Boletim - Academia Paulista de Psicologia
ISSN 1415-711X
História da Psicologia
A Arte em Freud: Um estudo que suporta contradições1
Art in Freud: A study that supports contradictions
Arte en Freud: Un estudio que admite contradicciones
Sandra Autuori2; Doris Rinaldi3
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
RESUMO
Este artigo é o resultado de uma minuciosa pesquisa de como a arte comparece nas obras completas de Freud e demonstra que o autor sustenta em sua teoria uma multiplicidade de abordagens. Em alguns de seus textos, Freud se ocupa em analisar o artista e suas obras, em outros se debruça sobre o processo criativo, e ainda há escritos onde recebe da arte algumas indicações preciosas para o entendimento dos processos mentais. Baseamos-nos em uma citação de Freud presente no "Rascunho N", intitulado 'Ficção e Fine Frenzy' da carta de 31 de maio de 1897 a Wilhelm Fliess, para apresentar a hipótese de que é possível depreender diferentes formas da psicanálise se relacionar com a arte e as intitulamos: Autor e obra: um vínculo de mão dupla, onde o entendimento da obra de arte se dá, por um lado, através de acontecimentos da vida do artista e, por outro, inferindo o que se passa no psiquismo do autor pelo que comparece em sua criação; Arte, realidade e fantasia, onde a discussão da criação artística apresenta a questão da realidade psíquica; e A Arte ensina à psicanálise, quando pudemos precisar momentos em que a psicanálise é colocada em uma posição de aprendiz em relação à arte. A essas adicionamos uma outra maneira em que a arte comparece nas obras freudianas: O processo da criação artística olhado pela psicanálise. Depois de apurarmos essas quatro possíveis subdivisões do pensamento freudiano acerca da arte, ao invés de propormos optar por uma delas ou sublinhar a contradição presente em Freud, escolhemos a posição de afirmar que a arte não é reduzível a nenhuma explicação, nem uma das formas de entendê-la, nem todas juntas são suficientes. Compreendemos com Freud que a arte está à frente da psicanálise e que diante do artista, a análise, tem que depor suas armas.
Palavras-chave: Arte, psicanálise, criação.
ABSTRACT
This article is the result of a thorough research of how art appears in the complete works of Freud and to demonstrate that the author supports his theory in a multiplicity of approaches. In some of his writings Freud is concerned with analyzing the artist and his works, in other he focuses on the creative process, and there are still other works where art gives him some valuable advices to the understanding of mental processes. We are based on a quotation from Freud in this "Draft N", entitled 'Fiction and Fine Frenzy' letter of May 31, 1897 to Wilhelm Fliess, to present the hypothesis that it is possible to infer different forms of psychoanalysis relate to art and we have entitled: Author and work: a bond of two-ways where the understanding of the artwork takes on the one hand, through the events of the artist's life and on the other, inferring what is going on in the psyche of the author which appears in his creation; Art, reality and fantasy where the discussion of artistic creation presents the question of psychic reality; Art teaches psychoanalysis when we discovered moments when psychoanalysis is placed in a position of apprentice in relation to art. To these we add one more way in which art appears in Freud's works: The process of artistic creation as seen by psychoanalysis. After examining these possible four subdivisions of Freudian thought about art, instead of proposing to choose between them or emphasize this contradiction in Freud, we chose the position of asserting that art is not reducible to any explanation, nor a form of understanding it, not even that all together are sufficient. We understand with Freud that art is ahead of psychoanalysis and that before the artist, analysis has to lay down its armaments.
Keywords: Art, psychoanalysis, creation.
RESUMEN
Este artículo es el resultado de una investigación a fondo de cómo aparece el arte en las obras completas de Freud y demostra que el autor sostiene en su teoría una multiplicidad de enfoques. En algunos de sus escritos Freud se ocupa de analizar el artista y sus obras, en otra se centra en el proceso creativo, y aun hay escritos donde recibe del arte algunos consejos valiosos para la comprensión de los procesos mentales. Nos basamos en una cita de Freud en este "Borrador N", titulado "Ficción y Fine Frenzy" carta del 31 de mayo de 1897 a Wilhelm Fliess, al presentar la hipótesis de que es posible inferir diferentes formas de psicoanálisis si se relacionan con el arte y titulandola: El Autor y el trabajo: un vínculo de doble via, donde la comprensión de la obra de arte se da por un lado, a través de los eventos de la vida del artista y, por el otro, inferiendo lo que ocurre en la psique del autor que aparece en su creación; Arte, realidad y fantasía, donde la discusión de la creación artística presenta la cuestión de la realidad psíquica; El arte enseña el psicoanálisis cuando necesitamos momentos en que el psicoanálisis sea colocado en una posición de aprendiz en relación con al arte. A éstos añadimos otra manera en que el arte aparece en la obra de Freud: El proceso de la creación artística. Después de revisar estas cuatro subdivisiones del pensamiento freudiano sobre el arte, en lugar de proponer elegir uno o enfatizar esta contradicción en Freud, se eligió la posición de afirmar que el arte no es reductible a una explicación, ni hay una forma de entenderlo, ni todos en conjuntos son suficientes para explicarlo. Comprendemos desde Freud que para entender que el arte está por delante del psicoanálisis y antes de que el artista, el análisis tiene que deponer las armas.
Palabras-clave: Arte, psicoanálisis, la creación.
Introdução
O ponto de partida de nosso artigo é um mergulho profundo e abrangente no pensamento freudiano relativo à arte. Com a intenção de averiguar os enlaces entre a manifestação criativa e a psicanálise, não nos contentamos em reler apenas os textos mais específicos sobre a criação artística, mas nos dedicamos a examinar toda e qualquer menção relativa à arte nas obras de Freud. Mesmo as mais rápidas alusões ou citações, que podiam parecer sem importância, foram apreciadas no intuito de que pudéssemos conhecer de forma ampla o que pensava o pai da psicanálise sobre a arte e o processo criativo.
Pretendemos demostrar que Freud sustenta em sua teoria uma multiplicidade de opiniões e abordagens, que parecem indicar que não há uma verdade última que abarque o total desvelamento do que seja a arte.
Freud, em seu percurso para criar a psicanálise fez muitas referências à arte, algumas diretamente relativas ao artista e ao processo artístico, outras se preocupando mais especificamente com a própria obra, havendo também estudos dirigidos aos efeitos que estas produzem em quem é tocado por elas. Podemos ainda encontrar trabalhos onde ocorrem mesclas de todas essas preocupações. Não é inverdade dizer que, em muitas ocasiões, a arte entra como mero exemplo ilustrativo. E também não é nenhuma novidade, já que esta evidência é bastante comentada, que há nas observações de Freud relativas à arte, uma profunda ambiguidade, ou até um desencontro (Kon 1996). Sua maneira de analisar o tema sofre grandes oscilações. Estranhamente, essas oscilações não obedecem a algum tipo de evolução cronológica do desenvolvimento de seu pensamento. Em textos produzidos proximamente aparecem ideias que não são confluentes e, em um mesmo deles, é possível notar certas afirmações dissonantes.
2. Uma citação como ponto de partida
Tomamos como ponto de partida uma citação de Freud em que a arte aparece articulada à teoria psicanalítica – referimo-nos a uma passagem, presente no "Rascunho N", intitulado Ficção e Fine Frenzy da carta de 31 de maio de 1897 a Wilhelm Fliess – para apresentar a hipótese de que é possível depreender diferentes formas da psicanálise se relacionar com a arte e diferentes olhares da psicanálise sobre a arte. Nessa primeira citação Freud afirma categoricamente logo na primeira frase: "O mecanismo da ficção é idêntico ao das fantasias histéricas" (Masson 1904/ 1986 p. 252) e, para justificar esta afirmação comenta Goethe e seu famoso romance "Os sofrimentos do jovem Werther". O livro conta a história de um rapaz que se mata por amor. Freud teoriza que o autor combinou o amor que havia experimentado por Lotte Kastner com o suicídio de uma jovem chamada Jerusalém, de que teve notícia. Descreve Freud:
"É provável que estivesse brincando com a ideia de se matar, e encontrou um ponto de contato nisso, identificando-se com Jerusalém, a quem emprestou uma motivação retirada de sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das consequências de sua experiência" (Masson 1904/ 1986 p. 253)
Percebemos que nessa sutil estreia da reflexão sobre a obra de arte, estão condensadas várias formas com que Freud pensa na relação entre arte e psicanálise, formas que foram depois aprofundados. Esboços de ideias posteriormente desdobradas. Aparecerem na mesma carta focos originários de abordagens diferentes sobre a arte e o artista; aponta para que, apesar de dissonantes, as teorias freudianas sobre os processos artísticos não são excludentes.
Nessa correspondência a Fliess foi possível discernir três faces principais onde a arte é, em cada uma delas, diferentemente visitada. Em momentos posteriores, essas abordagens foram desenvolvidas e sedimentadas por Freud.
Para dar visibilidade à leitura que construímos desta primeira referência, ressaltamos as três faces que pudemos depreender, distinguindo-as entre si. São elas: Autor e obra: um vínculo de mão dupla; Arte, realidade e fantasia; e A Arte ensina à psicanálise. A essas, adicionamos outras maneiras de relação da psicanálise com a arte, que embora não esteja presente no "Rascunho N", se mostra representativa do pensamento freudiano quando se percorre sua obra, a saber: O processo da criação artística olhado pela psicanálise. Acreditamos que essas diferentes abordagens são vetores importantes a serem seguidos para a construção de um mapeamento que ajudará na compreensão do pensamento de Freud relativo à arte.
3. Autor e obra: um vínculo de mão dupla
Destacam-se em Freud momentos em que o entendimento da obra de arte se dá, por um lado, através de acontecimentos da vida do artista, isto é, compreendendo a obra pelo autor e, por outro, inferindo o que se passa no psiquismo do autor pelo que comparece em sua criação. Em sua análise há uma mão dupla de deduções explicativas. No "Rascunho N" do Anexo à carta de 31 de Maio de 1897 para Fliess, Freud relaciona a vida de Goethe com a vida de Werther. Ele reconhece no personagem motivos para seus conflitos e aflições oriundos da vida verdadeira de seu autor, mas também, na contra mão, a intensidade do sofrimento de Werther é algo que foi transposto de um real sofrimento de Goethe, que se dá então a conhecer. Esta 'psicobiografia' vai se repetir inúmeras vezes nos textos de Freud. Mais notadamente em "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância" (Freud 1910b - 1977) e em "Dostoievski e o parricídio" (1928 - 1977).
O estudo "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância" (1910b) é, dos trabalhos de Freud, o que mais oferece aspectos referentes à vida pessoal de um artista. Não há apenas uma análise das obras de arte. Freud apresenta a vida de da Vinci fazendo uma grande psicobiografia. Quando lemos este artigo ficamos com a impressão de que Freud se colocou no lugar de psicanalista de Leonardo da Vinci. Sua genialidade é reconhecida por Freud. À frente de seu tempo, Leonardo era pintor, escultor, inventor, cientista, arquiteto, escultor, etc.
Embora tenha criado duas das obras renascentistas mais conhecidas no mundo: Mona Lisa e A Última Ceia, Leonardo se dedicou mais as suas invenções do que às artes. Chegou a imaginar e desenhar croquis de helicópteros, submarinos, máquinas voadoras e canhões. Criou projetos arquitetônicos de ponte, de cidade, de um porto circular, etc. Foi também um cientista que dissecava cadáveres para estudar anatomia, tendo desenhado diversas partes do corpo humano. Ao final da vida, nos conta Freud, ele reconheceu ter ofendido a Deus e aos homens por não ter cumprido seu dever para com a arte (1910b p. 63).
Freud propõe em seu texto que, em Leonardo, os afetos eram transformados em objeto de interesse intelectual, e que a frase do artista: Não se tem o direito de amar ou odiar qualquer coisa da qual não se tenha conhecimento profundo, confirma sua hipótese (1910b p. 71).
A ânsia por descobertas que dominou Leonardo é tida por Freud como sendo herança de sua primeira infância. A sublimação da pulsão sexual é o que garante a atividade profissional intelectual. Freud acredita que quando Leonardo passou pela fase das elucubrações sobre o nascimento não teve como resultado nem a inibição e nem a compulsão. Sua libido, ao escapar desses destinos, foi sublimada desde o começo em curiosidade o que fortaleceu o impulso à pesquisa. Assim, por ser sublimação e não recalque, mesmo se tornando compulsiva e substituta da atividade sexual, a pulsão pôde agir livremente sem ficar presa aos complexos originais da pesquisa sexual infantil.
Leonardo, para Freud, tinha uma "homossexualidade ideal sublimada", apresentando forte inclinação à pesquisa e atrofia de sua vida sexual. O artista chegou a ser acusado de prática homossexual, mas foi absolvido. Freud acredita que ele não tenha tido qualquer atividade sexual.
Freud afirma ser necessário para compreender as obras de arte de Leonardo, conhecer sua história de vida, porém, ao mesmo tempo, através das análises dos quadros propõe entendimentos de seu psiquismo. Os primeiros cinco anos de Leonardo da Vinci, passados solitariamente com sua mãe foram, para Freud, o que influenciaram decisivamente seu psiquismo. A mãe era uma camponesa chamada Caterina e o pai Ser Piero da Vinci, um tabelião que se casou com Donna Albiera no mesmo ano em que Leonardo nasceu, em 1452. Entretanto, sua esposa não pôde lhe dar filhos; assim, Leonardo aos cinco anos foi morar com eles.
Freud acredita que a ternura de sua mãe foi o que lhe determinou o destino, supondo que lhe fazia carícias que a consolavam por não ter marido e ao mesmo tempo visavam compensar o filho pela falta do pai, tendo operado uma substituição do marido pelo filho pequeno.
Leonardo inicialmente realizava pesquisas para sua arte, mas, aos poucos foi se dedicando mais ao campo das invenções e projetos. Só aos cinquenta anos encontrou uma mulher que lhe despertou a lembrança do sorriso feliz e sensual de sua mãe e então pintou o que talvez seja o quadro mais conhecido no mundo inteiro: Mona Lisa ou La Gioconda (1502).
Freud descreve o sorriso de Mona Lisa como fascinante, misterioso, sedutor e ao mesmo tempo frio e distante. Um contraste entre a ternura e a sensualidade. Leonardo passou quatro anos pintando esse retrato e não ficando satisfeito com o resultado não entregou a encomenda. O sorriso 'leonardino' comparece em outros quadros, aliás, em suas primeiras obras já havia esboços do sorriso que é finalmente encontrado em Mona Lisa.
Outro quadro comentado por Freud é Santa Ana, a Virgem e a criança, que possivelmente foi criado simultaneamente ao da Gioconda. As duas mulheres presentes nesse segundo quadro analisado exibem no rosto o sorriso leonardino. O sorriso que, para Freud, era a recordação da mãe do autor. Porém, neste quadro,
Freud relata que o sorriso perde o caráter misterioso e exprime serena felicidade, sendo a glorificação da maternidade. Freud acredita que este quadro sintetiza a infância de Leonardo. Quando foi morar com seu pai, ele foi criado não só pela madrasta Donna Albiera como por sua avó paterna Monna Lucia. Uma das curiosidades deste quadro é que Santa Ana, mãe da virgem, demonstra uma aparência mais jovem e bela do que seria de esperar de uma avó. Freud acredita que Leonardo deu à criança duas mães assim como ele próprio havia tido: Caterina e a madrasta, esposa de seu pai, Donna Albiera. Corrobora com este entendimento o fato de que Leonardo teve outra segunda mãe, sua avó paterna Monna Lucia, que também o acompanhou na infância. No quadro Santa Ana com outros dois ou A Virgem com o menino Sta Ana e São João Batista a união pictórica entre as duas mulheres, mães representantes de Leonardo, é tal que é impossível separá-las em dois corpos. Freud relata que o sorriso retratado no quadro também possui outra característica: ele escamoteia o ressentimento de uma mãe que teve que entregar seu filho.
Para Freud a relação de Leonardo com suas obras de arte reflete a relação que seu pai tivera com ele, de desinteresse. Razão pela qual raramente as considera terminadas. Completa afirmando que se sua rebeldia o prejudicou no campo das artes, o incentivou na pesquisa científica e nos presenteia com uma frase de Leonardo: Aquele que apela para a autoridade quando existe diferença de opinião, está fazendo mais uso da memória do que da razão. Freud 1910b – 1977 p. 113)
Freud, neste texto, que mais parece um relato de caso clínico, tem o cuidado de, ao final, marcar a ideia de que há pouca distância entre os neuróticos e os normais e que traços neuróticos não são sinônimos de inferioridade. Apresenta a hipótese diagnóstica de Leonardo ter proximidade com a neurose obsessiva, por sua 'meditação obsessiva' e 'inibição'. Acredita que a maior parte da pulsão sexual foi sublimada em uma ânsia geral de saber, escapando ao recalque. Que o amor por sua mãe foi transposto em uma atitude homossexual que o levou a ter como discípulos rapazes que considerava mais pela beleza do que pelo talento. Entretanto, a incrível possibilidade de criação artística proporcionou a Leonardo uma válvula de escape para seu desejo sexual.
O próprio Freud, depois de toda a psicobiografia deixa claro alguns pontos importantes. Primeiro que a psicanálise, mesmo podendo apontar detalhes que passariam desapercebidos por um biografo comum, tem seus limites neste campo, já que é à realidade psíquica que é dada maior relevância. Outro ponto que Freud faz questão de frisar é o da impossibilidade de se traçar uma causalidade intrínseca entre fatos ocorridos e um resultado na personalidade. As consequências dos acontecimentos de uma vida são imprevisíveis. Entretanto acredita que Mona Lisa só poderia ter sido pintada por um homem que tivesse passado pelas experiências infantis que Leonardo da Vinci passou, o que não significa dizer que necessariamente qualquer um que tenha passado por experiências semelhantes viraria um Leonardo da Vinci. Vale o a posteriori.
Em "Dostoievski e o parricídio" (Freud 1928 – 1977) é outra vez colocado a obra no divã e Freud se coloca no lugar de psicanalista do artista. Ele faz uma extensa análise de Dostoievski, que vai muito além da perspectiva artística. Nos deteremos nas postulações de Freud que são tecidas no entrecruzamento entre a arte e os fios da vida do autor. Para isso será necessário um pequeno sumário bibliográfico de Dostoievski.
O escritor russo Fiodor Mikhailovitch Dostoievski nasceu em Moscou em 30 de outubro 1821 e morreu em São Petersburgo em 1881. Seu pai Mikhail era médico e sua mãe Maria Fiodorovna morreu tuberculosa quando ele tinha apenas 7 anos, ficando ele e o irmão Mikhail, um ano mais velho, aos cuidados exclusivos do pai.
O pai foi assassinado por dois servos de sua propriedade rural em Daravoi, quando o escritor tinha 18 anos. Era um homem rabugento e infeliz, com tendências depressivas; enviara os filhos, dois anos antes, para a Academia de Engenharia Militar, em São Petersburgo.
Em 1849 Dostoievski foi preso por participar de reuniões subversivas na casa de um agitador profissional, Petrachevski. Condenado à morte, é submetido, juntamente com seus companheiros, ao fuzilamento simulado, cuja impressão deixara registrada em O Idiota. Deportado para a Sibéria cumpre 9 anos de exílio. Este acontecimento mudou o seu posicionamento político. Até então ele era socialista e a partir disso passou a ter proximidade com Czar. Tinha uma relação forte com a religião, porém, pensava que o catolicismo tinha traído Cristo, deixandose envolver com o poder temporal.
O reconhecimento definitivo de Dostoievski como escritor universal surge somente depois dos anos 1860, com a publicação dos grandes romances: O Idiota, Crime e Castigo e seu último romance, Os Irmãos Karamazov. Freud divide a rica personalidade de Dostoievski em quatro facetas: o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador. Acredita que a pulsão destrutiva, muito intensa em Dostoievski, que poderia tê-lo transformado em criminoso, foi dirigida para a sua própria pessoa, encontrando expressão no masoquismo e em seu sentimento de culpa. Os traços sádicos permaneceram em sua irritabilidade e intolerância, possíveis de serem percebidos em seus personagens.
Dostoievski era considerado epilético. Freud entende ser altamente provável que sua epilepsia tenha sido um sintoma de sua neurose, razão pela qual deva ser classificada como histeroepilepsia, ou seja, como histeria grave. Acredita que suas crises iniciaram-se na infância, com aspecto brando, e que só aos 18 anos, com a morte do pai, assumiram a forma epilética. Freud propõe que crises como estas significam uma identificação com a pessoa morta, estando ela realmente morta ou alguém que se queria ver morto. O último caso é mais significativo. No caso de Dostoievski, a crise (histérica) possui valor de uma autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado e, ao mesmo tempo, é a expressão da identificação paterna por parte do eu, satisfazendo tanto a pulsão masoquista do eu, quanto a punitiva do supereu.
O artista Dostoievski é comparado por Freud em sua grandeza a Shakespeare. Acredita ser Os Irmãos Karamazov o mais grandioso romance jamais escrito e completa: "Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que depor suas armas". (Freud 1928 – 1977 p. 205)
Esta é uma afirmação bastante significativa dos caminhos que Freud traça ao se referir à arte em sua obra, pois, mesmo quando procura colocar a obra de arte no divã e se coloca no lugar de psicanalista do artista, ele reconhece que esta é uma tarefa impossível, pois diante dos problemas que a arte e o artista apresentam, a psicanálise tem mais a aprender do que a ensinar, o que abordaremos melhor no próximo item.
Retornando às considerações sobre os Irmãos Karamazov, Freud entende que o romance apresenta a situação edipiana no ponto central. O pai era detestado pelos filhos por ser muito opressor e, além disso, em relação a um dos filhos Dimitri, um poderoso rival quanto à mulher que desejava. Tanto que este não esconde sua intenção vingar-se. Quando o pai é morto, Dimitri é condenado. Porém ele é inocente, foi o outro irmão que cometeu o crime. A frase, A psicologia é uma faca de dois gumes, usada no capítulo do julgamento ficou famosa. É uma expressão usada sempre que uma análise psicológica apressada, superficial, ou que atenda a determinada explicação provável, leva a deduções errôneas. No Romance, o verdadeiro assassino do pai é o filho epilético. Freud propõe que esse fato revela que Dostoievski desejava confessar que o epilético que havia nele era um parricida.
Freud analisa a relação de Dostoievski com o jogo, que era muito intensa, como sendo mais uma forma de expressão de seu complexo de culpa. Ele não descansava até perder tudo, e por mais que se humilhasse e pedisse perdão, recomeçava a jogar. Só quando realmente nada mais tinha, com o sentimento de culpa já satisfeito, se permitia escrever e criar obras primas. Afundado em dívidas, para tentar pagá-las, tinha que escrever um livro atrás do outro, pedindo adiantamentos aos seus editores. Para acelerar o processo de escritura, contratou uma estenógrafa, Anna Grigorievna e, em vinte e seis dias, Dostoievski ditou-lhe uma de suas obras-primas: O Jogador. Em seguida pediu Anna Grigorievna em casamento. Permaneceram juntos até a morte do escritor.
Uma curiosidade interessante sobre a análise de Freud sobre Dostoievski é que ele, apesar de confessar sua enorme admiração pelo artista, não tem nenhuma paciência nem apresso por sua personalidade, não tolera sua natureza patológica. (Freud 1928 p. 83)
Freud nestes dois textos realizou uma profunda análise psicológica dos artistas Leonardo da Vinci e Dostoievski. Apresentamos o recorte que nos pareceu mais pertinente para clarear o vínculo de mão dupla que comparece entre o artista e sua obra nas psicobiografias freudianas.
4. Arte, realidade e fantasia
Freud, no texto "O interesse científico da psicanálise" (1913 - 1977) afirma:
"A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor". (p. 222)
Este fragmento de texto é um ponto de partida para a investigação das formas de abordagem, presentes na obra de Freud, da relação da arte e do artista com a realidade
Freud (1908 - 1977), no texto "Escritores criativos e devaneios" faz a afirmação: A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. (p. 149) É possível, através desta afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, fazer reflexões sobre o que parece estar sendo indicado: que a realidade não deve ser levada mais a sério do que a brincadeira, pois a brincadeira está vinculada à fantasia do sujeito e é uma interpretação da criança de sua realidade. Enfim, o que importa sublinhar é a operação efetuada por Freud ao tratar como séria a brincadeira, que banhada na fantasia expressa a própria realidade psíquica da criança. Fantasia e realidade psíquica se equivalem. É na travessia edípica, no momento do recalque originário e entrada no simbólico que se instaura a fantasia.
Freud aproxima o 'brincar' infantil do 'fantasiar', estabelecendo que a única diferença é que na brincadeira a criança constitui conexões com coisas visíveis do mundo real. Lança mão da linguagem, recordando palavras alemãs. Nos conta que a palavra 'Spiel' (peça) dá nome às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Relata que as palavras 'Lustspiel' ou 'Trauerspiel' (comédia e tragédia) significam literalmente, 'brincadeira prazerosa' e 'brincadeira lutuosa' e que os atores são chamados de 'Schauspieler' que pode ser traduzido por 'jogadores de espetáculo'.
É nesse mesmo texto, calcado na afirmação dos próprios escritores de que eles não são tão diferentes da maioria das outras pessoas, que Freud constrói a hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança ao brincar, onde aparecem os primeiros traços de imaginação criativa. Freud compreende que o desejo que determina o brincar da criança é o de tornar-se adulto. Desejo que é regido pela ilusão de que o mundo adulto irá proporcionar a realização de suas fantasias. O artista, por sua vez, já não possui mais essa ilusão e, através da criação artística, empreende uma realização imaginária. A criança ao brincar se comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada. Tanto um quanto outro leva muito a sério essa brincadeira, nela investindo muita emoção. Ao mesmo tempo, sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo de insanidade, já que realidade está presente, mesmo que em suspenso.
A criança no jogo "agora eu era..." (como na música de Chico Buarque), promove um exercício mental de sentir ser algo que sabe que não é na realidade, assim como o ator ao representar e a plateia que, em catarse com o personagem, vive o seu drama.
O devaneio aparece na adolescência em substituição da brincadeira e perdura a vida toda. Ele também é determinado por desejos. Porém, por serem as fantasias motivadoras de cunho erótico-ambiciosas, os devaneios são escondidos e velados, sentidos como vergonhosos. Ficar a devanear não é bem aceito, é uma 'atitude infantil', se espera de um adulto que ele possa se inserir e conquistar seu espaço no meio social.
A partir da premissa de que as forças motivadoras da fantasia são os desejos insatisfeitos que Freud estabelece: toda fantasia é a realização de um desejo. Assim, tanto os sonhos noturnos quanto os devaneios são realização de desejos. A nossa espécie, embora pertença ao reino animal, possui uma diferenciação, uma forma bastante peculiar de estar no mundo. Somos habitados pela pulsão (Trieb) e não pelo instinto (instinkt) e o objeto suposto por nosso psiquismo como alvo, como aquilo que nos satisfaria por completo, é aquilo mesmo que foi para sempre perdido, não existe. O objeto perseguido pela pulsão é chamado por Freud de das Ding, a Coisa.
Através da análise dos fenômenos clínicos ligados à repetição, os sonhos traumáticos e o brincar infantil, Freud, em 1920 introduz o conceito de pulsão de morte, representada pela insistência da pulsão em sua busca continua e não atendida de uma satisfação absoluta. A força da pulsão visa à anulação radical das tensões internas vividas pelo organismo vivo e pelo psiquismo. A fantasia interfere nessa exigência imperiosa da pulsão. A partir da entrada da fantasia inconsciente, a pulsão vai se abrir em duas vertentes, a da pulsão de morte propriamente dita e a da pulsão sexual que é regida pelo princípio de prazer e dominada pela fantasia. O que nos leva a perceber que o desejo é a pulsão que foi enquadrada, emoldurada por uma determinada fantasia, ou seja, todo desejo é fundado na fantasia.
Em Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens, (Freud 1910c - 1977) a arte é apresenta como recurso estético, por um lado proporciona que o sujeito tenha contato com fantasias que de outra forma seriam inaceitáveis ou no mínimo desagradáveis e, por outro, trata este mesmo recurso estético como o que distorce a realidade, não a apresentando 'tal como é'. Freud então teoriza:
"Os escritores estão submetidos à necessidade de criar prazer intelectual e estético, bem como certos efeitos emocionais. Por essa razão, eles não podem reproduzir a essência da realidade tal como é, (...) eles podem demonstrar apenas ligeiro interesse pela origem e pelo desenvolvimento dos estados psíquicos que descrevem em sua forma completa. Torna-se, pois, inevitável que a ciência deva, também, se preocupar com as mesmas matérias (...) muito embora seu trato seja mais tosco e proporcione menos prazer". (p.149)
Kon (2001) ressalta que há em Freud uma profunda ambiguidade, quando se trata da possibilidade do artista, através de sua arte, retratar a realidade. A autora nos conta que em "O Mal Estar na civilização" Freud equipara a arte a uma consolação fugidia, contrária a 'prática cirúrgica' da psicanálise, esta a serviço da realidade. A autora lembra que em "O estranho" o artista é dito como aquele que tem "função insidiosa e mistificadora, papel contrário ao do psicanalista que trabalharia, pautando-se nas forças das luzes, para alcançar a verdade."
Entretanto, quando relata que a arte oferece 'satisfações substitutivas' que são ilusões em contraste com a realidade, Freud (1930 - 1977) ressalta que essas ilusões, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental, não se revelam 'menos eficazes psiquicamente'.
Jorge (2004) corrobora com esta visão recordando que o que caracteriza as ilusões é elas serem derivadas de desejos humanos e, por isso, não necessariamente falsas ou em contradição com a realidade. Ele nos relembra a ideia de Freud de que uma ilusão não é necessariamente um erro.
Freud (1910a - 1977) afirma que quando um homem não consegue transformar em realidade os seus intuitos na vida, seus 'castelos no ar', mas possui 'preciosos dons' artísticos, pode transformar suas fantasias não em sintomas, mas sim em criações artísticas. Desta forma, ao invés de se instalar a neurose, pode-se reatar através da arte, ligações com a realidade. Se um artista for uma pessoa que, por qualquer razão, não dispõe da determinação necessária para travar os embates que a vida impõe, seus dons artísticos o possibilitarão a realizar seus desejos, mesmo que apenas no registro da imaginação, o livrando de ser somente um homem fraco. O que nos faz inferir que Freud está dizendo que, se alguém tem algum tipo de inadequação ao mundo e tem dotes artísticos, isso possibilitará uma determinada inserção neste mundo que produzirá efeitos que contradizem a ideia do senso comum de que todos os artistas são loucos ou inadaptados.
O artista como alguém que, pela arte, sabe encontrar o caminho de volta a uma verdade de novo tipo é apresentado de forma incipiente na "Conferência XXII – Os Caminhos da Formação dos Sintomas" (Freud 1916 -1977), sendo aprofundado em outros dois textos: "Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental" (Freud 1911 - 1977) e "Um Estudo Autobiográfico" (Freud 1925 - 1977). Este é um dos momentos da relação de Freud com a arte em que é apresentada uma saída particularmente instigante. Parece enfim afirmar o que está esboçado em toda a sua obra quando versa sobre a arte, que a discussão da criação artística em sua relação com a realidade traz obrigatoriamente a questão da realidade psíquica, e também permite pensar as aproximações entre esta e os processos de criação do artista. Procedendo desta forma, procurando entender o mecanismo da fantasia a partir da ficção, Freud estabelece entre psicanálise e arte o ponto que Rivera (2002) acredita ser cardeal: o processo da criação servir para colocar em questão o funcionamento psíquico, chegando a investigar as condições de alcance do próprio trabalho analítico. A arte seria, neste momento, um foco de luz iluminando os processos psíquicos a serem estudados pela psicanálise.
5. A Arte ensina à psicanálise
É interessante que Freud, em sua primeira apreciação da arte como algo a ser estudado, faz referência à peça Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare (Masson 1986). (ato 5, cena 1):
"The poet's eye, in a fine frenzy rolling Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven: And, as imagination bodies forth The forms of things unknown, the poet's pen Turns them to schepes, and gives to airy nothing A local habitation and name".1
Sua escolha literária nos leva à última versão do entrecruzamento da arte com a psicanálise sugerida no pequeno anexo da carta a Fliess. Antes do verso, Freud compreende que: "Shakespeare estava certo em justapor ficção e loucura" (Masson 1986). Não é em um estudioso que Freud se apoia para teorizar sobre o fantasiar e sim em um escritor e, melhor ainda, no interior de uma obra de ficção, falando sobre a criação artística. Quem avaliza a descoberta sobre o fantasiar, para Freud, é o escritor literário. A psicanálise está em uma posição de aprendiz em relação à arte. Ela transfere o dito do artista, da ficção para o mundo real, atribuindo-lhe estatuto de verdade. Freud denuncia que o artista fornece, através de suas criações, as mesmas descobertas que a psicanálise propõe, porém, antecipadamente. Isto é, quando a psicanálise lá chega, a arte já havia estado lá. Freud identifica a teoria psicanalítica com o dizer do artista. O que surge é um jogo de espelhos, um refletir de imagens, uma por dentro da outra. Freud cita Shakespeare que fala sobre o poeta confirmando o que a psicanálise quer dizer sobre o fantasiar. Em matéria de jogo de imagens, não podemos nos esquecer da famosa carta escrita por Freud, endereçada a Arthur Schnitzler na qual se considera seu duplo (Freud 1982). Em diversos momentos Freud se identifica com o dizer do artista. É difícil encontrar textos de Freud em que ele não cite ao menos alguma obra de arte, um autor, um quadro ou uma expressão artística.
Há textos, por exemplo, "Sobre a psicopatologia da vida cotidiana" (1901 - 1977) e "Conferências introdutórias sobre psicanálise" (1916 - 1977) em que Freud assinala que os escritores já demonstram em suas obras o que ele agora propõe: que os atos falhos tem sentido e motivo. "E não seria de surpreender se tivéssemos mais a aprender sobre lapsos de língua com escritores criativos, do que com filósofos e psiquiatras". (p. 52)
A antítese entre a técnica sugestiva e a analítica é ancorada por Freud (1905 -1977) na mesma ideia que Leonardo da Vinci resumiu, com relação às artes, nas fórmulas per via de porre e per via di levare. O artista faz uma diferenciação entre a pintura e a escultura, ao sustentar que na pintura se deposita sobre a tela partículas coloridas que antes não estavam ali (per via de porre) enquanto na escultura retira-se da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida (per via di levare). Freud identifica a sugestão com a via de porre, não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, deposita algo – a sugestão. Acredita que a terapia analítica deva operar per via di levare.
A arte se faz presente de forma constante nos estudos de Freud. Porém, a maneira acima citada, de estar à frente, indicando à psicanálise suas descobertas, está especialmente evidente em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (Freud 1907 – 1977). Texto em que Freud tece comparações entre a ciência psiquiátrica e a arte, sobre as possibilidades, efeitos e entendimentos que ambas têm do mental, mais especificamente no sonho e no delírio. De saída Freud autoriza a arte a falar sobre os desvios da saúde mental, defendendo a possibilidade do tratamento poético de um tema psiquiátrico. Confere ao autor um saber sobre o delírio que escapa à ciência, ou melhor, relata que à ciência falta o reconhecimento do inconsciente, sem o qual não é possível nenhum entendimento dos fenômenos psíquicos. Freud considera a arte sua aliada, ela expõe artisticamente o mesmo que ele afere em sua pesquisa clínica.
"Entre as precondições constitucionais e hereditárias de um delírio, e as criações deste, que parecem emergir prontas, existe uma lacuna não explicada pela ciência — lacuna esta que achamos ter sido preenchida pelo nosso autor. A ciência ainda não suspeita da importância da repressão, não reconhece que para explicar o mundo dos fenômenos psicopatológicos o inconsciente é absolutamente essencial, não procura a base dos delírios num conflito psíquico, e nem considera seus sintomas como conciliações. Acaso nosso autor erguese sozinho contra toda a ciência? Não, não é assim (isto é, se eu puder considerar como científicos os meus próprios trabalhos), pois já há alguns anos — e, até bem pouco tempo, mais ou menos sozinho — eu mesmo venho defendendo todos os princípios que aqui extraí da Gradiva de Jansen, expondoos em termos técnicos". (p. 59)
6. O processo da criação artística olhado pela psicanálise
Neste item apresentaremos um modo de relação entre arte e psicanálise que não foi especificado a partir do Rascunho N, o qual orientou os estudos das outras três faces descritas anteriormente.
Freud em muitos momentos recuou na tarefa de entender os 'enigmáticos' dotes artísticos (1910a - 1977). Particularmente em relação à música Freud em "O Moisés de Michelangelo" (1914 - 1977) se esquivou quase que completamente de qualquer parecer. Relata não conseguir entender a que deve o efeito provocado pela música, razão pela qual explica sua dificuldade de obter qualquer prazer com ela. Só volta a falar de música nas "Conferências Introdutórias" (Freud 1916 - 1977), onde inicialmente propõe que as melodias que surgem na mente inesperadamente são determinadas por uma sequência de ideias à qual pertencem, sem que estas sejam conscientes, e que estas estão correlacionadas com a letra da música. Percebe, porém, que para pessoas ligadas à música o conteúdo musical da melodia pode estar decidindo seu surgimento e acaba por confessar não poder ter maior entendimento sobre esta questão por não ter proximidade com pessoas que mantém estreita relação com a música.
É também nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise que Freud faz sua única referência, nas obras completas, ao cinema. Foi em 1895, na pré-história da psicanálise que o cinema foi criado. Em 1916 o cinema ainda era mudo, o cinema falado só apareceu em 1920. Era extremamente popular, sendo assistido em salas para mais de mil espectadores. É a essas circunstâncias que Freud se refere ao relatar a dificuldade que os parentes dos pacientes têm em aceitar as intervenções psicanalíticas. Ele critica os "desinformados parentes" que "jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se algo não pode ser feito pela doença que não seja simplesmente falar". Freud nos relata que eles apenas se impressionam com "coisas visíveis e tangíveis — preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema". (p.29)
Entretanto, Freud não se privou de analisar o recurso da arte como forma de expressão. Em muitos textos ele analisa o processo da criação. "Escritores criativos e devaneios" (Freud 1908 - 1977) – texto que se mantém como referência para quem quer estudar as relações entre arte e psicanálise – Freud se ocupa em entender o que determina ao escritor criativo sua escolha de material e os efeitos desta no leitor. O que o auxilia a talhar esta construção teórica é o desvelamento do fantasiar, onde procura entender o mecanismo da fantasia a partir da ficção.
Freud repete a fórmula, já utilizada no estudo de sonhos, para a compreensão da construção da fantasia e do devaneio, validando-a também para o processo de criação do escritor literário. A fórmula estipula que há três tempos neste trabalho mental – alguma ocasião motivadora no presente desperta um dos desejos principais do sujeito, que retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando um devaneio ou fantasia, podendo proporcionar em um artista a produção de uma obra literária. Ao finalizar o caminho da criação, Freud constrói uma das frases mais bonitas deste trabalho: "Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une". (Freud 1908 – 1977 p.153)
No intuito de consolidar o vínculo proposto entre o devaneio e a criação literária, o autor estabelece uma distinção: separa os escritores que utilizam temas preexistentes daqueles que parecem criar o próprio material. Nos primeiros, através das criações mais populares, assemelha o herói – aquele que aparece protegido pela providência divina – à 'sua majestade o ego' tal como pode ser reconhecido nas fantasias. Para estes autores que trabalham em obras imaginativas que não são suas criações, mas reformulação de material preexistente, Freud ressalta que, mesmo assim, o escritor conserva grande independência tanto na escolha do material quanto na alteração do mesmo. Chega a postular que os mitos possam ser "vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras". (Freud 1908 – 1977 p.157) Quanto aos romances menos ingênuos, como, por exemplo, os 'excêntricos' e os 'romances psicológicos', Freud comenta que as mesmas estruturas que sustentam a história podem ser observadas nos devaneios. Ele prega uma proximidade entre o herói que os escritores gostam de criar, o herói que as crianças vivem em suas brincadeiras e a atitude do espectador/leitor em catarse com esse herói.
Para finalizar o enlace entre os devaneios e a literatura, Freud se põe a pensar de que modo as mesmas fantasias que causam repulsa podem, quando transformadas em obras de arte, causarem tamanho prazer. Para esta questão ele propõe três vias: a primeira, já pincelada acima, diz respeito à obra literária que, sendo irreal, possibilita que o leitor sinta o que é proibido na realidade; a segunda via é a capacidade que o escritor tem de suavizar o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, nos subornando com o prazer estético; a terceira via vem completar o que foi alinhavado nas duas ramificações expostas. Freud propõe que, através do 'prêmio de estímulo' ou do 'prazer preliminar' – aquele conseguido pelo recurso formal utilizado pelo autor – ocorre a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas: as obras artísticas liberam o leitor/espectador para se deleitar com seus próprios devaneios, livre da culpa e da vergonha.
"Personagens psicopáticos no palco" é outro texto onde a criação artística, particularmente a literária, é profundamente investigada (Freud [1905 ou 1906] 1945 - 1977). O texto foi redigido no início do século passado, mas só foi publicado em 1945, após a morte de Freud. A partir da poética de Aristóteles, ele relata como sendo a finalidade do drama despertar "terror e comiseração", produzir a 'purgação dos afetos' e o 'sofrimento solidário' através da catarse. Aristóteles (2000) em sua Poética nos ensina: "A tragédia (...) despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções" (p. 43). Por meio da identificação é dada ao espectador a possibilidade de ser um herói. A trama oferece fontes de prazer, pois o desabafo dos afetos resulta em gozo pelo alívio da descarga e pela excitação sexual concomitante.
Freud faz um passeio por vários estilos e fornece análises próprias a cada um deles. Oferece leituras para as construções dramáticas da dança, da poesia lírica, da poesia épica, do drama (incluindo o psicológico), da comédia e da tragédia; dentro desta última faz subdivisões diferenciando a tragédia de rebelião da tragédia social e da tragédia de caracteres. Vencido pelas infindáveis combinações entre os diversos estilos, Freud afirma que as possíveis combinações entre estas são "uma variedade quase infinita de situações de conflito – tão infinita quanto os devaneios eróticos dos seres humanos". (Freud, S. "Personagens psicopáticos no palco" 1945 - 1977 p. 292)
Nesse texto ele está preocupado em entender quais ferramentas literárias são utilizadas pelos artistas para que suas obras produzam determinados efeitos no espectador e, como o escritor as manipula em sua arte para evitar que se instale o sentimento de repugnância ou qualquer tipo de resistência à obra. No texto "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho analítico" (Freud 1916 - 1977), para tentar entender como o escritor consegue despertar simpatia por seu herói, aponta que Shakespeare na peça "Ricardo III" promove um tipo de cumplicidade do público com o personagem através da artimanha de mostrar o personagem como alguém a quem já aconteceram muitas coisas ruins e por isso teria o direito de fazer o mal, justificando assim atos que seriam condenáveis e desviando a reflexão crítica do público. Freud relata que há uma ampliação do que pode ser encontrado em nós mesmos, a exigência de reparação por ferimentos ao nosso narcisismo.
"A lei de economia poética exige que seja esta a maneira de apresentar a situação, pois esse motivo mais profundo não poderia ser explicitamente enunciado. Tinha de permanecer oculto, afastado da fácil percepção do espectador ou do leitor; do contrário, teriam surgido sérias resistências, baseadas nas emoções mais aflitivas, as quais talvez pusessem em perigo o efeito do drama". (p.372)
Em sua análise das manobras do escritor, o texto "O Estranho" de 1919/ 1977 é um texto exemplar. Freud se põe a pensar como o escritor consegue produzir a sensação de estranheza, dando forma e contorno a esse sentimento para que ele não se torne insuportável, e que, por outro lado, também não se dissipe precipitadamente. Um dos artifícios citados por Freud é o autor não deixar claro ao leitor em que terreno ele está sendo inserido, se fantástico ou real. Diante de situações inusitadas, é a insegurança produzida por esta dúvida que causa estranheza. Quando desde o início é esclarecido em que realidade estamos inseridos não há produção do sentimento do estranho. Quanto mais realista for uma história, mais a sensação estranha vai ocorrer quando algo fora do comum acontecer. Freud acredita que para o terror não se aplica a mesma regra. Geralmente desde o início se sabe que se está no terreno do irreal. O estranho é um afeto diferente do terror. Ele ilude o espectador que espera a realidade, mas se depara com o fantástico.
Fazendo um giro extraordinário Freud nos revela que o estranho é o familiar. O estranho é o que toca e revive os resíduos, ainda presentes em nós, de complexos infantis e crenças primitivas. O elemento que amedronta é algo que deveria permanecer recalcado, mas que retorna: o animismo, a magia e bruxaria e poderes especiais, a onipotência dos pensamentos, a atitude do homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração. Freud acredita que a experiência estranha ocorre quando os complexos infantis recalcados ou crenças primitivas superadas parecem confirmar-se e revivem por meio de alguma impressão. E é essa a arma do autor para alcançar o efeito do estranho, ele maneja com alguns desses elementos. O escritor pode também liberar o leitor da sensação do estranho através de alguns artifícios, pode, por exemplo, não induzir a identificação do leitor com o personagem que sofre a ação que provoca estranheza. Pode também provocar o cômico, proporcionando ao espectador conhecimento de informações relativas à trama que os personagens não possuem, ou mesmo, provocar ironias com o tema que é tratado seriamente pelos personagens.
Freud (1927 - 1977) diferencia o humor do cômico propondo que naquele o prazer ocorre quando o ouvinte copia do humorista a mesma sensação prazerosa. O humor se revela para Freud como libertador. Possui uma grandeza que reside no triunfo do narcisismo, na afirmação da invulnerabilidade do eu, pois este se recusa a sofrer, é rebelde e afirma-se contra a crueldade das circunstâncias reais. Freud situa o humor em uma "extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer (...) sem ultrapassar a saúde mental" (p. 191). No trato com os outros a atitude humorística ocorre quando não se leva a sério o sentimento alheio, quando se trata o outro como um pai trata seu filho ao sorrir de sua dor. Em relação a si mesmo, Freud relata que a mesma atitude pode ser encontrada, porém nesta é o supereu que trata o eu como a uma criança. Relata que se o chiste é a contribuição feita ao cômico pelo inconsciente, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu. No caso do humor, o supereu está a serviço de uma ilusão e não operando como um 'senhor severo'. Freud, porém afirma que esta propriedade do supereu – o de proteger o eu de um sofrimento – não contradiz a origem do superego no agente paterno.
Como último ponto, trazemos uma explicação de Freud (1900 - 1977) sobre o método da associação livre. O autor ressalta a importância de o paciente renunciar a toda e qualquer crítica aos pensamentos que perceber, observa-lhe que ele não deve suprimir nenhuma ideia que pareça sem importância, afirma que a atitude crítica será a responsável pelo fracasso de sua técnica. Faz uma diferença entre a reflexão, onde há uma atividade crítica que não interessa ao processo analítico, e a auto-observação, onde há uma atenção concentrada como na reflexão, porém não está em funcionamento a atividade crítica. No segundo caso, é possível seguir o fluxo do pensamento e chegar a ideias que, no primeiro caso, seriam interrompidas, suprimidas antes que chegassem à consciência. Freud, para melhor demonstrar a esperada atitude por parte do analisando, cita Friedrich Schiller em correspondência com Körner descoberta por Otto Rank. Freud ressalta que "...a criação poética deve exigir uma atitude exatamente semelhante" (p.124) e transcreve o trecho da carta em que Schiller responde a uma crítica por sua suposta baixa produtividade.
"O fundamento de sua queixa parece-me residir na restrição imposta por sua razão a sua imaginação. Tornarei minha ideia mais concreta por meio de um símile. Parece ruim e prejudicial para o trabalho criativo da mente que a Razão proceda a um exame muito rigoroso das ideias à medida que elas vão brotando — na própria entrada, por assim dizer. Encarado isoladamente, um pensamento pode parecer muito trivial ou muito absurdo, mas pode tornar-se importante em função de outro pensamento que suceda a ele, e, em conjunto com outros pensamentos que talvez pareçam igualmente absurdos, poderá vir a formar um elo muito eficaz. A Razão não pode formar qualquer opinião sobre tudo isso, a menos que retenha o pensamento por tempo suficiente para examiná-lo em conjunto com os outros. Por outro lado, onde existe uma mente criativa, a Razão — ao que me parece — relaxa sua vigilância sobre os portais, e as ideias entram precipitadamente, e só então ela as inspeciona e examina como um grupo. — Vocês, críticos, ou como quer que se denominem, ficam envergonhados ou assustados com as mentes verdadeiramente criativas, e cuja duração maior ou menor distingue o artista pensante do sonhador. Vocês se queixam de sua improdutividade porque rejeitam cedo demais e discriminam com excessivo rigor". (Freud 1900 p.125)
Ressaltamos que Freud, nesse texto, equipara a associação livre, 'a regra fundamental da psicanálise' – método que permite o sujeito do inconsciente vir à baila – ao processo de criação.
7. Abrindo a conclusão
Depois de apurarmos essas cinco possíveis divisões do pensamento freudiano acerca da arte, percebe-se o quanto mais cômodo seria optar por uma delas, defendendo-a como sendo a visão de Freud em relação à arte, ou, por outro lado, afirmar que ele demonstra ser contraditório em relação à arte desvalorizando sua compreensão. Porém, nossa impressão dissolve essas duas vertentes por sustentar que a ambiguidade talvez seja o reflexo de um pensamento dialético, que se evidencia quando Freud combina arte com sua investigação teórica-clínica. Assim, escolhemos outra posição, a de que a arte não se deixa abocanhar por qualquer explicação, por isso mesmo nem uma das formas de descrevê-la, nem todas juntas, são definitivas. Apresentamos como argumento de que em Freud não é dada uma explicação essencial sobre a arte que possa ser reconhecida como sendo a verdade última, no fato de que, em momento nenhum, suas diferentes articulações referentes à arte são expostas anulando alguma outra anterior. Cada analise pertence a um diferente encadeamento e está inserida em um contexto específico de sua teoria que merece ser reconhecido em sua abordagem particular. O desfilar de ângulos de visão diversos aponta para a riqueza que o diálogo entre psicanálise e arte propicia, sem demandar uma visão definitiva, mas valorizando as diferenças e contradições que se pode explorar, dependendo de como somos colocados a ver. Seja ao tentar entender o que dizem os artistas a partir de uma psicologia do autor, como no caso do texto sobre Leonardo da Vinci, seja ao fazer uma analogia entre os processos de criação artística e os processos psíquicos, o que Freud nos mostra, ao tomar a arte como fonte inspiradora, é a contribuição que ela dá à psicanálise, no sentido de que a arte chega antes e diante dela e do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que depor suas armas (Freud 1928 – 1977 p.205).
REFERÊNCIAS
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Recebido: 07/05/2014 / Corrigido: 19/08/2014 / Aceito: 30/08/2014.
1. Esse artigo foi produzido a partir da Dissertação "Clínica com Arte: considerações sobre a arte na psicanálise", de autoria de Sandra Autuori e orientação de Doris Rinaldi ao Programa de Pós- Graduação da Psicanálise
2. Mestre em "Pesquisa e clínica em psicanálise" pela UERJ e doutoranda em "Estudos da subjetividade" na Pós Graduação da UFF, bolsista da CAPES de doutorado sanduíche em Paris 7. Diretora do CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil) Heitor Villa Lobos e professora de Psicologia da Universidade Santa Úrsula. Contato: Rua Padre Manso, s/n, Rio de Janeiro. Telefone: (21) 30182201. E-mail: autuori_s@yahoo.com.br
3. Professora Associada, procientista do Instituto de Psicologia da UERJ e pesquisadora do CNPq. Contato: Travessa Mário de Castro, 97, Rio de Janeiro. Telefone: (21) 98812-3458. E-mail: doris_rinaldi@yahoo.com.br
1 Os olhos do poeta, em doce arrebatamento rolando, / Resvalam dos céus à terra, da terra aos céus; / E quando a imaginação corporifica / De coisas ignoradas os contornos, a pena do poeta / Converte-as e dá ao etéreo nada / Morada local e um nome. (tradução livre)Os artefatos Suyá foram recolhidos pelos antropólogos Eduardo Galvão e Protásio Frikel na década de 60 do século passado no Parque Nacional do Xingu. São brinquedos que entraram na Reserva Técnica em 1967. Sobre o tema, consultar: Galvão (1996).