Boletim - Academia Paulista de Psicologia
ISSN 1415-711X
Resenhas de livros
Padilla Gálvez, J. (2012). Yo, máscara y reflexion – Estudios sobre la autorreferencia de la subjetividad. Madrid: Plaza y Valdés. ISBN 978-84- 15721-51-2
Norberto Abreu e Silva Neto1
Neste livro o autor expõe suas investigações e reflexões sobre problemas da filosofia da psicologia tendo como base de trabalho a obra de Ludwig Wittgenstein e seu método de análise da linguagem. O escrito foi motivado por duas carências: a falta nos estudos psicológicos de uma análise pormenorizada da gramática filosófica do pronome pessoal; e, a não consideração nos estudos sobre a subjetividade de uma observação de Wittgenstein na qual afirma que o mais difícil com relação à subjetividade "é expressar a indeterminação de modo correto e sem adulteração" (Investigações Filosóficas, II/XI, p. 518). Esta observação foi convertida por Padilla Gálvez na conjetura que afirma ser a indeterminação a tendência de toda teoria da subjetividade, e tal conjetura constitui o ponto de partida de suas pesquisas.
Os primeiros capítulos do livro indagam acerca de diferentes teorias da subjetividade que geraram estruturas egocêntricas ou que contém erros metodológicos; teorias assentadas sobre um uso indevido de velhos conceitos não técnicos e que dificultam o estudo da subjetividade. Tais conceitos são exemplificados nos termos "corpo-mente", "imaginação-percepção", "sensaçãopercepção", "memória", "vontade", e até "consciência" e "autoconsciência". Os demais capítulos apresentam alguns resultados interessantes obtidos em suas investigações que podem aclarar-se mediante a conjetura de Wittgenstein.
Como lidar com a indeterminação destes conceitos? Na "Introdução", o autor expõe os procedimentos para a expressão da indeterminação com base na conjetura de Wittgenstein: descrição detalhada das relações lógicas entre os termos; clarificação das relações estruturais entre os distintos campos conceituais; exame pormenorizado do uso que fazemos dos termos involucrados em determinado campo, no caso, aqueles no campo "a subjetividade".
No primeiro capítulo, "Gênese do sujeito ", o autor desenvolve reflexões acerca da origem do solipsismo. Descreve o programa mitológico da subjetividade, colocando em confronto o ego cartesiano ("eu sei quem sou...") e o eu enfático do personagem Dom Quixote ("sei o que posso ser"), o qual ao enunciar a expressão mostra ter consciência plena de quem é; autoconsciência de o que é, e certeza de o que pode chegar a ser. Nestas quatro palavras, defende Padilla Gálvez, estaria de maneira concisa plasmado o programa (mitológico) da subjetividade moderna.
"Problemas egocêntricos" é o título do segundo capítulo no qual é apresentada a noção de particulares egocêntricos, considerando que estes têm, em certo sentido, uma significação constante, que supõe a razão pela qual são usados em nossa linguagem. Destaca-se nesse capítulo a questão da confusão entre semelhança e identidade, na qual semelhança é considerada como identidade; e também a distinção entre identidade e mesmidade.
No terceiro capítulo, "O erro de Descartes", o autor discute o método cartesiano e procura demonstrar os erros desse filosofo na construção de uma teoria do sujeito que caracterize ao portador do pronome pessoal em primeira pessoa. Discute os três argumentos: coloca em duvida a crença na percepção dos sentidos; o argumento do sonho; e, o cepticismo radical configurado no gênio maligno. Para ele, o erro maior de Descartes foi tratar as ideias como objetos, pois elas são modos de ver e perceber, são a maneira como percebemos.
O capítulo 4, "A identidade e as leis da reflexão", trata das confusões geradas pela noção de identidade. A análise sistemática do termo "identidade" é feita pelo autor para mostrar que, dependendo do ponto de vista que se adote sobre a identidade nossa teoria sobre a subjetividade se alterará consideravelmente. Descreve a questão tal como aparecia aos gregos da Antiguidade, e discute as noções de identidade dos filósofos D. Hume e G. W. Leibniz.
A palavra "Autoconsciencia" dá nome ao quinto capítulo, no qual o "eu" é apresentado do ponto de vista kantiano, com a informação de que o discurso kantiano, com a finalidade de esclarecer as estruturas da consciência do eu, incorporou um vocabulário proveniente do discurso politico da Ilustração alemã. O autor aponta que o discurso idealista usa o pronome pessoal em primeira pessoa de modo diverso ao modo usado na linguagem comum. Ele analisa ainda a teoria da subjetividade desenvolvida por S. Freud, assentada, diz, "em termos de uma mecânica dinâmica e certa engenharia de estratos" (p. 91). Padilla considera que ambos, Kant e Freud, falham em seus intentos de analisar a subjetividade e a consciência. O primeiro mediante "uma linguagem do ideário politico da Ilustração ", e o segundo, através da terminologia da mecânica dinâmica, fazendo referencia a histórias mitológicas". Ele defende que os dois simulam ou fantasiam "uma linguagem para a subjetividade que não pode clarificar as estruturas linguísticas que usa o pronome pessoal quando se refere a si mesmo" (p. 93).
O sexto capítulo, "Os jogos da linguagem da autoconsciência", é exemplar do tipo de análise proposta pelo autor para o estudo da subjetividade. Apresenta o método de Wittgenstein para termos acesso ao "eu" por meio da descrição das "estruturas do uso que fazemos em nosso discurso do pronome pessoal na primeira pessoa e para descobrir as trapaças que comete o falante quando usa o 'eu' na linguagem" (p. 96). O autor defende que por meio do estudo do uso da linguagem na qual está involucrado o pronome pessoal podemos descobrir certas funções da subjetividade. O método de Wittgenstein comporta ainda a função terapêutica da filosofia. Para Padilla Gálvez, o estudo da subjetividade nos termos propostos pode trazer benefícios terapêuticos ao estudioso. Assim, ele nos diz: "No momento em que compreendemos que certos jogos linguísticos podem melhorar nossa estrutura cognitiva, compreenderemos a função curativa do uso da linguagem pertinente no estudo da subjetividade"(p. 97).
No capítulo 7, "Eu objetivo versus eu subjetivo", o autor analisa os estragos que o ponto de vista solipsista gera em nosso sistema cognitivo. Ele nos apresenta o solipsista como uma pessoa que "introspectivamente pensa que seu modo de ver o mundo não pode ser compartido por outros". Para que aconteça um tal compartir, as pessoas se vêm "obrigadas a pedir-lhe uma explicação das vivencias que possui introspectivamente". Como somente ele tem acesso a suas vivencias, sempre que solicitado a explica-las, o solipsista poderá "alterar a descrição das mesmas". E conclui que, do ponto de vista solipsista "todos os procedimentos introspectivos dependem do próprio sujeito", e que ele "domina a arte da simulação e hipocrisia modernas" (p. 123).
"Análise auto-referencial do pronome pessoal" é o tema do oitavo capítulo, e nele são expostos argumentos contra a possibilidade de uma linguagem privada. O trabalho analisa a questão da subjetividade assentado basicamente na proposição de Wittgenstein segundo a qual: "Todo conhecimento é mediado". A mera experiência não é ainda conhecimento, diz Padilla, o conhecimento acontece "onde se pensa ou se expressa e se comunica" (p. 124). São temas ainda desse capítulo: a relação corpo e animismo; as teses do monismo materialista e do paralelismo psicologista.
No capítulo 9, "Crenças racionais", é apresentada uma análise sistemática do papel que joga o pronome pessoal em primeira pessoa na subclasse de vivencia "crença" na qual se expressam determinadas convicções. O tema propicia uma discussão dessa questão à luz das observações de Wittgenstein sobre nossas certezas. Em suma, ele trata do uso do pronome pessoal na expressão de convicções e crenças.
"Problemas com a consciência" é o título da capitulo dez, o qual trata de duas incógnitas que foram colocadas pelos dados relatados: (i) a que se refere um falante quando usa o pronome pessoal em primeira pessoa? (ii) que relação existe entre o sujeito e a convicção do falante quando se refere a si mesmo? O ponto de partida para responder a essas questões está no fato de que, desde Aristóteles não se discute a "existência" da consciência mas "o fundamento e a metodologia de nosso argumento sobre os quais assentar a consciência" (p. 151). O autor descreve as estruturas linguístico-analíticas que permitem determinar uma lógica do discurso sobre o eu: os planos sintático, semântico, ontológico, e pragmático; sendo que neste ultimo plano procura-se responder à questão: "como se acede cognitivamente à consciência?" (p. 152). Grande parte do capítulo é dedicado à teoria dos qualia: os sentimentos qualitativos e a explicação da consciência como equivalente à explicação dos qualia, ou seja, destas qualidades fenomênicas.
O capitulo 11, "A auto-referencia da autoconsciência", é uma defesa da tese de que a linguagem é o único instrumento que permite adentrarmos no território do eu ou consciência. O caminho é o mapeamento das estruturas que os falantes aplicam quando se referem a si mesmos e nas quais intervém o pronome pessoal em primeira pessoa do singular. O autor explora o quebra-cabeças deixado por Wittgenstein sobre os usos de sujeito e objeto que fazemos do pronome pessoal em primeira pessoa. E as consequências dessa reflexão para nossa teoria do conhecimento. O capítulo contém uma análise do termo "persona" e uma crítica ao estudo da subjetividade historicamente, ou seja, a reconstrução de um sujeito de ficção com base na memória temporal.
"Para uma etiologia do autoengano" é o título do capitulo 12, no qual o autor trata de patologia mental a partir de um enlace que faz entre "a empresa quixotesca do sujeito moderno que atua com autoridade sobre seu próprio eu", e a proposta cartesiana de que "posso atuar como se eu não fosse eu mesmo" (p. 182). Para ele, as duas empresas são geradoras de dupla personalidade. O caso da empresa quixotesca exemplifica a geração de violência pela subjetividade. A subjetividade do Quixote atua com autonomia sobre seu próprio eu e impõe-lhe um "eu nacional". Esta substituição do eu por um eu diferente do próprio eu é considerada como uma "forma especial de mentir". Assim, o autor salienta que ao mentir temos de operar com um determinado constrangimento linguístico: "A mentira surge como estratégia de comportamento em sociedades onde impera o segredo e a dissimulação" (p.183)
Assim, com tais referencias, o autor descreve as estruturas mais relevantes da linguagem do solipsista, que, "em algumas ocasiões diz a verdade mas em "estratégia de comportamento em sociedades onde impera o segredo e a dissimulação" (p.183). Ele descreve a linguagem do mentiroso como plena de estruturas de ocultamento: "linguagem conceituosa e auto-referencial"; é uma linguagem, afirma, que "faz uso indiscriminado de composições gramaticais nas quais o portador se desnaturaliza" (p. 184).
O capitulo 13 tem o título de "Sobre o fingimento" e oferece as bases para uma fenomenologia desse comportamento. Fingir é um conceito chave da filosofia na psicologia. A simulação é parte do cotidiano das práticas humanas. O fingimento de um sujeito gera incerteza nas mentes de outras pessoas; ele é um exemplo típico de incerteza. Nesse capítulo, o autor desenvolve uma proposta em substituição à explicação do fingir da perspectiva mentalista. Em lugar de trabalhar com o jogo de projeções mentais de imagens baseadas em estereótipos, ele propõe o conceito de ação e sugere explorar o conceito de "fingimento" mediante uma "elucidação dos jogos de linguagem que usa o falante na hora de gerar incerteza em outras mentes". Estes jogos fazem parte de formas de vida e "se conectam de maneira complexa aos padrões do comportamento humano" (p. 196). Na conclusão do capítulo apresenta a afirmação de que as práticas subjacentes ao fingimento são fundamentais no momento de "analisarmos a subjetividade e o modo como atua a primeira pessoa do singular" (p. 200).
No capítulo final, "Conclusões", destaca-se a constatação de que a consciência solipsista não se sustentaria sem o apoio da máscara que se atribui o pronome pessoal. Destacam-se ainda a afirmação de que existe um circulo vicioso de erros na construção de teorias da subjetividade. "Toda autoconsciência que inclua certa estrutura auto-referencial comete o erro de instar o predicado psicológico como sujeito de si mesmo" (p. 211). Assim, contra as propostas do idealismo e do solipsismo, cujos efeitos são nefastos à subjetividade ( - dá-se o encobrimento do sujeito; a mentira subjaz a suas metáforas; dá-se uma conspiração latente do sujeito consigo mesmo e com os demais - ), o autor propõe a construção de uma teoria da autoconsciência mais de acordo com o sujeito.
A título de conclusão
Yo, Máscara y Reflexión é um livro substancial para os pesquisadores da subjetividade. É exemplar de um tipo de análise proposto para o estudo do sujeito. Nele encontra-se claramente definido um objeto do campo da teoria da subjetividade, é feita uma discussão sobre os métodos de pesquisa e a análise de seus efeitos na teoria do sujeito. Encontra-se a análise do vocabulário usado no discurso dessa teoria. E, para nosso benefício, o autor oferece sua compreensão e mostra o uso que faz do método filosófico (ou lógico-gramatical) de Wittgenstein.
Ao mostrar-nos o problema da subjetividade como uma das constantes da obra de Wittgenstein, o autor coloca em relevo o interesse que tem a obra desse filósofo para a construção de uma psicologia científica.
E, para concluir, vale ressaltar que nesse pensar filosófico não existe uma teoria geral da subjetividade aplicável a todos os seres humanos como, por exemplo, encontramos nas teorias de Freud ou de Jung. O estudo da subjetividade deve ater-se a seu objeto: o sujeito do qual se fala; a linguagem do sujeito em estudo. O que é geral na subjetividade á a sua expressão através do uso do pronome pessoal em primeira pessoa. Na investigação da subjetividade trata-se do uso que cada um faz do "eu".
Recebido: 07/04/2014 / Aceito: 20/04/2014.
1 Professor Titular aposentado da Universidade de Brasília e Professor Livre- Docente da USP. Contato: Al. Joaquim Eugênio de Lima, 1452 ap.101 Jd. Paulista CEP: 01403-002 São Paulo SPBrasil. E-mail: norberto.abreu@uol.com.br