SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37 número93Contribuições do pensamento de Winnicott para teoria e prática do psicodiagnóstico psicanalíticoA construção da identidade do professor no contexto do ensino técnico integrado ao médio índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.37 no.93 São Paulo jul. 2017

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

O tempo na elaboração onírica

 

Time in the dream elaboration

 

El tiempo en la elaboración onírica

 

 

Therezinha Moreira Leite (Cad.16)1

Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O tema nos remete a duas questões básicas: ao conceito tempo e à evidência de trabalho mental característico à consciência onírica, em vigília, e durante o sono. A respeito deste último aspecto, leve-se em conta a atuação psíquica subliminar continuada caracterizando o que podemos nomear de pensamento, de ordem especialmente primária, mas pensamento. Apontada por Freud em seu trabalho sobre sonhos, e já anteriormente citada por artistas e poetas, estaria na base da elaboração onírica durante a noite e das realizações e comportamentos em momentos da vida desperta. Nesse panorama, nos parece, geralmente o sonho noturno evidencia, mais especialmente do que outras formações psíquicas, esse tempo subjetivo que se constitui pela articulação psíquica a par da contínua atuação no mundo circunstante também ele em contínuo movimento. Seguindo ainda a colocação de Freud, metáforas e símbolos indicam o conteúdo e o sentido, atinentes a julgamentos, avaliações, apercepções, afirmações, como no pensamento em geral, e em nível de uma lógica preponderantemente afetiva. Em sonho, destaca-se a subversão da ordem temporal na narração da estória (história) aparentemente incongruente, plena de veracidade, porém constituindo período de ação e atuação próprios, como se observa na passagem de seu conteúdo ao relato.

Palavras-chave: sonho; tempo subjetivo; processo onírico; lógica afetiva.


ABSTRACT

The theme is related to two basic questions: the concept of time and the evidence of mental work characteristic of dream consciousness, in wakefulness, and during sleep. Regarding this latter aspect, take into account the continued subliminal psychic performance characterizing what we can call thought, especially of primary order, but thought. As pointed out by Freud in his work on dreams, and already quoted earlier by artists and poets, it would be at the basis of dream elaboration during the night and of the achievements and behaviors at times of awakeness. In this panorama, it seems to us that the nocturnal dream usually reveals, more especially than other psychic formations, that subjective time that is constituted by the psychic articulation along with the continuous action in the surrounding world, also in its continuous movement. Following Freud's statement, the metaphors and symbols indicate the content and the meaning, related to judgments, evaluations, apperceptions, affirmations, as in general thought, and at the level of a predominantly affective logic. In the dream, the subversion of the temporal order in the narration of the story (history) seems to be incongruous, full of truth, but constituting a period of action and acting of its own, as observed in the passage of its content to the story.

Keywords: dream; subjective time; dream process; affective logic.


RESUMEN

El tema nos remite a dos cuestiones básicas: al concepto de tiempo y a la evidencia del trabajo mental característico de la conciencia onírica, en vigilia, y durante el sueño. Con respecto a este último aspecto, debemos tener en cuenta la actuación psíquica subliminal continuada caracterizando lo que podemos nombrar de pensamiento, de orden especialmente primario, pero pensamiento. Freud en sus trabajos sobre sueños, y anteriormente citada por artistas y poetas, estaría en la base de la elaboración onírica durante la noche y de las realizaciones y comportamientos en momentos de la vida despierta. En ese panorama, nos parece, generalmente el sueño nocturno evidencia, considerablemente más que otras formaciones psíquicas, ese tiempo subjetivo que se constituye por la articulación psíquica a la par de la continua actuación en el mundo circundante también en continuo movimiento. Para Freud, metáforas y símbolos indican el contenido y el sentido, relativos a juicios, evaluaciones, apercepciones, afirmaciones, como en el pensamiento en general, a nivel de una lógica preponderantemente afectiva. En los sueños, se destaca la subversión del orden temporal en la narración de la historia, aparentemente incongruente, plena de veracidad, pero constituyendo un período de acción y actuación propia, como se observa en el paso de su contenido al relato.

Palabras clave: sueño; tiempo subjetivo; proceso onírico; lógica afectiva.


 

 

Dinâmica do espaço onírico

Nesta apresentação é pertinente indicar como a abordagem a seguir se fundamenta em considerações próprias à cultura ocidental. Outras, de cunho oriental, trazem conceituações diversas conforme o aporte ao ser e à existência humana. Diante da realidade de observação entre nós, as considerações sobre o fenômeno estão cunhadas em temática específica da experiência e do pensamento ocidental.

Trata-se aqui de compreender a injunção do tempo, ou dos tempos, na dinâmica onírica tal como podemos referenciar a partir de reflexões e dados de literatura. Tomamos o sonho como referencial, levantando observações que provavelmente podem se aplicar a processos e realizações igualmente vitais no lapso de tempo característico da presença humana. Como evento de caráter onírico ocorrendo especialmente durante o sono, consideramos o sonho como evento indicando elaboração de conteúdos próprios ao sonhador, e características que a apresentação a seguir virá desenvolver.

O pesadelo distingue-se do processo onírico pelas peculiaridades de sua representação, seja pela interrupção da elaboração típica ao processo onírico diante de conteúdo assustador e emoção intensa, seja pelo não cumprimento da função de realização fantasmática a qual o sonho reporta. Sonhos repetitivos, sonhos típicos, ...são modalidades às quais se aplicam características apontadas no desenvolvimento do sonho.

Processos oníricos e emergência da elaboração contínua subconsciente em momentos diversos do período de sono e vigília podem ser ilustrados por imagens hipnagógicas e hipnopômpicas, em semi-vigília ao adormecer e ao acordar, ou seja,: na passagem ao adormecimento as primeiras, na passagem do sono ao despertar, as segundas; abrindo o leque, a arte, o brinquedo, o jogo, as realizações humanas estarão em geral relacionadas a esse elaborar contínuo de ordem subconsciente.

Falando de sonho, cabe reportar que muitos foram e tem sido os autores que se debruçaram sobre esse evento desde a Antiguidade, tema de curiosidade e recurso em utilizações diversas para desenvolvimento de saúde física e espiritual. Jorge Luis Borges em Livro dos Sonhos (1976) replica relatos de sonhos nos escritos bíblicos, sonhos construídos ou relatados na literatura em prosa e verso, as palavras de espanto de uma criança (sua neta) diante da ocorrência do sonho, assim como seus sonhos próprios. Forte a imagem do "tigre que o acompanha desde a infância", por toda a vida: o (fato) estranho que reporta sua veracidade e luminosidade característicos, como cita. Seres e paragens ao infinito em suas obras possivelmente seriam explicadas pela poesia inerente à elaboração onírica por toda sua vida.

Reportando o campo da psicologia e psiquiatria, em que muito se tem escrito a respeito, referimos Guillaumin (1979) "...a problemática do sonho é, como o próprio sonho, infinita"..."as questões que coloca e as instituições com as quais nos familiarizou, ressurgem mais confusas talvez, mas sempre renovadas, em todo material psicanalítico possível". Em se tratando da verificação de sentido de um sonho, "as formulações a que se chegou a respeito (em certo momento), continuam a ser substituídas por outras, verdadeiras ou falsas, tornando insatisfatórias as anteriores. ("Le rêve et le moi", p.14).

 

Inflexões temporais e processo onírico

O sonho é a expressão do pensamento que se continua em sono especialmente à noite, em progressão ao processo de ordem mental ocorrendo durante o dia. O tempo estaria inserido nesse pensamento, tempo pessoal especialmente representado, denotando mobilidade ou não.

A questão "tempo" do ou no sonho, afinal, cabe primariamente ao sonho. A tentativa aqui se faz, de ser fiel e coerente, com a falta de linearidade e o caráter intempestivo da experiência onírica; assim como confirmar a aceitação da atemporalidade e do não-tempo. Podemos inferir algo sobre ele, mas será sempre dado de nossa percepção, de nossa conceituação ou consciência, construindo regras que supomos cabíveis ao estudo dos fenômenos com que nos confrontamos. No entanto, estamos ali presentes, determinamos o fluxo imagético ainda que inconscientes de que o fazemos, até mesmo de como o fazemos.

A evolução da imagética onírica (não necessariamente apenas em sonhos) nos leva a pensar o conceito tempo não como dimensão determinada por parâmetros externos ao sonhador. Conjunto de eventos imaginários, aí o tempo, bem como o espaço, não existem como realidades concretas e externas a ele e nem sempre se constituem presentes em imagens. Não se experimenta nele o caráter de fixidez como são as horas no relógio, ou estático como podem ser os compromissos na agenda. Questões essas que se colocam ao considerar o sujeito existindo num espaço amplo de ordem temporal, em que as dimensões de passado, presente, futuro estariam demarcadas. Aí, sucessão de eventos em marcação da história individual e do grupo recebem destaque como registros vitais no desenvolvimento individual.

 

A trama explicativa do movimento onírico

Marcas e contingências desse tempo transpostas ao desencadear onírico: sonhos, conteúdos imaginários, realizações artísticas como a poesia, a música, a solução de problemas, o relato do próprio sonho, e realizações outras, serão igualmente representantes dessa corrente subliminar. A não ordenação das representações imagéticas em sonhos, assim como em outras manifestações, delineia o que se pode nomear "caos", esse tempo frequentemente sem possibilidade de representação sequencial: aí a rede de sentidos se constrói, ainda que a sequência não evidencie ordem cronológica e relação causa-e-efeito. O que reporta como a elaboração temporal tem seu imperativo inerente ao sonhador e especialmente a seu sonho, este como que constituindo representação do "estranho" ao sujeito. Contamos vários tempos no decorrer de nosso tempo, de nossa vida, de nosso trabalho, de nosso dia, de nossa noite. Em continuidade seja pela cronologia, seja pela conexão mantida pelo seu sentido no processo e movimento pessoal...

Em associações ao conteúdo relatado, a ordenação de vivências vitais a nível afetivo, bem como cognitivo, vêm fundamentar a elaboração temporal exigida à trama explicativa do movimento onírico, levando a um epílogo nem sempre definitivo e decisivo sobre seu sentido. Falamos aqui especialmente de sonhos, no entanto é necessário observar que outros processos citados estariam incluídos nesta observação. Trata-se de pensamento que se continua nesses instantes e momentos e sequências vitais. Significativo desde que em representação desse movimento subjetivo de que nos damos conta em manifestações diversas da realização humana, por intermédio de metáforas e símbolos indicativos de conteúdo e sentido.

Importante observar, no entanto, não só a continuidade de sonhos numa mesma noite, como em noites seguidas, o que faz observar as séries de sonhos se continuando no tempo individual (e por que não social). E se atentarmos à continuidade que a relação com o conteúdo diurno provê, incluindo aí a observação de correlação de "restos diurnos" ao material em sonhos, assim como a correlação de "restos noturnos" à vida diurna, mais somos despertados à continuidade de conteúdo e das realizações no conjunto das manifestações humanas. Esses fatos despertam a observação de que ruptura-continuidade na expressão e na linguagem oníricas, não estaria interceptando a continuidade do ritmo vital, pelo contrário favorecendo avaliação e retomada de direção na realização pessoal.

 

O sonho é tempo? O tempo é sonho?

A certo ponto das indagações aproxima-se o sonho ao próprio tempo, e a pergunta "o sonho é tempo?" e o seu reverso "o tempo é sonho?" se colocam decifrar. Jorge Luis Borges (1974) refere o tempo como a substância de que é feito ele próprio, o rio que o arrebata, o tigre que o destroça, o fogo que o consome...

E Michael Eigen, em Time and Dreams (1983, p.211), indica o tempo como sendo muito a essência do sonho, estruturado por mecanismos de condensação, simbolização, deslocamento, com frequência intimamente interligados com desejos profundos relacionados ao tempo vivido. "A estrutura do sonho, isolado ou em sequência, frequentemente contém um arco temporal, uma sequência evolutiva que não teria um significado genuíno, sem uma referência temporal". Ações em sonhos carregam tendências direcionais que fazem eclodir pulsações temporais ligando o antes e o depois como vetores. Segundo Kahn (1976), cita o autor, também "a experiência onírica desarticulada" possui um arco temporal, "carregada de sentido precisamente por causa do modo intangível que abre caminho através do tempo".

Em âmbito particular, o relato ilustra bem aspectos atinentes ao que tratamos no texto. Em sonho espontaneamente relatado por senhora, 75 anos de idade,

"O pai de andar elegante, se houvesse uma terrinha não se prenderia a sua roupa, descia a rampa para o elevador de um prédio moderno; a luz atravessava as paredes envidraçadas fazendo brilhar o espaço: diferente do antigo hall do prédio em que morava".

Trata-se do Hospital onde seria internado; atualmente um edifício novíssimo e moderno, apresenta-se assim no sonho: a luz preenchendo brilhantemente o espaço envidraçado contrasta com o fato real de quando foi internado e veio a falecer, na parte antiga. Mas, no sonho, aquela é uma rampa que liga a parte nova à parte antiga... O tempo fica marcado pela maneira conhecida, costumeira, de o pai se comportar, é o pai em verdade, no sonho, em espaço renovado e moderno...: o que parece revelar um outro tempo e seu reviver na sonhadora a respeito do pai e seu desejo de vê-lo vivo, a figura recuperada... diríamos, rede em que passado, presente, futuro se intercruzam, o sonho remetendo ao passado enquanto encaminha à construção nova bela, luminosa; isto é, o futuro reconstruído a partir do passado. "É uma criatividade a do sonho, como se pode observar na arte", é a fala da sonhadora terminando sua narrativa.

Algo do presente contrasta com o passado, a rampa antiga e o prédio novo que não foi conhecido na época a que se reporta o sonho. Possibilidade construída na estrutura do sonho; como um todo, ênfase no novo, o prédio; também na figura do pai, elegante, não seria apanhado por um grão de terra, destoando do envelhecimento (e provável deselegância) do prédio e da morte.

O desencadear onírico, por mais movimentado, se coloca ao sonhador como que uma tela apelando à "contemplação" enquanto captura seu olhar; é de um tempo presente que se trata, enquanto se inclui em ampla dimensão de eternidade, acentuando como a arte, a experiência de tonalidade especialmente afetiva, o conteúdo e sentidos próprios ao sujeito que sonha. O mesmo ocorrendo quando de seu relato. E como se diz, como um exercício da memória, seu conteúdo refere eventos, pessoas... vividos pelo sonhador ou substitutos; e se não repetem a história passada (impossível de repetir), referem a estória por ele vivida, o sentido que lhe atribui, sua organização dos acontecimentos, o conceito que constrói a respeito. E importante, assim como se dá em vigília, a consciência no sonho revela uma experiência vivida no momento presente.

 

O relato do sonho e a apercepção da experiência íntima

O trabalho na clínica oferece subsídios para reconhecer que o relato do sonho constitui caminho para reconhecimento da verdade e concomitante recuperação de dados mantidos em reserva; encadeados no momento para apercepção renovada da experiência íntima no movimento característico de tempo no sujeito; incluindo memória do ontem e do anteontem indefinidamente, assim como o futuro tão evanescente quanto o passado.

A ênfase no processar onírico recai na mudança contínua e na instabilidade, na falta de sentido, ou numa suposta falha de sentidos. As figuras estão realmente indicando uma ética? Palavras de Harry A. Wilmer (2005) constantes à articulação onírica e relato por pessoas em atendimento clínico são citadas, referindo sua intenção de ressaltar o enorme poder da narrativa onírica; sua intenção é encontrar a dramaturgia na estória de sonhos selecionados pelo interlocutor e apresentados no diálogo com o analista. Ele os relata como literatura e não como estudos de casos clínicos. Muitos sonhos e pesadelos de pessoas comuns podem ser considerados comentários sobre moral, valores e verdadeiros julgamentos éticos.

Sim, elas referem uma ética que independe do meu julgamento como observador no momento. Ao tempo que corre, em exacerbação contínua da transmutação de imagens de uns para outros conteúdos e transformação de imagens de umas em outras, evidenciando o valor relativo do que é colocado em pauta, conceitos de valoração moral se constroem, "aquele andar direito, aprumado, figura que poderia estar vestida, se estivesse mexendo no jardim, não ficaria uma terrinha no sapato, na roupa," repetia a sonhadora. A "verdade" admitida se estampando no comentário e a tendência à mudança pessoal se revelando. Passado, presente, futuro se estreitando em um só termo. A responsabilidade colocada pelo trabalho do sonho...

Em seguida ela reflete a respeito do homem com quem sonhou, não pode contar à esposa; a culpa por seu envolvimento com a situação e as pessoas nele inseridas se revela na indagação "como que ele apareceu para mim e não para ela?" A par desse aspecto pessoal próprio, percebe-se bem, por vezes de maneira clara, como o sonho denota conteúdo de ordem social, experiência calcada no convívio e na vivência em grupo. Sua questão, a que se coloca e compartilha no momento refere justamente aspectos éticos, enquanto integrante do grupo social e portadora de valores aí partilhados.

Neste momento, poderíamos considerar a aproximação que o sujeito mantém com sua "cidade interior", seu tempo e o que lhe é válido. Tendo em vista a cidade própria a cada um, ainda que compartilhada em seu espaço, desenvolvimento, "mitos e ritos", estória e desejos,... cabe apontar o trabalho anteriormente realizado em grupo sobre o assunto do sonho. Em experiência específica, a certo momento, o desenvolvimento dos trabalhos já adiantado, em terceira sessão, por meio de sonhos relatados a "cidade" parece representar justamente o desejo e a viabilidade da realização em grupo; recorrente em sonhos relatados pelos integrantes e podendo ser tomado como símbolo da reunião em torno de objetivos comuns e realizações em conjunto, dessa forma pareceu exprimir a tendência e o desejo da reunião social, ao mesmo tempo garantindo a cada um sua experiência própria em seu percurso vital (Moreira-Leite, T., 1994).

 

O caráter subjetivo do tempo individual nas relações pessoais

Por um lado, considerando o estilo individual no grupo, poderemos atentar às primeiras experiências de inter-relação no sujeito humano. O caráter subjetivo do tempo individual nas relações pessoais circunscreve diferentes dimensões de tempo derivadas de bases genéticas, do desenvolvimento e da história próprios a cada um. Por outro, temos as relações com o tempo da vida da pessoa específica, com seus objetos, suas memórias, resultantes de sua experiência no grupo e na cultura. A percepção pessoal se passa necessariamente no grupo, e dessa forma se constitui calcada nos valores e nas experiências culturais que o diferenciam em lugares e momentos diversos.

As relações precoces do infante com a mãe, ou substituto, e com a família, geralmente primeiros personagens no seu intercâmbio com o meio, determinariam a construção do ritmo no desenvolvimento infantil. Observando o comportamento (jogo, relações com os adultos e seus pares, o desenho da figura humana...) e levantando o histórico de população de crianças de 2 anos e ½ a 3 anos e ½, frequentando uma creche em período de três a quatro horas diárias, possibilitou-nos indicar que apresentavam ritmo diferenciado, correspondente a seu estilo de comportamento, desde a idade de aproximadamente 1 ano.

Ainda que a conduta infantil se caracterize por marcações individuais de tempo, ocorre que parece configurar relações temporais relacionadas com as configurações expressas pela figura materna, pela figura paterna, pelo contexto familiar, e por eventos ocorrendo no grupo. Sem dúvida essas marcações concorrem para o desenvolvimento infantil e possível aquisição de um ritmo que lhe é próprio ainda que configurado por condicionamentos ambientais. Os dados referentes a crianças, em consequência, nos permitem falar de diferentes tempos, ou melhor, marcações de tempo e ritmos que se estabelecem nas mais diversas condições no fluxo vital e na experiência humana, seja a nível individual, seja a nível grupal. Dessa forma parecem convenientes e adequados considerar as relações mãe-criança de uma perspectiva temporal, assim como outros relacionamentos, e também as variadas realizações, manifestações e expressões humanas. Será necessário compreender como o tempo toma formas diversas em diversas condições de vida, seja no indivíduo, seja em diversos grupos e culturas. Seja por sua incidência no grupo, seja pelas marcações que estabelece. Moduladas pela convivência incidem possivelmente em suas realizações, bem como em diversos momentos da evolução humana.

Aí, tempo e pensamento (sonho aí incluído), como temas de observação e conceituação revelam estar envolvidos na continuidade e fluidez características que viemos apontando e estabelecemos acima. À realidade apontada pela elaboração onírica, tempo se torna presente na indicação da evolução do conteúdo...

 

Considerações Finais

Os marcos temporais em relação à identidade das pessoas (datas, idade...) não são universais, nem mesmo existem em algumas culturas (Ariés, 2006); sua utilização data da Idade Média, e concepções de periodicidades na vida foram diferentemente utilizadas nas épocas seguintes. Esse sistema em que o tempo existiria fora do sujeito estabelecendo uma sucessão apesar dele, embora sirva de garantia a concepções de estrutura que manteriam a estabilidade do dado físico e mental, vem a ser contestado diante de dados da teoria da evolução. A partir do século XVIII, com base em dados paleontológicos e culturais, essa teoria incita a conceber as mais diversas formas de vida em contínua evolução. Daí, as classificações dos fenômenos baseadas em categorias estáticas, substituem-se por concepções que tratam da mudança e, especialmente, do processo (Vergote, 1984).

Psicologia, psicanálise, fenomenologia se colocam como abordagens teóricas relevantes ao campo da evolução da subjetividade; aí, tempo tem sentido na medida em que institui o sujeito, e na medida em que se institui no sujeito, ao contrário de dar-lhe sentido exterior específico. Podendo-se determinar um período de idade em que ocorreria, faz-se necessário considerar as relações anteriores, eventos na história pessoal, que determinam caracterizações específicas nessa construção. Relevante notar, à direção impressa pelo ritmo biológico no indivíduo e na espécie, contrapõe-se a realização simbólica humana, que pode transcender a delimitação e marcação de tempo e ritmo exato e repetido. Este depende, ademais, de condições orgânicas e afetivas variando em determinado momento.

Nesse sentido, as indicações sobre as relações com a mãe ou substituta, com figuras familiares, e experiências outras podem se estabelecer como elementos básicos para posterior demarcação do ritmo ou das relações temporais no sujeito. De modo a determinar o ritmo e desenvolvimento na relação com os objetos de cognição e afeto, e o próprio ritmo de maturação, atravessada pela história/estória coletiva e grupal; em espaço também simbólico, espaço de significações, marcado pela experiência passada, tendo como perspectiva a realização futura. Torna-se impossível determinar relações de causa e efeito, pontuais e lineares.

Nesse sistema complexo, como numa rede de eventos e significâncias, a "vivência do horizonte temporal" (Augras, 2011, p.35) viria acompanhada de movimentos num espaço próprio ainda que partilhado. O tempo observado, correspondendo ao movimento atravessando pontos referenciais em um sistema de representações no sujeito; intersecção em que se faz o significado marcando pontos na sequência que dará a continuidade, a ela associada a percepção de permanência.

Ao tratar da experiência em sonhos em que corrente de consciência subliminar nos apresenta um conjunto de vivências especialmente a nível visual, aproximamo-nos da concepção do processo onírico como elaboração de pensamento. Aproximamo-nos aqui da colocação de Bergson (2006), em que a essência desta duração, interior, está no fluir contínuo criador. Dessa forma consideramos uma concepção de tempo referida às condições de sua evolução no sujeito levando em conta as relações que aí se estabelecem no campo inter e intra-subjetivo. Ou seja, tendo o propósito de trabalhar o conceito de tempo levando em conta sua construção no sujeito inserido no grupo.

À determinação e direção impressas ao desenvolvimento pelo ritmo biológico no indivíduo e na espécie, como ficou dito acima, sobrepõe-se a dimensão da realização humana, trazendo em seu bojo o sentido da ação, o significado da palavra, a simbolização. Leve-se ainda em conta, a diferenciação nas relações temporais, a variação do ritmo no sujeito, dependendo de condições orgânicas e afetivas. Bem como condições de fadiga, estados de impregnação tóxica, psicopatologias...

O que queremos enfatizar é como a perspectiva temporal se constrói no sujeito humano com base em um sistema mais ou menos maleável de relações desde as primeiras experiências, vivências e demais eventos marcando seu desenvolvimento na sua carreira de vida. Uma estrutura por relações de ritmo começa a ser demarcada nos primeiros contatos da criança com o mundo circundante. De modo a cunhar o padrão de relação e afeto, marcando o próprio ritmo de desenvolvimento e maturação.

O sonho se constrói no não-tempo, já no que se pode indicar como marcação de momentos sucessivos; esse fato dá margem a considerar seu aspecto de transcendência ao momento e de inserção na transitoriedade do tempo e do momento, lembrando a dimensão de infinitude na existência humana. É um fluir do que se poderia chamar de eventos sem determinação de lugar preciso e hora, se sucedendo.... No entanto, se insere no tempo vivido reportando dados a serem daí reconhecidos e elaborados, propondo sua inserção em elaboração pertinente e necessária à continuidade vital.

 

Referências

Ariès, P. (2006) Historia Social da criança e da família. 2.Ed. Rio de Janeiro:LTC.         [ Links ]

Augras, M. (2011) O ser da compreensão, Petrópolis, RJ.: conferências, Vozes.         [ Links ]

Bergson H. (2006) O pensamento e o movimento: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Eigen, M. (1983) Time and Dreams, Psychoan. Review, 70(2), 213-220.         [ Links ]

Freud, S. (1900) La interpretation de los sueños, Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1948, p. 231-581.         [ Links ]

Guillaumin, J. (1979) Le rêve et le moi. Rupture, continuité, creation dans la vie psychique. Paris: PUF.         [ Links ]

Khan, M.M.R. (1972) La capacité de rêver, Nouv. Rev. Psychan. L'espace du rêve, 5, p.283-286.         [ Links ]

Moreira-Leite, T. (1994) Em busca do Tempo Perdido: o espaço do sonho no continuum psíquico. Relato de uma experiência com grupos de sonhos. Tese de Livre-Docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Vergote, A. (1984) Le temps Psichologique, in Temps et Devenir, Louvain: Presses Universitaires de Louvain-La-Neuve, p.209-242         [ Links ]

Wilmer, Harry, H. (2005) Dreamtime, J..Assoc. for the Study of Dreams, 22(1).         [ Links ]

 

 

Recebido: 17/10/2017 / Corrigido: 07/11/2017 / Aceito: 09/11/2017.

 

 

1 Professora Titular aposentada - Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Rua Marquês de Paranaguá 190, ap.23 - São Paulo, SP. CEP 01303-080.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons