes, e sua forma de aplicação (sobretudo, nas instituições psiquiátricas) precisavam ser revistos e aperfeiçoados. Podemos ler o relato de Rosenhan com outros olhos, e identificar nele os equívocos da equipe de profissionais que pretendia "tratar" os pesquisadores: desde sua insistência a tudo interpretar, passando pelo pouco tempo que efetivamente dedicavam aos pacientes do hospital, até seu apressado diagnóstico dos casos. E é claro: o estereótipo largamente difundido entre médicos e psicólogos de que as alucinações não podiam ser outra coisa que um sintoma de psicose.
Com o estilo pessoal e humano que é característico de suas obras, Oliver Sacks nos leva a refletir sobre as muitas facetas das alucinações, patológicas e não patológicas, no livro que ora resenhamos – traduzido para o português com o título de "A mente assombrada". Em 15 capítulos repletos de relatos de pacientes, de trechos ilustrativos de obras literárias, de informação científica atualizada, e de suas próprias vivências com algumas das modalidades de alucinação detalhadas ao longo do livro, Sacks nos oferece uma alternativa mais rica e abrangente de estudo das alucinações, ao perscrutar suas variadas expressões fenomenológicas e os diversos fatores que as desencadeiam.
Logo no início da obra, Sacks esclarece sua intenção de não abordar as alucinações psicóticas, no intuito de desviar o foco da atenção para o vasto campo das síndromes neurológicas, das transições entre o estado acordado e o sono, dos relatos de aparições, dos estados alterados de consciência induzidos por substâncias psicoativas, das experiências de quase morte durante episódios de parada cardíaca, da sugestão hipnótica, do contágio psíquico e do delírio em massa... Enfim, de toda uma série de situações, gatilhos e desordens do cérebro durante as quais as alucinações podem ocorrer, muito embora suas características difiram às vezes drasticamente daquelas que encontramos nas psicoses. Mas Sacks também discute suas similaridades, e aponta para os perigos de um diagnóstico equivocado, mostrando como certas alucinações costumam confundir e atordoar os clínicos. Não raro, pessoas sem qualquer outro indício confirmador de esquizofrenia foram assim diagnosticadas por ausência de conhecimento adequado dos profissionais ou em função de seus preconceitos. O autor cita, por exemplo, o caso de uma paciente com narcolepsia que, embora fosse saudável sob outros aspectos, veio a ser considerada esquizofrênica devido às alucinações vivenciadas durante suas intensas crises de sono e perda de tônus muscular.
Ao abordar as alucinações de pacientes vitimados pela Síndrome de Charles Bonnet, pelo parkinsonismo ou por certos tipos de enxaqueca, o autor esclarece que as estranhas visões, audições ou ilusões táteis e corporais às quais muitos desses indivíduos se acham vulneráveis são de natureza distinta das alucinações psicóticas, por raramente terem alguma importância pessoal para o sujeito, por carecerem de uma psicodinâmica evidente, por serem visões às quais o sujeito se vê obrigado a assistir, como a um espectador, sem que as imagens e sons interajam com ele ou tenham para ele qualquer significado aparente. Na imensa maioria desses casos, o teste de realidade se acha grandemente preservado, sendo os pacientes capazes, portanto, de perceber o caráter ilusório dessas experiências. Sacks insiste, todavia, na existência de casos mais complexos e limítrofes cujas demarcações são menos rígidas, e nos quais a presença de algum grau de demência ou de outras deficiências cognitivas e psicossociais tende a tornar o diagnóstico diferencial um verdadeiro desafio aos clínicos.
Mesmo ciente da complexidade envolvida na definição das alucinações, Sacks consegue estabelecer, de modo didático e instrutivo, certas variações fenomenológicas que são de grande utilidade para a compreensão dos sintomas alucinatórios. Para Sacks está claro que, nas alucinações, as imagens evocadas se projetam no espaço externo e possuem as mesmas (ou quase as mesmas) qualidades das coisas percebidas pelos sentidos. Na imaginação e na fantasia, porém, as imagens e outras sensações permanecem abstratas e às vezes nebulosas, e não se confundem com o mundo "lá fora", sendo muito mais passíveis de controle e manipulação conscientes. Nas chamadas ilusões, por sua vez, o indivíduo tem a impressão de ver, ouvir, sentir algo, mas logo observa que estava errado em sua impressão inicial (como confundir um chapéu com outro objeto da mesma cor ou tamanho). Sacks também cita as "pseudoalucinações", imagens que saltam aos olhos "tipicamente durante o torpor que precede o sono, quando estamos de olhos fechados" (p. 10). Embora não se projetem no espaço externo, tais visões compartilham de algumas das características das alucinações, como seu caráter involuntário, incontrolável e às vezes bizarro. Para o autor, "muitas alucinações parecem ter a criatividade da imaginação, dos sonhos ou da fantasia – ou os vívidos detalhes e a externalidade da percepção. Mas uma alucinação não é nenhuma dessas coisas, embora possa ter alguns mecanismos neurofisiológicos em comum com cada uma delas" (p. 13). Ele menciona estudos neurofisiológicos que demonstram o fato de haver "uma clara distinção entre a imaginação visual normal e as verdadeiras alucinações" sendo que "as alucinações fazem uso das mesmas áreas e trajetos visuais que a própria percepção" (p. 32- 33). Não obstante, Sacks conhece bastante do tema que analisa para se contentar com definições estanques, e esclarece que há toda sorte de gradações entre essas várias experiências, podendo a ilusão se mesclar à alucinação, e uma fantasia muito intensa dar origem a alucinações.
Ao longo do livro, Sacks realiza um levantamento detalhado dos fatores que desencadeiam alucinações dos mais variados tipos: disfunção ou perda em alguma modalidade sensorial (como pessoas cegas ou surdas que passam a ter alucinações visuais e auditivas compensatórias à perda sofrida); privação e monotonia sensoriais (como em lugares isolados, silenciosos e ermos, ou durante certos rituais religiosos, onde tambores e outros instrumentos de percussão, quando tocados repetidas vezes, acabam por facilitar certas alterações de consciência); uso de substâncias como o LSD, o Ecstasy e a Ayahuasca; episódios de acentuado estresse ou trauma (como no chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático); fadiga, privação e paralisia do sono; e uma série de transtornos neurológicos e psicológicos que vão da epilepsia do lobo temporal, passando pela neurossífilis, até chegar aos transtornos dissociativo, conversivo e psicótico.
Quanto ao conteúdo das alucinações, Sacks também salienta que as explicações são multivariadas, e raramente se encaixam em uma única perspectiva teórica. Dentre essas hipóteses explicativas, a mais comum é, certamente, a da habituação (as alucinações se baseiam, em geral, no que o indivíduo foi acostumado a ver ou ouvir durante sua vida, isto é, o conteúdo tem por base suas próprias experiências sensoriais prévias). Mas há diversos outros aspectos a serem considerados, uma vez que muitas alucinações são dotadas de tal complexidade e inovação que não se pode considerá-las simplesmente como variações de conteúdos da memória do sujeito; certas alucinações merecem, efetivamente, a denominação de 'criativas', por combinarem as percepções de maneira única, por vezes de modo jamais sentido antes pelo indivíduo. Tais alucinações representam, de fato, uma 'pedra no sapato' das noções convencionais sobre a percepção. Com a perspicácia que lhe é característica, Sacks não deixa escapar a conclusão de que nossa ingênua concepção da realidade, segundo a qual nós percebemos o mundo de forma praticamente direta por meio de nossos sentidos, parece estar totalmente equivocada. Nossa percepção das coisas não passa, em grande medida, de uma reconstrução levada a cabo pelo cérebro. Um dos exemplos mais surpreendentes a esse respeito talvez seja o fenômeno dos membros fantasmas, em que pessoas amputadas relatam sentir dor, prurido, movimentos e mudanças de temperatura em seus membros já inexistentes. Outros exemplos intrigantes incluem as experiências fora do corpo e as alucinações autoscópicas e heautoscópicas (em que o paciente é assombrado pela visão de uma cópia idêntica ou semelhante de si mesmo repetindo suas ações ou agindo de forma autônoma, podendo sua consciência ser transferida para o alter ego alucinatório e vice-versa). Ao leitor leigo e ao cético refratário, tais relatos de experiências insólitas podem parecer demasiado fantásticos e contraintuitivos para serem verdadeiros, mas trata-se aqui de vivências reportadas por uma parcela significativa da população, não raro marcadas por grande sofrimento, e cuja investigação rigorosa mostrou serem mais do que meras invenções. Sacks explica que nossa imagem corporal e a noção 'geográfica' que fazemos do corpo são muito mais maleáveis do que imaginamos. O autor cita experimentos simples, mas informativos, em que, por meio da ajuda de câmeras e de braços mecânicos, ele passou a ter a nítida sensação de que sua consciência havia sido transferida para um robô, apesar de seu próprio corpo se achar em outra localidade.
As alucinações têm desempenhado um importante papel na vida das pessoas e na história das artes, da religião e da cultura, de um modo geral. Sacks menciona diversos casos de escritores, místicos e cientistas que obtiveram de suas alucinações a inspiração para suas obras e sistemas de pensamento. Como profissionais de psicologia, habituamo-nos a interpretar as alucinações como vislumbres de desejos, necessidades e conflitos inconscientes da pessoa. Mas Sacks também nos recorda de que elas podem ser uma porta para a compreensão da arquitetura do cérebro, e que seus sentidos e funções podem ser bem mais variados e extensos do que aponta nossa psicodinâmica individual.
Referência
• Rosenhan, D. L. (1973). On being sane in insane places. Science, 179, 250- 258. [ Links ]
1 Título original do livro: Hallucinations. Ano da publicação original: 2012.
2 Doutorando no programa de Psicologia Social do IP-USP, bolsista FAPESP (Processo n° 2011/ 05666-1, agradecimentos pela bolsa concedida), membro do Inter Psi – Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais da USP, Student Associate da Parapsychological Association (Estados Unidos), da Society for Psychical Research (Inglaterra) e da International Society for the Study of Trauma and Dissociation (Estados Unidos). Contato: Rua José de Alcântara Machado Filho, n° 30, Jardim Guapira, CEP: 02316-220, São Paulo, SP – Brasil. Tel: (11) 98475-3157. E-mail: evertonom@usp.br