Boletim - Academia Paulista de Psicologia
ISSN 1415-711X
RESENHAS DE LIVROS
Dias, A e Oiticica, C.M. (2014) Piaget, J. A. Formação do símbolo na criança. Imitação, jogo, sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro, LTC (original 1964).
Therezinha Vieira1
Univ. Federal de Minas Gerais (UFMG)
Sobre o autor: Piaget nasceu em Neuchâtel, Suissa, em 9 de agosto de 1896 e faleceu em 16 de setembro, em Genebra, aos 84 anos. Formou e doutorouse em Biologia. Posteriormente, seu interesse em filosofia levou-o a fundar a Epistemologia Genética. Foi professor de Psicologia dentre outras disciplinas. Escreveu mais de 70 livros e duzentos artigos. Seu trabalho teve grande influência na Psicologia e na educação.
Formação do Símbolo no cenário piagetiano. Certamente este é um dos livros mais conhecidos por quem se interessa pelo desenvolvimento infantil. A forma como a criança constrói os símbolos, tema central deste livro representa apenas um dos aspectos abordados por Piaget, quando trata do desenvolvimento da inteligência. Sabemos que o que mobilizava Piaget, um biólogo de formação, era como a razão se constituía. Embora de ordem filosófica, essa questão não deixa de ter um viés histórico, pois desde o século XVII (século das revoluções cientificas) passando pelo XVIII (século das luzes ou Iluminismo, Revolução Francesa) e no final desse mesmo século, a razão humana vinha sendo considerada como ferramenta de entendimento dos fenômenos da natureza e sociais. Nesse estudo, Piaget se apoia em dados empíricos obtidos, a partir de observações de seus três filhos e interagindo com situações do dia a dia. Anexam dados fornecidos por grupos de crianças em situações experimentais e utilizando seu próprio método clínico. Para construir sua teoria, Piaget elabora conceitos que explicitam um mecanismo, por meio do qual, o sujeito não só se reajusta continuamente ao interagir com o meio físico e social, mas também o transforma e se transforma ao assimilar e acomodar as novidades do meio a esquemas já construídos ou em construção. Organiza-os, reorganiza-os, atingindo novas adaptações, encontrando formas cada vez mais estáveis de equilíbrio entre assimilação e acomodação. O sujeito se desloca assim, numa evolução em espiral, ao longo de quatro patamares distintos - sensório motor, pré-operatório, operações concretas, operações formais. No decorrer desses períodos são construídas as estruturas da inteligência, típicas a cada um deles e que permitem avançar da ação para a representação e daí para operações mentais cada vez mais abstratas. A formação do símbolo, que vai sendo preparada no primeiro patamar, tem grande importância para a passagem do primeiro para o segundo. O sujeito piagetiano é representado como um ser ativo no sentido de que é ele que constrói seu próprio conhecimento.
A organização do livro: Numa visão restrita à organização do livro, podemos dizer que Piaget reserva as duas primeiras partes, divididas em três capítulos cada, para tratar das origens do simbolismo, depois de uma introdução na qual apresenta questões relevantes ao conteúdo que será apresentado a seguir. Na primeira aborda, exaustivamente, a imitação desde suas origens até seus desdobramentos, assim como teorias sobre a mesma; na segunda, o jogo, com sua classificação de exercício, símbolo e regra, seus respectivos desenvolvimentos, contrapondo sua teoria às que floresceram no século XIX. Apenas o Jogo de regras é mencionado de forma superficial, já que o analisa em outros livros. Seu foco principal é o jogo simbólico. Piaget incursiona ainda pelo simbolismo secundário do jogo e pelo onírico, conforme proposto pelos primeiros psicanalistas Na terceira parte, mostra como começa a se desenvolver a inteligência representativa e seus progressos em direção à reversibilidade mental.
Relevância do tema a "Formação do Símbolo": Do ponto de vista da importância destas temáticas transitamos e operamos num universo de símbolos e signos e para isso, temos necessariamente que construí- los, aprender a usalos e interpreta-los Neste caso há que se considerar o papel que desempenha a linguagem. Na solução proposta por Piaget, a aquisição da linguagem se acha subordinada à função simbólica, que por sua vez depende tanto da imitação e do jogo quanto de mecanismos verbais. Parece-nos especialmente importante, neste livro, a forma como Piaget deriva a relação significante/significado da diferenciação progressiva entre acomodação e assimilação, que se prolonga na imitação e no jogo, a partir dos primórdios da inteligência sensório-motora. É a constituição dessa relação que instaura a função simbólica da qual o símbolo lúdico e a linguagem são duas das manifestações. Isto nos parece um aspecto a destacar, devido às relações supostas por Piaget entre pensamento e linguagem. Uma de suas preocupações, neste livro, é demonstrar a linha de continuidade que existiria desde o nascimento da inteligência sensório-motora até quando se atinge a reversibilidade mental, passando pela função simbólica, pela inteligência representativa e intuitiva. Ou seja, para o autor, a vida social é vista como uma condição que auxilia neste percurso, mas em si mesma seria antes um fato a explicar. Esta é uma questão controversa que torna Piaget alvo de críticas. O trajeto da formação do símbolo e da inteligência representativa e seu desenvolvimento é descrito pelo autor nas três partes do seu livro, mas dá ênfase especial ao jogo simbólico. Daí avança para o simbolismo secundário do jogo e para o simbolismo onírico, quer consciente, quer inconsciente. Contudo, discorda, em muito, das análises dos primeiros psicanalistas e faz uma releitura de vários dos conceitos então utilizados com base nos seus próprios. Em verdade Piaget, quando por ai incursiona, parece querer compreender melhor os mecanismos das representações tanto quando estão implicadas na razão, como quando dizem respeito a aspectos mais subjetivos da experiência como no símbolo lúdico, secundário do jogo ou no onírico, consciente ou inconsciente. Piaget também aponta outras implicações do jogo em si mesmo, de interesse para o desenvolvimento da criança. Especialmente por conta da assimilação deformante que não se submete ao real porque não incorpora novas acomodações e apenas utiliza a imagem já interiorizada a título de significante, a criança pode assimilar a realidade aos desejos do eu. O jogo simbólico, assim, altera ficticiamente a realidade, conforme esses desejos se torna fonte de ficção e de novas significações. E propicia à criança que ainda não construiu estruturas mentais suficientemente desenvolvidas, reviver suas experiências por meio de uma linguagem mais vívida que aquela dos signos e conviver a seu modo com a realidade que a cerca e que mal compreende. Isto nos mostra que Piaget ressalta aqui funções afetivas para o jogo simbólico. Além disso, a ficção desse jogo vai ser mais tarde incorporada à inteligência adaptada como imaginação criadora, motor de todo o pensamento e mesmo da razão nos dizeres de Piaget. O jogo simbólico, portanto, na perspectiva piagetiana parece triplamente importante: como manifestação simbólica, se utilizando da relação significante significado; na sua função afetiva; como fonte precursora da imaginação criadora, na inteligência adaptada. Parece-nos que Piaget consegue demonstrar, nesse livro, uma linha de continuidade dos primórdios da inteligência sensório-motora à reversibilidade mental quando focaliza as condições que progridem em direção à função simbólica. Isto porque é a construção da relação significante significado e a consequente emergência desta função que permite à criança ultrapassar o campo imediato da ação e reiniciar um novo ciclo de centrações-descentrações no campo da representação que vai conduzi-la, mais tarde, à reversibilidade mental. A partir daí ela ingressa no universo das operações concretas e mais tarde formais, quando então o equilíbrio ente assimilação e acomodação se torna estável, assim como a adaptação que daí resulta. A leitura atenta desta publicação é fundamental para se acompanhar o conteúdo desse livro. A do último capítulo também, pois neste, Piaget retoma questões relevantes ao que apresentou, e dentre outras coisas, explica as relações possíveis entre assimilação e acomodação, com uma clareza cristalina.
Críticas: Algumas posições assumidas por Piaget e que se evidenciam neste livro de forma mais ou menos clara, têm sido objeto de críticas por parte de outros autores, dentre elas as relações entre pensamento e linguagem. O lugar que atribui ao social no desenvolvimento, isto é como condição que auxilia, mas não o determina, o uso do conceito de egocentrismo no pensamento da criança do préoperatório, na sua linguagem. Piaget, inclusive, assinala que o jogo simbólico, pelo menos nas suas primeiras fases, seria egocentrismo em estado puro. Só a medida que esse egocentrismo no pensamento vai se reduzindo este tipo de jogo tenderia a desaparecer. Embora deixe claro o que entende por egocentrismo e indique que só usa esse termo na falta de outro melhor, as críticas permaneceram.
Um livro para se ler e reler. Principalmente a teoria de jogo simbólico de Piaget impactou a maioria das pesquisas feitas após a sua divulgação e é um marco para os que se interessam pelo simbolismo e por tal jogo. Do ponto de vista empírico cabe salientar a precisão de suas descrições nas interações sujeitomeio , a forma sistemática como as analisa, compondo a partir dai suas elaborações teóricas. Do ponto de vista teórico o livro, apesar de escrito originalmente por volta de 50 anos atrás, permanece atual. Trata-se de uma leitura clássica e atraente.
1 Prof. Adjunto da UFMG, Livre - Docente da UNESP-ASSIS. Contato: R. Ardosia,132, Bonfim, 13210-480 - Belo Horizonte, Brasil. Tel: 031-3444-4688 email: thevi@uol.com.br